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Portuguese Pages 517 [522] Year 2018
Estudos Históricos
MarcoMorel
GUERRA, IMAGENS E RESISTÊNCIA INDÍGENA
Guerra, imagem e ciência se articulam na rrajetória histórica de cinco séculos dos grupos indígenas chamados de Aimorés, Botocudos e atualmente Krenak. Este livro se constitui numa história das imagens (iconográficas e textuais) acompanhada de contextualização e, sempre que possível, das expressões elaboradas pelos próprios índios. A análise inclui as relações políticas, sociais e as condições de vida destas populações. Desde as primeiras narrativas coloniais, passando pela catequese, Iluminismo, viajantes naturalistas, Romantismo, Antropologia Física, Modernismo e Antropologia contemporânea, o livro apresenta um painel das representações culturais em torno desta rribo, uma das mais "cobiçadas" pela ciência. A confusão entre o exótico e o exato. Trara-se de um trabalho de historiador (com estilo próximo ao da ficção literária em alguns momentos) baseado numa ampla pesquisa documental em arquivos nacionais e internacionais feita durante treze anos, bem como nos relatos orais. O livro agora publicado foi finalizado em 2006. A narrativa historiográfica sobre este grupo indígena se constitui numa saga que expressa tradições de violência, conflito social, homogeneização cultural e ocultação de memória na formação da sociedade brasileira. O esrigma de "Botocudo" aparece como espelho inverrido da identidade nacional. A resistência indígena se destaca em múlriplas facetas e estratégias de sobrevivência, realçando tais populações como agentes históricos em luta por uma sociedade plural que, ainda hoje, não reconhece suas próprias imagens.
C: \P\
HUCITEC EDITORA
Criação: l.uis Díaz. Imagem: Femme Botocudo, face et protll, dite \larie E. Thiesson. photographiée à Paris en 184-t. P F0086830;1' \I 000029;1' '\I OOOO.lO. Th iesson E. (acrif au 19e siecle). Loc,tlisarion: Paris, musée du quai Branl). Phoro ((:) \lusée duquai BraniY, Dist. R\101-Grand Palais/image musée du Quai Branly.
MARCOMOREL
A SAGA DOS BOTOCUDOS
.
guerra, 1magens e resistência indígena
HUCITEC EDITORA São Paulo, 2018
© Direitos autorais, 2016, de Marco More!. © Direitos de publicação reservados por Hucitec Editora Ltda., Rua Águas Virtuosas, 323 02532-000 São Paulo, SP. Telefone (55 11 2373-6411) www.huciteceditora.com.br [email protected] Depósito Legal efetuado. Coordenação editorial MARIANA NADA
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CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ M84s Morei, Marco, 1960-
A saga dos Botocudos : guerra, imagens e resistência indígena I Marco Morei. - 1. ed. -São Paulo : Hucitec, 2018. 517 p. ; 21 cm. (Estudos históricos ; 91) Inclui índice ISBN 978-85-8404-050-6 1. Índios Botocudo- História. 2. Índios da América do Sul- BrasilHistória. I. Título. II. Série.
16-36466
CDD: 981.00498 CDU: 94{=87){81)
Nós vivemos uma vida muito triste. -
HIM (JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA KRENAK), em 2000
Mas a história dessa terra, desse troço aqui, leva a noite inteira contando. Leva a vida inteira contando, o que é que aconteceu, o que é que deu, o que é que não deu ... -
TCHARN (MARIA SôNIA KRENAK), em
1998 Mas entre os indígenas das terras de pau-de-tinta outras foram as condições de resistência ao europeu: resistência não mineral, mas vegetal. [...] A reação do domínio europeu, na área de cultura ameríndia invadida pelos portugueses, foi quase a de pura sensibilidade ou contratilidade vegetal, o índio retirando-se ou amarfanhando-se ao contato civilizador do europeu por incapacidade de acomodar-se à nova técnica econômica e ao novo regime moral e social. - Gilberto Freyre. Casa-grande e senzala, capítulo II, O indígena na formação da família brasileira.
SUMÁRIO
Índice de ilustrações e mapas
6
Abreviaturas
10
Prefácio,joão Paulo Pimenta
11
Introdução
15
I - Os "vis Aimorés" 1. Ferocidade no papel: primeiros registros 2. Aldeamentos, entre mortandades e milagres 3. Terras e corpos rasgados nas rotas do gado e da mineração
52 79
21
II- Cerco aos Botocudosno século XIX 4. Guerra de 1808-1824: o império luso-brasileiro contra os "antropófagos" 5. Viajantes descobrem a "cordialidade dos selvagens" 6. Independência e morte: o Império do Brasil submete os "índios bravos" 7. O mau selvagem: Romantismo, História e civilização 8. Sob o rigor da ciência: múltiplas imagens e esqueletos viajando 9. Índios na vitrine: a ExposÍfáO Anthropologica Brazileira
109 148 183 221 285 328
III - Krenak, alvorecer do "povo novo" 10. De Botocudo a Krenak: caminhos, pontes e muros 11. Na arca de Noé, a sobrevivência por um fio 12. Sementes na terra reconquistada
355 406 452
Bibliografia e fontes
488
5
ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES E MAPAS
Mapa 1. Mapa-mundi. Bartolomeu Velho, 1561. Mapas Históricos Brasileiros. São Paulo: Abril Cultural, 1969. Mapa 2. Nova et accurata tabula. Jan Blau, 1640. Mapas Históricos Brasileiros. São Paulo: Abril Cultural, 1969. Mapa 3. "A marcha do povoamento e a urbanização- século XVll". Sérgio Buarque de Holanda {org.). História geral da civiliza;ão brasileira, t.1, vol. 1. Mapa 4. Mapa de área com presença dos Botocudos. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 1. Ataques de {ndios Botocudos na região de Minas Gerais com danos e mortes. Aquarela de Caetano Fonseca de Vasconcelos, [c.a. 1800], IEB/USP. Figura 2. Pintura de um confronto envolvendo tropas pluriétnicas e índios. J. M. Rugendas, . Figura 3. Desenho de dois soldados. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 4. Representação de Pataxós. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura S. "Cabeça de Botocudo mumificada pelos Patachós". Jean-Baptiste Debret, http://www.bbm.usp.br/. Figura 6. Botocudo preparado para o combate. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 7. Botocudos. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 8. Príncipe Maximilien e tropa. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 9. Príncipe Maximilien e tropa. Detalhe da Figura 8. Figura 10. Chefe June, ou Juné, ou Kerengnatnouck, n.O 1. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 11. Chefe June, ou Juné, ou Kerengnatnouck, n.O 2. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 12. Índio Maxacali aprisionado por um Botocudo. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 13. Botocudos na água. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 14. Utensílios fabricados por Botocudos. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 15. Cabanas construídas por Botocudos. Jean-Baptiste Debret, . Figura 16. Príncipe Wied-Neuwied e o Botocudo. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 17. Litogravura de um homem, Firmiano Durães, índio Botocudo. A. Saint-Hilaire, 1830. Figura 18. Botocudo. Spix e Martius, 1981. Figura 19. Cena de Botocudos caçando animais selvagens. Rugendas, . Figura 20. Rosto feminino de Botocudo. Rugendas, . Figura 21. Rosto masculino de Botocudo. Rugendas, . Figura 22. "Família de Botocudos em marcha". Jean-Baptiste Debret, .
26 27 28 118 33 91 120 124 125 126 127 150 150 152 153 156 159 162 162 165 167 172 173 174 17 4 177
Figura 23. Detalhe do conjunto de retratos de "cabeças" de índios. Jean-Baptiste Debret, . Figura 24. Devastação da Mata Atlântica. M . Wied-Neuwied, 1822. Figura 25. "Botocuda mendigando". J. J. Tschudi, 1866. Figura 26. Índios incorporados pelas frentes de expansão. M. Wied-Neuwied, 1822. Figura 27. Imagem de medalha cunhada no ano da coroação de D. Pedro II (1841). Museu Mariano Procópio, in L. Schwarcz, 1999. Figura 28. Índia de um grupo de Botocudos. F. A. Biacd, 1862. Figura 29. Desenho aquarelado retratando a Filadelfia que surgia nos sertões mineiros. Shirner, 1860. Figura 30. Q],ladro de Santa Rosa, século XX. Grandes Personagens da Hist6ria do Brasil, vol. II. Figura 31. Grupo de chineses no Rio de Janeiro. Saint-Hilaire. Figura 32. Daguerreótipo de mulher, frente. E . Thiesson. PM000028. Iconotheque du Musée du Q],tai Branly. Figura 33. Daguerreótipo de mulher, perfll. E. Thiesson. PM000029. Iconotheque du Musée du Q],lai Branly. Figura 34. Daguerreótipo de rapaz. E. Thiesson. PM000030. Iconotheque du Musée du Q],lai Branly. Figura 35. Daguerreótipo de rapaz, perfll. E. Thiesson. PM000057. Iconotheque du Musée du Q],lai Branly. Figura 36. Daguerreótipo de rapaz, "três quartos". E. Thiesson. PM000058. Iconotheque du Musée du Q],lai Branly. Figura 37. Desenho baseado em descrições textuais. James Henderson, 1822. Figura 38. Esboço feito à mão por D. Pedro II, 1860. Corpo. Museu Imperial, Petrópolis. Figura 39. Esboço feito à mão por D. Pedro II, 1860. Rosto. Museu Imperial, Petrópolis. Figura 40. Esboço feito à mão por D. Pedro II, 1860. Três rostos. Museu Imperial, Petrópolis. Figura 41. Foto de índia e criança. Marc Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 42. Foto de jovem índia de catorze anos. Mace Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 43. Foto de mulher "muito idosa". Mace Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 44. Foto de mulher indígena. Mace. Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 45 . Foto de homem indígena, perfil. Marc Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 46. Foto de índia e criança, perfll. Mace Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 47. Foto de indígena, perfil. Marc Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 48 . Foto de mulher indígena, perfil. Marc Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 49. Foto de mulher indígena, perfil, II. Mace Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 50. Foto de mulher indígena, frente. Marc Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 51. Foto de mulher indígena, perfil, III. Mace Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 52. Foto de mulher indígena, perfil, IV. Marc Ferrez, 1876. Fundação Biblioteca Nacional. Figura 53 . Desenho de crânio de um Botocudo. M. Wied-Neuwied, 1822.
179 198 204 210 236 248 274 274 2 91 297 297 299 299 299 302 305 306 307 311 311 311 311 312 312 312 312 313 313 313 313 318
Figura 54. "Selvagens Botocudos". Castro Meneses; Joaquim Ayres. Acervo IHGB. Figura 55. Caricatura 1, Angelo Agostini. Revista Il/ustrada, n.• 310, 5\8\1882. Acervo particular Marco Morei Figura 56. Caricatura 2, Angelo Agostini. Revista !Ilustrada, n.• 310, 5\8\1882. Acervo particular Marco Morei Figura 57. Foto de três Botocudos. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 58. Foto de Botocudos sentados. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco More!. Figura 59. Foto de Botocudos sentados em um tronco abatido. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 60. Foto de dois Botocudos. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 61. Foto de crianças agrupadas. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 62. Foto de casal com uma criança. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 63. Foto de Botocudos com arco e flecha. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 64. Foto de família com flautas. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 65. Foto de Botocudos acendendo fogueira. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 66. Foto de cinco índios junto a árvore. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 67. Foto de índios sob tenda de lona. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 68. Foto de Botocudos aglomerados em volta de um homem branco. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 69. Foto de dois homens. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 70. Foto de cena de caçada. Walter Garbe, 1909. Acervo particular Marco Morei. Figura 71. Única foto do chefe chamado Krenak. 1910. Acervo da familia de José Vieira da Fonseca, reproduzida em I. Missagia de Mattos, 2004, p. 397. Figura 72. Foto de três índios em atitude de trabalho. Posto Guido Marliere. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro. Figura 73. "Índios Aimorés que tomaram parte na turma de exploração entre o rio Doce e S. Mateus, para a construção da estrada e que, depois, estiveram na capital do Estado, em vista às autoridades". Cacique Tetchuc. Alberto Lucacelli, 1911. IHGB. Figura 74. "Grupo de Índios Aimorés". 1919. Cacique Nazaré. Acervo IHGB. Figura 75. "Estampas do sabonete Eucalol. Botocudo. Os índios do Brasil. Série 32, Estampa 1". Figura 76. Foto de escola construída pelo SPI, "Escola Indígena Vatu". Heinz Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro. Figura 77. Foto de paisagem. Heinz Forthmann. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro. Figura 78. Foto de crianças trabalhando, Posto Guido Marliere. Heinz Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro. Figura 79. Foto de índios agrupados aguardando a distribuição de uma mesa. Heinz Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro. Figura 80. Foto de menino (Gabriel) se alimentando. Heinz Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro. Figura 81. Foto de meninos Krenak e diretor do SPI. Heinz Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro.
345 348 348 362 363 363 362 364 365 366 367 367 368 368 369 369 370 386 394 398
400 403 410 411 412 413 413 413
Figura 82. "Velho índio Krenak". Heinz Forthmann, 1946. Acervo do Museu do Índio, Rio de Janeiro. Figura 83. Foto de Sebastiana (Tacruk). Foto de Sonia Marcato (1979). Figura 84. Foto de Joaquim Grande, lfder dos Krenak. Foto de Sonia Marcato (1979) . Figura 85. Foto de Sebastiana (Tacruk) e Jacó, netos do chefe Krenak. Foto de Sonia Marcato (1979). Figura 86. Foto do autor com o cacique José Alfredo de Oliveira, apelidado de "Seu Nego". (Him, na lfngua Krenak). Acervo particular Marco Morei. Figura 87. Foto de Seu Nego. Marco Morei. 1998. Acervo particular Marco Morei. Figura 88. Foto com José Carlos (Kren) e Solange (Tetuita), ftlhos de Seu Nego, ao transitar pela área Krenak. Marco Morei. 1998. Acervo particular Marco Morei. Figura 89. Foto de Solange Krenak (Tetuita) em escarpa. Marco Morei. Acervo particular Marco Morei. Figura 90. Foto de Maria Sônia (Tcharn) e marido, Bibiano, xerente. 1998. Marco Morei. Acervo particular Marco Morei. Figura 91. Foto de mulheres Krenak. 1998. Marco Morei. Acervo particular Marco Morei. Figura 92. Foto de ruínas do presídio indígena I . 1998. Marco Morei. Acervo particular Marco Morei. Figura 93. Foto de ruínas do presídio indígena II. Marco Morei. 1998. Acervo particular Marco Morei. Figura 99. Foto de Laurita (Tacrukinic). Marco Morei. 2000. Acervo particular Marco Morei. Figura 100. Foto do autor com grupo de crianças à beira do rio Eme. 2000. Acervo particular Marco Morei. Figura 101. Foto de José Carlos (Kren), José Osmar e Maiara, em frente à Escola Índigena na reserva Krenak. Marco Morei. 1998. Acervo particular Marco Morei.
414 430 441 442 45 5 458 461 462 465 469 470 471 472 473 486
ABREVIATURAS
AHE AHMIP AN Apeb Apes BNF FBN FBN/Icon FBN/MSS FBN/SOR Funai IEB/USP IHGB MHO
MI RAPM SPI
Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro. Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis, Rio de Janeiro. Arquivo Nacional do Brasil, Rio de Janeiro. Arquivo Público do Estado da Bahia, Salvador. Arquivo Público Estadual do Espírito Santo, Vitória. Bibliothêque Nationale de France, Paris. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Divisão de Iconografia da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Divisão de Obras Raras da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Fundação Nacional do Índio Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, São Paulo. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro. Arquivo do Musée de l'Homme, Paris. Arquivo do Museu do Índio, Rio de Janeiro. Revista do Arquivo Público Mineiro Serviço de Proteção ao Índio
PREFÁCIO
Sim, cada morto deixa um pequeno bem - sua memória - e pede que cuidemos dela. Para aquele que não tem amigos, é preciso que o magistrado ocupe seus lugares. Pois a lei, a justiça, é mais segura que todas as nossas afeições esquecidiças, que todas as nossas lágrimas tão rapidamente secas. Essa magistratura é História. E os mortos são, para dizer como no Direito romano, essas pessoas miseráveis com as quais o magistrado deve se preocupar. Nunca em minha carreira perdi de vista esse dever do historiador. Dei a muitos mortos bem esquecidos a assistência de que eu mesmo teria necessitado. Eu os exumei para uma segunda vida. Muitos não eram nascidos no momento que lhes teria sido adequado. Outros, na vigília de circunstâncias novas e executoras que vêm apagar, sufocar sua memória (por exemplo, os heróis protestantes, mortos antes da brilhante e esquecidiça época do século XVIII, de Voltaire e de Montesquieu). A história acolhe e renova essas glórias deserdadas; ela dá nova vida a esses mortos, ressuscita-os. Sua justiça associa assim aqueles que não viveram ao mesmo tempo, repara os muitos que não apareceram senão em um momento, para logo desaparecerem. Eles agora vivem conosco, que nos sentimos seus parentes, seus amigos. Assim 11
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JOÃO
p AULO
PIMENTA
se constitui uma família, uma cidade comum entre vivos e mortos. 1
Escritas há cento e cinquenta anos atrás, as belas palavras do grande historiador francês Jules Michelet atribuíam enorme responsabilidade àqueles que se dedicassem ao estudo do passado, oferecendo-lhes, ademais, um alento. Em um mundo de "injustiça" e "esquecimento", a conversão da História em "magistratura" significava sua conversão em uma necessária forma de atuação, ademais singularizada pela experiência sedutora de compartilhamento da vivência desse mundo com os mortos. Atualmente, algum historiador consegue abdicar por completo da expectativa de tal experiência, tão desejável quanto inatingível, tão encantadora quanto quimérica? Ora, substantivos como injustiça e esquecimento, outrora tão caros a Michelet, hoje parecem igualmente capazes de se converter em adjetivos de reconhecimento do mundo. Seria ainda concebível tomar o historiador como espécie de magistrado? A leitura deste novo livro de Marco More/, categoricamente, nos diz que sim. Porém, se A saga dos botocudos: guerra, imagens e resistência indígena trata de tema não totalmente inédito - e seu autor dialoga de modo absolutamente sagaz com o que a seu respeito já foi escrito - ele o Jaz, porém, em uma perspectiva inusitada. Pois aqui, a história de populações indígenas habitantes desse subcontinente que seria progressivamente colonizado pelos portugueses a partir do século XVI e de certa forma recolonizado pelos brasileiros a partir do século XIX, bem como das imagens produzidas a seu respeito, é uma história reparadora não de mortos-desaparecidos e exumados para uma segunda vida, mas de mortos ainda vivos. Os botocudos, prematuramente esquecidos por gerações de especialistas e não especialistas que se apressaram em declará-los e acreditá-los completamente desaparecidos em nosso país, surgem aqui em seu passado, mas também em seu presente e seu foturo. Em carne e osso, em pinturas, desenhos, gravuras e fotografias (uma, ao lado de Morei}, vivíssimos de muitasformas, mas até agora - eis uma das maiores injustiças de que são 1 Jules Michelet. "Préface - Des justices de l'Histoire". ln: Histoire du XIXe siede: tome IL-jusqu'au 18 brumaire. Paris: Michel Lévy Frêres, 1875, pp. III-IV
(tradução livre). Agradeço ao historiador José Miguel Nanni Soares a localização exata desse trecho.
PREFÁCIO
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vftima - impossibilitados de habitarem a mesma cidade daqueles outros vivos, os neles interessados. Reparador de múltiplas injustiças nem sempre bem percebidas pelos estudiosos dessas populações, Marco More! aqui trabalha como o historiador amplamente conhecido e respeitado por suas outras grandes contribuições à historiografia brasileira: a debruçar-se sobre tema impactante, oferecendo excelente narrativa, e manejando de modo altamente profissional todos os fundamentos do ofício. Com um detalhe: ao evocar com naturalidade, leveza e sem alarde o manancial daquilo que nosso mundo segmentado em nichos de conhecimento superespecializados convencionou chamar de "outras disciplinas" no rol das Ciências Humanas, ofaz, simplesmente, como um historiador. Isto é, como um analista que jamais poderia acreditar na possibilidade de explicar uma parcela da realidade social (passada-presente) por meio de uma únicafonte teórico-metodológica, de uma única disciplina. Não era assim que o ofício do historiador costumava ser pensado há algumas décadas? Isto é, antes de ele ser contaminado pela mesma combinação contemporânea entre aceleração, pragmatismo e superficialidade que- ironicamente- parecem ter levado os botocudos a um enterro prematuro. Que o leitor aproveite do livro que ora tem em mãos: ele épeça única. -JOÃO
p AULO
PIMENTA
Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO
Este livro se constitui numa história das imagens (iconográficas e textuais) geradas ao longo de cinco séculos sobre grupos indígenas chamados de Botocudos, acompanhada de contextualização histórica e, sempre que possível, das expressões elaboradas pelos próprios índios. Logo, não se propõe a ser uma história desses povos, o que abrangeria um amplo levantamento de particularidades regionais, etnológicas, linguísticas, administrativas e demográficas, ou seja, pesquisa de maior envergadura por todos as épocas. 1 O enfoque recai, portanto, nas representações culturais e numa história da produção intelectual sobre os Botocudos, alternando-as e interligando-as aos traços gerais da trajetória do contato entre índios e não índios - considerando ambos como agentes históricos na sociedade em transformação. Coloca-se, pois, um entrelaçar entre a "história das imagens" (textos ou ícones) com a "história" propriamente, envolvendo diferentes momentos das relações poüticas e sociais, isto é, de poder, e também das condições de vida dessas populações. Trata-se de um trabalho de historiador (com estilo próximo ao da ficção literária em alguns momentos) baseado na pesquisa documental, na interpretação desses documentos e na leitura de obras relacionadas ao tema. ~anto aos ícones, considero-os como um campo 1 Há consideráveis trabalhos na perspectiva de uma história (com dimensão antropológica) desses índios nomeados de Botocudos. Destacam-se nesta linha as respectivas dissertações de mestrado e teses de doutorado de duas antropólogas: I. M. de Manos (1996 e 2004) eM. H. B. Paraíso (1982 e 1998[a]) e também a tese de H. L. Langfur (1999).
15
16
INTRODUÇAO
importante a ser incorporado pelo ofício do historiador, ainda mais em sociedades tão marcadas pela dimensão visual: além do registro descritivo e da contextualização de seus usos, podem ser lidos e interpretados, embora a dimensão de documento histórico da iconografia, apesar de cabível, esteja longe de esgotar suas eventuais possibilidades artísticas ou estéticas.2 A guerra foi constante durante cerca de quatro séculos nos contatos com os índios estudados, o que não significava confronto permanente, pois tais encontros foram marcados também por negociações e diferentes níveis de incorporação à sociedade. Pareceu-me importante, contudo, realçar essa dimensão bélica e de conflito, embora ela não seja incompatível com outras vias de sobrevivência e alianças e, mesmo, com outras formas de violência. O potencial dessas resistências indígenas, que rendeu grande notoriedade a tais índios e justificou ondas de violência sobre eles, resultou, ao mesmo tempo, em sua persistência enquanto grupo étnico diferenciado no interior da sociedade nacional. A pesquisa se restringe aos índios em geral associados ao grupo linguístico Macro-Jê que ocuparam larga faixa do território que incluía Recôncavo e Sul da Bahia, vales dos rios Doce e Jequitinhonha, região central de Minas Gerais e grande parcela do Espírito Santo. Estavam entre as últimas tribos a guerrear na região Sudeste, ainda no século XX, e hoje habitam urna pequena reserva em Minas Gerais. Existem outros grupos nomeados de Botocudos não incluídos neste livro, notadarnente os de Santa Catarina, Paraná e noroeste de São Paulo (também chamados de Xokleng ou Kaingang). 3 E o uso dos ornamentos batizados de botoques caracteriza diversos povos indígenas no Brasil e em várias partes do mundo. Deve-se considerar também que os Botocudos aqui tratados nunca formaram um conjunto coeso, antes se fracionavarn em diversas tribos, conforme característica de sua organização social. O livro, que começou a ser elaborado em 1993, resulta de materiais encontrados em arquivos e bibliotecas da França, Rio de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo e Bahia, além de pesquisa de campo com os índios. Mantive a ortografia original das fontes documentais consultadas. Encontrava-me em Paris fazendo doutorado sobre as2
Para um apanhado crítico da relação entre história e imagem iconográfica, v.
P. Burke (2001). Entre as principais referências teóricas que utilizo e reelaboro, estão as conhecidas obras de R. Barthes (1980) e P. Dubois (1998). 3 Sobre esses Botocudos do Sul do Brasil, ver A. M . Namem (1994).
INTRODUÇÃO
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sunto diverso, mas a vivência como estrangeiro, isto é, como Outro, numa sociedade marcada por tensões e preconceitos raciais que atravessavam o cotidiano, remeteram-me para posição diversa da que vivia em meu próprio país, despertando outro tipo de sensibilidade. Daí, ao me deparar ao acaso com uma referência à declaração de guerra aos Botocudos em 1808 e, em seguida, ao encontrar nos arquivos do Musée de l'Homme os daguerreótipos desses índios feitos na mesma Paris em 1844, realizei "mergulho" em mares até então não navegados por mim, do qual este livro finalizado (após várias interrupções) em 2006 é o resultado. O texto está dividido em três Partes que correspondem, quase simetricamente, aos períodos colônia, império e república, na perspectiva de dimensionar a presença indígena na história do Brasil e colocar em evidência aspectos importantes desta sofrida e às vezes violenta construção de uma ordem nacional. A Parte I, Os "VIS AIMORÉS", consta de três capítulos que tratam da visão dos primeiros cronistas, historiadores, missionários, militares e administradores, dos séculos XVI ao XVIII, quando os índios estavam incluídos na denominação genérica de Aimorés. Há mais material dos jesuítas nos dois primeiros séculos, bem como de colonizadores do século XVIII já marcados pela perspectiva da Ilustração, além de mapas que registram a presença desses grupos indígenas. Predominam os relatos sobre guerras e legendas de ferocidade e canibalismo, ao mesmo tempo que faltam informações mais consistentes sobre os modos de vida dessas tribos. Composta de seis capítulos, a Parte II, CERCO AOS BoTOCUDOS NO SÉCULO XIX, é a maior do livro. Inicia-se com a declaração de guerra a esses índios, agora chamados de Botocudos, por D. João assim que chega ao Brasil em 1808; trata dos viajantes europeus (Wied-Neuwied, Saint-Hilaire, Debret, Rugendas e outros) que produziram relatos e ícones sobre tais povos; aborda as relações desses índios (e a crescente perda de seus territórios) com a nação brasileira que se construía e as atitudes políticas e econômicas do novo império diante das tribos; faz um apanhado das principais pesquisas e discussões culturais, históricas e antropológicas ao longo do século XIX, com ênfase nas primeiras fotos (daguerreótipos) de Botocudos feitas em 1844 e na multiplicidade de ícones que surgiram; trata das visões paradoxais do Romantismo e da historiografia e termina com a Exposição Antropológica de 1882 no Rio de Janeiro, onde Botocudos ao vivo foram a principal atração diante de D. Pedro II.
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INTRODUÇÃO
Finalmente, a Parte III, KRENAK, ALVORECER DO "Povo Novo", apresenta três capítulos. Inicia-se com a discussão sobre a possibilidade de incorporação nacional de tais grupos que gerou, em 1910, a criação do Serviço de Proteção aos Índios. Há material fotográfico sobre os mesmos índios na passagem de selvagens/nus para civilizados/vestidos. Trata dos últimos massacres contra esse povo no século XX, bem como dos estudos acadêmicos sobre tal tribo, agora batizada de Krenak, que oficialmente chegou a ser dada como extinta nos anos 1950-60; relata a instalação de um presídio para índios em seus territórios durante a ditadura civil-militar de 1964, a luta pela posse da terra (Reconquista) que se iniciou nos anos 1980 e culminou, em 1997, com a expulsão de fazendeiros e a retomada de uma parte das terras tradicionais; relaciona novas produções culturais (CDs, fumes e hipertextos) sobre esses povos; e a partir de três viagens do autor à reserva no rio Doce entre 1998 e 2001 (com entrevistas, fotos e filmagens dos índios), aborda as visões deles sobre sua história, imagens e expectativas no raiar do século XXI. Alguns agradecimentos são indispensáveis, apesar das possíveis omissões (decorrentes do longo prazo de elaboração do trabalho), pelas quais me desculpo antecipadamente. Em primeiro lugar para os índios Krenak que tão generosamente me receberam, ensinaram e partilharam suas reflexões, experiências e culturas. Também para Marly Schiavini de Castro, que me propiciou a ponte com os Krenak, por sua disponibilidade contínua pela causa dos povos indígenas. Ao querido companheiro e mestre José Ribamar Bessa Freire, pelo que transmite de energia, lucidez e sabedoria em sua cotidiana cruzada por novos céus e novas terras para todos, índios e não índios. Para as amigas lzabel Misságia de Mattos, Lorelai Kury, V éronique Hébrard, Vânia Losada Moreira e Leônia Chaves Resende, cujas pesquisas e incentivos serviram de apoio a este trabalho. Aos colegas, alunos e orientandos que caminharam em vários momentos nas mesmas trilhas da história indígena. Para Maria Regina Vieira Ramos de Assis, por me apoiar na caminhada do ciclo vital. Destaco ainda funcionários dos museus, bibliotecas e arquivos consultados, que forneceram preciosas pistas e informações. E Ana Paula e Cristina que, como sempre, me dão as melhores sementes e flores. De qualquer modo, o conteúdo do presente livro é de responsabilidade exclusiva do autor. Rio de Janeiro, 2006.
I
OS "VIS AIMORÉS"
Estes Aymorés são muito feros e cruéis, não se pode com palavras encarecer a dureza desta gente. -
PERO DE MAGALHÃES GANDAVO,
Tratado da Terra do Brasil (1570). E como eles são tão esquivos inimigos de todo o gênero humano, não foi possível saber mais de sua vida e costumes, e o que está dito pode bastar por ora. -GABRIEL SoARES DE SouzA,
Tratado descriptivo do Brazil em 1587
Capítulo 1
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Ü
s Aimorés foram senhores de largas faixas de espaço e tempo. Antes e depois da chegada dos europeus. Pareciam, além de invencíveis, intangíveis, invisíveis, indescritíveis e inomináveis, apesar das guerras, mapas, ícones, narrativas históricas e dos nomes que tentavam abarcá-los, gerando expressivo conjunto de imagens sobre esses índios. Sabe-se que praticamente todo litoral que hoje é brasileiro foi percorrido por expedições de reconhecimento (portuguesas e de outros países) na primeira década após a viagem de Pedro Álvares Cabral. Algumas feitorias se instalaram, o escambo de pau-brasil realizava-se com índios por portugueses e franceses. Mas as tentativas de exploração e povoamento consistentes começam nos anos 1530, quando da criação do sistema de Capitanias, inicialmente Hereditárias e depois Reais. Nos territórios onde havia Aimorés foram criadas cinco capitanias: Bahia, São Tomé, Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo. O resultado foi que essas três últimas fracassaram em seu intento colonizador, as tentativas de povoamento regrediram- quadro que duraria, com alterações, até meados do século XVIII e mesmo princípio do XIX. A resistência indígena foi um dos principais fatores nesse fracasso ou "atraso" colonizador na região. Foi época de Descobertas, inclusive as dos índios descobrindo os europeus e as consequências de sua chegada nos territórios que seriam batizados de brasileiros. O conjunto de relatos, tradições e testemunhos escritos e orais sobre tais grupos indígenas, nos três primeiros séculos de colonização, 21
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gerou imagens que se cristalizaram em mentalidades de longa duração.1 Estariam presentes no romantismo literário brasileiro do século XIX, no qual os Aimorés apareceriam como exemplo acabado do "mau selvagem" em textos primordiais como o romance O guarani de José de Alencar. Ou no poema épico de Gonçalves Dias,I-]uca-Pirama, que reitera estigma ao "vis Aimorés", recriando herança de largo alcance das letras e vozes coloniais. E tal conjunto de imagens ainda persiste no século XXI: num difuso senso comum, em memórias coletivas, tradições regionais e, eventualmente, na perspectiva de homens de letras. Os invencíveis Aimorés desafiaram a Conquista europeia e criaram a Reconquista indígena. Se aceitássemos aqui o esquema vencidos-vencedores, caberia aos portugueses o rótulo de vencidos em consideráveis parcelas do território das capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo ao longo de quase três séculos, ao passo que os Aimorés e outros grupos seriam chamados de vencedores. Essas tribos impediam ou mesmo revertiam a Conquista europeia, num movimento que pode ser chamado de Reconquista. Dessa maneira, a Conquista não aparece como ponto de partida inelutável e evolutivo de um processo unívoco, uma vez que, em determinadas épocas e locais, ela pode ser revertida ou sucedida pela Reconquista indígena, que instaura assim um novo tipo de relação. Da mesma forma que as Restaurações não conseguem recriar exatamente o estado de coisas que buscam resgatar, a Reconquista não significa que os índios voltariam a viver como antes da chegada dos Conquistadores, pois estes continuam presentes, ainda que momentaneamente derrotados. E se o movimento de Conquista voltar a se impor, ele não será o mesmo, pois terá de levar em conta as mudanças ocorridas. A Reconquista também tem continuidade de longa duração e deixa suas marcas na sociedade, uma vez que pode ser um dos fatores responsáveis pela sobrevivência de povos indígenas em nossos dias, preservando e transformando suas identidades culturais. Sem falar que o movimento de luta pela terra e de retomada de áreas que se encontram em poder dos não índios continua a ocorrer 1
A ideia de que as mentalidades (isto é, representações simbólicas) persistem ao contexto e às relações sociais em que surgiram aparece no conhecido ensaio de F. Braudel, "História e Ciências Sociais: a longa duração", in Idem. Escritos sobre a História... , pp. 41-77.
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atualmente - fazendo com que a Reconquista também tenha seu espaço, diante da Conquista que não se completou totalmente no território brasileiro. Sabemos também que os europeus eram ainda intrusos: sua civilização, no século XVI, não era a dominante no território chamado de Brasil. Não foi à toa que as primeiras povoações eram litorâneas e algumas situavam-se em ilhas, como a fortificação de Vitória que deu origem ao Espírito Santo, por exemplo. Os primeiros exploradores e colonizadores encontravam-se literalmente ilhados. Qyanto aos Aimorés, pareciam ser invencíveis. O final do século XV1 marca, para o território brasileiro, uma fase de avanço da Conquista. Depois de algumas décadas de sangrentos conflitos, as bases da presença portuguesa se afirmavam, com diversos grupos indígenas derrotados. Entretanto, na área de influência dos Aimorés, a situação era diferente, para não dizer inversa, com o predomínio da Reconquista ou o impedimento da Conquista. Entre os testemunhos a esse respeito está o de frei Vicente do Salvador: narrando as tentativas colonizadoras nos dois primeiros séculos, afirma que em Porto Seguro os engenhos foram desfeitos devido "aos muitos assaltos do gentio aimoré, em que lhes matavam os escravos, pelo que também despovoaram muitos moradores e se passaram pera outras capitanias". Da mesma forma em Ilhéus onde, segundo o mesmo historiador franciscano do século XVII, o principal problema da ocupação europeia foi "a praga dos selvagens aimorés, que com seus assaltos cruéis fizeram despovoar os engenhos". 2 Também o jesuíta Fernão Cardim, no início do Seiscentos, registrava sobre os Aimorés: "Estes dão muito trabalho em Porto Seguro, Ilhéus e Camamu, e estas terras se vão despovoando por sua causa". 3 Reforçando essas indicações, temos o relato do jesuíta }ácome Monteiro, segundo o qual, em 1610, a Capitania de Porto Seguro estava "mui acabada por respeito dos Aimorés" e a de Ilhéus "despovoou-se quase em todo, por causa dos Aimurés". 4 A região onde hoje se encontra o sul da Bahia viveu momentos dramáticos. Fazendas montadas e equipadas eram destruídas pelos 2
Frei Vicente do Salvador, pp. 121-3. F. Cardim, p. 199. 4 Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p. 402. 3
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indígenas ou abandonadas pelos proprietários, que não suportavam os constantes ataques de diversas tribos aguerridas, sobretudo dos Aimorés. Um reduzido punhado de guerreiros investia com tanto vigor que era capaz de destruir um engenho de açúcar defendido por grupos com armas de fogo. O!Ial o território dos intangíveis Aimorés? As relações entre esses índios e as diversas frentes de expansão, nos três primeiros séculos de colonização, não se limitava ao confronto: havia negociações, interações, estratégias de resistência e submissões. Mas a guerra ocorreu e foi de longa duração, intensa no tempo e no espaço. Diante das agressões e das doenças e sentindo as novas disposições dos inimigos europeus, os Aimorés do litoral migram em direção ao Oeste e ao Sul, no início do século XVII, abandonando assim a região em torno de Salvador, mas presentes em consideráveis espaços no que então eram as capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo, e que hoje compõem partes dos estados da Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo. Nessa região os Aimorés se embrenharam e ocuparam faixas de terra consideráveis até a época da Independência brasileira. Os primeiros mapas indicam que havia grupos de Aimorés no interior e os relatos iniciais de conquistadores e colonizadores falam de Aimorés no litoral. Infelizmente faltam informações mais detalhadas sobre a organização social dessas tribos e suas possíveis diferenças por viverem em ambientes distintos, como à beira do mar, florestas, montanhas e sertão. Os Aimorés ocuparam ecossistemas bem diversificados, em geral dentro do conjunto conhecido hoje por Mata Atlântica, como florestas tropicais e subtropicais, matas de brejos úmidos, fronteiras de caatingas, campos de altitude (topos planos ou picos rochosos), restingas, mangues, praias, dunas, lagoas e rios. Tais tribos revelavam assim vigorosa criatividade e capacidade de adaptação a ambientes distintos. Mas, à medida que a Conquista se consolidava na faixa litorânea, as tribos foram se fixando no interior. Os últimos descendentes de Aimorés instalados à beira-mar seriam os Grens que, em fins do século XVIII, estavam destribalizados e sobrevivendo à maneira de pescadores pobres, como veremos adiante. A região de presença dos Aimorés, ao lado de diversos grupos indígenas, estaria definida desde meados do século XVII até o início do século XIX, incluindo basicamente os vastos territórios dos vales dos rios Doce e Jequitinhonha e parcelas próximas ao litoral. Se
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pegarmos um mapa do Brasil e tomarmos como ponto de partida o rio Pardo e a região de Belmonte, na Bahia, descermos o rio Jequitinhonha, passarmos pela serra do Chifre, pela serra das Esmeraldas e chegarmos ao rio Doce, do interior quase até ao litoral, temos aí uma área de aproximadamente 150.000 quilómetros quadrados, maior do que o território de Portugal metropolitano. Evidentemente não eram apenas Aimorés nem somente índios que habitavam essa região ao longo de três séculos. Mas durante esse período a resistência dos tradicionais habitantes foi um dos fatores que dificultou o desenvolvimento mais consistente do povoamento colonizador. Caminhos e povoamentos eram, como se sabe, base prévia da colonização. A presença dos Aimorés acabou por cristalizar uma espécie de fronteira no interior das fronteiras do Brasil, embora sem a validade dos limites oficiais. Mas era uma barreira erguida, desafiando a lógica colonizadora. A existência desse território não submisso, apontado por muitos registros como "vazio" ou quase despovoado, marca um dos pontos fracos da Conquista que, em alguns casos, são espaços de Reconquista. Vazios sim, mas de representantes da civilização ocidental, o que do ponto de vista ambiental permitiu a preservação ou sobrevida de algumas parcelas da Mata Atlântica. Tal área estava encravada entre quatro pontos geopolíticos cruciais para a América portuguesa e mais tarde para o Brasil. Qyatro centros irradiadores de povoamento durante todo o período colonial. Ao norte, estava Salvador, primeira capital e por muito tempo fonte de riqueza e de poder político. Ao sul situava-se o Rio de Janeiro, que viria a se tornar capital e local da centralização dos poderes. A oeste havia Minas Gerais, que se tornaria grande produtora das riquezas minerais. A leste, o mar, por onde desembarcavam os colonizadores. Esses quatro pontos cardeais formavam como uma cruz. No meio dessa cruz estava o território de índios que, atravessando os tempos coloniais, viria se colocar como um dos derradeiros desafios ao progresso nacional brasileiro em sua vertente predatória. Assim, ao longo do século XVII, os Aimorés em grande parte ficaram fora do alcance do olhar e dos registros de seus oponentes. Comprovando o predomínio dos Aimorés nestas regiões durante os séculos XVI e XVII existem mapas, que registram a ocupação do espaço, ainda que de forma imprecisa nessa época. Mesmo sem levantamento exaustivo, é possível desenhar ostraços gerais da presença desses indígenas no território da América
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portuguesa. 5 Já no Mapa-Mundi de Bartolomeu Velho (Mapa 1), 1561, aparecem os ''Aymyreis" ocupando grande porção do interior, próximo às margens direita do rio São Francisco, na altura correspondente às capitanias de Ilhéus e Porto Seguro. Esta presença nos sertões coincide com o relato de que em 1564 os Aimorés foram tangidos do interior para o litoral por guerras com outras tribos. 6 Ao se deslocarem para a costa, os Aimorés aproximaram-se das frentes de colonização e desalojaram os Tupiniquins, que, por sua vez, deslocaram-se, conforme registra outro cronista da época. 7 Todas essas movimentações afetavam os primeiros passos da colonização europeia, ao mesmo tempo que os agentes desta começavam a interferir nos conflitos entre os grupos indígenas.
Mapal
5 Os mapas citados a seguir foram consultados, em reproduções, em Mapas históricos brasileiros. São Paulo: Abril Cultural, 1969. 6 P. de Magalhães Gândavo, p. 4. 7 G. Soares de Souza, pp. 57-8.
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No mapa Novus Brasilit2 Typus, do holandês Joducos Hondus, 1625, aparecem na Capitania "de los Iseos" (sic) os "Guaymies" (sic), isto é, os Guaimurés na Capitania de Ilhéus; na de Porto Seguro constam os "Aymures" ao passo que no Espírito Santo estão Tapuias (denominação genérica para os não Tupis) e ''Apiapetang", o que poderia ser o nome de uma tribo específica. As mesmas informações são repetidas no mapa Nova et Accurata Tabula, do holandês Jan Blau, 1640 (Mapa 2), acrescentadas dos Tupiniquins na Bahia e de Aimorés espalhados em grande parte do interior, na altura correspondente ao Recôncavo e Ilhéus.
Mapa2
Outro holandês, Joahanes Janssoulus, no seu Brasili12 Tabula, de 1647, repete as informações de seus predecessores, parecendo cristalizar que haveria uma divisão entre Guaimurés em Ilhéus e Aimorés em Porto Seguro. Este esquema se repete no mapa Amérique Méridionale, do francês Sanson d'Abberville, 1650. O mesmo autor acrescenta um aspecto importante em outro mapa, Le Brésil, de 1656: a presença de Aimorés e Guaimurés ao lado uns dos outros e encostados ao litoral, entre Ilhéus e Porto Seguro, ao passo que no Espírito Santo permanecem os Tapuias. Dados semelhantes apresenta o italiano Guglielmo Sansone no seu America Meridionale de 1677.
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Comparando os mapas a relatos escritos, vemos que em 1610 os Aimorés já se encontravam no rio Doce, há dez léguas do litoral do Espírito Santo, e nos anos 1670 apareciam como senhores dos sertões entre os rios Jequitinhonha e Mapendipe. 8 Assim, mesmo pelos mapas europeus, verifica-se que no século XVII os Aimorés ocupavam, na região que lhes tocava, porções de terra maiores do que as da Conquista. Essas tribos continuavam como grupos dominantes geograficamente, fora das escassas povoações urbanas e litorâneas do século XVII. Em contraste com a cartografia do período colonial, temos o mapa (Mapa 3) publicado por historiadores brasileiros na História geral da civilização brasileira, nos anos 1950/60, que desenha as áreas de povoamento no Brasil do século XVII. 9
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Mapa3 8 Padre}ácome Monteiro [1610], apud. Serafim Leite, vol. VIII, p. 401 e Arq. 1.1.20 does. de autoria de Balthazar da Silva Lisboa, Arquivo do IHGB. 9 Sérgio Buarque de Holanda (org.). História geral da civilização brasileira, t. 1, vol. I, A Época Colonial, p. 293.
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Subentende-se que os trechos em branco são despovoados ou vazios. Vê-se uma grande área em branco próxima ao litoral e avançando em grande parte para o interior, na altura das Capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo, englobando os vales dos rios Doce e Jequitinhonha. Rodeado de correntes migratórias dos colonizadores, esse trecho em branco corresponde exatamente à presença dos Aimorés e outros grupos indígenas, mas sobre isso esse mapa é mudo. Como se povoamento fosse sinônimo apenas de colonização e que os índios não constituíssem povoação, isto é, habitantes de determinado lugar ou região. Seriam os Aimorés invisíveis? Não consegui localizar nenhuma iconografia referente a eles produzida nos séculos XVI a XVIII, ao contrário de outras tribos sobre as quais existe considerável material, sobretudo de grupos tupis e alguns tapuias. O ícone (Figura 1) mais antigo que encontrei dos índios aqui estudados foi feito em Minas Gerais entre 1803 e 1808, quando já eram denominados Botocudos. 10 Entretanto, tal figura se mantém na perspectiva marcante das narrativas do período colonial brasileiro: enquadrar esses índios numa legenda de ferocidade, com registro de ataques relâmpagos - ao contrário da iconografia predominante dos artistas, viajantes e cientistas do século XIX, que terá outras feições, como se verá adiante. O pesquisador Alberto Lamego adquiriu esta pintura (Figura 1) no início do século XX (incorporando-a a seu acervo pessoal, que seria adquirido pela Universidade de São Paulo) e divulgou-a em seu livro com informações equivocadas. 11 Em legenda, afirmou: "Correrias dos Botocudos na Terra Goytacá". E acrescentou um adendo: "Reprodução de aquarela original e inédita, desenhada em fins do século XVIII por um eclesiástico testemunha da horrorosa carnificina". E mais nada informa em seu livro (que trata do passado do Norte fluminense), quando, em sua mesma coleção, há manuscrito que acompanha a imagem trazendo dados diferentes e mais esclarecedores. Possivelmente Lamego se esforçou em "aproximar" tal peça da área geográfica e da época por ele estudadas.
°
1
C. F. Vasconcelos. Ataques de índios Botocudos na região de Minas Gerais com danos e mortes, pintura, ms., aquarela e nanquim. Coleção Alberto Lamego, Iconografia n.• 59, IEB/USP; agradeço a reprodução e remessa da imagem e do manuscrito a ela referente ao Prof. lstvãn Jancsó, quando diretor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP em 2004. 11 A. Lamego, t. 1, pp. 4-22.
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Trata-se, conforme a precisa indicação catalográfica do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, de um "Desenho à pena com tinta escura e aguarelado com tonalidades diversas, mas predominando os tons de amarelo, azul, castanho, cinza e preto"Y A visão desse quadro empolgou o modernista Mário de Andrade que, exercendo sua veia de crítico de arte, referiu-se à "aquarela que é uma obra-prima". Acrescentando: "Conservadíssima, as cores guardando ainda todo o brilho, uma verdadeira perfeição, com aquela pobre senhora assassinada toda de amarelo, evocando pela cor a audácia daquele manto amarelo com que Ticiano envolveu Nossa Senhora numa Crucifixão"Y A observação de Mário de Andrade é pertinente quanto ao impacto visual e também ao estilo do quadro, que, situado entre as heranças da pintura medieval e do Renascimento europeu, se aproxima mais do estilo neoclássico (então uma tendência de vanguarda no início do século XIX) pela clareza, equilibrio e proporção das cores e formas, diferenciando-se do Barroco largamente praticado em Minas Gerais e na Bahia ao longo do século XVIII. Ao mesmo tempo, a aquarela criada por um pároco do interior de Minas poderia ser compreendida na tradição popular de pinturas de riscadores de milagres e ex-votos como crônica imagética e religiosa de eventos considerados marcantes, também no âmbito regional ou local. Essa tendência, de ampla difusão, servia, como se sabe, para relatar, fixar na memória e divulgar episódios destacados sob o prisma religioso: martírios, milagres, promessas, visões místicas, curas, etc. O pintor dessa obra foi o padre Caetano da Fonseca Vasconcelos, vigário da igreja São Miguel de Piracicaba, em Vila Nova da Rainha (atual Caeté, próxima a Sabará e Lagoa Santa, portanto bem distante do Norte fluminense), Minas Gerais. Ele realizou-a para acompanhar a carta que enviava ao ainda príncipe regente D. João pedindo providências urgentes para reforçar o combate aos índios Botocudos na região. Ou seja: para alcançar maior eficácia e vigor, seu discurso gerou imagens não somente verbais, mas iconográficas, buscando assim alertar e sensibilizar as autoridades, apostando no impacto causado pela eloquência da visualização da cena que narrava. E consciente, talvez, da ausência de registras iconográficos anteriores 12 13
J. C. Velloso. Catdlogo de Iconografia da Coleçáo Alberto Lamego, p. 66.
M. de Andrade. O Estado de S. Paulo, 22-12-1935, apud A. R. Nogueira e outros, Catálogo dos Manuscritos da ColeçãoAlberto Lamego, p. 17
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sobre esses índios, buscava retratá-los e chamar atenção sobre eles, numa estratégia de reforçar a veracidade do que escrevia e a justeza do que solicitava. Era como se a fixação dos índios pela imagem fosse o preâmbulo do controle e da captura pretendidos. A pintura, que materializava uma visão desses índios tão distantes, deve ter chegado ao destinatário e corrido de mão em mão pelas autoridades e cortesãos luso-brasileiros. Esse padre Caetano era parente de José Teixeira da Fonseca Vasconcelos, posteriormente o primeiro presidente da província de Minas Gerais, senador do Império e visconde de Caeté, família importante de administradores públicos e proprietários de terras e escravos, à qual pertenceu, também, Bernardo Pereira de Vasconcelos. A carta do padre Caetano para o príncipe regente, em forma de súplica, é versão escrita da sua criação estética, acrescida de outros argumentos objetivos e detalhados. Num primeiro momento, ele chama atenção sugestivamente para as tristes memórias da presença dos índios na sua Freguesia do seguinte modo: [... ] os estragos horrorows do Gentio bravo antropofago da Nação Botocudo, que infesta, rouba, espedaça e come as carnes próprias dos Corpos dos Miseráveis Freguezes do Supplicante que procura encontrar. 14 E detalhando o que seria o canibalismo dos índios, relata no mesmo documento: Ah, Senhor, que scena tristissima hé, quando chegão carradas de Membros de Corpos humanos em montão truncados e descarnados [para] enterrar na dita Freguezia do Supplicante, ficando o sangue, por delícia brutal, chupado das veias dos Miseráveis e as Carnes comidas por aqueles Bárbaros. E relacionando o texto ao ícone, o vigário comenta: A ultima crueldade acontecida offerece o Supplicante no mal desenhado prospecto junto, para avivar a Memória delle. 14 Requerimento do padre Caetano Fonseca Vasconcelos ... Cod. 59, doe. 1936, manuscrito da Coleção Alberto Lamego, IEBIUSP. A referência vale para as duas citações seguintes.
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A carta e a pintura, portanto, tinham um reiterado sentido de criar ou reforçar uma memória hostil sobre os índios - memória de grande força e permanência entre os moradores não índios em Minas Gerais ao longo dos tempos. Mas a recriação dessa cena tristíssima pelo padre Caetano Vasconcelos se articulava com interesses definidos. Era momento do declínio da mineração, o que gerava demanda de novas terras para agricultura ou, então, a busca mineradora em áreas ainda não exploradas, no caso, em razão da permanência de tribos hostis ao colonizador. O padre Caetano alertava ao príncipe que uma parte da Freguesia estava despovoada pelo ataque dos índios, o que causava prejuízos evidentes à Coroa portuguesa: largas faixas de terra abandonadas e consequente diminuição da arrecadação de dízimos. O padre Caetano, na mesma linha argumentativa, fazia elogios ao capitão-general de Minas Gerais, Pedro Maria Xavier de Ataíde e Melo (futuro visconde de Condeixa em Portugal, governou a capitania entre 1803 e 1810) e solicitava recursos da Coroa para reforçar a militarização da região mediante a recuperação e criação de presídios nos territórios indígenas. Ora, levando em conta o período da administração do referido capitão-general e o fato de que em 1808 o governo de D. João tomaria providências exatamente neste sentido (por meio de Carta Regia onde se baseia justamente nas queixas dos moradores), é possível situar a data da missiva e da pintura entre 1803 e 1808. A aquarela, portanto, surgiu desse conjunto de reivindicações e preocupações de consideráveis grupos familiares que estendiam redes de poder político e econômico pela capitania e disputavam territórios aos índios. Pode-se dizer que seu vigor estético emanava desta pulsão de domínio e da sensibilidade religiosa que o compunha. Tanto no texto quanto no ícone, o autor reforça a afirmação de canibalismo. 15 Porém, ainda aqui, seu relato não se apresenta como testemunho ocular de possíveis práticas antropofágicas, mas baseia-se na vista dos restos dos corpos encontrados, a partir dos quais recriou a cena. O que pode apontar para o costume dos índios de mutilar, descarnar ou esfolar corpos dos adversários, não necessariamente de ingeri-los. A imagem vampiresca do sangue sugado pode15 Sobre as diversas concepções e atitudes da cultura ocidental diante do canibalismo, e particularmente dos indígenas do território brasileiro, v. a instigante obra de F. Lestringant. Le cannibale. .. (1994).
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ria resultar do sangue que se esvaiu dos corpos mutilados, sem que os índios o tivessem sorvido. Nesse sentido, a reiteração do canibalismo aparece mais como estratégia de desumanização e justificativa para combater e aniquilar os índios.
Figura 1
Uma leitura deste ícone (Figura 1) pode trazer mais alguns elementos. A imagem aparece impregnada de símbolos religiosos, ainda que velados. Num quadro de tons pastéis, a figura central é a mulher com vestido amarelo, deitada suavemente em posição horizontal. Ela está morta, mas seu corpo é o menos corrompido, como a sugerir uma aura imaculada, reforçada pelo tom solar de sua roupa e pela postura que tem qualquer coisa da estátua Pietà, de Michelangelo, com a diferença de que é a mulher quem está deitada, mas com certa suavidade. Essa figura feminina, mártir explícita e implicitamente Imaculada, é na verdade o vórtice central do quadro, como já captara o olhar de Mário de Andrade. O amarelo da roupa feminina contrasta com a paisagem cinzenta e desolada ao fundo e no chão e, ainda, se contrapõe aos demais corpos mutilados, bem como ao vigor fálico, destrutivo e vertical dos índios presentes na cena. O homem branco no canto esquerdo do quadro aparece apenas da cintura para cima,
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como que nos poupando também a vista de possíveis mutilações. Em contrapartida, o corpo do negro vestido de azul, possivelmente um escravo, é o mais mutilado, com membros decepados ou descarnados e o esqueleto aparecendo da cintura para baixo. A mulher negra, do mesmo modo, sem os braços, está envolta numa poça de sangue. Outro homem branco, vestido de azul, além de mutilado, aparece contorcido. Esqueletos e ossos espalham-se, numa visão dantesca, infernal. Qyanto aos índios, vê-se que os dois em primeiro plano estão com o botoque na boca à mostra, em cor vermelha, à semelhança de língua ou dentes de fora - símbolo de gula e de satanização na iconografia medieval, alusão à serpente que expulsou Adão e Eva do paraíso e sugerindo a visão de vampiros. Duas caveiras soltas no quadro reforçam esta impressão mortífera e diabólica. A alusão à antropofagia ressalta na aquarela. Os índios carregam carnes nos cestos, como se fossem se abastecer de alimentos retirando assim do canibalismo (que é fortemente sugerido, mas não aparece concretizado) possíveis significados ritualísticos, como hábitos alimentares - reforço da noção de horror e barbárie. Alguns indícios da cultura material dos índios são desenhados: o corte de cabelo, arcos e flechas com desenhos e trançados e os cestos. Características descritas posteriormente por outros pintores, o que traz uma certa feição etnográfica à pintura, possivelmente resultado do testemunho de habitantes que conviviam com os índios - ao mesmo tempo, valorizando o tom de veracidade da cena. E os índios estão nus, isto é, sem vestígio de civilização ocidental. Os dois índios do primeiro plano estão em pé, verticais, numa composição de contraste com as demais vítimas horizontais, entre elas a mulher deitada. Eles aparecem em retirada, enquanto outros dois índios, no canto direito do quadro, estão de costas e distantes, o que aponta a ideia de intangibilidade desse grupo indígena. Ao mesmo tempo que os corpos dos negros são os mais mutilados na imagem, vê-se outro negro, possivelmente escravo, utilizado pelos índios para ajudá-los a carregar as carnes recolhidas. Tal composição remete às relações tensas e hostis entre negros e Botocudos/ Aimorés. Estes, com frequência, atacavam e matavam escravos durante incursões a plantações ou combates com tropas coloniais. Tal hostilidade foi marcante, embora também haja notícias, em outros momentos, de alianças e até de miscigenação entre esses índios e negros e escravos de origem africana.
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Tal aquarela, na verdade, está em sintonia com textos do período colonial, como se verá a seguir. Ambos - ícone e escritos formavam imagem coesa: relâmpagos guerreiros impregnados com valores da cristandade e da Conquista. Desenhada no início do século XIX, essa aquarela parece coroar uma era de formulação de imagens. Poucas vezes, durante estes três primeiros séculos de colonização, os registros captaram algo mais desses Aimorés. O batismo da História asperge estigma e identidade. E, ainda assim, os Aimorés eram quase indescritíveis. Inexistem, até princípio do século XIX, relatos mais consistentes sobre os Aimorés além de registros de combates e violências, sucintos relatórios administrativos ou eclesiásticos e arautos de "guerras justas". Ressaltavam-se traços sanguinários e não se conseguia enxergar quase nenhum resquício de organização social, de inteligência ou de humanidade. Os Aimorés eram vistos como feras. Ao contrário dos Tupinambás, eles não tiveram Hans Staden,Jean de Léry ou André de Thevet para descrever-lhes com mais densidade os costumes e, até, as cenas de canibalismo de que frequentemente eram acusados. O relato do jesuítaJácome Monteiro, de 1610, apesar de breve, é o mais substancial que se conhece sobre Aimorés até o início do século XIX. Da antropofagia, por exemplo, sabe-se apenas de testemunhos indiretos e acusações. Se algum não índio testemunhou tais práticas, não ficou para contar a história ... No caso dos primeiros historiadores ou cronistas do período colonial, as fontes documentais se constituem de maneira exemplar na visão unilateral do adversário, condicionando assim o conhecimento que se possa ter sobre estas tribos entre os séculos XVI e XVIII. Junte-se a isso características destes grupos Macro-Jê, como: indícios de uma cultura material composta de artefatos perecíveis, de um povo que na época da chegada dos europeus era nômade dentro de determinada faixa territorial, que se dedicava à caça, colheita e agricultura extensiva sem deixar vestígios arqueológicos monumentais. E temos aí, neste "vazio", terreno fértil para as mais fantásticas, diversificadas (e em geral cruéis) especulações. Mas essa unilateralidade dos registros não deve ser absolutizada. Não seria possível que numa leitura mais atenta pudéssemos perceber que os Aimorés, mesmo sem palavras registradas, também influenciassem e participassem da elaboração destas narrativas, ainda que contra as intenções dos que a estavam escrevendo? Não estariam eles
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compondo, pela escrita do colonizador, uma história sem palavras, a qual poderíamos, séculos mais tarde, revisitar e detectar os traços desta presença da cultura indígena, por meio de seus gestos e resistências, nas entrelinhas dos insultos e esconjuros do colonizador?16 De qualquer maneira, taiss registros que nos chegam sobre os Aimorés têm sua significação e merecem ser compreendidos. Eles esclarecem pouco sobre a língua, costumes, crenças, hierarquias, valores, divisões familiares, etc. Mas ressaltam, sobretudo, três características: guerra, movimentação constante e uma energia vigorosa. Estão, pois, falando de componentes que fundamentavam o comportamento destes grupos indígenas, base de suas identidades - ainda que saibamos que as identidades também são mutáveis de acordo com as condições de vida. Tomemos alguns exemplos de citações das narrativas dos séculos XVI e XVII. Um dos primeiros a registrar, por escrito, informações sobre os Aimorés (grafou "Gaimares") foi o padre Manuel da Nóbrega que, nas suas cartas entre 1549 e 1560, descrevia-os à sua maneira: Há outra casta de Gentios que chamam Gaimares; é gente que mora pelos Mattos e nenhuma comunicação têm com os Christãos, pelo que se espantam quando nos vêm e dizem que somos seus irmãos, porque trazemos barbas como elles, as quaes não trazem todos os outros, antes se rapam até as pestanas e fazem buracos nos beiços e nas ventas dos narizes e põem uns ossos nelles, que parecem demônios. E assim alguns, principalmente os feiticeiros, trazem o rosto todo cheio delles. Estes gentios são como gigantes, trazem um arco mui forte na mão e em outra um pau mui grosso, com que pelejam com os contrários e facilmente os espedaçam e fogem pelas matas e são mui temidos entre todos os outrosY A adversidade com os "outros", provavelmente os tupis, bem como a tática de atacar e escapulir pelas matas, evitando combates abertos, são referências que se repetirão nos relatos posteriores. Nota16
Sobre essas questões envolvendo escrita da história e ausência de palavras registradas, v. os trabalhos de Farge (1997) e de Moniot (1976). 17 M . da Nóbrega. Cartas do Brasil, p. 70; a data dessa carta é estimada em 1549.
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-se que a descrição de Nóbrega quanto a aspectos físicos (barbados) e ornamentos (narizes furados) não confere com a maioria dos registras posteriores sobre Aimorés, sendo possível que ele estivesse referindo-se a outros tapuias. O pioneiro jesuíta escreveu não se sabe se por testemunho direto ou (o que era comum na época) reproduzindo testemunhos orais e versões de colonos e conquistadores. Pero de Magalhães Gândavo, em torno de 1570, em seu Tratado da Terra do Brasil, sugestivamente destaca estes grupos indígenas, citando-os logo na parte inicial, em separado dos demais "gentios" .18 Tal se justificava, como se percebe na leitura, pela resistência e ataques que dificultavam a colonização nas capitanias de Ilhéus e Porto Seguro. "Muitas terras viçosas estão perdidas junto desta Capitania [Ilhéus], as quais não são possuídas dos portugueses por causa desses índios". As observações de Gândavo têm um duplo aspecto (que, de certo modo, permanecerá durante dois séculos em relação a esses índios): por um lado trazem informações escassas (embora relevantes neste caso) e, por outro, revelam desconhecimento, perplexidade e ressentimento diante da força de tais grupos. Gândavo registra: esta "nação do gentio que veio do sertão há cinco ou seis anos", em razão de ataques de outros índios, o que os teria levado a migrar até mais próximo da costa. Ou seja, aponta para rotas de migração, suas datas e localidades, assinala a existência de uma guerra envolvendo esses Aimorés, bem como mostra as alterações nas correlações de forças entre as tribos, numa época em que a presença europeia vai se expandindo no território. Em relação à identidade linguística, afirma: "a língua deles é diferente dos outros índios, ninguém os entende", numa provável referência às línguas tupis que predominavam no litoral e eram mais conhecidas dos europeus. Qyanto à descrição física, diz que "são eles tão altos e tão largos de corpo que quase parecem gigantes; são muito alvos, não têm parecer dos outros índios na terra [... )". Cabe ressaltar que as descrições posteriores dos Botocudos apontam, em geral, para pele avermelhada, marrom, cobre, etc., havendo, nesse ponto, uma discrepância com as possíveis características desses Aimorés. Qyanto a habitação, informa Gândavo que não "têm casas nem povoações onde morem, vivem entre os matos como brutos animais". Isto é, aponta para o nomadismo 18
P. de M. Gândavo, pp. 4-8.
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e lança a comparação com animais ferozes - tema recorrente nos escritos sobre esses índios. Em seguida o autor descreve-lhes a belicosidade e eficácia nos ataques contra os portugueses, reforçando a legenda de ferocidade que desde então se espalhava. Narrando táticas de guerras e ao mesmo tempo falando do comportamento destes grupos, acrescenta: "não têm rosto direito a ninguém, senão a traição fazem a sua". Além de indestrutíveis, pareciam intangíveis e invisíveis. Como ver-lhes o rosto e o rastro? Tal impressão se reforça com a afirmação Qá citada em epígrafe): "Estes Aymorés são muito feros e cruéis, não se pode com palavras encarecer a dureza desta gente". O autor, desse modo, reconhece a dificuldade de expressar em palavras, em seu próprio código, a atividade guerreira dos Aimorés. Repete-se a dificuldade de capturá-los pela palavra, escrita ou falada. Em textos de 1581 e 1583, o legendário padre José de Anchieta contaria de suas dificuldades em catequizar os Aimorés, praguejando contra eles. "Não se acha remédio contra tamanha praga". E queixava-se destes "índios, que na língua brasílica se denominam aimorés, raça de homens, piores que as feras, sobre os quais outras vezes escrevemos". Confirma, pois, que o termo aimoré pertence à língua brasilica, isto é, ao tupi. Narra também exemplos de ferocidades cometidas por esses índios, casos que se propagavam de boca em boca pelos primeiros colonizadores: "E não há muitos dias que, matando entre outros, uma escrava prenhe, a abriram e tiraram uma criança de dentro e, diante dos olhos dos outros, a espetaram, assaram e comeram". 19 Gabriel Soares de Sousa, em 1587, deixou também relato sobre os Aimorés, que "dos outros barbaros são havidos por mais que barbaros". 20 Marcado pelo superlativo, o testemunho desse cronista concorda com o anterior no tocante aos hábitos destes índios: [... ] andam sempre de uma parte a outra pelos campos e pelos mattos, dormem no chão sobre folhas; e se lhes chove arrimam-se ao pé de uma arvore, onde escondem as folhas por cima, quanto os cobre, assentando-se em cocoras [... ]. E mais adiante, o mesmo Sousa narra:
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José de Anchieta. Cartas. .. , pp. 311, 312 e 340.
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Vivem estes barbaros de saltear toda a sorte de gentio que encontram, e nunca se viram juntos mais de trinta frexeiros; não pelejam com ninguem rosto a rosto, toda a sua briga é atraiçoada, dão assaltos pelas roças e caminhos por onde andam [... ]. Taxativo, o mesmo autor afirma: "comem estes selvagens carne humana por mantimento". Mais uma vez aparece o nomadismo, a ausência de aldeias ftxas e a tática de guerra. Acrescenta-se o canibalismo, mas sem nenhuma citação de casos precisos da ocorrência dessas práticas. O autor busca retirar qualquer fundamento ritualístico da antropofagia, associando-a com alimentação de subsistência, o que equivale a comparar, indiretamente, os Aimorés às feras carnívoras e autofágicas. De modo ainda mais sugestivo, Gabriel Soares aftrmava quanto ao Gentio Aimoré que "a sua falia é rouca da voz, a qual arrancam da garganta com muita força, e não se poderá escrever, como Vasconço". Não deixa de ser significativa a comparação com o vasconço (ou basco, idioma de origem linguística desconhecida e em desvantagem na Espanha) feita, aliás, num momento de ascensão de domínio do reino de Castela sobre o mundo ibérico. Os Aimorés eram associados, dessa forma, com o Outro que aparecia como mais diferente ou incompatível com o grupo hegemônico que pretendia dominar o território e homogeneizar as culturas. De qualquer modo, Gabriel Soares ou seus eventuais informantes ouviram as vozes desses índios e de algum modo dialogaram com eles. Mas a dessemelhança levava, neste ponto de vista, a uma impossibilidade de compreensão deste Outro pelos códigos conhecidos: E como elles são tão esquivos inimigos de todo o gênero humano, não foi possível saber mais de sua vida e costumes, e o que está dito pode bastar por ora; Por sua vez, o padre Pero Rodrigues, provincial do Brasil, registrava raiva e impotência em 1599, lamentando que "[... ] tanto aperta com a gente uma praga de gentio bravo, cuja língua não se pode entender, e que chamam Aimorés"Y 20 21
Gabriel Soares de Souza, pp. 58-60. Carta de Pero Rodrigues, Bahia, 19-12-1599, apud Serafim Leite, I, p. 212.
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O termo praga já fora usada por outro jesuíta, Anchieta, como foi visto. Era a mesma radicalidade da diferença, do desconhecimento e da dificuldade de compreensão das linguagens do Outro que aparecia como potente, por ser intangível e inominável. Descrevendo-lhe mais de perto alguns costumes, o jesuítaJácome Monteiro, na sua Relação de 1610, fala sobre o caráter estruturante da guerra entre os Aimorés: Entre si andam em perpétuos ódios, dos quais se esquecem quando hão-de fazer mal aos Portugueses, pêra o que se confederam e fazem em um corpo [... ]. Em seguida, o autor associa animalização desses índios com suas táticas de guerra e ainda reforça a fama de invencíveis, como neste trecho: Chamam-lhes bichos do mato; de nenhum gênero de gente, nem de armas têm medo, porque nunca pelejam em campo, senão de cilada; 22 O jesuíta Fernão Cardim, na década de 1620, também fez seu relato sobre os índios que chama de Guaimurês. 23 Cardim teve contato estreito com os holandeses no Brasil e seu conhecimento pode ter servido de fonte para os mapas holandeses. Avançando pouco na descrição física, ele vê estes índios como "muito encorpados, e pela continuação e costume de andarem pelos matos bravos tem os couros muito rijos". Não praticavam agricultura, viviam da caça e do produto dos ataques. "Correm muito e aos brancos não dão senão de salto". Sobre a tática de combate: Qyando vêm à peleja, estão escondidos debaixo de folhas[ ... ] e não ha poder no mundo que os possa vencer. Depois de reforçar o mito da invencibilidade, é ainda Cardim quem joga lenha na fogueira da legenda de ferocidade que envolve os Aimorés, afirmando que eles esfolam os prisioneiros, deixando apenas os ossos e as tripas, que ao capturarem uma criança branca matam-lhe com pauladas na cabeça e que, ainda, teriam o hábito de matar as mulheres grávidas para comerem os fetos assados. Esse 22 23
Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p. 406. F. Cardim, pp. 198-9.
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"hábito" parece remeter ao caso narrado anteriormente por Anchieta, ou a outro semelhante. De qualquer modo, eram narrativas que se espalhavam pelo território colonial, compunham uma memória coletiva dos primeiros tempos da presença europeia e serviam como demarcadoras de identidades. E o desconhecimento, o aspecto ininteli gível, é sublinhado por Cardim: "não se lhes pode entender a língua". Já o franciscano frei Vicente do Salvador, à sua maneira, traçou em 1627 o perfil dos Aimorés: [... ] como nunca sahiam a campo a pelejar, sinão a traição, escondidos pelos mattos, mui poucos lhes mataram [.. .]. O mesmo autor afirma em outro trecho: [... ] como não tinham casas nem logar certo onde os busquem, nem saiam a pelejar em campo, mas andem como leões e tigres pelos mattos e dalli saiam a saltear pelos caminhos, ou ainda sem sahir, detraz das arvores, empreguem suas frechas, poucos bastam para destruirem muitas terras. As citações dos oito autores acima são interessantes e ricas de sugestões. Em primeiro lugar, descrevem a tática de guerra geralmente utilizada pelos Aimorés, semelhantes às guerrilhas ante os exércitos regulares. Esses índios evitavam o combate direto, o que explica seu sucesso apesar da inferioridade do armamento. Embora as armas dos europeus fossem mais eficientes e mortíferas, elas perdiam parte de sua eficácia diante dessa tática de guerra composta de escaramuças, que consistia em evitar combates abertos. Somavam-se a isso os ataques surpresa dos índios e o conhecimento do terreno e do meio ambiente - e temos aí da parte dos Aimorés uma lógica de guerra solidamente estruturada, com resultados palpáveis, que durante tanto tempo desafiou as mais diversas táticas militares dos portugueses, espanhóis, holandeses e brasileiros. Estes fatores bélicos compõem algumas (mas não todas) das explicações sobre o sucesso destes índios diante dos colonizadores durante tanto tempo. 24 24 O ]ournal de la Société des Américanistes, Paris, LXXl, 1985, dedicou um número especial à discussão teórica sobre a guerra e os povos indígenas. Destacam-se no volume os artigos de Jean-Pierre Chaumeil, Maria Manuela Carneiro da Cunha, Eduardo Viveiros de Castro, P. Menget,Anne Cristine Taylor e ainda Thierry Saignes. Existem estudos clássicos e anteriores sobre o tema, como os de M. E . Davie, Pierre C lastres e Florestan Fernandes.
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O fato de se constituírem como grupos aparentemente errantes, sem local fixo como aldeia, sempre movimentando-se em acampamentos provisórios (e mantendo esta movimentação nos combates), foi outro fator que dificultou a vitória contra os guerreiros Aimorés. Os guerreiros ocidentais e seus aliados ainda aqui ficavam descoroçoados. Isso explica por que, como destacou frei Vicente, poucos índios podiam ocupar e destruir muitas terras. A crença na invencibilidade desses índios parecia assombrar os Conquistadores que, durante quatro séculos, utilizaram todos os meios, persuasivos ou violentos, sem conseguir submeter completamente tais tribos. Todos esses relatos, sobretudo as narrativas de guerra, as descrições de combates, recuperam uma imagem extremamente vigorosa desses Aimorés, como mais tarde dos Botocudos. Assim, mesmo a contragosto, estes escritores dos séculos XVI e XVII acabavam por situar as tribos de Aimorés como sujeitos históricos. Melhor dizendo: a própria força dos Aimorés como agentes do processo histórico impunha estas brechas nas narrativas dos colonizadores, fazendo com que, mesmo sem palavras próprias, as tribos também participassem da composição das narrativas escritas. Nos relatos dos primeiros historiadores, comprometidos com a colonização e eivados de rancor e temor diante de grupos indígenas, percebe-se a presença e a atuação do comportamento guerreiro desses índios, que não eram passivos como vegetais (para retomar a expressão sugestiva de Gilberto Freyre), que não se deixavam submeter na maior parte dos casos e frequentemente tomavam a iniciativa nos ataques. A constante reafirmação dos não índios sobre a invencibilidade correspondia a uma constatação prática. Mas podia ser também a maneira possível como a cultura portuguesa, imersa nas lutas de colonização, expressava a força que fazia desses índios agentes históricos importantes. Esse aparente paradoxo (entre invencibilidade de um lado e depreciação e desumanização de outro) ajuda, pois, a compreender que numa visão de conjunto estes "cronistas coloniais" se caracterizavam por falar da fúria, da violência, das necessidades e ataques dos índios adversários, ao mesmo tempo que ocultavam as falas, sentimentos e mesmo suas inteligências - ou talvez não tivessem acesso a elas. Diante do adversário que continuava ameaçando não havia quase menção a sistemas culturais e sociais que compunham a vida destes grupos - registro que desde o século XVI era feito em relação a
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outras tribos que vivenciavam alianças e contato mais estreito com o colonizador. A escrisa desta história aparece então como moldada pelas práticas guerreiras dos Conquistadores e colonizadores. História escrita do ponto de vista da Conquista, mas de certa forma "brutalizada" pelo vigor guerreiro dos Aimorés, intimamente ligado às suas estruturas culturais. Existem possíveis explicações para essa força de resistência e amplitude da sobrevivência dos Aimorés. Os grupos tupis (mais ligados à agricultura, com cerâmicas mais complexas e sediados no litoral na época da chegada dos europeus) tinham mais dificuldade em locomover-se e mudar de habitação com agilidade. Ao contrário dos grupos Jês (e a denominação genérica de Aimorés), com frequência caçadores e coletores, nômades ou seminômades, com cultura material menos complexa, feita de materiais mais leves. Tais características davam a eles melhores condições de movimento, seja para evitar o contato ou guerrear, tornando-se assim mais difíceis de serem conhecidos pelos adversários, relativamente preservados de suas formas de contato, registro e controle. Pode-se arriscar a afirmação de que a guerra, ainda que agravada pela presença dos europeus, compunha a identidade e a estrutura social desses índios, constituindo-se num motor vital de criação e reprodução de seus laços sociais, garantindo e elaborando a coesão interna de cada grupo. 25 Paradoxalmente, a guerra aparecia como garantia da vida dessas tribos, e quando guerreavam com os não índios, com outras tribos ou entre si, ao mesmo tempo que engendravam atividade eminentemente destrutiva, criavam condições de preservar a própria vida. A guerra aparecia para eles como fonte e troca de energias com os adversários. Nesse sentido, pode-se falar de uma antropofagia, seja ela simbólica ou efetiva, uma vez que os combates podem significar a incorporação da energia do adversário. Este "canibalismo", ainda que apenas simbólico, criava uma perturbadora alteridade entre não índios e Aimorés - onde as ferocidades e as energias se igualavam, se disputavam e se realimentavam. Os combates podiam tanto conduzir à morte quanto serem garantia de vida. Sendo assim, quanto mais tinham chance de combater ou evitar contato, mais esses índios ganhavam força para sobreviver. Se deixassem de guerrear, os Aimorés estariam dissolvendo parte de 25
Cf. nota anterior.
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sua própria organização social, deixando de ser quem eram, ainda que a atividade guerreira possa ser entendida de várias formas e mediações, dentro de condições históricas. Um dado curioso aparece durante as guerras dos chamados Aimorés: as armas de fogo encontradas por esses índios eram destruídas e não utilizadas, comportamento que, ao que parece, seria mantido pelos descendentes dessas tribos mesmo nos momentos de guerra mais intensa, no princípio do século XIX. Isso parece indicar que a atividade guerreira, para esses índios, tinha um sentido ligado à visão de mundo: mudar as armas seria alterar a própria guerra, o que parecia inconcebível para esses grupos que, assim, expressavam um "conservadorismo" de costumes. Por gestos como tais, que valem como um testemunho, podemos conjeturar que a guerra parecia ter para eles um caráter cósmico ou sagrado, que regulava suas relações sociais com os "Outros" - e não apenas busca de subsistência, como tende a crer o olhar funcionalista, nem uma suposta índole "selvagem". Em reforço da hipótese de que essa visão guerreira, nos Aimorés, estivesse ligada a uma cosmogonia, a uma visão do mundo e do universo, há também o nomadismo. Mais do que buscar explicações definitivas para a guerra e o nomadismo (às vezes muito evidentes para a perspectiva racionalista), do tipo fuga dos inimigos, busca de subsistência ou influências climáticas, percebe-se que em alguns povos indígenas o nomadismo, como a atividade guerreira constante, pode estar ligado à busca de uma "Terra Sem Males", vingança de mortos ou ao confronto com espíritos que estariam errando pelas florestas, dos quais os índios precisariam fugir, enfrentar ou saciar as vontades. Existem casos também de práticas rotineiras de vingança, funcionando como uma espécie de código de honra regulador das relações de poder. Trata-se, pois, de uma visão de mundo: organização social, vingança, espíritos e Terra Sem Males. Estariam os Aimorés submetidos a um ou a vários desses códigos? Tudo leva a crer que sim, apesar da ausência de estudos deste gênero nos três primeiros séculos do contato. Durante muito tempo - e ainda hoje - despejou-se um discurso moralizante sobre os índios, colando etiquetas que oscilam entre a bondade e a perversidade naturais. O bom selvagem e o mau selvagem. Em cima dessas constatações elaboram-se políticas, literaturas, fazem-se contatos, praticam-se controles e até genocídios. lnomináveis Aimorés. É importante alertar para a inexatidão do uso do nome Aimoré. Não se tratava de uma tribo apenas, e nem
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sempre de um mesmo grupo etnolinguístico, mas denominação genérica que podia ser aplicada a vários grupos e tribos, em geral tapuias. Isto é, não tupis, e com certa frequência do grupo linguístico Jê ou Macro-J ê. O padre J ácome Monteiro, por exemplo, que os conheceu de perto, escreveu ao relacionar os índios do Brasil: "E há outros, que chamam Tapuias e mais comum ente Aimurés, que estão nesse espaço de 140 léguas, que há da Baía ao Espírito Santo". 26 Neste rol de Tapuias incluíam-se os que viriam a ser chamados de Botocudos durante o século XIX e Krenak no século XX. Logo, essa imprecisão do nome Aimoré, aplicado a agrupamentos distintos, ainda que dificulte um conhecimento mais rigoroso, não impede a caracterização predominante dos índios identificados sob tal rótulo, que são os tratados no âmbito deste trabalho. À escassez de contatos com a civilização ocidental corresponde uma carência de fontes escritas, de registras mais densos em relação a esses Aimorés. E, mais do que uma dificuldade de consultar fontes documentais, ocorre um problema maior, que viria a expressar o cerne das relações com os índios. Como nomear estes últimos? Como tratá-los, senão pelo extermínio e aniquilação, não só da vida, mas do próprio nome? O nome foi marca forte que os registras históricos deixaram sobre esses grupos indígenas. Chamados de Aimorés, como mais tarde de Botocudos, essas nomeações não eram assumidas por eles. Ao contrário, era identidade atribuída pelos adversários, estigma. "Mas nenhum se nomeia pelo de Guaimuré, que quer dizer nome mau, ladrão, matador, prezando-se todos pelo nome de Guerém Guerém". 27 Guerém pode ser uma corruptela de Kren. Da mesma forma, dois séculos depois, outra testemunha diria que o nome de Botocudo desagradava profundamente esses índios, que se irritavam ao ouvi-lo pronunciado. 28 Está claro, portanto, que esses índios nunca chamaram a si mesmos de Aimorés, como também nunca se apresentariam mais tarde como Botocudos. Esses dois nomes ou, mais do que isso, essas duas identidades, foram forjadas por seus oponentes, servindo ao mesmo tempo de classificação e justificativa para combatê-los. 26
Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p. 406. Ibidem. 28 Cf. M . Wied-Neuwied, t. 2, p. 209. 27
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De acordo com o Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, aimoré vem do tupi, amboré, nome de um peixe conhecido também por amoreia ou moreia. A mesma expressão - com variações como guaimuré- serviria aos tupis para denominar não só este peixe notório por seu comportamento agressivo, mas a todo tipo de pessoa que lhes fizesse mal, que lhes parecesse violenta ou ameaçante. Dessa maneira, foram denominados predominantemente alguns poderosos grupos de índios arredios aos tupis e aos colonizadores, localizados em determinada área geográfica, como o "gentio" Aimoré. Mais tarde, já no século XIX, seria possível verificar, como veremos adiante, que uma das características desses grupos, ao lado de um certo nomadismo e do [racionamento em bandos, era a ausência de nomes fixos e unificados. O nome de uma tribo mudava em função de diversos fatores que não foram bem esclarecidos, mas sabe-se, por exemplo, que uma tribo podia ganhar o nome do chefe ou do local onde estivesse sediada. A mudança de chefe ou de local podia acarretar a transformação do nome da tribo, o que dificulta o registro por códigos letrados e racionalistas. Prejudica não só o registro, mas o que é inerente à própria nominação em si: o conhecimento e o controle. Daí a iniciativa do adversário de dar um outro nome a esses grupos - o que correspondia, também, a uma atitude, um enquadramento. Indomáveis, era preciso domá-los. Inomináveis, era preciso nomeá-los. Invencíveis, era preciso vencê-los. Para os historiadores e outros estudiosos, fica o desafio: como tratá-los, sem reproduzir a marca deixada pelos seus adversários? Falar deles é repetir seus algozes. Não falar é também perpetuar o silêncio de morte que paira sobre eles. Grande parte das localidades litorâneas, na época do "Descobrimento", foi batizada com nomes religiosos católicos. A própria palavra índio indicava a crença inicial de que os múltiplos povos encontrados nas "Américas" (de Américo Vespúcio ... ) eram habitantes das Índias, isto é, das Índias ao oriente da Europa. A nomeação de Aimoré, como mais tarde de Botocudo, não fugiria a essa regra batismal. Algumas informações esparsas chegam sobre os nomes dessas tribos Aimorés. Segundo o padre Jácome Monteiro, os Aimorés dividiam-se em grupos de nomes diversos, como Guerém Gueréns, Patutus, Napurus, Crampee, Piiouriis, Coconhim e Brue-Brue. 29 29
Padre Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, vol. VIII, p. 406.
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Cardim, mais ou menos na mesma época, afirmava que tribos como Mainuma, Aturary e Qyiglaio "se misturão com os Guaimurês", ou "entrão em communicação"com eles. 30 O que leva a crer que seriam os nomes tribais que eles se atribuíam ou, então, ocorrência de alianças ou incorporações entre distintos grupos etnolinguísticos, que acabavam se mesclando. De qualquer modo, fica difícil falar em Aimorés puros: apesar da existência de grupos com identidades étnicas definidas, havia encontros e mutações, de forma dinâmica. Em relação a ornamentos, temos a observação do jesuítaJácome Monteiro, que viu os Aimorés portando o que chamou de pedras brancas e redondas: Nas orelhas, assi homens como mulheres, trazem umas pedras redondas, brancas e quanto maiores tanto mais graves; os beiços furados e cheios de pedras, e estas brancas, como as das orelhas [... ]. Essas "pedras brancas" poderiam ser os ornamentos de madeira de cor clara, que os portugueses chamariam botoques (originando o apelido Botocudo) e os índios no minavam como gnimato (utilizados na orelha) e houma (nos lábios). 31 De qualquer maneira, sabe-se que diferentes grupos etnolinguísticos utilizavam ornamentos nos lábios, orelhas e narinas, perfurando-os. Qganto ao exame linguístico, quase nada foi feito de forma sistemática no tempo dos Aimorés. O mesmo Jácome Monteiro informa que os Guaimurés chamavam os portugueses de krenton, que significava gente do cabelo feio. Mais tarde, no século XIX, a maioria dos vocabulários Botocudos retoma essa expressão com o mesmo significado, isto é, designação pejorativa dos não índios - o que já é um indício da continuidade entre Aimorés e Botocudos. Como assinalou um estudo linguístico, em nenhuma outra tribo encontra-se tal vocábulo. 32 30
F. Cardim, p. 203. Cf. M . Wied-Neuwied, t. 2, p. 212. 32 C. Emmerich & R. Montserrat (1975). Há um estudo linguístico pioneiro e expressivo sobre esse grupo étnico do theco C. Loukotka (1955), que listou 38 dialetos dos Aimorés/Botocudos e faz ressalvas para a inclusão dessa língua no tronco Macro-Jê. 31
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OS "VIS AIMORÉS"
Assim, no século XIX, entre tribos de Botocudos, krenton significava ao mesmo tempo "cabeça-feia" (kren-ton), civilizado, gente má. Existem variações desse termo, como crenn-tonn, kreneton e cratonha. Este, aliás, adaptado e incorporado ao idioma português no Brasil, como caratonha. O Dicionário de Morais e Silva, edição de 1813, registrava tal termo, sem aludir à sua origem. 33 Na década de 1990, os Krenak ainda utilizavam o termo krenton, que significava "branco doido" ou, também, soldados. 34 Vê-se que kren, ou cren, é uma das expressões-chave desse vocabulário, servindo para denominar cabeça, cabelo, cara. É possível fazer também uma comparação fonética entre os termos Guerém ou Gren (nomes de tribos nos séculos XVII e XVIII, que podem ser corruptela de cren) com os Krenac do século XX, todos girando em torno da mesma raiz, cren. A questão das origens e da continuidade entre Aimorés, Grens e Botocudos gerou alguns mal-entendidos. Varnhagen, por exemplo, arrisca o palpite de que esses índios teriam vindo do sul das Américas, da Patagônia, mas não fundamenta tal hipótese. 35 Teófilo Ottoni, que conviveu de perto com essas tribos nos anos 1840 e 1850, contesta a linha de continuidade entre Aimorés e Botocudos e afirma que estes falavam uma língua do grupo tupi-guarani. 36 Trata-se de erro crasso de Ottoni, que não apresenta argumentos ou provas consistentes. Ottoni quer crer que eles são um ramo dos tupis, mas faz tal asserção ignorando até as evidentes diferenças linguísticas entre esses grupos. Seria o mesmo que afirmar que os chineses falam russo, ou que os alemães expressam-se em japonês ... Ottoni fundamenta tal afirmação num ponto curioso: não consegue enxergar nos Botocudos que encontrou nenhum resquício daquilo que lhe parecia ser a grandeza épica dos Aimorés. São provavelmente manejos da sensibilidade romântica que via no Tupi os bons e nos Aimorés os maus, sem maiores fundamentos históricos, embora repetidos por alguns estudos posteriores. O notável etnólogo Curt Nimuendaju, por seu turno, desconfiou da filiação Aimorés e Botocudos, mas infelizmente não teve oportunidade, como admitiu, de aprofundar a questão.37 33
Diccionario da lingua portugueza . .. , Antonio Moraes e Silva [1813], (1922). Cf. Izabel Misságia de Mattos (1996, p. 56). 35 F. A. de Varnhagen. História geral do Brasil, vol. I, t. 1, p. 309. 36 T. Ottoni, pp. 188-9. 37 Curt Nimuendaju, apud I. Missagia (1996, p. 57). 34
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No século XIX, Martius, na sua primordial classificação das línguas indígenas do Brasil, que rompe de maneira consistente com a dualidade tupis e tapuias, põe juntos Aimorés e Botocudos.38 Numa atitude oposta a de Ottoni (quanto à filiação dos Botocudos com Aimorés), o general Cândido Rondon e os pioneiros do Serviço de Proteção aos Indios (SPI), no começo do século XX, retomam a denominação de Aimoré para os mesmos índios, no que parecia ser uma tentativa de resgatar-lhes o passado e a dignidade atingida, além de garantir-lhes alguma parcela de posse do território. Rondon chamou os Krenak de "última relíquia da outrora pujante nação dos Aimoré", ao mesmo tempo que o SPI advogava ao governo de Minas Gerais a legalização de terras para esses índios em torno dos rios Eme e Doce. E numa classificação etnolinguística, o general Rondon consideravaAimorés, Botocudos e Krenaks pertencentes a um mesmo grupo. 39 Há diversas fontes e análises que indicam para esse caminho de continuidade entre Aimorés, Grens e Botocudos. A tradição oral dos moradores da região - registrada nos livros dos primeiros viajantes do século XIX, como Saint-Hilaire e Wied-Neuwied- expressava uma consciência clara deste elo entre Aimorés e Botocudos. Um administrador local e proprietário de terras, José Pereira Freire de Moura, que viveu entre os anos 1760 e 1810 nas margens do rio Jequitinhonha, estabelecendo contato com várias tribos, testemunha neste sentido: Os Indios Botocudos Ambarés são certamente hua tribo derivada, mas apartada dos Botocudos que habitão os matos do Riodoce. Elles tem a mesma lingoa, ou a sua lingoa pouco difere da Botocuda, sendo dela um dialeto. Os ornamentos dos botoques no beiço, e nas orelhas, o serem antropofagos, não se lhe conhecer domicilio certo, andarem sempre em pequenas partidas para poderem subsistir; porque vivem da caça e da pesca, não tendo o menor conhecimento de cultura: tudo isto concorre para se poder dizer com justeza que são, ou fazem hua tribu dos Botocudos.40 38
Von Martius. Glossaria, p. 177. Conferência do general Cândido Mariano da Silva Rondon no Congresso de Geografia, Belo Horiwnte, 1920, apud Amílcar B. Magalhães {1947), pp. 32 e 60. 40 J. P. F. Moura. "Noticia e observações sobre os indios Botocudos que frequentam as margens do rio Jequitinhonha e se chamão Ambarés ou Aymorés" [1809], RAPM, II, 1897. 39
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O relato acima é interessante por vários motivos. Ele começa reafirmando a continuidade entre Aimorés e Botocudos. Tenta uma descrição, ainda que sumária, das características culturais dessas tribos. Embora ainda se prenda aos registros dos relâmpagos guerreiros, da ferocidade e da agilidade, que marcaram os escritos da época colonial, esse funcionário e proprietário rural, certamente imbuído de alguns raios das Luzes das ciências, leva em conta hábitos culturais e a comparação linguística para estabelecer a identidade das tribos em questão. Mesmo o próprio ato de chamá-los ao mesmo tempo de Botocudos e Ambarés é sugestivo para indicar que esse relato foi feito justamente no momento de passagem entre uma denominação e outra. Além disso, há um ensaio histórico e linguístico sobre esta questão que estabelece conclusões fundamentadas mostrando que Aimorés, Krens e Botocudos compunham essencialmente um mesmo grupo etnolinguístico. 41 E com transformações históricas e culturais que os grupos humanos em geral passam ao longo de cinco séculos, em diferentes graus e circunstâncias. Não creio que tenha existido autodenominação unificada ao longo dos diversos tempos e espaços para este grupo etnolinguístico subdividido em tribos. Borum, tido por nome autêntico e uniforme, não aparece em registros anteriores ao século XX. Minha tendência é conceber que, a um certo nomadismo territorial, correspondia um nomadismo nominal. Isto é, os nomes desses grupos eram mutáveis de acordo com diferentes circunstâncias (o chefe do bando, a localidade onde estavam, etc.) e a existência de nome único entre estes grupos foi sempre imposição externa. Ou então eles assumem o nome único (como Krenak, por exemplo, que no século XX passa a ser agregado como sobrenome) para efeito de identificação externa, isto é, diante dos Outros, que não eles próprios. Mesmo que o nomadismo territorial tenha acabado, o nominal, de algum modo, permanece, assim como o fracionamento convive com a unificação de diferentes "bandos", que coexistem no século XXI numa mesma área, mas demarcando diferenças e desavenças. A antropóloga lzabel Misságia de Mattos anotou que "Borum é o termo nativo com que os Krenak se autodesignam e cujo significado literal é gente [ ... ]", afirmação que me parece pertinente. 42 É 41
42
Cf. Charlotte Emmerich & Ruth Monserrat, cit. lzabel Missagia de Mattos, 1996, p. 56 e 2004, p. 43.
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verdade que os Krenak se referem a eles próprios (e mesmo a antepassados já falecidos) como Borum, como pude presenciar nas oportunidades em que estive com eles. Certa vez perguntei ao chefé Him, seu Nego, se o nome deles era Borum. Ele respondeu-me apenas, com leve sorriso, que "Borum quer dizer índio". 43 Os próprios Krenak grafam Búrum ao ensinarem sua língua aos jovens da tribo. 44 Dentro dessa perspectiva, vemos que a alteração do nome de Aimoré para Botocudo não correspondeu diretamente a diferenças nas características desses grupos. São gerações sucessivas de uma identidade étnico-linguística em mutação, com a mesma localização macrogeográfica. É verdade que ocorreram mudanças: na sociedade que se consolidava no território brasileiro, nos contatos com esses índios e, ainda, nas concepções sobre eles, havendo, portanto, alterações significativas nos modos de vida dessas tribos, como dos demais grupos humanos existentes no território brasileiro nos últimos cinco séculos. É significativo perceber que os primeiros textos sobre os Aimorés destacavam a ferocidade, como aspecto desumanizador. Ao contrário de outros relatos sobre índios, nos quais o controle sobre suas culturas aparecia na ênfase num comportamento marcado seja pela indolência, docilidade, aceitação pacífica, alegre ou voluntária dos valores da cristandade e da civilização ocidental. Entretanto, essa "máscara" feroz, se correspondia a uma atitude de resistência dos Aimorés, era também uma forma de enquadrá-los e justificar a violência contra eles. Ainda aqui é possível encontrar "brechas" nas narrativas escritas pelos colonizadores de corpos, terras, almas e palavras. Qlando quatro Aimorés entraram pela primeira vez na vila de Ilhéus, no raiar do século XVII, acompanhados de jesuítas, ao verem os habitantes de origem portuguesa e outros índios aldeados, mostraram-se "ainda medrosos de gente, a quem tanto tinham ofendido, [e] se ferravam com o Padre e o Irmão, sem nunca os largarem senão dentro em casa". 45 Tinham força guerreira, mas também fragilidades. Não eram completamente invencíveis, intangíveis, invisíveis, indescritíveis e inomináveis, porque, afinal, partilhavam da condição humana. 43 Entrevista concedida ao autor no território dos Krenak, Resplendor (MG), rio Doce, em 6 de fevereiro de 2000. 44 Conforme M. Krenak e outros. Cartilha Conne Panda. Rfthioc Krenak . .. 1997. 45 Cf. relato do jesuíta Domingos Rodrigues, apud Serafim Leite, II, p. 125.
Capítulo2
ALDEAMENTOS: ENTRE MORTANDADES E MILAGRES
Ü
contato com os Aimorés entre meados dos séculos XVI e XVII, alternando guerras, escravidão e catequese, mobilizava atenção dos principais centros de poder do mundo ocidental: Lisboa, Madri, Amsterdam e Roma. E era em Salvador, capital do Brasil, que as iniciativas concentravam-se. Além disso, as investidas holandesas no litoral da Bahia entre os anos 1580 e 1630 (além da ocupação propriamente, entre 1624 e 1625) coincidiram, em alguns momentos, às investidas dos Aimorés, dificultando a colonização ibérica nas terras amencanas. Com a catequização temos o primeiro grupo coeso de homens letrados e engajados no processo de Conquista a relacionar-se com os povos indígenas. Dois atores históricos coletivos se encontravam: Aimorés e os jesuítas. Colonizadores mansos, índios bravos, colonizadores bravos e índios mansos formando um entrelaçar e entrechocar de forças neste cruzamento entre sertão e litoral, entre doutrinação, sincretismo e resistência indígena, guerra e cultura, acomodações e destruições, alianças e apocalipses. Foram vinte e oito missões expedicionárias enviadas da Europa pela Companhia de Jesus para o Brasil até 1604, com dezenas de padres que, a partir daquele momento, ajudariam a mudar os rumos da colonização de forma decisiva. Destes, alguns escreveram sobre os Aimorés, como Manuel da Nóbrega, Fernão Cardim, Pero Rodrigues, José de Anchieta Gá citados) e Sebastião Gomes. Outros, além de escrever, entraram em contato direto com eles, e pelo menos quatro jesuítas sabiam a língua dos Aimorés em começos do século XVII: 52
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Jácome Monteiro Gá referido), Domingos Rodrigues, João de Azevedo e Domingos Monteiro, todos do Colégio da Bahia, e o último pregava o catecismo na língua dos Aimorés. Porém, não se conhece nenhum vocabulário aimoré desta época. A experiência de "cristandade dos tapuias" foi tentada com mais ênfase no período que correspondeu, aproximadamente, ao domínio espanhol sobre Portugal (1580-1640) e à crescente influência da Companhia de Jesus, da qual, como se sabe, floresciam as Missões em diversas partes do continente, da Amazônia ao Sul. Nesta guerra de Conquista os instrumentos bélicos não eram poupados: pólvora, chumbo e bala. Mas entrelaçada à violência que custava tantas vidas havia a dimensão simbólica, mágica, que não caracterizava apenas os índios e marcava a cultura europeia, numa longa duração. Na impossibilidade de conhecer melhor as crenças e celebrações desses índios nos dois primeiros séculos da colonização, é instigante, porém, compreender e assinalar crenças e celebrações dos colonizadores, geradas no contato com os Aimorés. A visão de mundo (bélico-religiosa) da Europa, sobretudo a partir das Cruzadas, tinha algumas marcas. As relíquias, como se sabe, eram objetos de culto - durante séculos um dos principais catalisadores da fé católica. Elas começam a perder força a partir do Reforma e do racionalismo Ilustrado do século XVIII - embora possa se perceber, ainda hoje, persistências desse tipo de culto. Caixinhas preciosas onde estariam guardados restos mortais de santos, trapos de roupas sagradas, supostos pedaços do Santo Sudário ou da Cruz de Cristo transformavam-se em imagens potentes e congregadoras, às vezes com mais vigor e importância do que as figuras dos santos esculpidas. Mais tarde pesquisadores detectaram figuras de santos que seriam como centopeias- caso fossem verdadeiras todas as Relíquias que lhes eram atribuídas - ou ainda uma Cruz de vários quilómetros de extensão onde Cristo esteve pregado ... 1 As relíquias tinham papel importante, sobretudo no sentido de encorajar a guerra contra os pagãos, fossem mouros ou índios. Eram baluartes da memória que ajudavam a fundamentar a coesão e a identidade da civilização cristã ocidental. Restos de corpos do passado que contribuíam a dar organicidade ao corpo social do presente. 1 Um curioso inventário crítico e desmistificador foi feito por Collin de Plancy, Dictionnaire critique des reliques et images miraculeuses, 1821.
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Assim, ficamos sabendo que o superior geral da Companhia de Jesus, em 1575, enviara para a Bahia uma relíquia de São Jorge, visando especificamente os Aimorés. 2 O gesto não era gratuito. O santo-guerreiro, mártir do século IV, fora escolhido como Padroeiro das Cruzadas por Ricardo Coração de Leão. O líder jesuíta clamava assim a uma nova Cruzada, desta vez contra outros "bárbaros". O "dragão" a ser enfrentado pela força de São Jorge tomava outro feitio. E não era atitude ingênua ou piedosa, mas vigoroso gesto simbólico, ponto de partida para investida de envergadura da Companhia de Jesus e de grupos armados sobre os Aimorés. Significou, nos anos seguintes, destruição de tribos, mortes por epidemias, combates sangrentos, batismos coletivos, conversões de índios ... A vitória obtida num embate com Aimorés em 1581 (quando os conquistadores levaram para o campo de batalha esta Relíquia) foi atribuída à presença deste objeto de culto, tido como miraculoso. É o padre José de Anchieta, aliás, quem narra este caso miraculoso: E o em que mais confia toda gente dali é em uma relíquia do glorioso São Jorge mártir, que está na nossa igreja. Por terem experimentado que, depois que foi para ali (que haverá seis anos), não mataram nenhum português, e dos índios muito menos do que antes costumavam. Pelo que a gente lhe tem muita devoção e, pelo seu dia, vão todos, senhores e escravos, índios e portugueses à nossa igreja, com uma solene procissão, aonde se lhes faz uma pregação em louvor do santo e aumento da devoção, que se lhe deve ter. 3 A narrativa de Anchieta aponta para o sólido caráter congregador das relíquias, símbolo capaz de unificar diferentes segmentos (sociais e culturais) sob o manto da fé católica, diante de inimigo comum, além de demonstrar como tais procedimentos, oriundos da Idade Média europeia, eram reproduzidos de maneira vigorosa nas terras de além-mar, ganhando, possivelmente, diferentes significados para grupos 2 Cf. Jarric, apud Southey, t. 2, p. 50. Também a Carta Ânua da Companhia de Jesus de 1581 escrita pelo padre Anchieta confirma o milagre atribuído a S. Jorge, cf. Serafim Leite, I, pp. 191-2. 3 J. de Anchieta. Cartas . .. , p. 311.
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tão diversos envolvidos nas celebrações. E é interessante lembrar que a Vila de São Jorge dos Ilhéus foi batizada com o prenome de seu primeiro donatário, mas de certo modo crismada pelos atribuídos milagres do santo homônimo. Conta-se também que a imagem de Nossa Senhora da Ajuda, nos arredores de Porto Seguro, desapareceu do altar da igreja em sua homenagem no dia de um levante dos Aimorés. Após sangrentos combates, na manhã seguinte, a mulher que tomava conta da capela encontrou a estátua de volta ao altar, "toda suada e com um lenço lhe alimpou o suor do rosto". O Menino Jesus em seu colo também sumira e só posteriormente foi achado, num canto do altar. A explicação encontrada é que a santa fora socorrer seus fiéis durante a batalha contra os índios, deixando escondido o Menino. A volta da imagem ao altar foi motivo de festejos, com celebração de missa pelo jesuíta Mateus de Aguiar, no Natal de 1621. 4 Na mesma localidade de Nossa Senhora da Ajuda, três séculos mais tarde, a memória coletiva local ainda guardava fortes traços deste entrelaçar dos Aimorés e jesuítas. Como nesta lenda, que circulava nos anos 1930: A jovem e bela Y naiá vivia feliz em Carahyva, na beira do mar, nos arredores de Porto Seguro, onde o chefe dos Aimorés (Abaitara) era seu irmão. Até que chegaram estranhos homens em navios vindos de uma terra desconhecida (seria a expedição de Gonçalo Coelho, de 1503, cujos canhões deixados no local ainda hoje atestam sua passagem por lá). Y naiá apaixonou-se por um homem da expedição portuguesa que, entretanto, não correspondeu à paixão e seguiu viagem com os seus. Ynaiá, desesperada, segue por terra o navio até Porto Seguro, mas ao chegar lá as naus já haviam partido. A índia aimoré então morreu de paixão. Seu irmão, para vingar a sua morte, destruiu o povoado de Santo Amaro. Escapou da destruição apenas a imagem de Nossa Senhora d'Ajuda, que foi retirada para um arraial nas proximidades. Os jesuítas então construíram uma igreja com o nome da santa que também batizou a localidade. O!ranto a Y naiá, foi enterrada na igreja de 4 Cf. carta do padre Mateus Aguiar ao provincial Domingos Coelho, apud Serafim Leite, V, p. 230.
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São Francisco, que ruiu, mas cujo local passou a ser alvo de adoração. 5 Permanecia então este culto a Ynaiá, sobretudo entre as mulheres da cidade, que costumavam rezar missas e depositar flores no local onde se supunha estar seu túmulo. Ainda na ocasião, N. S. da Ajuda era uma santa milagreira que atraía peregrinos de toda a região e cuja sala dos milagres (ex-votos, pinturas, etc.) estava repleta de agradecimentos por graças alcançadas. Os mitos indígenas entrelaçados à cultura católica por meio da catequese constituem um manancial de estudos. É evidente que a lenda citada acima misturava episódios que ocorreram em épocas diversas, como a expedição de Gonçalo Coelho, a fundação da vila de Santo Amaro (feita à custa de um massacre sobre Aimorés) e a catequese. Entretanto, essa narrativa, mantida viva pela tradição oral por uma população de caboclos que ainda se lembravam de sua identidade mista de Tupiniquim e Aimoré, não seria uma forma, sincrética, de resistência cultural e de narrar a própria história, onde a pureza de sentimento dos índios contrasta com a brutalidade e insensibilidade do Conquistador? Além dos jesuítas, a Ordem dos Frades Menores teve seu quinhão no confronto bélico e simbólico com os Aimorés, registrado pela pena de escribas confrades como Vicente do Salvador e Antônio MariaJaboatão. Ainda em Ilhéus, de acordo com o relato deste último, cronista franciscano, certa vez os colonos investiram contra estes índios, "repetindo as entradas, e numa deixarão sem vida a muitos, e trouxerão prezos, e cativos huma grande multidão daqueles bárbaros".6 Segundo freiJaboatão, os colonos atribuíram a vitória e apresamento dos índios a Nossa Senhora das Neves, padroeira de uma
5 Em 1939, em missão dos Diários Associados, o jornalista Edmar Morei recolheria esse mito fundador de Arraial d'Ajuda (BA), onde os habitantes, caboclos, ainda se apresentavam como descendentes dos Tupiniquins e dos Aimorés, misturados aos brancos, cf. Edmar Morei, Assis Chateaubriand e outros. Sob os céus de Porto Seguro, pp. 29-31. 6 Frei Antonio de Santa MariaJaboatam. Novo Orbe Seráfico Brasflico. .. , vol. I, pp. 88-9. Este autor franciscano escreveu no século XVIII e não deixou informações sobre a data do episódio, que situa nos primeiros tempos da colonização. O trecho em que este autor fala sobre os Aimorés é uma transcrição literal (sem aspas ou referências) da narrativa quinhentista de Gabriel Soares de Sousa.
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capelinha em Ilhéus ao pé do monte na rua de São Bento. Vitoriosos, decidiram então ampliar e rebatizar a capela, com o nome de Nossa Senhora da Vitória. E registrou-se que, entre os prisioneiros Aimorés, "Os mesmos Gentios cativos confessavão, forão vencidos por huma forte, e formosa Mulher branca, que montava em hum ligeiro cavallo". Aí não era mais caso de relíquia, mas sim de uma aparição mariana, outro tema tradicional (e recorrente) na simbologia católica que vem narrado nesta crônica franciscana. O trecho acima indica também que havia casos de cativeiro ("prezos, e cativos"), isto é, de escravidão, entre Aimorés aprisionados. Em contrapartida a esta derrota, sabemos, ainda em Ilhéus, de "[ ... ] huma Capella do Seráfico Patriarcha [São Francisco de Assis], que houve nos seus princípios no districto daquella Villa", dentro de um engenho, abandonada, junto com a propriedade rural, pelos fiéis "fugindo aos estragos, e insultos dos Tapuyas Aymorés, estes arrazarão tudo, e com a ruína do Engenho, a teve também a Capella". 7 Desfaziam-se as imagens, inclusive franciscanas, diante da intervenção (de resultado iconoclasta) desses indígenas. Por outro lado, entre escravização e resistência, houve o aldeamento Curral dos Bois, com Guaimorés, organizado por franciscanos no sertão da Bahia, sob a invocação de Santo Antônio, entre 1702 e 1843. 8 A devoção em torno do padre José de Anchieta e culto à sua memória mesclaram-se ao enredo de uma tradição anti-indígena, com. pondo sugestivo mosaico de permanências de representações culturais e de sua cristalização em crenças e símbolos religiosos - habilidade característica entre os jesuítas. Já nos primórdios da colonização, o próprio Anchieta assinalara os Aimorés como hostis, chamando-os "do mais cruel e desumano gentio, que nestas partes há". 9 O pioneiro da catequese nas terras brasílicas parece ter vivido frustração por não ter obtido a incorporação destes índios no seu projeto missionário, como relatou em tom de desabafo: Com intervenção dos tapuias, intentou-se a empresa, todos os recursos foram mobilizados, para que essa infeliz e cruel nação 7
Ibidem, pp. 377-8. Cf. Missões e aldeamentos no sertão nordeste do Brasil no século XVII, in Pedro Puntoni. A guerra dos bárbaros. .. , p. 295. 9 José de Anchieta. Cartas. . , pp. 311, 312 e 340. 8
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entrasse em intercâmbio conosco e assim, abraçasse a fé em Jesus Cristo. Tudo inútil! Pois, para se pôr em contato com eles e entabolar negociações de paz, percorrendo os índios as ocultas brenhas (que são moradas dos aimorés), se viram não poucos trespassados uma e outra vez por suas flechas, regressando assim às regiões nativas. Continuam, pois, os inimigos a perpetrar as tropelias de antes. O!,teira Deus que um dia se abram os seus olhos, para conhecerem e amarem seu Criador! 10 Contrariando a expectativa de Anchieta e de outros colonizadores, os Aimorés persistiam em atacar engenhos, residências e outras propriedades. O famoso poema épico De gestis Mendi de Saa (Os feitos de Mem de Sá), primeiro livro publicado (em 1563) de autoria do padre José de Anchieta, narra a guerra empreendida pelo terceiro governador do Brasil (1557-1572) contra os índios da capitania do Espírito Santo, com destaque para a batalha do rio Cricaré, onde faleceu o comandante das tropas portuguesas e filho do governador, Fernão de Sá. Trata-se de uma obra apologética da figura de Mem de Sá na perspectiva da Conquista e da cristandade, na qual ss destaca, também, a presença dos indígenas como temíveis adversários brasílicos, associados à natureza americana. Após a morte de Anchieta, temos no século XVII o exemplo de crenças e devoções na atitude do jesuíta Domingos Monteiro: enquanto aguardava a aproximação dos Aimorés para atraí-los ao aldeamento dos Reis Magos, no Espírito Santo, orava com frequência ao junto do túmulo do padre Anchieta (que o recebera na Companhia de Jesus) pela conversão deste gentio, rezando missa também no local quando os primeiros índios aproximaram-se sem atacar, em 1619_11 Era uma celebração à memória e homenagem aos projetos de Anchieta quando, ainda que mais tarde, deram alguns frutos através da incorporação de grupos de Aimorés ao projeto "manso" da catequização. E na mesma localidade do Espírito Santo as autoridades que combateriam os índios Botocudos ainda guardavam relíquias no ano da chegada da Corte portuguesa ao Brasil (1808), como um dente de 10
José de Anchieta. Cartas. . , p. 340 (Carta ânua da Província do Brasil de
11
Cf. Carta ânua de 1617-1619, apud Serafim Leite, VI, p. 163.
1583).
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São Tiago e a canela do Venerável Anchieta. 12 Como corolário dessas tradições hostis aos índios, pode-se ver ainda no século XXI na cidade de Anchieta (onde no século XIX havia um aldeamento para Botocudos), Espírito Santo, um monumento à beira-mar composto das estátuas de dois personagens: uma, mais elevada, representa o lendário missionário jesuíta, diante do qual há um índio rebaixado, a indicar veneração ou submissão. Não era exatamente a ausência de "pensamento mágico" que fazia a diferença entre europeus e Aimorés, nem o "conservadorismo" cultural marcado pela persistência de crenças que ultrapassavam contextos históricos. E pode-se dizer que tanto nas culturas indígenas, quanto nas europeias, assim como no entrelaçar de ambas, existem permanências de representações simbólicas que atravessam os séculos e sobrevivem mais tempo que as formas de vida e organização social que as engendraram. E neste exemplo citado, talvez não seja ousado associar a preservação de partes mutiladas do corpo como relíquias católicas à prática de mutilação dos corpos dos adversários pelos indígenas, ambos com forte significado simbólico. Se os seguidores de Santo Inácio de Loiola causaram embaraços, aliaram-se ou alteraram a vida dos Aimorés, a recíproca, em certa medida, existiu. Os jesuítas tiveram de abandonar a localidade de Camamu, em fins do século XVI, em razão dos ataques desses índios que, também, destruíram um engenho sob os cuidados desta Ordem em 1633, do mesmo modo que missionários ficaram por longos anos isolados em Ilhéus sem poder expandir as atividades fora da vila, por causa da hostilidade dos Aimorés. 13 O referido engenho, aliás, pertencera à mãe de um dos jesuítas que sabia a língua dos Aimorés, Domingos Monteiro. O que evidencia que, ao lado da força e Conquista espiritual, que dominava corações e mentes, os jesuítas estavam também envolvidos em interesses bem palpáveis de posse de terras. Na capitania de Porto Seguro, no início do Seiscentos, os colonos chegaram a passar fome pelo temor de cultivar roças fora dos 12 Cf. "Relação da Prata pertencente ao Collegio que foi dos Extinctos Jesuítas da Ilha da Vittoria", onde se relacionava "hum caixotinho de prata com o dente de S. Tiago" e "hum caixotinho de prata lavrada, [que] tem dentro a canella do Venerável Anchieta", AN, Série Ministério do Reino/Ministério do Império- Correspondências dos governadores da capitania e presidentes da província do Espírito Santo, 1808. 13 Serafim Leite, V, pp. 206, 220 e 222.
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limites da vila, em razão dos constantes ataques dos Aimorés. O provincial da Companhia de Jesus no Brasil, Pero Rodrigues, pronunciou-se sobre este caso do seguinte modo: A terra está já ocupada dos Aimorés, nem teem já os moradores onde cavarem mantimentos, porque lhes teem mortos estes bárbaros seus escravos e a muitos dos moradores. E como se não podem sustentar a si, menos podem acudir a sustentar os padres.14 A carta acima foi enviada às autoridades da Companhia de Jesus em Roma, que se mostravam preocupadas com a perda de terreno (concretamente) para os Aimorés. Este testemunho ressalta que os Aimorés causavam problemas de subsistência e de sobrevivência para a Conquista, colonização e para a Ordem de santo Inácio. A inexistência de Missões jesuíticas na capitania de Porto Seguro, nesta época, foi atribuída pelo mesmo provincial à ação dos Aimorés: Não se pode tratar acerca de missões, porque se não pode daí fazer nenhuma: e a razão é estarem postas em grande aperto há muitos anos e a gente ir aos poucos desamparando [... ] tanto aperta com a gente uma praga de gentio bravo, cuja língua não se pode entender, e que chamam Aimorés. 15 Ou seja, tais índios, com sua resistência, atingiam o âmago do projeto colonizador por meio da catequese. Ao mesmo tempo, este raiar do século XVII seria momento de aproximação de alguns grupos dos Aimorés com os colonos na Bahia, sobretudo por intermédio dos jesuítas. Foi, simultaneamente, momento de guerras violentas entre grupos (ou garfos, como se dizia em português arcaico ... ) de Aimorés e as frentes de expansão. De um lado índios que, acossados pelos embates, aceitavam aldear-se com os padres. De outro, os colonizadores portugueses que, além das refregas 14 Carta de Pero Rodrigues ao superior geral da Companhia de Jesus, Bahia, 15 de setembro de 1602, apud Serafim. Leite, I, p. 204. 15 Carta de Pero Rodrigues, Bahia, 19 de dezembro de 1599, apud Serafim Leite, I, p. 212.
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com indígenas, viam-se ameaçados por holandeses, espanhóis e franceses. Nesse quadro construíam-se alianças onde cada parte procurava a melhor maneira de proteger-se dos respectivos inimigos. Daí que uma das táticas dos colonizadores foi utilizar outros grupos indígenas no combate aos Aimorés, como os Potiguares. O envolvimento dos Potiguares nessa trama, além de possíveis animosidades preexistentes entre grupos indígenas, foi intermediado pelos jesuítas. A catequização, embora trabalhando com dimensões pedagógicas, psicológicas, culturais, místicas e espirituais, ligava-se diretamente à atividade bélica e aos interesses de posse da terra, apesar dos conflitos com colonos e com a Coroa em razão da forma de tratar os índios e de ocupar suas terras. Daí que o historiador e jesuíta do século XX, Serafim Leite, tenha resumido de maneira discreta, embora honesta: E assim, depois de meio século de lutas, vieram os Aimorés a ser reduzidos pela intervenção conjugada da autoridade civil e dos Jesuítas, nos primeiros anos do século XVII. 16
É preciso esclarecer que apenas uma parte dos Aimorés integrou-se a este projeto de catequese. A experiência de pacificação foi precedida de duros embates. "Tambem neste tempo se levantou outro gentio chamado os aymorés em a capitania dos Ilhéus, que a poz em muito aperto", narra frei Vicente do Salvador. Durante o domínio espanhol sobre Portugal e seus territórios a guerra contra os Aimorés continuou. O governador-geral Manuel Teles Barreto (1583-1587) dedicou grandes esforços para combater essas tribos. Se os primeiros guerreiros portugueses haviam sido derrotados, os que vieram em seguida tentaram ampliar o leque das alianças. Engajou-se para esse fim os colonos Diogo Correia de Sande e Fernão Cabral de Ataíde, espécie de caudilhos que lideravam um contingente de escravos e índios forros em armas. Formavam tropas pluriétnicas, com o objetivo de combater os indígenas que se apresentavam mais refratários aos europeus. Para reforçar esse pequeno exército, o mesmo governador engrossou-o com tropas regulares comandadas pelos irmãos Diogo e Lourenço de Miranda, castelhanos. Diversos combates foram travados emJuguaripe, Camamu e Tinharé. Em todos os Aimorés saíram vitoriosos. 16
II, p. 123.
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Os Conquistadores ibéricos acabavam de ter uma experiência (para eles, bem-sucedida) de pacificação das tribos Potiguares que ocupavam áreas da Paraíba e Pernambuco. Durante a gestão do governador-geral do Brasil, D. Francisco de Sousa (1590-1602) e, sobretudo, na gestão interina do capitão-mor Álvaro de Carvalho, seu sucessor, foi também ensaiado um modo de convivência com estes Aimorés, apoiado pelo trabalho missionário da Companhia de Jesus. A rebelião dos Potiguares fora aplacada a ferro e a fogo e seguida de um acerto de paz. A meta era repetir a façanha com os Aimorés. Buscando ao mesmo tempo evitar que a chama da revolta se reaquecesse e solidificar essa trégua, os ibéricos resolveram propor aos Potiguares que fizessem a guerra, juntos, contra os Aimorés. Assim, formou-se um improvisado exército com as hostes guerreiras encabeçadas pelo chefe Zoroabe e pelas tropas do capitão português Francisco da Costa. Marcharam até Ilhéus para dar, segundo eles, "caça" aos Aimorés, considerados como "bichos do matto". Já aqui percebe-se um recurso que seria constantemente usado, ao longo da História, não só contra índios, mas também nas diferentes lutas políticas entre integrantes de uma mesma civilização. As metáforas de animais como maneira de criar uma lógica de depreciação do adversário, de privá-lo até das características humanas. Mais que um recurso de retórica, esta animalização simbólica é uma prática de combate e de poder que sempre frutificou nas relações políticas as mais diversas. O episódio envolvendo Zoroabe é curioso e mostra que as experiências envolvendo diferentes etnias podiam acarretar outro tipo de problemas para os colonizadores. Os guerreiros de Zoroabe travaram alguns combates contra os Aimorés, mas ao que parece sem sucesso. Há indícios de que os Potiguares não se animaram muito em continuar a combater, provavelmente pelas dificuldades da empreitada. Ao mesmo tempo outra frente de combate foi aberta, e que trazia sérias ameaças ao domínio europeu na região açucareira: o 0!-tilombo dos Palmares. Zoroabe e seus guerreiros foram deslocados para lá e causaram consideráveis baixas entre os africanos rebelados. Fizeram numerosos prisioneiros. Mas ao invés de entregarem os escravos aos antigos proprietários ou à Coroa, os Potiguares vendiam eles mesmos os detidos pelo caminho. Com o dinheiro arrecadado e com a importância crescente em face dos Conquistadores, este chefe índio começou a reivindicar para si e para os seus privilégios e poderes. Com-
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prou bandeira de campo, à moda medieval, enfeitou cavalos com ricos jaezes, fez formar um cortejo musical e entrava nas cidades triunfante, como uma espécie de imperador dos bugres. Exigia, ainda, que a Igreja, as autoridades civis e a população formassem cortejo para homenageá-lo e, à sua frente, caminhava um imponente guerreiro brandindo uma espada. O resultado da exibição deste ritual - que indica uma clara tentativa de ocupação de poder, de disputa pela soberania - foi a prisão do chefe indígena e seu envio a Portugal, onde morreu no fundo de uma masmorra. A aliança entre diferentes grupos étnicos, embora tenha ocorrido no período colonial, não ficava isenta de contradições. 17 Um dos principais focos de tensão era o intento de utilizar os índios não apenas como braço armado, mas como força de trabalho na agricultura. Tal ocorreu envolvendo Potiguares trazidos de Pernambuco para combater os Aimorés na Bahia, em 1602. 18 Foi momento crítico para a Conquista, pois os Aimorés, depois de reconquistarem a maior parta das capitanias de Ilhéus e Porto Seguro, começaram a investir na direção de Salvador, capitania da Bahia, ameaçando assim a empreitada colonial. Nada menos que oitocentos guerreiros potiguares de arco e flecha foram arregimentados, sob a promessa de prêmios e de voltarem às suas terras, depois da guerra. Qyando esse contingente de Potiguares chega a Salvador, o perigo imediato estava afastado, pois os Aimorés haviam recuado. Entretanto, os colonos pretendiam utilizar-se dos recém-chegados não mais como arqueiros, mas para trabalharem em suas terras. Os Potiguares recusaram e resolveram regressar a suas aldeias, no que foram impedidos por colonos armados. Criou-se o impasse e os índios estavam prontos para o combate com os aliados da véspera, quando os jesuítas interferiram. Os potiguares, que já haviam passado por recentes e traumáticas experiências de massacres e abrigavam-se nas Missões, acabaram aceitando a intermediação dos padres e aceitaram ficar sob o controle dos colonos. Porém, mesmo sem chegar à capital baiana, os Aimorés continuaram a fazer estragos na colonização. Arrasaram mais engenhos em Santo Amaro e em Ilhéus. Porto Seguro ainda mantinha certa 17 O episódio de Zoroabe (também chamado de Zorobabé) está narrado nas obras de Frei Vicente do Salvador, Southey e Varnhagen. 18 Southey, II, pp. 39-41.
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estabilidade, pois estava povoada e fortificada não só por colonos europeus, mas por indígenas aldeados por jesuítas. Entretanto, inesperada decisão das autoridades locais e de colonos sedentos de riquezas fez com que os índios aldeados fossem distribuídos pelas diversas propriedades da região, dispersando-lhes assim as forças. Isso facilitou os ataques dos Aimorés, que acabaram tornando-se senhores de quase toda capitania naquele momento. 19 Em relação aos Aimorés esse episódio teria outras consequências. Num dos combates (onde se aliavam portugueses, espanhóis e Potiguares) foram aprisionadas duas "fêmeas" Aimorés. 20 Uma delas morreu, mas a outra foi recolhida. Em face da evidente ineficácia das batalhas, os portugueses resolveram tentar outra fórmula de conquistar os arredios adversários. A índia foi tratada com todas as regalias possíveis. A tarefa ficou a cargo de Álvaro Rodrigues da Cachoeira, experimentado colono português, que tomou para si a proteção da prisioneira, logo batizada com o nome de Margarida. O diálogo não foi fácil. Diante dos finos vinhos portugueses que lhe ofertavam, foi preciso primeiro convencer a índia de que não era sangue de seus irmãos que ela estava sendo induzida a beber... Este detalhe é precioso e nos traz uma amostra de que a construção de mitos sanguinários existia dos dois lados: no olhar dos colonizadores em direção aos Aimorés e na visão destes em relação aos Conquistadores. De um lado e de outro o inimigo era apresentado como desumano, monstruoso e antropófago. A guerra aparecia a ambos -europeus e indígenas - como um gesto de destruir e até de devorar o inimigo, sugar-lhe a força, a carne ou o sangue. Aos poucos a Margarida Aimoré foi vestida, alimentada, aprendeu o português, enfim, teve tratamento dos mais atenciosos das damas e fidalgos lusitanos - que, por sua vez, viam diante de si a índia constituir-se como um ser humano a sua imagem e semelhança. Carregada de presentes, panos coloridos com a tinta do pau-brasil, utensílios como espelhos, redes, facas, pentes, etc., Margarida (nunca soubemos como era seu nome indígena) foi enviada de volta como emissária de paz à sua tribo. Ia andando pela floresta gritando que os portugueses eram amigos e que queriam viver bem com os índios. Atacados numa guerra sem tréguas pelos Conquistadores, já fazia quase um século, alguns Aimorés mostraram-se sensíveis ao 19
Southey, II, p. 40.
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gesto. Grupos, tímidos, começaram a se dirigir à casa de Álvaro Rodrigues, em Salvador, onde foram igualmente bem tratados. A notícia espalhou-se e logo a casa de Rodrigues viu-se cercada de Aimorés carentes de paz e convívio amistoso, pedindo proteção. Alguns quebravam suas flechas em sinal de amizade. Esta não seria a última vez em que os colonizadores acreditariam que esses grupos indígenas estariam definitivamente pacificados. Mas a escassa população da capital do Brasil entrou em pânico, diante de guerreiros que teriam condição de causar sérios estragos. Eram cerca de 1.600 índios. A solução encontrada foi abrigar-lhes na ilha de ltaparica, então despovoada. Criaram-se quatro Missões a cargo de três jesuítas, entre eles Domingos Rodrigues (do convento da Ordem em Salvador), que aprendeu a língua dos Aimorés. Mas o que parecia ser um final feliz começou a ganhar ares de tragédia. Pouco mais de dois meses depois de instalados em Itaparica, em contato mais estreito com os colonos, os Aimorés foram dizimados pelas doenças. A peste foi avassaladora. Os cadáveres amontoavam-se e os padres mal tinham tempo de encomendar os corpos e promover enterros. A paradisíaca ilha virou uma estação do inferno e os jesuítas, em vez de anjos salvadores, pareciam os cavaleiros do apocalipse. Na experiência destes índios, batismo e doença se associavam. Esse sacramento, como um rito de passagem, pretendia sinalizar a transição do paganismo ao cristianismo, da civilização à barbárie mas significava, concretamente, a destruição da vida. Os Aimorés sobreviventes não tiveram muitas saídas. Uns, temerosos da guerra e da doença, continuaram sob a proteção dos colonos, foram transferidos para outras localidades, misturaram-se com outras tribos, inclusive tupis, e foram aprendendo a chamada língua-geral e o português. Outros embrenharam-se pelas selvas, para longe, sem deixar rastro imediato. E outros, atacaram os portugueses, mais uma vez tentando derrotá-los. 21 Nesses comportamentos, temos duas estratégias distintas de sobrevivência: um pela resistência ou isolamento, outro pela adaptação e convivência ao adversário. 22 20
A narrativa sobre estas mulheres Aimorés foi registrada por Frei Vicente do Salvador, capítulo Trigésimo Quinto, pp. 333-4. 21 O aldeamento provisório de Itaparica e suas trágicas consequências está referido nas obras de F. Vicente e Southey. 22 Sobre as estratégias de alianças e resistências envolvendo índios, colonos e jesuítas, v. o trabalho de J. Monteiro. Negros da terra . . ., 1996.
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O rei Filipe III escreveu de Castela (centro de seu império mediterrâneo e atlântico) ao governador-geral do Brasil, D. Gaspar de Sousa, preocupado com o "bem comum de meus vassalos por os gentios Aimorés estarem levantados".23 Chegavam à Espanha (era a época da união ibérica sob predomínio espanhol) notícias alarmantes sobre esse levante dos Aimorés em 1613 e os próprios colonos da Bahia enviavam cartas pedindo ajuda da Coroa, como explica o rei, ao registrar que um grupo de fazendeiros "me presentou petição dizendo que elles tem fazendas e outros emgenhos em J aguaribe quatorze legoas da mesma çidade fronteira do sertão as quaes por muitas vezes, e em muitas ocasiões se tiverão perdido, e ouvera muitos alevantamentos dos Indios, e morte de gente branca e fogidas de negros dos engenhos [... ]". 24 É interessante notar que este ataque dos Aimorés narrado por Filipe III se deu num contexto determinado: na Bahia (sede da administração do Brasil) e numa época em que floresciam as Missões jesuítas. O que mostra que havia parcela significativa de índios que não se deixava controlar pela máquina administrativa - mediante alianças ou sujeição pelas armas - nem se envolvia com as Missões. Aliás, essa investida dos Aimorés acabou gerando uma crise envolvendo a Coroa, os religiosos e os fazendeiros. Situada nos arredores de Jaguaribe, naquilo que o rei chamava de "fronteira do sertão", estava a Aldeia de Santo Antônio, uma Missão de índios "mansos" mantida pela Companhia de Jesus. A localização desse aldeamento era estratégica. O rei insistia: [... ] esta fronteira de Jaguaribe e a de Peroassu são bocas, e entradas do sertão em que cumpre ter guarnição assyrn pera defenção e guarda dos engenhos, fazendas e moradores[ ... ].25 Entretanto, os indígenas aldeados não desejavam ficar neste cruzamento explosivo (e nisso contavam com o apoio dos jesuítas), caminhos criados e frequentados por índios arredios ao contato, escravos fugidos e exploradores portugueses. Os índios aldeados, assim, foram se mudando para outra localidade, mais próxima da cidade, até que os jesuítas pediram oficialmente permissão à Coroa para muda23 Carta
d'el Rey ao Senhor Gaspar de Sousa sobre a aldea dos Índios de Santo Antonio de Jaguaripe, 24 de maio de 1613, mimeo. Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro. 24 25 Ibidem. lbidem.
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rem definitivamente o local do aldeamento para as proximidades do povoamento. Tal iniciativa descontentou os colonos que viam suas propriedades desguarnecidas, já que entre os aldeados havia "Indios frecheiros que são de muita utilidade pera as ocasiões de guerra, forteficações e obras publicas e outras cousas alem de guardarem a fronteira". Em outras palavras, a Coroa e os colonizadores queriam utilizar os índios catequizados como mão de obra e força guerreira contra os Aimorés ou contra os escravos rebelados ao passo que aqueles índios, apoiados pelos jesuítas, buscavam preservar-se. As ordens régias foram no sentido de manter a Missão de Santo Antônio nas bocas do sertão. Nesse conflito entre colonizadores, a espada da Coroa se sobrepôs ao carisma da Cruz. Mas ambos não tardariam a ficar de acordo diante do inimigo comum. Em algumas situações, como na Aldeia São João, no Espírito Santo, o padre Sebastião Gomes refere-se aos combates contra "uma nação de gentio, que chamam Tapuias ou Aimorés" praticados por "Índios cristãos", os quais, no momento do ataque, "arvoravam logo uma cruz e, antes de pelejar, se punham todos de joelhos diante dela. Feito isso, arremetiam aos inimigos com tanto esforço e confiança na vitória que sempre Nosso Senhor lha deu". 26 Era, como tudo indica, uma postura de sincretismo da parte desses índios, que aliavam sua experiência guerreira a expressões da simbologia (também guerreira) católica, expressando uma aliança com os colonizadores contra outros grupos indígenas. A investida dos Aimorés atingiu ainda um importante ponto da política filipina: a liberdade dos índios. O governador-geral D. Gaspar de Sousa, depois de discutir o tema com os colonos e os padres da Companhia de Jesus (ao que parece todos ficaram de acordo) escreveu a Filipe III pedindo que a lei sobre a liberdade dos índios ficasse suspensa naquele local e momento, ou seja, na Bahia durante o levante dos Aimorés. A resposta do monarca ao governador foi clara: "tenho por bem considerado a resolução que tomastes em não dar execução a dita ley, e vos encomendo sobresteis nella, até terdes outra ordem minha advertindo que tenhais esta em segredo" _27 26
Relato de 1597 do jesuíta Sebastião Gomes, apud Serafim Leite, I, p. 242. Carta d'el Rey para o Senhor Gaspar de Sousa em que lhe agradece o que ordenou contra o navio estraniero que foi à Parruba e outras cousas acerca dos índios, 23 de junho de 1613, mimeo. Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro. 27
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A legislação do período colonial, como é sabido, oscilou bastante no caso da liberdade dos índios (proibição de escravizá-los), alternando proibições, permissões e criando exceções. Em 1609, por exemplo, fora decretada lei que proibia o cativeiro indígena, por ser contra o Direito Natural. 28 Mas quatro anos depois, como se vê no documento acima, não só o rei concordava como recomendava que o desrespeito à sua lei continuasse, pois pedia segredo de tal autorização, em vez de decretar uma guerra justa. Diante da presença dos Aimorés, desarticulava-se o arcabouço teológico, bulas papais e o respeito às Ordenações Filipinas. Restava, nua e crua, a ferocidade dos colonizadores ibéricos que pretendiam exterminar ou escravizar os que não se submetiam. Pela guerra, catequese ou pelas doenças, os Aimorés saíram enfraquecidos com as Missões, embora alguns tenham encontrado nelas espaço de proteção e sobrevivência. Esse movimento de pacificação, ainda que parcial e acompanhado de novos conflitos, deixou frutos, à sua maneira, na sociedade que se formava. Em análises do fim do século XIX e começo do XX, isso era perceptível. Nas páginas clássicas em que analisa a formação histórica do homem sertanejo no interior da Bahia, Euclides da Cunha destacaria a importância dos diversos grupos tapuias na base da argamassa étnica e cultural da região, deixando traços na toponímia, no tipo físico, na linguagem e em hábitos culturais - que não derivam somente do romantismo europeu ou da cultura tupi. A mesma indicação fora dada por Capistrano de Abreu para a região chamada hoje de Nordeste. 29 Mesmo os índios que comumente aparecem como derrotados ou submissos, não teriam de alguma maneira sobrevivido ou deixado sua marca genética e cultural, apesar de todos os revezes que sofreram? Negar-lhes essa presença e herança não seria submeter-lhes a um novo esmagamento? A capitania da Bahia, por ser a sede da administração no Brasil, possuía um aparato religioso e bélico mais importante, o que acabou fazendo que os Aimorés fossem afastados dessa área, indo mais para o interior (oeste e sudoeste) ou para o sul, onde nas capitanias de Ilhéus, 28
Cf. B. Perrone-Moisés. Inventário da legislação indigenista 1500-1800, in Maria M. Carneiro da Cunha (org.), 1998, p. 530. 29 E. da Cunha. Os sertões. "O Homem", caps. I e II; C. de Abreu, Caminhos antigos epovoamento do Brasil.
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Porto Seguro e Espírito Santo não havia as mesmas condições de combatê-los, adentrando também pelos sertões do que seriam as Minas Gerais. De qualquer forma, como já foi dito, em época próxima da chegada dos europeus, parcela expressiva dos Aimorés já estava no interior locomoveu-se em direção ao litoral. Essas migrações foram rastro de uma forma do povoamento da região, cuja gênese se encontra, em certa medida, também nos aldeamentos jesuíticas .
• •• O padre Domingos Monteiro acabara de rezar a missa das 6 horas da manhã pelos idos de 1619, na igreja da Missão dos Reis Magos, encravada na Mata Atlântica, quando alguém se aproximou e gritou a novidade: -Chamam-te os Tapuias! Ei-los, ali estão! ... Há cinco meses o padre Monteiro esperava por esse momento, pela aproximação dos Aimorés. Mesmo sentindo o estômago leve, ainda em jejum, ele não hesitou e desabalou a correr em direção à floresta, no que foi seguido por outros portugueses e índios aldeados que, talvez por prudência, mantiveram-se mais atrás, enquanto o padre Domingos tomava dianteira. Começava uma jornada que o próprio jesuíta descreveria, em seu relatório, como o primeiro dos sete dias do Gênesis. Chegando ao local indicado o padre Domingos não encontrou mais os índios, apenas objetos que eles haviam deixado. Inconformado o jesuíta clama em alta voz, chama pelos Aimorés, mas diante do próprio eco logo sente-se como pregador no deserto, apesar da fertilidade da floresta que o cercava. Havia pelo chão restos de fogo, de moquém (carne assada) ainda na fogueira, tocos de madeira cortados, tipoias (com as quais as índias carregavam os filhos) ... De posse de tais objetos o padre Monteiro leva-os de volta à Missão e (antes de alimentar-se, ele mesmo ressalva!) coloca-os diante da imagem de Santo Inácio de Loiola como oferenda. Ainda não estava de posse das almas, nem dos corpos, mas tinha aqueles despojos. O jesuíta encarregado da catequese dos Aimorés começava a vislumbrar uma luz. Ou melhor, as trevas, para ele, começavam a separar-se da luz. Era o fim do primeiro dia. No dia seguinte os Aimorés esperavam-no no mesmo lugar, não fugiram, mas não se aproximaram a ponto de se tocarem: observavam prudentemente de cima das árvores. O padre Domingos não
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se deixou abater, pelo contrário, mas lembrou da passagem evangélica quando Zaqueu subiu numa árvore para poder enxergar Jesus Cristo. No segundo dia separavam-se as águas, embaixo do céu, das águas que cobriam o firmamento. O jesuíta tocou para Vitória, sede da capitania do Espírito Santo, a fim de dar a Boa-Nova da "conversão" iminente dos Aimorés. Diante do túmulo de Anchieta, que décadas antes acolhera na Companhia o então jovem Domingos Monteiro, este agradeceu ao "santo Padre Joseph" a graça que alcançava. Agradecia aos céus as sementes que começavam a brotar na terra. Terminava o terceiro dia. O padre Domingos foi então nomeado diretor da Missão, pois o jesuíta que até então exercia o cargo desinteressava-se do contato com os indígenas arredios. A viagem a Vitória foi assim proveitosa. Sobretudo porque a almejada pacificação dos Aimorés era esperada muito além de Vitória, mas em Salvador, Lisboa, Madri e Roma. No quarto dia o Sol passa a governar os céus durante os dias e a Lua governa o firmamento nas noites. 0!.-tatro Aimorés aguardavam o padre Domingos Monteiro calmamente na varanda da casa central da Missão dos Reis Magos. O novo diretor recebeu-os entusiasmado, como se fossem os embaixadores das quatro partes do mundo. Era véspera de Santíssima Trindade. Os demais índios do aldeamento - calejados das longas guerras tribais que assolavam a região- estavam inseguros com tais visitantes. Mas o jesuíta encheu os recém-chegados de presentes e manifestações de afeto, para que eles se multiplicassem. Era o quinto dia. Depois chegaram mais sete índios, a princípio sem mulheres e crianças, mas com presentes: ceras, almécegas e macacos. Tentavam, a seu turno, pacificar os "brancos". Logo vieram as mulheres Aimorés que às vezes amamentavam macacos, criando-os no peito como colaços dos próprios filhos - mesmo que isso contrariasse o preceito de que toda a criação da natureza tem como fim ser subjugada para servir ao ser humano. No fim do dia cerca de 60 Aimorés já tinham aparecido. O jesuíta aproveitou o dia de Corpus Christi e fez a procissão com os índios aldeados, seguida de danças e bailados. Os Aimorés gostaram dos festejos e entraram no circuito. Completava-se o sexto dia. Há muitos anos o padre Domingos se dedicara ao aprendizado da língua dos Aimorés através de "hum ladino mui christao" que conhecera na casa de um português. Ladinos, como se sabe, eram os escravos batizados, que sabiam português e já tinham adquirido qua-
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lificação nos trabalhos domésticos ou produtivos. O jesuíta passa então, no pátio da Missão e aproveitando o embalo dos festejos, a pregar o catecismo para os Aimorés que ficaram admirados e contentes a ouvirem a própria língua na boca de um europeu. A aproximação dos Aimorés causa espanto e dezenas de colonos da região dirigem-se para lá querendo ver para crer. Entra em cena o capitão Manuel Maciel Aranha que oferece para a Missão considerável soma da Caixa de Imposição da vila. Os Aimorés trazem duas crianças para serem batizadas. Estas, no dia seguinte, morreram- embora o padre Domingos Monteiro não tenha compreendido por quê. Talvez porque já estivessem doentes e os pais tivessem esperança de que os colonos, possíveis transmissores da doença, pudessem curá-las. Mesmo sem registrar nenhum nome indígena, o jesuíta batizara as duas crianças: Maria e Domingos, ou seja, uma simbolizando a mãe de Cristo e outra o próprio nome do eclesiástico. Ele considerou essas duas crianças os cordeirinhos apartados e oferecidos como primeiro sinal da terra prometida. Os Aimorés quebravam suas flechas e ofereciam-nas ao missionário e cada um deles executou conscienciosamente tal gesto. Depois foram nas matas buscar frutos e cocos de sapucaia como novas ofertas retiradas do seio da floresta. A paz parecia fixada. Era um evento que parecia transcender tempo e espaço: Roma (sede do governo "espiritual") e Madri (sede do governo "temporal") se rejubilariam. O túmulo de Anchieta e a relíquia de São Jorge pareciam ganhar vida. E alegrava-se o coração dos colonizadores que capturavam e buscavam eternizar esses acontecimentos na narrativa histórica, como o franciscano Vicente do Salvador que se rejubilava: [... ] e se fez paz com os aymorés em toda esta costa. 01teira nosso Senhor conservai-a e que não demos occasião a outra vez se rebellarem. 30 Assim, no sétimo dia, completava-se a gênese dos Aimorés segundo o padre Domingos Monteiro, que agora podia descansar da tarefa que lhe fora confiada. A narrativa continua. Como que arrancados do Jardim do Éden, estes Aimorés seguiram em fileira o capitão Manuel Aranha que 30
p. 334.
Esta é a última referência aos Aimorés no texto de frei Vicente do Salvador,
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voltou para a vila carregando os presentes (inclusive arcos e flechas) e os Aimorés que passariam a ser inseridos na sociedade colonial. Evidenciava-se nesse caso a ligação estreita entre catequese, o poder da Coroa, o interesse dos colonos e a escravidão indígena - fatores que nem sempre estariam em harmonia em outras circunstâncias. Logo sobreveio a primeira epidemia e começaram as mortandades. O jesuíta dissuadia aos que queriam fugir e batizava-os in extremis. Mas outros grupos de Aimorés, que moravam nas serras, não estavam reduzidos (estabelecidos na redução, na Missão) e continuavam a mover guerra sem tréguas contra portugueses e índios cristianizados. A própria grandeza dos edifícios da Missão dos Reis Magos tinha um sentido de fortaleza, de fronteira contra os Aimorés que permaneciam arredios ao contato. Esse relatório do padre Domingos Monteiro, de 1619, é um dos primeiros escritos mais extensos que se conhece sobre os Aimorés (ele escreve Gaimorés). Discípulo direto de Anchieta, o padre Domingos era natural de Lisboa e sua atividade na Companhia de Jesus era mais missionária do que administrativa - isto é, dedicava-se à catequese dos índios, ao trabalho de terreno. Posteriormente, tornou-se superior do Convento de Ilhéus e visitador da Ordem em Vitória e pertencia, como foi visto, a uma família de proprietários de engenhos. Ele redigiu um texto de fragilidade etnológica (percepção e descrição do grupo contatado), mesmo se comparado com outros escritos quinhentistas ou seiscentistas. 31 Dizer que estava impregnado de eurocentrismo e também de uma acentuada religiosidade (rituais de culto, veneração de santos e imagens, invocações da Providência no desenrolar dos acontecimentos) é afirmar o óbvio para esse caso. Mas mesmo num sentido utilitarista (conhecer para controlar) ressente-se da falta de registras e informações sobre os Aimorés - a não ser que tais observações estejam em textos ainda não localizados. Aqui a atividade intelectual dos jesuítas aparece diretamente engajada nas tentativas de colonização e sujeição dos índios. Os jesuítas chegaram a estabelecer dez Missões na capitania do Espírito Santo. As Missões eram acompanhadas de fazendas e de pequenos aldeamentos. Mas duas Missões apenas sobreviveram nesta capitania: Reritiba e Reis Magos. Esta última, fundada ainda no século 31
O texto em questão é um relatório em forma de carta ao superior da Companhia de Jesus no Brasil para os anos 1617-1619, apud Serafim Leite, VI, pp. 159-67.
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XVI, também chamada de Missão de Santo Inácio Mártir, tornou-se um centro irradiador de catequese e Entradas, sobretudo em direção aos índios Aimorés e Paranaubis (grupos de tupis que habitavam a região). Para compreender esses contatos entre índios e os missionários de Santo Inácio temos ainda a trajetória dos Gueréns (ou Grens, Krens), nome aplicado a grupos de Aimorés que, depois de guerrearem, aceitaram o caminho da pacificação mediante a catequese na Bahia. O que aconteceu a esses índios que deixaram de lado a atividade guerreira e buscaram, pela via pacífica, uma estratégia de sobrevivência? Na Freguesia de Santa Cruz da Vila de São Jorge (o santo-guerreiro), Ilhéus, foi estabelecida em 1602 uma Missão para índios Gueréns sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição, fruto da aliança entre grupos de índios com os colonizadores, por intermédio dos jesuítas. Os índios ganharam porções de terra e ajuda para construir casas e plantar lavouras. Tudo parecia apontar futuro promissor e estável para a convivência entre as tribos e os colonizadores. Esse momento em que parcelas dos Aimorés parecem ter vivido em paz com os colonizadores nos dá oportunidade para reflexão. Dois grandes caminhos foram tomados por esses índios, formando duas grandes tendências de estratégias de sobrevivência em face dos colonizadores. De um lado, os que aceitaram incorporar-se à chamada vida civilizada, abdicando paulatinamente de sua identidade étnica (ou transformando-a substancialmente) em troco, supõe-se, de continuarem vivos. Outros, mais "conservadores", não aceitaram abrir mão de seus costumes e embrenharam-se pelo mato. Entre os que escolheram o caminho da convivência pacífica, estava este grupo de Gueréns. A expulsão dos jesuítas do Brasil no governo do marquês de Pombal traria fortes consequências para a vida dos índios aldeados. Os decretos da legislação pombalina sobre a questão indígena (incluindo o famoso "Diretório") foram publicados entre 1755 e 1759. Eles se inspiravam numa visão leiga - e em parte mitificada - dos índios, típica dos intelectuais da "República das Letras" do século XVIII. Resumindo, os decretos incentivavam o casamento dos índios com os brancos, tentavam abolir (por decreto!) as atitudes e palavras preconceituosas em relação aos índios e seus descendentes (que não deveriam mais ser chamados de "bárbaros" ou "caboclos"), proibiam a escravidão indígena, enfim, desejavam que o índio se integrasse sem
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reservas aos possíveis benefícios e chances de riqueza da civilização ocidental, para que pudessem também se tornar súditos livres da Coroa. Esta postura pombalina não chegava a ser uma novidade nas políticas públicas aplicadas no Brasil, pois a escravidão dos índios fora abolida ou reintroduzida em momentos anteriores e já eram numerosos os exemplos de índios que de alguma maneira se incorporavam à sociedade portuguesa. O peso da iniciativa pombalina estava sobretudo na expulsão dos jesuítas e na tentativa de implantação de um sistema leigo e autônomo de administração das aldeias. Ou seja, pretendia-se que os próprios índios fossem os responsáveis por sua integração à sociedade portuguesa, adaptando-se aos moldes da civilização ocidental- o que era um paradoxo que acabaria apontando para uma incorporação subalterna dos índios como mão de obra. A não hostilidade aos índios (pelo menos quanto a propostas governamentais) se explica dentro de uma determinada tendência cultural. Havia aí o toque de um certo relativismo cultural que brotara num Montaigne e aparecia nos escritos de Jean de Léry, da crítica veemente de um frei Bartolomeu de Las Casas à violência da Conquista, das atitudes protecionistas como a dos padres José de Anchieta e Manuel da Nóbrega- todos do século XVI. Sem falar de contemporâneos do século XVIII que, a seu modo, buscavam ter uma visão mais compreensiva dos indígenas, como o lendário francês abade Raynal ou o monge beneditino pernambucano Loreto Couto, que, de alguma maneira, exaltavam a "nobreza do selvagem'' e do "homem primitivo americano" em oposição à truculência dos colonizadores europeus. Ou seja, chegava mesmo a haver uma certa valorização do "homem do Novo Mundo" em relação ao "homem do Velho Mundo", por mais que isso parecesse contraditório com a empreitada mercantilista colonial. Na prática, em muitos casos, a transformação de aldeamentos em vilas (como prescrevia o Diretório) significou paulatina ocupação das terras habitadas pelos índios por novos proprietários, urbanos e rurais. Com a saída dos jesuítas o aldeamento de Nossa Senhora da Conceição, habitado por Gueréns, seria transformado na vila de Almada. ~ando foi decretado o Diretório Pombalino, João Ferreira de Bettencourt e Sá, por ordem da administração régia, fez levantamento dos quinze aldeamentos da capitania da Bahia que deveriam transformar-se em Vilas, anotando em 11 de outubro de 1758 a ''Aldeia Nova da Conceição do Gentio Greim''. E o Conselho Ultramarino, a 24 de abril de 1759, confirmou que a Aldeia Nossa Senhora da Conceição,
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"habitada do Gentio da Nação Gren'', passava a se chamar Vila da Nova Almada.J2 Mais uma vez o ato de nomear, desta vez um espaço territorial, implicava uma forma de controle, de transformação da identidade do local e de apropriação de terras que desaguavam numa interferência direta nos modos de vida das populações indígenas até então abrigadas sob o manto da Companhia de Jesus. Tribos, aldeamentos e vilas compunham uma hierarquia diferenciada no espaço do território colonial e, de certo modo, representavam, nos moldes da época, uma escala progressiva em direção ao policiamento civilizatório. Almada ainda contava, segundo Baltasar da Silva Lisboa, com 95 casais de Grens, muitos ainda usando o botoque nos anos 1780, isto é, quase dois séculos depois do início do aldeamento (e duas décadas após a saída dos jesuítas)- o que revela até ali um certo sucesso de tal estratégia de sobrevivência desses indígenas, mantendo aspectos de suas identidades, apesar das transformações no modo de vida. Entretanto, o movimento da parte dos colonizadores se intensificava: a cidade foi crescendo, fazendas florescendo prósperas e os Gueréns tornando-se intrusos na própria terra. Os temidos Aimorés haviam aceitado não só depor as armas, como a sedentarização, o contato permanente e a paulatina incorporação à vida do colonizador. A tal ponto que o desembargador Francisco Nunes da Costa, ouvidor de Ilhéus, ao solicitar ao governo estabelecer um aldeamento para um gruyo de Pataxós no Funil do Rio das Contas, em 1782, pede ajuda dos "Indios mais hábeis" para ensinar aos recém-chegados a agricultura, comércio e trabalho de abertura de estradas. O ouvidor se referia aos "Grens, que são os melhores para auxiliar o fim a que se dirige esta ação de trazer ao Gremio da Igreja o dito Gentio Pataxo". 33 Assim, vemos este grupo indígena usado como força auxiliar para contato com outras tribos- o que desmistifica uma visão que parece atribuir a tais grupos um caráter guerreiro de origem genética, instintiva e hereditária. Dezessete anos mais tarde, em 1799, Baltasar da Silva Lisboa, novo ouvidor de Ilhéus, em viagem de inspeção por toda a comarca, ainda encontra, no meio do caminho entre Tayapé e Almada, a "Aldeia dos Indios Gueréns". Eram apenas vinte casais. As razões desta queda 32 Dossiês sobre aldeamentos e Missões Indfgenas, 1758-1807. Seção de Arquivo Colonial e Provincial, n.0 603, cadernos 9 e 14, Apeb. 33 Informafóes e documentos vários relativos ao aldeamento de fndios e divisão da comarca de Ilhéus, Bahia, 23 de fevereiro de 1782. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos.
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demográfica são narradas pelo próprio ouvidor: o sargento-mar Inácio de Azevedo Peixoto encheu vários cestos com roupas pertencentes a bexiguentos (infectados pela varíola) e distribuiu-as aos Gueréns. Os que não morreram ficaram deformados e não ousavam mais aparecer nas cidades de Ilhéus ou Almada. Sem falar que, dez meses antes da visita de Baltasar, o bacharel José de Sá Bettencourt organizou um arremedo de Bandeira, matando alguns índios (cujas crianças fugiram apavoradas para os matos) e desfilou orgulhoso em Camamu com seis índios acorrentados, todos "chorando e lastimando sua sorte". 34 Seria parente ou homônimo do mesmo que, quarenta anos antes, fizera o relatório prévio para a transformação do aldeamento em vila? De qualquer forma, os índios assim tratados eram, como se depreende, descendentes dos que, após expulsarem os primeiros colonos de Camamu, acabaram integrando-se à colonização por intermédio da catequização. Os indígenas encontrados por Silva Lisboa não tinham mais pároco para assisti-los. O último padre que ali estivera não rezava missa e dedicava seu tempo a dirigir os trabalhos da lavoura e de extração de pau-brasil, lucrando com o trabalho indígena. A capela de taipa coberta de palha do século anterior, com o nome de N. S. da Conceição, ruíra. Estes Gueréns sobreviviam de caça e pesca, não retornaram mais à floresta, embora ainda mantivessem contato intermitente com um grupo de sua tribo que permanecia na região e evitava os colonos. Num relatório sobre os índios de Ilhéus em 1803 (portanto, quatro anos depois da visita de Silva Lisboa) não se fala mais dos Gueréns que assim, oficialmente, eram dados como inexistentes, extintos. Era a marca da invisibilidade na (eloquente) ausência dos Grens deste relatório. Há apenas referências aos Pataxós, tidos apressadamente como "inteiramente civilizados". 35 Em 1817, o viajante naturalista e príncipe de Wied-Neuwied encontrou nos arredores de Ilhéus os últimos sobreviventes desses Gueréns aldeados desde o século XVII pelos jesuítas. Eram quatro 34 Oficias e mapas do rio Doce,Jequitinhonha, etc., 28 de janeiro de 1805, pp. 1868-227; Estado de Ilheos, pp. 106-51; Trabalho dos primeirosjesuitas no Brasil, s.d., does. de autoria de Baltasar da Silva Lisboa, enviados a D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Relatorios, descrições e mapas da Capitania de Porto Seguro, does. de autoria do capitão João da Silva Santos enviados ao governador e capitão-general da Bahia, Francisco da Cunha Meneses, 28 de janeiro de 1805, Arquivo do IHGB. 35 Oficias e relatorios sobre o estado atual dos fndios de Ilhéus e Sergipe D'EI Rey, 1803. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos.
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velhos (o "capitão" Manuel e três mulheres) habitando uma cabana miserável: sobreviveram a todo rol das violências. Retirados enfim das terras que lhes foram destinadas em Almada, encontravam-se na localidade de São Pedro de Alcântara. O naturalista alemão falou-lhes algumas palavras que aprendera semanas antes com as tribos de Botocudos do rio Doce. Manuel emocionou-se e abriu um sorriso, explicando que não ouvia sua própria língua há muitos anos (o que mais uma vez comprova a identidade entre Aimorés, Gueréns e Botocudos). Levou o viajante germânico para o interior do casebre e mostrou-lhe arco e flecha, que guardava apenas como recordação. Contou que havia perdido o contato com outros membros de sua tribo que viviam nas selvas. Os quatro velhos lembravam vagamente de sua língua de origem e estavam confinados numa pequena roça de subsistência. 36 Dois séculos depois, aí estava o resultado da "cristandade dos tapuias" iniciada com a catequese e as Missões. Existe a tese de que os aldeamentos não aparecem como locais favoráveis à preservação dos grupos indígenas, mas sim a sua extinção paulatina como índios. O caso desses Grens comprova essa perspectiva (ainda que o declínio tenha ocorrido após a extinção da Missão), embora outros casos possam apontar em sentido contrário. Foram dois séculos iniciais de contato, vitórias, derrotas e estratégias de sobrevivência e pacificação recíprocas. Apesar de alguns resultados, os jesuítas não conseguiram, com os Aimorés, o êxito missionário que alcançaram com outros grupos no território do Brasil. As atitudes "mansas" e as iniciativas "bravas" não se alternavam e, sim, eram quase sempre simultâneas ou encadeadas. E partiam tanto dos colonizadores, no intento de subjugar e integrar, quanto dos índios em suas tentativas de defesa, resistência e sobrevivência. Ambos, colonizadores e Aimorés, ensaiavam essas variadas formas de contato - que variava segundo as diferentes concepções, ou pelos indivíduos, grupos, locais e experiências, variando as estratégias de resistência. Enxergar os índios que aceitavam se aproximar das Missões como "submetidos" pode ter uma conotação que reproduza o estigma de passividade impingido por seus adversários. Ou seja, índios e "brancos" (considerando ambos como sujeitos históricos) dividiam-se e alternavam-se entre "mansos" e "bravos". 36
Cf. M . Wied-Neuwied, t. 2, p. 341.
Capítulo 3
TERRAS E CORPOS RASGADOS NAS ROTAS DO GADO E MINERAÇÃO
A vida dos Aimorés entre meados dos séculos XVII e XVIII foi marcada por pesada investida das frentes de expansão para ocupar o interior do território. As rotas do gado e da mineração rasgaram parte importante dos domínios desses grupos indígenas, levando-os a novos deslocamentos e a enfrentar uma época de massacres de grandes proporções, custando milhares de vidas. Foram conflitos violentos tocando áreas e populações equivalentes ou maiores do que as guerras na Europa da mesma época, de maior abrangência do que o Qyilombo dos Palmares ou das rebeldias no meio urbano nas Minas Gerais, por exemplo. Olhados em conjunto, esses episódios envolvendo índios constituem uma das gestas mais dramáticas e impressionantes na história do Brasil, embora não estejam ainda devidamente dimensionados em boa parte das narrativas sobre esse período. A guerra gerou também escravização em massa de Aimorés capturados. A Conquista e colonização, no avanço do litoral para noroeste e norte, causou maciços ataques contra populações indígenas nos sertões da Bahia até o Piauí, de modo mais agudo durante pelo menos cinco décadas, encadeamento de ações conhecido como Guerra dos Bárbaros. Assim como os tupis foram atacados anteriormente, por estarem mais próximos do litoral, agora era a vez dos tapuias. As cenas de crueldade e extermínio de tribos inteiras foram fruto de iniciativas de particulares e de políticas oficiais. Começava outra fase da colonização na América portuguesa, após a expulsão dos holandeses e o fim do domínio espanhol em 1640. Ficava claro que para garantir a conquista do território pela 79
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Coroa era necessário consolidar o Estado e sua administração e ocupar as áreas do interior- já ocupadas por centenas de grupos indígenas. Nos episódios chamados de Guerra dos Bárbaros, os mais atingidos foram os Cariris, no Ceará, destroçados na região que dominavam, assim como os Janduís, no Rio Grande do Norte. Mas o impulso inicial dos embates ocorreu a partir do Recôncavo Baiano, onde, como já foi visto, predominavam Aimorés. Tanto que um dos primeiros grupos atacado era de Gueréns, em 1651, quando o conde de Castelo Melhor expediu uma Entrada chefiada por Francisco da Rocha. Partindo de Ilhéus, percorreu a região do rio das Contas e Camamu, atacando tribos identificadas também como Mongoiós, Pataxós e Aimorés. 1 Estudo recente sobre a Guerra dos Bárbaros divide-a em duas grandes áreas e épocas: as Guerras do Recôncavo (entre 1651 e 1679) e a Guerra do Açu (entre 1687 e 1692), além da entrada em cena dos Bandeirantes "paulistas", havendo ainda combates no século XVIII. Tomando a parte que nos interessa aqui, o mesmo estudo assinala, nas Guerras do Recôncavo, os seguintes movimentos: Jornadas do Sertão (1651-1656), Guerra do Orobó (1657-1659), Guerra do Aporá (1669-1673) e guerras em torno do rio São Francisco (1674-1679). 2 Outro historiador chegou a classificar esstes trágicos episódios do sertão baiano de Confederação dos Gueréns, aludindo a momentos de unificação desses grupos para combater o agressor. 3 É certo que os índios efetivaram importante reação à investida que recebiam e há registros de grupos tribais que se federavam, isto é, se uniam momentaneamente contra o inimigo comum, superando rivalidades tradicionais. O que não significava exatamente uma Confederação nos moldes em que esta palavra é concebida atualmente, com organizações formalizadas e fixas da política ocidental moderna. Os índios não efetuavam apenas resistências defensivas nem se deixavam subjugar passivamente, mas partiam também para a ofensiva. Os relâmpagos guerreiros continuavam a manchar o cotidiano da vida em colônia. No governo de Francisco Barreto (1656-1663), uma 1
Cf. Berta Ribeiro. O índio na História do Brasil, p. 64 e Francisco Borges de Barros. A confederação dos Guerens ... , p. 180 2 Pedro Puntoni. A guerra dos bárbaros, cap. 3. 3 Francisco Borges de Barros. A confederação dos Guerens . . . Tal levantamento histórico é tradicional, com referência imprecisa de fontes e de critérios de pesquisa, mas baseia-se em ampla documentação e é um dos trabalhos pioneiros sobre o tema.
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investida chocou colonos e autoridades em 1659. A plantação do sargento-mar Bartolomeu Lopes da França foi atacada de surpresa pelos Aimorés, que primeiro mataram os escravos que se encontravam no campo. Em seguida, se aproximaram sorrateiramente da casa e crivaram de flechas o proprietário, sua mulher e quatro filhos menores, que não tiveram tempo nem de levantar da mesa de refeição. Os empregados da casa tiveram o mesmo fim. Alertados pelo barulho, os vizinhos acorreram armados e não encontraram mais nenhum atacante, restando-lhes enterrar as vítimas. A solução encontrada pelas autoridades foi militarizar a região de forma que julgava adequada às distâncias e dispersão do povoamento: para cada família de colonos seria destinada uma guarda de três a seis soldados. Buscava-se o [racionamento das tropas para enfrentar o [racionamento das tribos. Mais uma tentativa de Conquista fracassou. Pois durante oito anos esses efetivos militares não conseguiram capturar um só índio. 4 Perto de completar dois séculos de presença no território, os portugueses ainda não haviam derrotado totalmente os Aimorés. Os embates entre índios e frentes de expansão, pela amplitude que tomaram, acabaram envolvendo amplos setores da sociedade. Na formação das tropas para combate aos "bárbaros" foi comum o recurso a grupos pluriétnicos. O vice-rei e conde dos Óbidos, Vasco Mascarenhas, ordenava ao capitão-mar de Ilhéus, Manuel Pereira de Sá, em 1664, para o combate aos tapuias, "que reconduza todos os Indios de quaisquer Aldeas, e os mulatos livres, e gente que voluntariamente quiser ir a essa Entrada". 5 Havia, portanto, arregimentação no interior da população colonial, que correspondia a uma mobilização em tempos de guerra. Nesse caso evitavam-se os escravos, mas eram incorporados índios dos aldeamentos, mulatos livres e outros que pudessem juntar-se às tropas. A estratégia, de acordo com o mesmo vice-rei, era "destruir os Tapuyas e aterrorizar os que escaparem de maneyra que nam tornem mais a ella [capitania de Ilhéus], ou o melhor os obrigue a hua pas perpetua". Precedida de ordem para matar, esta paz perpétua aparentava-se com a dos cemitérios. Há referências de que esta arregimentação ocorria também do lado dos indígenas, abarcando etnias diferentes. Numa das fases aguda 4
R. Southey, t. 4, pp. 297-8. Carta de 1.• de abril de 1664, apud F. Borges de Barros. A confederação dos Guerens ... , p. 178. 5
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da Guerra dos Bárbaros, teria havido união entre grupos de Gueréns, Paianases, Aramarizes, Orizes e outras tribos vindas de Pedra Branca, Jaguaripe e Maragogipe. Além disso, uma expedição partiu de Cairu, comandada por Francisco de Sousa Almeida, para combater índios e escravos negros que, aliados, atacaram em vários pontos do rio São Francisco, destruindo até mesmo feitorias de madeira. Da mesma forma, João Roiz Vieira reprimiu tapuias e escravos negros fugidos, que se juntaram no rio das Contas. 6 Se havia escravos e negros utilizados no combate aos índios, ocorreram também casos de negros e escravos que se aliavam aos indígenas contra os colonizadores. O governador Alexandre Sousa (1667-1671) construiu um forte perto da igreja matriz de Cairu, com o objetivo de fazer frente aos Aimorés ou Gueréens. Certo dia, 1671, numa solenidade religiosa no centro do vilarejo, todos os habitantes estavam presentes. O comandante do forte, Manuel Barbosa de Mesquita, deixou a guarnição acompanhado de sete soldados e dirigiu-se à igreja, para encontrar-se com as autoridades civis, religiosas, esposas, crianças. De repente, um calafrio de terror atravessou a todos os colonos, que escutaram o "horrendo grito de guerra" dos Aimorés, que atacaram a vilarejo com ímpeto. O capitão e dois soldados caíram mortos sob flechadas e o desfecho do combate parecia imprevisível. Foi quando o chefe dos índios morreu com um tiro, o que ocasionou a retirada dos atacantes. 7 Sucediam-se combates e escaramuças de ambos os lados. O episódio do ataque à cidade de Cairu, no Recôncavo Baiano, área primordial da colonização, causou comoção nos domínios portugueses. Foi a vez do governador seguinte, Monso Furtado de Mendonça (16711675), executar uma "justa e leal guerra" decretada por D. Pedro II contra os Aimorés, na qual os prisioneiros seriam considerados legítimos escravos. Os Aimorés começavam a enfrentar nova fase da guerra, que entrava decididamente na era dos Bandeirantes. Chegara a hora de os "paulistas" mostrarem sua experiência no combate e na caça ao índio. Os colonos se cotizaram para dividir as despesas de tais empreitadas com a Coroa. Durante dois anos tratou-se de organizar as tropas, lideradas por Bandeirantes e integradas de portugueses, mulatos, caboclos e índios de outras tribos. O chefe da empreitada, João Amaro, viera de São Vicente para este fim. Segundo testemunhas, os integrantes da Bandeira igualavam-se em ferocidade aos inimigos 6 7
Cf. F. Borges de Barros. A confederação dos Guerens ... , p. 176. R. Southey, t. 4, pp. 298-9.
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que buscavam combater. Em 1673 essa violenta milícia "civilizadora" atravessou os sertões do norte do rio São Francisco e, chegando a território dos Aimorés, empreendeu verdadeiro extermínio. Grupos inteiros foram dizimados e os prisioneiros conduzidos aos milhares. Chegou até a haver excesso de oferta de escravos Aimorés, o que abaixou o preço da "mercadoria", quando índios escravizados chegaram a ser vendidos a 10 cruzados por cabeça para os engenhos. Num misto de vingança e exploração, os prisioneiros de guerra foram utilizados em trabalhos tão pesados e tratados de tal maneira que em pouco tempo não restou praticamente nenhum sobrevivente. A ferocidade dos colonizadores foi maior do que a dos índios. Antes de voltar para suas terras, João Amaro tratou de colonizar a região devastada, criando inicialmente o povoado de Santo Antônio. Mais tarde, em homenagem ao seu fundador, o local foi rebatizado de Santo Amaro.8 Esses episódios fazem parte do ciclo das Bandeiras, que inclui a caça aos índios a partir de São Vicente, a guerra contra as Missões Guaranis dos jesuítas no sul e destruição do Qyilombo dos Palmares em Alagoas. Seria também obra desse tipo de pioneiro (pois os Bandeirantes eram aguerridos) a abertura dos caminhos para oeste, em busca das riquezas minerais, muitas vezes seguindo trilhas e caminhos já criados pelos índios. Agora, nesta metade do século XVII, o desafio era dizimar as tribos que impediam a expansão das fazendas de gado e do império português pelo sertão. As tribos Paiaia tiveram o mesmo destino trágico. E foram implantando-se fazendas no interior de Sergipe, Pernambuco e Rio Grande do Norte. No começo do século XVIII, os rancheiros chegariam ao Piauí (berço dos vestígios de presença humana mais antiga das Américas e onde hoje não resta nenhuma aldeia indígena). Assim, em fins do mesmo século, um administrador local podia afirmar com tranquilidade em relação ao caminho do sertão que partia de Ilhéus: Abundam os ditos Sertões de gado cujas estradas livres do Gentio e beneficiadas, podem fazer um extenso commercio com a Commarca e com a Capital. 9
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Ibidem, pp. 300-2 e F. Borges de Barros, op. cit., p. 173. Oficios e mapas do rio Doce,Jequitinhonha, etc. , 28 de janeiro de 1805, pp. 1868-227; Estado de Ilheos, pp. 106-51; Trabalho dosprimeirosj esuitas no Brasil, s.d. - does. de autoria de Balthazar da Silva Lisboa, enviados a D . Rodrigo de Souza Coutinho. Arq. 1.1.20, IHGB. 9
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Depois de três séculos, a Conquista triunfara em Ilhéus e adjacências. Essa frente de expansão, rasgando o território onde antes predominavam os índios, acabou por conquistar um pedaço importante da região dos Aimorés, cujo território foi ficando restrito a alguns pontos nos vales dos rios Doce, Jequitinhonha e Mucuri constituindo, ainda assim, área considerável. Pode-se dizer que essa Guerra dos Bárbaros foi o coroamento de uma guerra mais longa, que vinha desde os primeiros tempos da Conquista, e que marcou nova fase na vida dessas tribos até então chamadas de Aimorés.
*** As legendas do Eldorado povoavam corações e mentes. Mas na porta destas visões de paraísos de montanhas de esmeraldas, lagoas encantadas e douradas, minas e rios onde prata e ouro brotariam aos borbotões, havia obstáculo que amedrontava os que ousavam penetrar em suas selvas. 10 O apogeu da mineração não foi marcado apenas pelos Bandeirantes desbravadores de "fronteiras" que exterminavam índios, rompiam florestas e descobriam pedras e minerais valiosos. Em muitos momentos a cobiça das riquezas esbarrava concretamente no "Gentio bravo". Desde o século XVI corriam notícias da existência de jazidas e já no início do século seguinte aparecem os primeiros indícios de pedras e metais preciosos. Mas só no princípio do século XVIII começaria a corrida do ouro na região que passaria a ser conhecida por Minas Gerais, incluindo também trechos de Mato Grosso, Goiás, São Paulo, Espírito Santo e Bahia. Tal busca causou explosão demográfica sem precedentes na América portuguesa: dezenas de milhares de forasteiros vindos de Portugal e de capitanias brasileiras invadiam a região, erguendo e desmanchando povoações, escavando a terra, arrastando consigo comércio, escravos, plantações de subsistência, contrabandos e administração pública. Fácil imaginar a consequência desse movimento sobre as populações indígenas. Há registres dessa expansão em regiões onde a presença de Aimorés ou Botocudos estava indicada, como em torno dos rios Doce, Cuieté e Castelo. Rio Doce. Entre as mais persistentes buscas de riquezas algumas alcançavam dimensões de lenda e utopia, como a serra das Es10 O livro de S. B. de Holanda. Visão do paraíso é referência fecunda para a compreensão desse viés da colonização.
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meraldas, situada em cheio no território dos Aimorés. As primeiras indicações sobre esta "serra verde" vinham do século XVI, a busca foi longa e, ao fim, inócua. A famosa Bandeira de Fernão Dias Pais (que morreu com um punhado de turmalinas nas mãos, nas margens do rio Doce, acreditando ter encontrado uma serra de esmeraldas) enfrentou por diversas vezes índios hostis. Em 1675 o Conselho Ultramarino, em Lisboa, emite carta patente nomeando José Gonçalves de Oliveira para o posto de capitão-mor "de toda a gente que vay ao descobrimento das Esmeraldas". A justificativa desta nomeação foi dada pelo próprio Conselho: ha tradiçam haver Esmeraldas na altura da Capitania do Espírito Santo, se façam todas as deligencias possiveis por se descobrirem.U A Coroa portuguesa determinou que se fizesse esta Entrada de José Gonçalves por conta e risco dos desbravadores e de seus associados, sem despesas para o Erário Real. Por isso o mesmo José Gonçalves (que acumulava o cargo de capitão-morda capitania do Espírito Santo) pediu e o Conselho Ultramarino ordenou ao governador do Rio de Janeiro que fossem enviados 150 índios para a expedição de busca das esmeraldas. 12 A utilização de índios nas Entradas e Bandeiras era frequente: mão de obra para o carregamento pesado, guias nas matas, caçadores de alimentos e também como guerreiros para enfrentar as tribos hostis aos exploradores, a exemplo do que já vinha ocorrendo desde o século XVI. Seis décadas depois, em 1731, Francisco de Melo Coutinho Souto Maior pede para ser nomeado com o quilométrico título de "Mestre de Campo dos Descobrimentos das Esmeraldas do Rio Doce e Capitania do Espírito Santo". As autoridades em Lisboa concedem o pedido mas, escaldadas, advertem: o prazo para que se fizesse as descobertas era limitado a cinco anos, não haveria despesas para a 11 Carta Patente {de Affonso Furtado de Castro do Rego de Mendonça} do posto de Capitão Mor de toda a gente que vay ao descobrimento das Esmeraldas, provido em José Gonçalves de Oliveira, CapitamMor da Capitania do Espirito Santo, 13 de agosto de 1675, 1,2,9 n. 259, FBN/MSS. 12 Carta de Affonso Furtado de Castro do Rego de Mendonça a Matias da Cunha, Governador do Rio de janeiro, ordenando a entrega de 150 indios a José Gonçalves de Oliveira, Capitam Morda Capitania do Espirito Santo, encarregado do descobrimento das esmeraldas, 14 de agosto de 1675, 7, 1, 32 n. 55, FBN/MSS.
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Coroa e além da busca de pedras preciosas era preciso formar núcleos de povoação (arraiais)Y Na mesma época as riquezas minerais almejadas no rio Doce ainda não haviam sido exploradas. Não só esmeraldas, mas também ouro era encontrado no Espírito Santo já no início do século XVIII, embora ainda não explorado. Francisco Ribeiro de Miranda, capitão-mor do Espírito Santo, foi à frente de uma expedição em busca das minas auríferas no rio Doce. Partindo de Vitória no dia 25 de março de 1702 com vinte homens brancos, cinquenta escravos africanos e quarenta índios (supostamente pagos pela capitania, já que a Coroa proibia a escravidão dos índios e não queria ter despesas com a empreitada), o desbravador enfrentou condições ásperas. Chegando à barra do rio Doce, doenças e epidemias começaram a derrubar, um a um, os membros da expedição. Vendo isso, a maioria dos índios fugiu para a floresta carregando tudo que podia:. ferramentas, pólvora, munição e mantimentos. Os sobreviventes começaram a voltar. Qyatro meses depois da partida, cinco brancos, três índios e quatro escravos negros chegavam esgotados e em farrapos a Vitória, carregando penosamente algumas amostras de pedras preciosas. Francisco Ribeiro escreve a Lisboa afirmando que era preciso retornar ao rio Doce e seus afluentes, "por me parecer que todos elles estão cheios de ouro" .14 Testemunhos assim só faziam crescer a cobiça e a legenda em torno dessas áreas então inacessíveis aos colonos. É de se notar que o capitão-mor, em seu relato detalhado, não faz nenhuma menção a ataques de índios hostis - o que talvez se explique pelo fato de ele não ter ultrapassado a barra do rio. As autoridades portuguesas não perderam tempo. Foi enviado ofício ao padre reitor das Missões, exigindo a punição dos índios fugitivos da expedição que voltaram aos aldeamentos. Aparece aqui (novamente) o conflito entre as autoridades da Coroa e os jesuítas em torno das populações indígenas. Qyanto ao ouro, o Conselho da Fazenda, reunido na Bahia em outubro de 1702, de posse do relatório vindo da capitania do Espírito Santo, discutia as
13 Provisão Régia ordenando que o Conde de Sabugosa, Vice-Rei do Brasil, informe a respeito da Entrada realizada por Francisco de Melo Coutinho SoutoMaior, 5 de dezembro de 1731, II-33, 21, 53, FBN/MSS. 14 Carta de Francisco Monteiro de Moraes para Francisco Ribeiro, Capitão Mordo Espírito Santo, 7 de julho de 1702, FBN/MSS.
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formas de administração "a cerca das minas que se tem principiado a descobrir naquella Capitania". 15 Mas esses primeiros sinais de riquezas não prosperaram em algumas partes de Minas Gerais e em todo Espírito Santo em razão, entre outros fatores, da presença maciça dos índios Aimorés ou Botocudos. As descobertas de minas continuaram. O mesmo Conselho Ultramarino tratava, na reunião de 7 de junho de 1738, do "descobrimento que tem feito o Mestre de Campo João da Silva Guimarães, das Minas Novas, do Rio São Matheus, conquistas dos gentios e suas reduções ao gremio da Igreja". 16 Esse rio, como se sabe, corre pela capitania do Espírito Santo, distante cerca de 80 quilômetros do rio Doce. E a busca de fortunas minerais aparecia ligada ao extermínio de grupos indígenas. Outras legendas de riquezas giravam em torno da região. Como a da lagoa Encantada, assinalada por Sebastião Fernandes Tourinho ainda no século XVI, no rio Piauí, afluente do Jequitinhonha. Ou a famosa lagoa Dourada, a noroeste de São João del-Rei, onde mais tarde se constatou que argilas e areias continham quantidade ínfima de matéria aurífera, sem valor exploratório, mas cuja coloração atiçou a cobiça de muitas gerações. O paraíso do ouro e o inferno das selvas e dos índios hostis se mesclavam nas mentalidades dos exploradores durante quatro séculos, formando aura de ambição e mistério em torno da região. Rio Cuieté. No período da mineração ao longo do século XVIII nas Minas Gerais as tribos de Botocudos tiveram presença marcante. Talvez o caso mais evidente de confronto ocorreu durante a Conquista do Cuieté, nome do afluente do médio rio Doce: foi, na verdade, uma guerra localizada e de longa duração (mais de um século) entre Botocudos/Aimorés de um lado e a administração portuguesa e as frentes de expansão mineradoras, de outro. Neste caso a lenda transformou-se em realidade: havia ouro e buscava-se dizimar índios processo longo e penoso para ambas as partes. 15 Assento do Conselho da Fazenda reftrente àforma de se administrarem as minas de ouro descobertas na Capitania do Espfrito Santo, 23 de outubro de 1702, II -9, 17, 1 n. 139f, FBN/MSS. 16 Minas no Rio São Mateus e Conquista do Gentio, 7 de junho de 1738, p. 37, Arquivos do Conselho Ultramarino, Arq. 1.1.16, IHGB.
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A descoberta das primeiras jazidas datava de 1701. Começava a se mover uma máquina de exploração e guerra que traria violências às terras que escondiam tantas riquezas. Três décadas mais tarde ainda havia referências aos "grandes destroços que executavão os gentios bravos" na freguesia do Forquim, na mesma região. Por isso uma das primeiras providências do governador André de Melo e Castro, conde de Galveias (chegando às Minas em outubro de 1732 depois de uma viagem de cinco meses que começara nas margens do rio Tejo), foi ordenar a saída de uma expedição na parte mineira do rio Doce, com três objetivos centrais: conquistar o "Gentio", estabelecer povoações e procurar ouro. O chefe da empreitada foi o mestre de campo Matias Barbosa da Silva que percorreu os rios Doce e Cuieté durante dois anos. Ele encontrou algumas tribos como os Coroados e Guaniuris que, segundo ele, eram mais fáceis de lidar. Matias Barbosa achou também ouro e foi obrigado a acrescentar à sua descoberta um comentário: "mas he necessario comquistar o Gentio de hua e outra parte da Serra, que não he possível fazerse nada por andarmos com medo delles"Y Aqui, o medo tomava conta dos colonizadores. O mesmo Matias, em seu relatório de viagem, afirma que os índios organizaram "tres entradas em que matarão bastante gente" explicando por que era difícil explorar a região, já que os mesmos indígenas eram "naturalmente indomitos e [por] viverem vezinhos". É interessante como este conquistador chama os ataques dos índios de Entrada (as ferocidades se equivaliam) e qualifica a resistência dos grupos atacados como algo de natural ou congênito. Matias Barbosa partiu com setenta homens, cinquenta escravos e amplo carregamento de pólvora, chumbo e bala. Mas os guerreiros indígenas saíram vitoriosos. As tentativas de exploração e mineração fracassariam nesta área nos anos 1730, marcando, assim, outra vitória dos Aimorés. Mais três décadas se passaram. A Coroa portuguesa, com o declínio da produção aurífera, decide então nova investida em torno do rio Cuieté. Entre 1764 e 1766 ocorreu importante mobilização envolvendo administradores régios, mineradores e proprietários de terras, buscando resolver a questão indígena, isto é, eliminar a pre17
Mathias Barboza da Silva. "Expedição na wna do Rio Doce pelo Mestre de Campo ... " [1734], RAPM, III, 1898, pp. 769-72.
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sença deles do território onde havia riquezas a explorar. Note-se que era o apogeu do governo de D. José I e do marquês de Pombal, cujo ideário iluminista não permitiria discursos pregando guerra justa ou extermínio dos povos indígenas. Entretanto, o governo dificilmente poderia ignorar o declínio da mineração e a existência de vasta área das Gerais inexplorada, como o Cuieté. Surge então a iniciativa de organizar expedições armadas contra os índios, no governo de D. Luís Lobo da Silva em Minas Gerais. 18 Os mais atingidos pelos ataques dos Botocudos eram os moradores das seguintes fazendas e sesmarias: Beira do Rio Doce, Sacramento, Santa Rita, São Bartolomeu, Rio Sem Peixe, Rio do Peixe, Guarapiranga e Freguesia da Barra. Chegaram recursos de todas essas localidades (na forma de dízimos ou contribuições em material, alimentos e homens para as expedições) e até da Câmara de Mariana, das localidades de Forquim, Vila do Príncipe, Rio Pardo, Pitangui e São João del-Rei, entre outras.19 O resultado dessa mobilização não se faria esperar. Um grupo de cento e cinquenta homens, comandados pelo capitão Antônio Pereira da Silva, seguiu pelo rio Piracicaba. Outro, comandado pelo capitão José Gonçalves Vieira, com cem homens, embarcou pelo rio Doce. Essa empreitada de 1766 teve o nome de "Expedição Geral e Conquista do Gentio Silvestre". 20 Ora, homens armados pela Coroa portuguesa, pelos fazendeiros e mineradores da região, certamente não pretendiam cobrir de gentilezas os índios com os quais estavam em guerra há décadas. Mesmo que os documentos oficiais dessa empreitada apregoassem intenções pacíficas e civilizadoras, é difícil acreditar que isso tenha ocorrido efetivamente na prática. Consta dos relatos que alguns índios "encontrados" no caminho passaram a ser sustentados pela Coroa. O resultado dessa investida foi diversificado. Havia, em 1768, um aldeamento de Nossa Senhora da Conceição dos Índios Botocudos (rio Cuieté). 21 No local fora criado por Martinho de Mendonça e Proença o Presídio de Cuieté que, posteriormente, seria a base de uma das divisões militares do rio Doce na guerra contra esses 18
RAPM, VIII, pp. 475 e II, p. 313. Cf. artigo de Christina Tareia. "Vai começar a caça aos índios Botocudos. Cuidado: eles são antropófagos". ln: O Estado de Minas, Belo Horizonte, 20-9-1983, que não dá indicações de como localizar a documentação consultada. 20 Ibidem. 21 Ibidem. 19
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índios. 22 O presídio, encravado na região, tinha duplo propósito: um local para guardar os "desclassificados" do ouro e, também, uma forma de marcar presença em pleno território de índios que resistiam ao contato, sem pôr em risco a vida dos colonos e proprietários. Nunca é demais lembrar que estamos na era pombalina. Ainda aqui os Botocudos parecem desconcertar as políticas oficiais: o governo ilustrado enviava expedições de Conquista. Os setores subalternos das atividades extrativistas eram os escravos, camadas pobres e indivíduos marginalizados.23 Mas mesmo esses grupos ainda eram mais úteis e assimiláveis à sociedade do que índios que resistiam, como os Botocudos. Tanto que a administração colonial setecentista acaba criando uma categoria sugestiva, a de "Vadios uteis", que serviam para combater os índios. O desembargador da Relação, José João Teixeira Coelho, visitando o Presídio do Cuieté em 1780, faz comentário interessante. Ele lembra que desde a criação desse presídio pelo conde de Valadares, os presos, "a excepção de hum pequeno numero de brancos, são todos Mulatos, Caboclos, Mestiços e Negros forros" .24 Muitos, aliás, não estavam atrás das grades e compunham a população fixada nas proximidades do estabelecimento. Estes "homens atrevidos" eram os únicos, segundo o desembargador, que podiam enfrentar a "irrupção do Gentio barbaro", pois que também "penetrão, como feras, os matos virgens, no seguimento do mesmo Gentio". Assim, havia "Vadios" que ficavam dentro das prisões e outros fora dela, ao redor. Ambos, porém, integravam as chamadas Esquadras, milícias que entravam em ação em caso de necessidade. Por isso esses detentos eram vistos pelo desembargador como "Vadios uteis", na medida em que participavam da Conquista do Cuieté contra os índios e também eram usados para atacar quilombos de escravos fugidos. Diante dos índios que defendiam suas terras e dos negros quilombolas, mesmo setores subalternos acabavam encontrando uma forma de incorporação à ordem, uma estratégia de sobrevivência. Não era uma aliança entre "excluídos", mas sim entre variados setores das hierarquias da sociedade colonial brasileira, chamados de Povos da Conquista. 22 Diogo
Pereira de Vasconcelos. Hist6ria antiga das Minas Gerais, vol. I, p. 235. Sobre estes presídios, v. ainda RAPM, VI, p. 846. 23 V. Laura de Melo e Souza. Os desclassificados do ouro. .. 24 José João Teixeira Coelho. "Instrucção para o Governo da Capitania de Minas Geraes por... , Desembargador da Relação do Porto" [1780], RAPM, VIII, 1903, pp. 487-8 .
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Tais embates tiveram expressivo registro iconográfico numa pintura de Rugendas que, no início do século XIX, desenhou um desses confrontos envolvendo tropas pluriétnicas e índios nas selvas brasileiras (Figura 2).
Figura2
Embora não tenha deixado indicações específicas desta imagem, Rugendas escreveu texto explicativo sobre os conflitos que retratava. Numa das partes de seu livro, intitulada "Usos e costumes dos índios", ele descreve as Entradas contra grupos indígenas, baseando-se, como se percebe, em relatos históricos, em documentos, bem como em suas próprias observações, informações orais e pesquisas durante viagem pelo Brasil.25 Um dos grupos a que o artista alemão mais se refere é o dos Botocudos. E dois dos homens indígenas que aparecem neste quadro (canto à direita, atirando de arco e flecha) assemelham-se aos Botocudos desenhados por ele em outras figuras, também pelos ornamentos nas orelhas. Rugendas diz que as Entradas visavam massacrar índios, o que muitas vezes acontecia. Embora, em outras vezes, os atacantes 25
].
M . Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil, pp. 122-3.
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eram surpreendidos por indígenas mais aguerridos e sofriam sérias baixas. Ou seja, por um lado o artista explicitava (e a seu modo denunciava) a violência da Conquista e, por outro, apontava os índios também como agentes históricos que resistiam e não eram, apenas, vítimas de violências. O que constitui uma visão moderna em termos históricos, afinada com a sensibilidade romântica expressa por Rugendas no conjunto de sua obra. Na qual entra, também, a valorização da natureza em sua vegetação exuberante, em geral associada à vida indígena. Nessa composição, como há uma rede de armar bem no centro da imagem e uma habitação de palha à esquerda (meio encoberta pela fumaça), sugere-se que o acampamento indígena sofreu o ataque. Pode-se observar nessa Figura 2 as tropas pluriétnicas no combate aos índios hostis, ou seja, os chamados Povos da Conquista (no centro e à esquerda do quadro), compostos de brancos, mulatos e negros, trajando roupas (mas não uniformes militares) e portando armas de fogo. Rugendas, ao que parece, absteve-se de incluir aí os índios aldeados que em geral compunham tais grupos. Segundo o desembargador José Coelho, citado acima, estes Povos da Conquista embrenhavam-se com ferocidade pelas florestas no combate ao "Gentio", sendo, por isso, considerados vadios úteis. Note-se que é um homem negro o único dos atacantes que aparece alvejado por uma flecha, no centro da tela, com seu corpo rasgado. No tocante à população indígena, esse quadro de Rugendas como que sintetiza três situações. No centro do quadro, há uma mulher morta, cujo corpo deitado e com certo destaque, em primeiro plano e ao lado de uma criança pequena (provavelmente um filho), ganha aura de martírio, de extermínio, de corpo também rasgado. Ao fundo, um casal (ladeado e de certa maneira associado esteticamente a duas palmeiras) é perseguido: a mulher ergue os braços em pânico e o homem aponta sua arma. Esse conjunto representa a condição de vítima, a violência sofrida. Uma segunda atitude aparece ao centro do quadro onde um índio, em tempo de ser trespassado por uma baioneta, resiste com vigor e ainda tenta enfrentar o atacante e, a poucos passos, dois homens empunham arcos e flecha contra os agressores. Esse segundo conjunto expressa a resistência indígena. Uma terceira condição não é nem de vítima, nem de confronto direto, mas dos que conseguem escapar e buscam sobrevivência recuperando os feridos e embrenhando-se pela floresta, evitando o contato - como os que batem em
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retirada carregando no colo os atingidos e as crianças (canto direito do quadro). Mais do que narração neutra ou registro "exato" das cenas, Rugendas compôs uma significativa narrativa pictórica, ou melhor dizendo, uma pintura histórica, à maneira dos quadros de batalhas tão tradicionais na arte europeia. Note-se que o epicentro da tela sintetiza o drama que se espalha pelo resto do quadro. A seu modo o pintor traçou, com senso artístico, técnicas e sensibilidade apuradas, parte importante da saga dos Botocudos, condensando numa imagem aquilo que, até então, os livros de história raramente narravam desta forma, isto é, a dimensão da presença indígena naquele período, seus comportamentos, a dramaticidade dos embates, a paisagem, os movimentos e o perfil dos atores históricos envolvidos nos diversos lados dessas guerras de longa duração. A Conquista do Cuieté, que fez parte deste conjunto de episódios, foi árdua, eliminando em parte a Reconquista que os Botocudos haviam conseguido nas Minas Gerais durante pelo menos catorze anos em meados do século XVIII. Sabe-se, porém, que algumas tribos permanecem no Peçanha (uma centena de quilômetros do Cuieté) ainda por algumas décadas, em contato com os "brancos" e com seus terrenos reduzidos. Ao longo do século XIX a região continuaria palco de conflitos entre Botocudos e colonos. E para se ter uma dimensão da resistência indígena, vemos que o território mantido pelos Krenak nos séculos XX e XXI, no município de Resplendor, fica na beira do rio Doce, distante cerca de cinquenta quilômetros da barra do rio Cuieté. Há ainda referências a combates com índios em Caeté (e não Cuieté), região próxima a Sabará e à atual Belo Horizonte. Na sessão de 22 de setembro de 1704, os membros do Conselho Ultramarino, que em Lisboa tinham o poder de decidir os rumos do Brasil, reuniram-se para tratar de uma carta que acabara de atravessar o oceano e pousava sobre a mesa de reuniões. Manuel Borba Gato, um dos mais conhecidos Bandeirantes, pedia às autoridades auxílio para continuar "o descobrimento das minas de prata nos matos de Caythé". 26 Foi dos 26 Descobrimento das minas de prata nos matos de Caythé, 22 de setembro de 1704, p. 161, Arq. 1.1.23- Arquivos do Conselho Ultramarino, IHGB. Diogo Pereira de Vasconcelos. História antiga . .. cit., I, p. 160, faz referência a combates de Borba Gato com "botocudos".
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conflitos torno do Caeté que surgiu a primeira iconografia sobre os Botocudos (Figura 1). Rio do Castelo. Outro foco importante do conflito com Botocudos foi em torno das minas do rio Castelo, afluente do Itapemirim, no Espírito Santo. Em 1783 essas minas eram exploradas regularmente e havia um povoado ao redor, com igreja matriz, casas, fazendas, plantações agrícolas e pomares frutíferos. Neste ano e no seguinte os Botocudos e também os Puris investiram com toda força sobre a localidade. As minas do Castelo, casas, fazendas, tudo foi abandonado pelos colonizadores. A Reconquista triunfava mais uma vez, gerando raridade: ruínas não de tribos, mas da civilização ocidental que aí fracassara naquele períodoY 0!-Iatro décadas mais tarde, depois de sangrentas guerras, o local foi revisitado pelo olhar dos civilizado. O relato é interessante: Nestas planícies achão-se os restos da antiga Povoação, com paredes da Igreja Matriz, Pomares viçosos, que o Espírito de abandono e incultura de trinta e seis anos, ainda aparecem com frutas e bastantemente frondosas. [.. .] O sol he mui fresco e saudavel; o local aprazível; os corregos abundantes de Oiro em granito. [.. .] Existem lavras antigas, que depois de quase todo o trabalho vencido forão deixadas pela invasão do Indio Antropofago. [... ]. Não tendo mais nada a temer do antigo inimigo o Botocudo porque este mesmo quer tambem Aldear-se [... ).28 Esse testemunho confirma que a ação de tribos de Botocudos impediu, durante algum tempo, que fossem exploradas lavras de ouro em Minas Gerais, transformando em ruínas um local que pretendia irradiar progresso, fazendo que um incipiente núcleo urbano voltasse à condição de selva, enfim, desafiando a lógica do progresso e pondo para o passado aquilo que os "brancos" costumam enxergar como germe do futuro. 27 Correspondências dos Governadores da Capitania e Presidentes da Província do Espírito Santo com o Ministério do Reino. Ofício de 20-6-1808, AN. V. também Minas do Gaste/lo, 27 de novembro de 1761, p. 87, Arq. 1.1.28, IHGB. 28 Correspondências dos Governadores da Capitania e Presidentes da Província do Espírito Santo para o Ministério do Império. Ofício do tenente-coronel Ignácio P. Duarte, de 8/3/1824, AN.
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Sabe-se quais os códigos de comportamento e de valores que guiavam os exploradores que entravam na região atrás de riquezas minerais. Se eles faziam guerra, era visando as pedras, metais preciosos e civilização. Mas como se expressavam os valores e códigos de comportamento dos índios Aimorés/Botocudos, que também guerreavam, mas não pela sede de riquezas? Encontramos mais uma vez as duas principais opções: ou a tentativa de um convívio pacífico ou a guerra frontal. Além dos casos citados acima, nas regiões do rio Doce, Cuieté e Castelo, ocorreram outros contatos e conflitos. Em Minas Gerais, 1794, houve vigorosa investida dos Botocudos contra as frentes de mineração e de expansão agrícola. Cerca de quatrocentas fazendas (segundo estimativas oficiais) e outras propriedades foram abandonadas. Ou seja, no declínio da mineração, importantes áreas são reconquistadas pelos índios. As autoridades tentam resolver a situação enviando reforço de tropas: quarenta soldados e vinte índios Manaxós e Malalis vão para os presídios de Belém, do Casca, do Guanhans e do Peçanha, às margens do rio Prata, para formar barreira contra os ataques dos Botocudos que "tem feito consideraveis estragos em nossa gente". 29 Qlatro anos depois (1798) há registros, entre as despesas da Casa dos Contos, sediada em Vila Rica, de gastos com tropas e munição para a guerra aos Botocudos. 30 É interessante notar que as duas datas (1794 e 1798) marcam, respectivamente, as chamadas Conjurações do Rio de Janeiro e da Bahia. Tais combates contra os Botocudos, se comparados às Conjurações, mobilizaram contingente mais expressivo de tropas, ameaçando concretamente a ordem social e econômica. Foi a partir dessa investida das tribos que a administração régia intensificou a militarização da região. Entre 1794 e 1806, foram estabelecidos um Qlartel-Geral nas cabeceiras do rio Prata, além dos Presídios de Belém, do Casca, do Guaranhuns e do Peçanha - cujo objetivo era formar uma "barreira de defesa contra os ataques de botecudos" _31 Mesmo durante a mineração nas Gerais ocorreram contatos não hostis com os Botocudos. Entre os anos 1770 e 1790 alguns 29
RAPM, VI, 2.•, p. 846. Casa dos Contos. ConstituifáO de tropas que combatem os Botocudos (1796-1798}, F. 72.8/10, AN. 31 RAPM, VI, p. 846. 30
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desses índios apareciam no quartel e aldeamento de Lorena dos Tocoiós, onde criaram laços com alguns militares, como o cabo de esquadra Manuel Luís de Magalhães e o alferes Jerônimo Xavier de Sousa. Estes recebiam os índios com cortesia e davam-lhes sempre ferramentas ou mantimentos. Na mesma localidade grupos de Botocudos, certa vez, invadiram uma fazenda e não atacaram ninguém, mas levaram uma serra e outros instrumentos de ferro, como machados e facões. Os contatos sucederam-se por mais de uma geração e só foram interrompidos com a Guerra de 1808.32 Percebe-se então no século XVIII a introdução de ferramentas e utensílios de ferro entre essas tribos, o que alterava suas relações com a natureza, seja na caça, colheita ou desmatamento. Também no século XVIII administradores tocados pelas ideias da Ilustração se relacionaram com esses índios e sobre eles projetaram, agiram e escreveram, até mesmo no período pós-pombalino. 33 O Diretório dos Índios chegou ao fim. Em 1798 o ministro do Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares, abole as leis pombalinas, encerrando projeto (que se mostrou contraditório, de difícil realização e que parecia não atender mais aos interesses da colonização) de transformar em súditos livres da Coroa portuguesa, por decreto, os índios que viviam em antigos aldeamentos jesuíticos. No entanto, as consequências da legislação pombalina na formação da sociedade podem ser vistas de maneira diferenciada para outras regiões, sobretudo no espaço amazônico, que compreendia Maranhão e Grão-Pará, do qual não nos ocupamos neste estudo. 34 Depois do fim das Missões e da falência da política pombalina, o que viria pela frente? No que se refere a diretrizes oficiais, começam a surgir iniciativas diversas (em torno dos índios em geral e dos Botocudos em particular) que buscavam equacionar tais questões levando em conta a experiência histórica dos jesuítas e de Governo Pombal. Ao mesmo tempo, despontavam novas frentes de expansão que, na prática, iam cercando e estrangulando territórios até então sob hegemonia indígena.
32
RAPM, II, pp. 28-31. Existe considerável bibliografia sobre a relação entre os índios do Novo Mundo e a Ilustração setecentista. V., entre outros, Levis-Strauss (entrevista em}. de Léry, 1994) e F Lestringant (1994); A. A. de Melo Franco (1976). 34 Sobre os Diretórios Pombalinos e os índios, v. R. H. de Almeida (1997). 33
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Os projetos e as frentes de expansão visavam, essencialmente, três pontos: - realização plena da Conquista; - colonização do território e exploração das riquezas; -possíveis formas de incorporação/submissão dos grupos indígenas pela sociedade que os cercava. Havia diferentes matizes de pensamento e de ação, que trilhavam caminhos diversos e às vezes antagônicos entre si. Mas tinham em comum a perspectiva de realizarem uma tensão entre os índios e a civilização ocidental, partindo sempre do pressuposto da superioridade e do inevitável predomínio dela sobre os grupos indígenas mesmo que, até então, a Reconquista destes houvesse obtido espaços não desprezíveis. Uma das primeiras formulações dessa fase veio de Domingos Alves Branco Moniz Barreto, que sistematiza alguns pontos-chave, incluída a divisão (vinda do século XVI) entre índios "mansos" e "bravos", tomando posição do ponto de vista das elites locais no Brasil, a partir das ideias da Ilustração. 35 O texto é de 1788, ano em que seu autor era capitão de infantaria do Regimento de Estremoz. Esse militar baiano faria longa carreira (até o generalato) e se destacaria na vida política: maçom, seria dele a ideia de conceder o título de Imperador a D. Pedro I em 1822. A análise de Moniz Barreto sobre os índios era precisa e operacional do ponto de vista das frentes de civilização. O foco era centrado na Bahia- de onde ele se baseou na experiência histórica e onde pretendia aplicar suas ideias. Mais que um plano detalhado, havia diretrizes gerais. Logo de início o autor reconhece a "oppressão" em que viviam, naquele momento, os "habitantes" achados no continente pelos europeus. Reconhecer a situação de opressão dos índios e considerá-los habitantes já é um ponto significativo - pois não faltam registros, também de historiadores, que nomeiam apenas os não índios (ou os aldeados) como habitantes ou moradores de determinada área, muitas vezes chamada de despovoada quando contém apenas indígenas. Ou
35 Domingos Alves Branco Moniz Barreto. "Plano sobre a civilisação dos indios do Brazil e principalmente para a Capitania da Bahia, com uma breve noticia da Missão que entre os mesmos indios foi feita pelos proscritos jesuitas, Dedicado ao Serenissimo Sr. D. João, Principe do Brazil, Pio, benefico e magnanimo" (1788]. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. XIX, 1856.
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seja, o autor já assumia perspectiva diferente da visão até então predominante (legenda de ferocidade e denúncia unilateral da violência cometida apenas pelos índios) e se punha do ponto de vista das "novas ideias". Após reconhecer essa situação de opressão para todos os índios, Moniz Barreto explicita as duas categorias-chave para os colonizadores (entre os quais ele se colocava): índios mansos e índios bravos. ·Os primeiros eram os mais "dóceis" e fáceis no trato, os quais, repetindo os antigos registros, ele situava como tupis, do litoral e falando a língua geral. 0!-tanto aos segundos, logo de início, o autor diz com quem se preocupava: "Entre os índios a que chamam de bravos os mais temíveis são os Aymorés". Ele incluiu nesta categoria os Tapuias e outras tribos desconhecidas; considera-os canibais e não deixa de chamar a atenção para as guerras que travam entre si. A tônica desse projeto de Moniz Barreto é a crítica à experiência das Missões e aos métodos dos jesuítas. Em contrapartida, elogiava o sistema pombalino e propunha a retomada do cargo de diretor de Aldeias. Entretanto, ele defende a implementação da catequese, ainda que apregoasse o afastamento dos clérigos do poder temporal sobre as aldeias. Conhecedor do terreno, o militar adverte que entre as intenções e a prática havia o "escabroso caminho que é necessario trilhar na conversão do gentio bravo". Diante deles, ensinava, era preciso "cautela, astucia e sagacidade". Ele pretendia que a aproximação inicial fosse feita com o acompanhamento de tropas militares. Uma vez estabelecido o contato, propunha um praw de dez anos para que os índios fossem considerados civilizados, desde que estivessem todo o tempo em contato com os "brancos" e aprendendo ofícios. Não pregava guerra de extermínio, embora não a descartasse. Ou seja, Domingos Alves Branco Moniz Barreto era adepto, sempre que possível, dos chamados métodos brandos, da chamada pacificação. Se fôssemos reverter e aplicar a mesma classificação sobre o autor, o futuro general estaria no rol dos colonizadores "mansos". No alvorecer do século XIX o padre Francisco da Silva Campos (de Mariana, Minas Gerais) pegou da pena e, a seu modo, elaborou outro projeto, um dos mais "redondos" sobre o tema: claro, explícito, ambicioso e abrangente. 36 Tocava nas questões econômicas, 36 Francisco da Silva Campos. "Catechese e civilisação dos indígenas da Capitania de Minas Geraes" [1800].n RAPM, II, 1897 pp. 685-733. Agradeço a indicação desse documento ao historiador Renato Pinto Venâncio.
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culturais, religiosas e bélicas de maneira vigorosa e sem meias palavras. Datado de 1800, tornou-se, de certa maneira, um texto premonitório do que viria a ocorrer na região do rio Doce ao longo do século XIX. O padre Silva Campos fora um dos que, depois da expulsão dos jesuítas, dedicara-se ao trabalho de catequizar índios, trabalhando por longos anos em diversas aldeias de Minas Gerais: entre os Pataxós de 1781 a 1795 e entre os Coroados até 1800. O padre dirigiu seu · plano à rainha D. Maria I e o dossiê foi enviado ao Conselho Ultramarino para que desse parecer. Uma síntese crítica dessa longa petição nos indica que três propostas essenciais eram postas pelo clérigo: 1. a criação de um polo agroexportador na região fronteiriça entre Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro; 2. a catequese dos índios da região; 3. a construção de uma nova estrada que ligasse Minas Gerais ao mar. Esses três itens, reunidos, resultariam na implantação de uma grande Colônia, a ser transformada em cidade (Vila). Em relação ao primeiro ponto, o padre pedia para a sua família (composta de proprietários rurais e administradores públicos) o monopólio, por dez anos, de todo o comércio da região, além do monopólio por tempo indeterminado do comércio de tabaco e madeira. Consta do documento uma lista das plantas nativas utilizadas para fins medicinais e suas formas de extração. Ele se propunha, também, criar um engenho de farinha e de açúcar e uma serraria para extração de madeira. O requerente pedia ainda o apoio da Coroa para a compra de 72 escravos africanos, sendo dez mulheres, que serviriam para mão de obra inicial. Para o segundo ponto, que nos interessa mais de perto neste trabalho, o padre Silva Campos traçava o seu diagnóstico da questão indígena na região: Comtudo o mais importante objeto desta empreza he segurar todos aquelles contornos de incursoens dos Gentios que tem tomado dez estas grandes fazendas, que seus donos abandonarão por não poderem rezistir aos contínuos roubos e mortes [... ], para o que importa muito arranjar, não so arranjar, o Indio Coroado, mas tãobem domesticar o Indio Pori residente na mesma Costa[ .. .]; e estando nós seguros da sua amizade, senhores do seu terreno, e ajudados de sua força poderemos
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repulsar (senão domesticar) o Indio Botocudo, que hé de todos o mais feroz e antropophago. Os Botocudos, assim, estavam no cerne dessa proposição. Mais do que isso, eram a pedra no caminho. Se não fosse possível dominá-los, que se tratasse do extermínio. Diante dos Aimorés/Botocudos a eliminação poderia ser mais adequada do que a colonização - era o que se depreendia da proposição. O padre Silva Campos acreditava poder impor pacificamente às tribos o progresso e a civilização, mas fazia exceção aos Botocudos, para os quais ele propunha a princípio um tratamento mais duro, uma vez que estes não se mostravam nem pacíficos nem passivos às tentativas de sujeição. Ainda aqui essas tribos pareciam desnortear as trilhas retas e ascendentes do progresso. O caminho para derrotá-los passava assim pela guerra e pela busca de aliança com tribos vizinhas, como os Coroados e Puris. Para isso o padre propõe que se retome "o antiquíssimo Diretorio estabelecido em favor dos mesmos indios", ou seja, o Diretório pombalino, mas reestruturado da seguinte forma: um Capelão Cura como autoridade suprema, um Mestre e Inspetores Gerais proporcionais ao número de índios, que não deveria ser menor que 150. A ideia era ainda induzir, gradativamente, os índios a "coadjuvarem" os escravos africanos nos trabalhos de produção e construção. Ou seja, reintroduzir a escravidão indígena, nivelando-a à mão de obra africana. Tratava-se, pois, essencialmente, de submeter os índios pela exploração do trabalho e pela transformação em seu modo de vida. O padre apregoava o implemento da Catequese (para "transformar os selvagens malfeitores em Christãos e cidadãos úteis") e insistia na importância do ensino da Üngua dos conquistadores fator fundamental, segundo ele, para a completa realização da Conquista de um povo sobre outro. Os índios passariam, segundo o mesmo projeto, a serem tributáveis, isto é, deveriam pagar dízimos à Coroa. No tocante à estrada, ela deveria ser construída com o braço do escravo africano e indígena, ligando este núcleo de povoamento e o interior de Minas ao litoral através da cidade de Campos dos Coitacases, no norte do Rio de Janeiro. A colônia, no desejo dos idealizadores desse empreendimento, deveria transformar-se numa cidade, a ser batizada de "Villa India de D.João VI", em homenagem antecipada ao príncipe regente que ainda não subira ao trono. Seria então construída uma fundição de ferro e
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aço, instalada uma botica acompanhada de um cirurgião, uma igreja, uma escola e um quartel com soldados. Propunha também a introdução dos brancos na população e o casamento deles com os índios medida que, como se sabe, constava da legislação pombalina. Esse ambicioso projeto era uma espécie de utopia às avessas para os índios, uma Cidade Ideal para os colonizadores. O autor inspirava-se no exemplo das Missões dos jesuítas, mas punha-se sob a imediata tutela da Coroa. Levava em conta a experiência dos Diretórios pombalinos, mas buscava marcá-la com o controle clerical. Propunha um regime de monopólio equivalente ao das Companhias das Índias num tempo em que as pressões em favor do livre-comércio se faziam sentir. E buscava incorporar-se ao desenvolvimento tecnológico mais recente, propondo a criação de fundições e abertura de estradas. E, sobretudo, almejava destruir o sistema de aldeias ou tribos para adotar um modo de vida urbano - que serviria como centro de poder para as atividades agrícolas e exportadoras. Em suma, tratava-se de um caminho para ir da barbárie à civilização. Vê-se que o padre Silva Campos rejeitava nitidamente a linha de pensamento de um abade Raynal, de um Marmontel, bastante lidos na época não só em Minas Gerais, mas em todos os círculos letrados, e que de alguma maneira propunham a visão do "homem americano" repleto de bravura e nobreza diante do embrutecido colonizador ibérico. O ministro Francisco da Silva Corte Real, em nome do Conselho Ultramarino, rejeitou em bloco toda a petição do padre Silva Campos, por considerá-la descabida. Mas não deixou de alertar no seu parecer que o requerente tocava num ponto que deveria merecer especial atenção das autoridades: a questão indígena na região. No fundo, tratava-se de decidir a quem caberia a iniciativa (e os privilégios) de projetada Conquista das terras e dos corpos indígenas. Com efeito, a estratégia da Coroa, em 1808, seria a de retomar dois itens dentre os colocados acima: guerra implacável e escravização. Em vez de escolher o caminho, digamos, "desenvolvimentista" proposto pelo padre Silva Campos, ou a "via pacífica" de Moniz Barreto, as autoridades monárquicas acabariam optando pela ênfase na atividade militar, deixando que a colonização se desse posteriormente pela iniciativa de particulares. Os índios deixavam seu testemunho acerca da expansão mineradora nas Gerais, mesmo sem palavras escritas. O discurso podia ser de gestos, atitudes, com o corpo e com a própria vida.
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No ano da Graça de 1755, uma tribo composta de cinquenta Aimorés semeou terror entre os Povos da Conquista (índios aldeados, garimpeiros e militares) instalados em suas terras, batizadas de Vila do Bonsucesso das Minas Novas. O mestre de campo João da Silva Guimarães (que há dezessete anos guerreava contra indígenas) organizou com os moradores uma tropa de 240 homens armados até os dentes e foi ao encalço do Gentio. O encontro foi na barra da Utinga. Os guerreiros da mineração ficaram impressionados com a fereza dos índios que, em minoria, lutaram com vigor, sem recuo. A situação tornou-se inaturável. A reação estupenda e paradoxal assustava os vitoriosos. Os Aimorés não se renderam. Exemplo único em toda História, resistiram até o esgotamento completo, até acabarem suas flechas. Eram poucos, desarmados e feridos, na frente dos quais rugiam raivosamente os soldados do ouro. 37 Um vencido foi poupado nesta batalha da Utinga: guardado como espécime raro e testemunha da Conquista. O prisioneiro, que lutara até a última flecha e que presenciara sua tribo ser dizimada, preferiu matar-se a ficar nas mãos adversárias. Foi amarrado ao tronco de uma árvore para que continuasse a presenciar o espetáculo da derrota. Durante três dias, recusava qualquer alimento. E batia sem cessar a cabeça contra a árvore. Revelava, assim, integridade em seus valores que lhe permitiam resistir aos adversários: derrotado, mas não dominado. Até que, por sua própria determinação e coragem, expugnado, caiu o último defensor dessa tribo Aimoré. A frente de expansão mineradora chocou-se com os Aimorés que, ao final do século XVIII, já estariam rebatizados de Botocudos e com o território ainda mais limitados, embora ainda ocupando grandes áreas, sobretudo nos vales dos rios Doce e Jequitinhonha. A exploração de riquezas não traria apenas o martírio de um Filipe dos Santos ou de um Tiradentes e não se nutriria unicamente da arrecadação fiscal, da exploração do trabalho do escravo africano e do empobrecimento de setores subalternos da população luso-brasileira. Também correu sangue indígena nesta sede de ouro das Gerais. 37 Episódio narrado por José Pereira Freire de Moura. "Noticia e observações sobre os indios Botocudos . . .", cit. O Conselho Ultramarino referia-se às "conquistas dos gentios" feitas por João da Silva Guimarães em 1738, cf. Minas no Rio São Mateus e Conquista do Gentio, 7 de junho de 1738, p. 37, Arq. 1.1.16, IHGB. Na redação deste trecho inspirei-me da narrativa de Euclides da Cunha sobre o massacre final de Canudos, n'Os sertões, "Canudos não se rendeu", p. 351.
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Verde esmeralda, amarelo ouro e vermelho sangue pareciam regar o solo rasgado. "Esta Tribu por muitos annos não apareceo a alguem", escreveria no século XVIII, um fazendeiro e administrador colonial. 38 Embora falando de um grupo específico de Aimorés/Botocudos, tal comentário pode ser estendido a outros agrupamentos. Essa observação nos leva a perguntar: como viveram ao longo do século XVII e parte do XVIII? É certo que viveram. Existem registras, sobretudo relativos a combates. Mas sempre convém lembrar que os índios que mantêm algum tipo de contato com uma sociedade são visualizados com mais nitidez nas inscrições elaboradas por essa mesma sociedade. Sejam catequizados, incorporados ou até em guerra, os índios têm o "privilégio" de aparecerem documentados. As tribos que vivem longe das vistas de seus oponentes, que conseguem mantê-los afastados durante tempo significativo, ocupando largos espaços de terra, banindo os Conquistadores e colonizadores, impedindo a Conquista ou garantindo a Reconquista, acabam por sua vez banidas dos registras- até que sejam "descobertas", de novo. Porém, quanto mais ausentes de documentos, mais os índios sobreviviam- e este é um paradoxo que não deve escapar ao pesquisador em busca de fontes documentais sobre as populações indígenas. De acordo com relatos posteriores, pode-se saber que estes índios tinham cantigas e danças para o Sol, para a Lua e para as estrelas. Mantinham suas organizações familiares e sociais e também criavam novos grupos familiares e tribais. Amavam, brigavam, alimentavam-se, tinham filhos. Nada que fosse estranho à espécie humana. Gostavam de cantar, segundo um missionário que os conheceu de perto no século XVII: De maravilha se achará um entre eles que não seja cantor. Têm seus tiples, tenores, contrabaixos, cantraaltas, e tomam qualquer tom, que lhe dão. 39 Ao findar o século XVIII o contato das frentes de colonização com os índios chamados Aimorés ou Botocudos completava quase 38 José Pereira Freire de Moura. "Noticia e observações sobre os indios Botocudos que frequentam as margens do rio Jequitinhonha e se chamão Ambarés ou Aymorés" [1809] . RAPM, II, 1897, pp. 28-36. 39 Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p. 407.
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três séculos. Foi uma guerra de longa duração, embora o contato não tenha se limitado ao confronto. Durante esse tempo, Conquistadores e colonizadores tentaram as mais variadas fórmulas, sem conseguirem o objetivo principal, a sujeição completa desses grupos, a exemplo do que ocorrera com outras tribos. As armas mais poderosas, do bacamarte ao canhão, foram utilizadas. Patrulhas formadas, fortes construídos, igrejas erguidas, engenhos de açúcar instalados. Armadilhas as mais diversas tentadas. Estratégias de persuasão, como catequese ou pacificação, surtiram efeitos relativos. Missões de jesuítas foram estabelecidas, guerras justas declaradas, o espírito das Cruzadas revivido, a escravidão foi consentida e praticada. Foram fomentados exércitos regulares europeus, tropas pluriétnicas de índios, africanos e brancos e disputas entre tribos. As rotas do gado penetravam pelas terras. Entradas e Bandeiras aventuravam-se na caça ao índio e aos metais preciosos. Portugueses e espanhóis, mas também holandeses, franceses e ingleses acumularam suas experiências bélicas. Relíquias milagrosas foram desenterradas. Campanhas sistemáticas clamando contra canibalismo e ferocidade levaram-se a cabo. O extermínio puro e simples foi tentado muitas vezes. Epidemias mortais espalharam-se. Chefes de Estado, administradores, militares, religiosos, homens de letras, jogaram as cartas que possuíam. Ou seja, tudo foi tentado, mas ao final de trezentos anos Conquistadores e colonizadores ainda não haviam aniquilado os Aimorés, habitantes nativos, muitas vezes Reconquístadores, inimigo que continuava, em parte, indomável e indecifrável, mantendo o controle hegemônico de considerável parcela do território. Por outro lado, pode-se perceber que alguns índios dessa denominação, nos séculos XIX e XX, se tornariam exímios vaqueiros e pequenos criadores de gado, mostrando capacidade de adaptação e incorporação de novos valores em seus modos de vida. O desafio então era buscar outros meios de domá-los e decifrá-los, com base nas Luzes do progresso e da civilização. A sociedade que se constituiu no território do Brasil em fins do século XVIII era bem diferente da que existira nos primeiros tempos da Conquista. A modernidade formando seus primeiros contornos no seio de uma elite letrada e urbana (falando o português e conhecendo bem a Europa) só fazia aumentar a decalagem diante das tribos remanescentes. Engendrou-se então uma espécie de grande laboratório de experiências, não só de práticas guerreiras, mas de hipóteses e teorias da civilização ocidental. Essa "máquina" cresceria de maneira assustadora sobre
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estes índios, aglutinando em diferentes níveis homens de letras, das ciências, da administração e das armas. O sistema de civilização tornar-se-ia mais complexo, o que equivale dizer: mais controlador. Assim, a partir do século XVIII, a denominação Aimoré desaparecia aos poucos dos registros, como já foi visto. Parecia que os colonizadores, sem conseguirem aniquilá-los de fato, suprimiam-lhes o nome ou apelido, como se assim pudessem superar o inimigo que tanto atemorizava, quase invencível. Essa mudança de nome, não decretada oficialmente, correspondia a uma nova fase da relação entre esses índios e a sociedade, uma nova (e decisiva) etapa da longa guerra. Mas se a legenda dos Aimorés foi esmorecendo, relegada a longínquo e superado passado colonial, os Botocudos continuaram a ocupar parte dos mesmos territórios. Daí nasceriam, então, outros mitos ainda mais complexos e difundidos para denominar (estigmatizar) os "temíveis Botocudos". A legenda de ferocidade em torno dos Aimorés da época colonial chega a parecer ingênua ante o que ainda seria elaborado. No entardecer do Setecentos como os Aimorés/Botocudos estariam percebendo o raiar do século XIX? Em primeiro lugar é bom relembrar que nessa época havia já uma longa trajetória de contatos entre os Aimorés e as frentes de expansão. Mesmo que o viés guerreiro predominasse, esse contato nem sempre era hostil e já ocasionara importantes transformações na vida dessas tribos, pela invasão de territórios e também introdução de ferramentas e utensílios de madeira ou de ferro - que de alguma maneira alteravam a organização social dessas populações indígenas. Assim, as tribos que seriam descobertas pela ciência nos anos seguintes de alguma maneira já teriam seus modos de vida alterados por esse contato secular com a sociedade luso-brasileira. Falar em passagem de século XVIII para XIX pode parecer inadequado do ponto de vista dos índios que não partilhavam a concepção de tempo dividida em anos; mas eles viviam, refletiam e reagiam diante de mudanças na sociedade que (cada vez mais) lhes cercava - mudanças que os códigos históricos registram por esta contagem do tempo como as passagens dos séculos. A presença dos não índios ao longo desses três séculos geraria também uma tradição entre os índios, um saber transmitido oralmente, onde se mesclavam concepções sobre o adversário, sobre a guerra e sobre os contatos em geral. Um grupo de militares e funcionários da Coroa portuguesa, em 1804, promoveu na região do Jequitinhonha uma Bandeira não
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ofensiva, mas de "meyos brandos". 40 Numa zona intermediária entre as tribos arredias e os núcleos de colonização, foi instalada uma tenda de ferreiro que fabricava machados e anzóis distribuídos para os Botocudos/Aimorés. Até um intérprete foi providenciado. Depois de muitas idas, vindas, recuos e temores de lado a lado, um grupo de índios certo dia tomou a decisão e foi se aproximando cautelosamente dos "brancos" que estendiam presentes e chamavam insistentemente. O!Iando o contato estava quase se estabelecendo, os Aimorés foram detidos por um de seus companheiros. Todo pintado de negro, com jenipapo, ele vociferava, gesticulava, desesperado. O intérprete da expedição ia traduzindo como podia. O índio, de pé sobre um barranco do rio, com arco e flecha nas mãos, dizia aos membros de sua tribo para não se aproximarem, para desconfiarem, garantindo que todos acabariam mortos se estabelecessem o contato. Ele gritava e atirava flechas para o ar, lembrando que sua mulher e todos os seus filhos tinham sido mortos pelos brancos. Estamos diante da palavra proferida e gritada pelos índios. Aqui as flechas não eram dirigidas à carne. As palavras desse índio (cujo nome desconhecemos) não foram registradas pelos códigos letrados. Mas elas constituíram ativamente a história desses grupos. Aqui, os registras do Conquistador deixam entrever essas falas que, assim, driblam os códigos dominantes e se perpetuam de alguma forma por meio deles. Tais palavras indicam que havia intensa discussão nas tribos sobre qual estratégia seguir diante do agressor. Nesse momento cruzavam-se não só a passagem de duas épocas, como os Botocudos/Aimorés estavam diante da encruzilhada onde tanto a via pacífica quanto a via guerreira não apontavam futuro promissor. A advertência desse índio, feita de palavras e gestos (vibrantes, ambos), se opunha ao contato pacífico com os colonizadores e era fruto de uma experiência de três séculos. Advertência isolada naquele local e momento, mais do que presságio, o ponto de vista desse índio se transformaria na expressão coletiva das tribos diante dos embates sangrentos que ocorreriam nos anos seguintes, quando o Reino português declararia guerra aos Botocudos. Suas palavras isoladas, lançadas como suas flechas, estariam em sintonia com o destino, ainda que trágico, pelo qual passaria o seu grupo nas épocas seguintes. 40 Cf. testemunho do responsável pela expedição, José Pereira Freire de Moura, "Noticia e observações sobre os índios Botocudos . . .", cit.
II CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
[... ] até os Botocudos estão persuadidos que nós somos Botocudos e Antropófagos. -
WILHELM LuDWIG voN EscHWEGE,
em 1811. K.raí Unhak Ynhanmo (Qye homem branco bravo!). - Cartilha Conne Panda. Ríthioc Krenak, em 1997.
Capítulo 4
GUERRA DE 1808-1824: O IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO CONTRA OS ''ANTROPÓFAGOS"
No raiar do século XIX a persistência de numerosos grupos de Botocudos numa área cada vez mais valorizada do território era um dos principais desafios para o império luso-brasileiro. As atividades de mineração nas Gerais, a transferência da capital da Bahia para o Rio de Janeiro em 1763 e, ainda, a vinda da Corte para esta localidade em 1808, consolidavam novo centro de poder. As frentes de expansão se enraizavam neste amplo polo geográfico, fortalecendo teias administrativas, mercantis e escravistas e redefinindo a posse da terra. Aguçava-se o atrito com as tribos indígenas. Corresponde a este momento a Guerra de 1808-1824 decretada pelas autoridades luso-brasileiras contra os índios Botocudos. Essa conflagração (que ocorreu no Espírito Santo e Minas Gerais, com reflexos na Bahia) expressa a fase aguda dos embates ocorridos desde a Carta Régia de 1808, até 1824, data do malogrado cerco da cidade de Vitória pelos Botocudos e, também, do decreto assinado pelo ministro do Império marquês de Qyeluz (João Severiano Maciel da Costa) traçando diretrizes em relação a esses índios. Tal Guerra, entretanto, só seria oficialmente revogada em 1831 com as Regências - embora, como se sabe, embates sangrentos ocorreram do século XVI ao XX. Assim como haviam enfrentado as consequências bélicas do peso da economia e da administração nos arredores da Bahia nos primeiros tempos da Conquista e colonização, esses índios se veriam cada vez mais cercados pelas novas condições da sociedade brasileira. O eixo do poder deslocava-se de Pernambuco e Bahia para o Rio de 109
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CERCO AOS BOTOCUDOS NO SÉCULO XIX
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, acompanhando o deslocamento que parcela dos Aímorés fizera anteriormente para a região que viria a ser denominada de Sudeste. Uma das primeiras medidas tomadas pela Corte portuguesa logo após sua chegada ao Brasil, não por acaso, foi estampar uma declaração de guerra ofensiva a essas tribos - texto assinado pelo príncipe regente D. João a 13 de maio de 1808, ao lado de outros "melhoramentos" que visavam modernizar a sociedade e consolidar a inusitada presença de uma tradicional Coroa ibérica em terras de além-mar. Trata-se de gesto significativo. Essa guerra contra os Botocudos, em sua mobilização de contingentes humanos, pela duração e, sobretudo, pela amplitude da área atingida (e de sua proximidade da Corte) pode ser posta, em importância, ao lado das outras guerras que o império luso-brasileiro praticou no território americano, como no Rio da Prata ao sul (contra a Espanha) e na Guiana (contra a França) ao norte. Ou seja, um conjunto de ações de tendência expansionista, visando ampliar o controle sobre o território, consolidar novas fronteiras internas e externas e atacar diferentes adversários deste império luso-brasileiro. 2 A Guerra aos Botocudos equivaleu, ou até superou em amplitude territorial e cronológica, às demais guerras desse período, incluindo a repressão à República de 1817 nas províncias do que viria a ser chamado Nordeste brasileiro. Parece-nos importante relembrar: os anos que antecederam a declaração bélica de 1808 foram marcados por embates e ofensiva entre índios e colonizadores, em que as tribos muitas vezes tomavam a iniciativa e conseguiam expressivas vitórias. E, ao mesmo tempo, estabelecia-se lento e sólido processo de militarização da região. A posse da terra estava no cerne desse embate, mas não deve ser menosprezado o interesse pela mão de obra indígena no século XIX que se acentua quando da crise do tráfico de escravos africanos em meados do Oitocentos. Como já foi visto, a Reconquista indígena em áreas de potencial econômico crescente gerou despovoamento de terrenos já Conquistados. Tal quadro ainda persistia na época da chegada da Corte Real, como nas Minas do Castelo, quando os habitantes de Barra do Rio do Castelo, Caxixe, Arraial Velho, Salgado e Ribeirão, às margens do rio ltapemirim, não resistiram aos ataques, aban1 Sobre esta perspectiva de expansão imperial "para dentro" no Brasil do período, v. llmar de Mattos. Construtores e herdeiros . .. (2005).
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clonaram tudo e foram se estabelecer no litoral. A investida maciça e eficaz dos índios parece ter tocado nos brios e bolsos dos colonizadores, que começaram a traçar uma nova política de ocupação. Os entraves postos pelos Botocudos à mineração, comércio e agricultura geraram pressões sobre a Coroa. A ponto de a Junta de Administração e Arrecadação da Fazenda Real, com sede em Vila Rica (no prédio da Casa dos Contos), realizar reunião no dia 1. de fevereiro de 1806 para tratar dessas tribos, a partir da qual o governador da capitania, Pedro Maria Xavier de Ataíde e Melo, elaborou o seguinte documento: 0
Cançado e orrorisado de ouvir o grito dos miseraveis Povos, que confrontão com a Matta geral de Aquem do Rio doce no termo da Cidade Marianna, pela carnagem brava e insaciavel com que tem sido atacados, mortos e devorados pelo Barbaro Antropofago Gentio Botocudo, sendo obrigados a abandonar suas Fazendas de cultura, e mineração, depois de cultivadas a preço de seu trabalho [. . .).2 O pronunciamento é interessante não só por representar uma das reivindicações que levariam a Coroa a realizar a guerra ofensiva. Em princípio ele demarca o espaço da cidade como próprio da civilização, ao passo que a floresta, inculta, era território dos índios e da selvageria. Ele destaca também como esta fronteira da civilização era ainda próxima, neste princípio do século XIX, de centros urbanos importantes, como Vila Rica e Mariana. Dentro do registro tradicional da Conquista (ressaltando a ferocidade destes índios) o documento confirma a força da Reconquista indígena na região e mostra os Botocudos como elementos ativos do processo. Coloca-se também o antagonismo entre Povo e Gentio - povo civilizado e gentio selvagem. Povo/miséria/cidade/civilização de um lado e Gentio/floresta/selvageria/antropofagia do outro. Também por iniciativa do governador Pedro Xavier Ataíde o território indígena em Minas Gerais fora dividido em seis Divisões Militares em 1806 que contavam com quarenta soldados e mais vinte índios Manaxós e Manalis prontos para guerrearem as tribos hostis aos colonizadores. Isso porque, desde 1794, cerca de quatrocentas fazendas e outras propriedades em torno da Vila do Príncipe tinham 2
RAPM, III, pp. 743-8.
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sido abandonadas devido à investida dos Botocudos- marcando mais um momento de Reconquista indígena, conforme relato do historiador oitocentista Diogo Pereira de Vasconcelos, pertencente, aliás, à mesma família de proprietários do padre Caetano Vasconcelos, autor da aquarela (Figura 1) retratando os Botocudos. 3 A militarização na região de Minas e Espírito Santo fora reforçada sem cessar ao longo do século XVIII. 4 Em Minas o aparato administrativo - também militar- teve grande crescimento no decorrer da mineração, onde a presença das tribos Aimorés/Botocudos desempenhou papel importante, como já foi visto. No Espírito Santo, a princípio, a fortificação militar surgiu para prevenir novas invasões francesas ou de outros corsários, ganhando intensidade a partir dos episódios de Reconquista indígena dos anos 1780. Desde 1718, quando a Coroa compra do último donatário a falida capitania do Espírito Santo e anexa seu território à Bahia, acentua-se a fortificação militar. Em primeiro lugar, no litoral, onde a cidade de Vitória numa ilha servia de base mais segura. No governo do vice-rei conde de Sabugosa, em torno de 1726, foram construídas seis fortalezas na capital capíxaba: São João, Nossa Senhora da Vitória, Nossa Senhora do Carmo, Santo Inácio e São Diogo. Dessa vez não bastava a invocação simbólica dos santos guerreiros contra o dragão-da-maldade, mas se edificava sobre pedras sólidas as armas que deveriam trazer o Apocalipse para os índios. Havia, sobretudo, a preocupação por prevenir invasões estrangeiras, como a dos franceses. Mais tarde, na administração do vice-rei marquês do Lavradio, tratou-se de reforçar a mobilidade e a quantidade desses guerreiros do império português. Criou-se no Espírito Santo, sucessivamente: em 1788 um Regimento de Infantaria, com 90 infantes e o Regímento de Milícias e Cavalarias; em 1793 uma Companhia de Infantaria de Linha com 114 praças; em 1798 inaugurou-se um Hospital Militar. Em 1800, organizou-se um Corpo de Pedestres em Sousa, às margens do rio Doce, com o objetivo de "evitar a sorpresa do gentio antropophago" -local onde seria criada Línhares. 5 3
Diogo P. R. de Vasconcellos. "Breve descrição geographica, physica e poli tica da capitania de Minas Geraes" [1806]., RAPM, VI, 2.•, 1901, p. 846. 4 Sobre a militarização em Minas Gerais e o combate aos índios no século XVIII e início do XIX, v. L. C . Resende. Gentios bras{/icos: índios coloniais em Minas Gerais setecentista. Doutorado em História. Campinas: Unicamp, 2003. 6 Francisco Alberto Rubim. "Memoria estatística da provincia do E spirito Santo no ano de 1817". Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. XIX, 1856.
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Portanto, havia um conjunto de fatores geopolíticos e econômicos, acompanhados de uma insistente campanha antiindígena e de estratégia militar longamente elaborada. Elementos que, somados, redundaram na Guerra de 1808-1824. Entre os motivos imediatos que podem ter funcionado como a gota d'água para a "guerra ofensiva" está o fato de que em abril de 1808 (portanto um mês antes da Carta Régia de D.João) os Botocudos atacaram o Qyartel de Sousa e colocaram o oficial e seis soldados em fuga pelas selvas, apavorados. 7 Um dos soldados foi morto. Os índios destruíram as roças, quebraram todos os utensílios e encheram a casa de pedregulhos. Assim, a declaração de guerra de 1808 foi também ofensiva dos Botocudos. Como se fosse uma resposta, a Coroa portuguesa fala em guerra ofensiva. O texto assinado pelo futuro D. João VI sobre os Botocudos merece atenção. 8 Em primeiro lugar, traz uma estranha dose de alteridade. Contra os gentios, proclamava-se guerra justa, empreendiam-se expedições, mas poucas vezes houve um tratamento tão solene, quase como se fosse de uma nação para outra- embora a Carta não fosse dirigida aos índios, mas às autoridades luso-brasileiras. As sucessivas derrotas impostas aos colonizadores ao longo de três séculos, e a impossibilidade de exterminar facilmente as tribos, acabaram por gerar um tratamento peculiar para esses índios. Essa significação não escapou a Hipólito da Costa, que redigia o Correio Braziliense em Londres: Entre os Documentos recebidos, se acha uma Declaração de Guerra da Corte do Brasil contra os lndios Botecudos. Ha muitos tempos que não leio um papel tão celebre; e o publicarei quando receber a resposta que S. Excellencia o Secretario de Estado
6 Braz da Costa Rubim. "Memorias historicas e documentadas da província do Espírito Santo". Revista do Instituto Hist6rico e Geográfico Brasileiro, t. 1 (3), pp. 171271, 1839. 7 Carta régia do príncipe regente D.joão, dirigida a Pedro Maria Xavier de Ataide e Melo, governador das Minas Gerais, ordenando queforme um corpo de soldados pedestres para luta contra os fndios Botocudo. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1808, Arquivo Nacional (AN),Junta da Real Fazenda da Capitania do Rio de Janeiro (4B- 206). Ver o mesmo documento em: Carta Régia de D.joão VI dirigida a Pedro Maria Xavier deAtaide e Melo, governador das Minas Gerais, ordenando queforme um corpo de soldados pedestres para luta contra os fndios Botocudo. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1808, FBN/MSS, II, 36,8,14 e I, 28, 31, 20.
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dos Negocios Estrangeiros e da Guerra da Nação dos Botecudos, dér a esta grande peça da Diplomacia; porque he natural que este longo papel que contem 8 paginas, seja dirigido aquella Nação: he verdade que ella inda não sabe lêr, mas aprenderá, julgo eu, para responder a isto. 8 Hipólito não estava preocupado em defender os índios, mas em fazer oposição ao governo e criticar atitude que lhe parecia inusitada. O redator do Correio Braziliense ironizava os dois lados do conflito: os índios e a Coroa portuguesa. Tais Botocudos, mesmo sem terem um ministro da Guerra, como anotava Hipólito, eram tratados como membros de uma nação - revelando a polissemia desse termo que, na época, servia também para designar identidades étnicas. Tais Botocudos, aliás, embora o redator luso-brasileiro não registrasse, tinham rosto, nomes e eram estrategistas militares também, oferecendo resistência e fazendo a ofensiva joanina, embora violenta, não lograr êxito rápido em dizimá-los. Entre grupos de civilizações distintas - como é o caso dos luso-brasileiros em face dos Botocudos - é raro verificar comportamentos guerreiros pautados por um código formalmente estabelecido. Ou seja, seria mais compreensível ver os portugueses declarando guerra a uma outra nação europeia, ou a uma república sul-americana, por exemplo, do que a um conjunto de tribos de índios que, embora também sejam guerreiros, não partilham dos mesmos códigos de conduta e não possuem efetivamente um Estado organizado e sequer um alfabeto onde possam responder, por meios diplomáticos, à referida declaração. Mas quando as ferocidades se equivaliam, engendrava-se uma guerra tão violenta quanto dissonante, entre dois agrupamentos tão diferentes, mas que se aproximavam e trocavam energias ao se entredevorarem. 9 Os troféus de guerra e as mutilações dos corpos dos inimigos ocorriam dos dois lados. 8
Correio Braziliense, junho de 1808, vol. I, p. 421. Existe vasta bibliografia antropológica sobre as guerras e as sociedades indígenas: estudos clássicos como o de M. Davie (1931), P. Clastres (1977) e F. Fernandes (1975), baseados mais numa perspectiva funcionalista ou de determinismo material. Para a elaboração do presente livro consultei também a edição especial do journal de la Société des Américanistes, Paris, LXXJ, 1985 com artigos de vários autores (Viveiros de Castro, Menget, Saignes e Taylor) trazendo visões mais atualizadas e complexas sobre o tema. 9
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O príncipe regente D. João fundamenta a formalização da guerra em 1808 nas queixas constantes dos moradores (luso-brasileiros, entenda-se) da região, vítimas de constantes ataques. Era uma resposta direta à petição dos colonos de Minas expressa pelo governador Pedro Xavier de Melo dois anos antes. Diz a Carta Régia: Sendo-Me prezentes as graves queixas que da Capitania de Minas Geraes tem sabido a Minha Real Presença sobre as invawens que diariamente estão praticando os Indios Botocudos Antropophagos [.. .).1° Ou seja, era o monarca ouvindo o clamor de seus súditos operação política fundamental para o funcionamento dos regimes do tipo Absolutista. O texto se inscreve, assim, num registro tradicional, semelhante aos discursos dos tempos da Conquista - a ponto de chamar os efetivos militares de Bandeira, a exemplo das expedições de caça ao índio feita pelos Bandeirantes. D. João faz questão de destacar a legenda de ferocidade que envolve essas tribos, garantindo que os índios "sorvem depois o sangue" das vítimas, portugueses ou índios aldeados, "dilacerando os corpos e comendo seus tristes restos". Ao canibalismo se acrescenta o vampirismo. Este trecho da declaração régia parece inspirado pela carta e aquarela (Figura 1) enviadas pelo padre Caetano Vasconcelos que, nesse mesmo período, manifestara-se à Coroa portuguesa, expressando as demandas e temores de grupos familiares importantes entre as elites locais, conforme já citado. A simbologia do vampirismo está associada a um adversário híbrido entre o humano, animal e monstro e que habitualmente suga a energia das vítimas através do sangue. Essa imagem de vampirismo associada aos Botocudos se enquadra na concepção da guerra como uma busca de absorver a energia do adversário. Tal Carta Régia refere-se diretamente à região das Minas Gerais, o que deixa entrever a ação política coordenada pelo governador da capitania para o combate aos índios e ocupação de seus territórios. Diante de tal quadro, a Coroa conclui pela "inutilidade de todos os 1 °Carta Régia do prfncipe tegente D.João, dirigida a Pedro Maria Xavier de Ataide eMelo, governador das Minas Gerais, ordenando queforme um corpo de soldados pedestres para luta contra os fn dios Botocudo. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1808, AN, cit.
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meios humanos", como pacificação ou aldeamento. Da mesma maneira, o monarca afirma que o sistema de guerra defensiva não apresentava resultados satisfatórios. Assim sendo, D. João suspendia, por decreto, "os efeitos de Humanidade, que com elles Tinha Mandado praticar". O príncipe regente agia da mesma forma que seu antecessor Filipe II que, no século XVII, autorizara suspender a lei que proibira a escravidão indígena quando se tratasse dos Aimorés. Animais, vampiros, canibais ou monstros são incompatíveis com os critérios de humanidade. Ora, a suspensão, por decreto, desses princípios de Humanidade invocados pelo regente equivalia, no mesmo tom, a proclamação justa e legítima do extermínio destes povos. Assim, podemos dizer que D. João implementa uma política genocida quando chega ao Brasil. E abria caminho para que as violências se equivalessem: [... ] deveis considerar contra esses Indios Antropophagos huma guerra offensiva, que continuareis sempre em todos os annos nas estaçoens secas, e que não tera fim se não quando tiveres a felicidade de vos senhorear das suas Habitaçoens e de escapacitar da superioridade das Minhas Reais Armas, de maneira tal, que movidos daquele terror das mesmas peção a Paz e sugeitando-se ao doce jugo de ley, e prometendo viver em sociedade, possão vir a ser Vassalos uteis [.. .]. Era uma declaração de guerra que se pretendia eterna, atemporal: deveria ecoar até que o adversário estivesse aniquilado ou submisso, ponto final no longo conflito. O texto tem toque épico, profético. As armas e os barões assinalados, entre guerras e perigos (mais do que prometia a força humana), pretendiam edificar o Reino onde ele ainda não havia se implantado. Texto contundente e claro em seus objetivos ao decretar a escravidão e o extermínio com todas as letras. As novas tropas formadas para estes combates serviriam de reforço às já existentes. Elas seriam subdivididas em seis Divisões, sediadas em tomo do rio Doce. Já no texto da declaração constam os nomes dos novos comandantes das Divisões que deveriam aniquilar os índios: o alferes Antônio Rodrigues Taborda, João Monte da Fonseca, José Caetano da Fonseca, Lizandro José da Fonseca,Januário Vieira Braga e um morador conhecido como Arruda. Cada um deles recrutaria os soldados como bem entendesse.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 117 Essa mesma Carta Régia reintroduzia o direito à escravidão dos índios. Todos os Botocudos pegos de armas na mão, considerados prisioneiros de guerra, poderiam ser usados para o serviço dos comandantes militares, sem nenhum salário, pelo praw de dez anos - ou por tempo indefinido, enquanto manifestassem ferocidade ... Os prisioneiros poderiam ser até acorrentados, caso os chefes militares julgassem necessário. Numa sociedade escravista, instituía-se na prática o cativeiro indígena nos primeiros anos do século XIX, atitude que não parece ter sido drasticamente interrompida na fase nacional brasileira. Está claro que não havia, nesse período, um complexo sistema escravista baseado no trabalho indígena, embora as guerras tenham propiciado e estimulado tal forma de servidão em atividades agrícolas, domésticas e na administração pública, sobretudo em Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro, para nos atermos ao recorte deste livro. Ao final, em duas linhas, a declaração de guerra encerra-se com as motivações econômicas da Coroa portuguesa: estabelecer a navegação do rio Doce e explorar preciosos terrenos auríferos. Além disso, os colonos que se dispusessem a ocupar essas terras ficariam isentos de dízimos e das taxas de importação e exportação. As lógicas mercantil e bélica alimentavam-se mutuamente. Essa Guerra de 1808 revela estratégia bem traçada da Coroa. Entre a declaração assinada por D. João no Palácio do Rio de Janeiro e os embates de soldados e índios nas selvas havia uma rede complexa de mediações e hierarquias, incluindo diferentes níveis das administrações central, regionais e locais de quatro províncias, mobilização do aparelho militar, apoio e envolvimento de moradores das wnas atingidas (sobretudo os proprietários e seus braços armados), projetos de colonização e povoamento, sem falar da liberação de recursos em todos esses setores. A máquina de guerra movia as engrenagens contra os índios Botocudos. A articulação central era da Secretaria da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, cujo titular era D. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares- principal estrategista e articulador da ofensiva contra os Botocudos (o mesmo que, dez anos antes, abolira os Diretórios pombalinos). Do Rio de Janeiro se constituía a conexão com os governadores de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia que, por sua vez, comandavam e traçavam ações nas respectivas jurisdições. As tribos viram-se tratadas na esfera dos que não pertenciam à pátria, ou de seus inimigos: guerra e estrangeiros. D. Rodrigo, apesar de seu notório reformismo ilustrado, poderia ser classificado entre os colonizadores "bravos".
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Ao abrir sobre sua mesa de trabalho o mapa (Mapa 4) da região conflagrada (pois era possível chamar assim a área com presença dos Botocudos) D. Rodrigo e os militares que o assessoravam tinham clareza de um aspecto singular da situação: a cidade de Vitória estava encurralada. Traçando uma linha que começa (nas atuais localidades) em Mucuri, passa por São Mateus, Linhares, Aimorés e vai até Cachoeiro de ltapemirim, percebe-se que em 1808 havia um verdadeiro cinturão de florestas e territórios indígenas em torno da capital do Espírito Santo e de regiões ainda pouco exploradas das Minas Gerais. O objetivo da guerra era basicamente destruir esta fronteira interna, a fim de ocupar o território onde havia florestas e índios.
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Os Arquivos do Exército brasileiro guardam os registras deste conflito contra os Botocudos, revelando mortandades e estratégia bélica cuidadosamente montada. Uma das providências básicas era acionar as autoridades locais. Para isso, foram enviados ofícios às Capitanias da Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo, delimitando assim a zona do conflito e encurralando o inimigo, dificultando sua mobilidade e obrigando-o a combater tropas cujas armas eram mais mortais. O conde de Linhares buscou organizar um cerco maior, que abarcasse o vasto território indígena. Ele ordenou primeiro um ataque sincronizado das tropas mineiras e capixabas, "para que aquelles Gentios se vejão na necessidade de ceder completamente o simultaneo ataque". O objetivo, nas palavras de D. Rodrigo, era "para que o mesmo Gentio bravo ceda em fim vendo-se por toda parte acoçado" .11 Outra especial atenção do ministro português foi com a cidade de Campos dos Goitacases (então pertencente ao Espírito Santo, mas fronteira com a província do Rio de Janeiro e um dos caminhos para a capital do império): as autoridades deveriam estar alertas contra possíveis incursões dos Botocudos que porventura fugissem das tropas mineiras e capixabas. 12 D. Rodrigo preocupava-se em alertar a força militar de Campos dos Goitacases "para que faça cortar a passagem do dito Gentio"Y Era evidente: o ministro da Guerra queria prevenir a possibilidade de uma investida maciça dos índios que se aproximasse da capital do império. A guerra ao "índio bravo" ia (re)começar. Os guerreiros luso-brasileiros se prepararam de maneira especial (Figura 3). Passaram a usar uma espécie de armadura ou couraça, chamada de "gibão d'armas". 14 Era um tecido espesso, cerca de uma polegada, feito de várias camadas de algodão costuradas, para proteger das flechas. Os soldados vestiam esse colete que lhes protegia o tórax, braços e ia até o joelho. Era um ornamento tão sólido que ficava em pé sozinho. Mas a cabeça e as pernas restavam desprotegidas. Além disso, o peso da vestimenta cansava os soldados, retardava-lhes a marcha e deixava-os abafados de calor. Os soldados partiam em campanha usando, além dessa armadura, os seguintes apetrechos: chumbo, pólvora, fuzil, facão e
11 Livro da capitania do Espírito Santo, correspondências de 28-2-1810 e 30-91809, AHE 12 Ibidem, 22-7-1811. 13 lbidem, 10-10- 1810. 14 M. Wied-Neuwied, t. 1, p. 326 e A. Saint-Hilaire (1830), t. 1, p. 435
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provisão para doze dias. Nota-se também, na Figura 3, desenhada para o livro de Wied Neuwied, que os dois soldados (assim como os índios) estavam descalços e o que está à esquerda era mulato. Portavam, ainda, uma pele de onça ou gato do mato sobre os ombros. Se a ferocidade dos soldados luso-brasileiros aparecia em relatos escritos, ela em geral não se expressava na iconografia- ao contrário do que ocorria com os indígenas, dos quais o aspecto feroz era facilmente destacado em imagens e escritos. Pode-se perceber, na Figura 3, uma composição que opta pela simetria estética dos dois soldados com a vegetação, seja com as duas palmeiras (ao fundo, à direita), seja formando um "par" com as plantas em primeiro plano à esquerda. De um lado, tal composição pode indicar, em termos de registro material, a tentativa de adaptação desses soldados ao meio ambiente onde deviam combater. De outro lado, de alguma maneira naturalizava e harmonizava a presença de tais soldados na floresta.
Figura3
As tropas assim formadas tinham estabelecido uma tática de guerra que consistia num processo semelhante ao da caça aos animais. Aliás, anos mais tarde, conversando com um militar veterano dessas guerras, Teófilo Ottoni deixou, perplexo, o seguinte depoimento:
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Eu conheci um official das Divisões do Rio Doce, aliás pessoa de boas qualidades, e excellente militar, que não era mais homem quando se lhe falava em Botocudos. Ouvi-lhe a medonha declaração de que quando os seus caens davão no rastro de algum destes infelizes sentia elle as mesmas emoções que os outros caçadores quando os caens dão na batida do veado. 15 Nessa caçada, os cães eram adestrados sendo alimentados com carne dos índios assassinados. Isso configura uma forma de antropofagia realizada por iniciativa dos guerreiros da civilização ocidental. A tática das tropas luso-brasileiras, nessa guerra de extermínio, seria a mesma repetida ao longo do século XIX: era o que se chamava de "matar uma aldeia" (v. Figura 2). Localizava-se um acampamento indígena, geralmente com a ajuda de índios "mansos" que serviam de guia. Durante a noite, os soldados aproximavam-se o máximo possível sem serem percebidos e formavam um círculo em volta do acampamento. Ao amanhecer o grupo cercado era acordado com a fuzilaria de surpresa. Os tiros, evidentemente, não distinguiam alvo, fossem mulheres, velhos, crianças ou homens adultos. O quadro era terrível: gritos, imprecações, cadáveres amontoando-se, choros, berros de crianças, lamentos de moribundos, poças de sangue espalhadas. Passado o susto, quando os índios conseguiam articular uma reação, os soldados partiam para o combate corpo a corpo. Os sobreviventes eram acorrentados e vendidos como escravos. A ferocidade estava patente no comportamento dos Povos da Conquista. Veja-se esta descrição do príncipe de Wied-Neuwied: A crueldade dos soldados nesses encontros supera tudo que se possa imaginar. No último ataque que tinha precedido minha chegada a Linhares, uma mulher não quis se render; ella tentava se defender mordendo e arranhando. Um soldado abriu-lhe o crânio com um golpe de facão, que atingiu também a cabeça da criancinha que ella carregava no colo. 16 A violência contra as crianças parecia ser uma constante dessa guerra. Anos mais tarde, índios sobreviventes, ainda traumatizados, 15
T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri" ... , 1858 e 2002.
16
M. Wied-Neuwied, cit., p. 253
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contariam ao francês Guido Marliere outras cenas de atrocidades que sofreram, como as crianças que eram arrancadas dos braços das mães para serem abertas a facão pelo meio das pernas. Era um dos resultados práticos da política de "melhoramentos" de D. João no Brasil. Num ataque em outubro de 1816, perto de Linhares, trinta soldados chefiados pelo guarda-mor Cardoso da Rosa, comandante dos postos militares da região, realizaram um destes cercos a uma tribo. Apesar das couraças, três soldados saíram feridos. Mas pelo menos uma dezena de índios foram mortos, entre eles o chefe, reconhecido entre os cadáveres pelos cordões e plumas especiais que portava. Os soldados resolveram possuir um troféu da caça: cortaram as orelhas dos mortos e enviaram o macabro presente ao governador em Vitória, além dos arcos, flechas e botoques recolhidosY Como se vê, a mutilação do corpo do adversário não era exclusividade dos índios, mas se fazia também da parte dos luso-brasileiros. Tal gesto confirma como a guerra, para ambos os lados, tinha o sentido simbólico de se apossar da energia do inimigo, arrancandolhes pedaços do corpo como troféus. Os índios faziam isso com os animais, usando dentes de feras e plumas de pássaros como adorno e há também notícias de que descarnavam, esfolavam e mutilavam os corpos dos adversários. Os não índios, por sua vez cortaram as orelhas dos vencidos num significativo ritual de guerra. E ainda (em nome da ciência... ) passariam a colecionar os crânios e esqueletos dos índios. Cortar cabeças de quilombolas, indígenas e de outros rebeldes derrotados foi prática recorrente ao longo da história do Brasil, mesmo quando não fundamentada numa legislação, mas sim em costumes não escritos. Esse comportamento violento chocava algumas consciências da época, sobretudo de estrangeiros (não luso-brasileiros). O cientista francês Saint-Hilaire, que presenciara as guerras da Revolução Francesa, lamentava: "a guerra contra os Botocudos é um absurdo digno dos tempos mais bárbaros". 18 No mesmo tom, o germânico Wied-Neuwied, que participara diretamente dos combates contra a Revolução Francesa, afirmava: "A guerra deplorável que se faz contra os Botocudos nas margens do rio Doce atrapalha o conhecimento que se possa ter destes homens dignos de atenção". 19 Ou seja, apontava, 17
T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri"... , cit.
18
A. Saint-Hilaire (1830), t. 1, p. 436. Wied-Neuwied, cit. t. 1, p. 335
19
1808-1824: O IMP ÉRIO CONTRA OS "ANT ROPÓFAGOS" 123 de modo pragmático, à incompatibilidade entre os parâmetros da atividade científica (tida como essencialmente civilizadora) e a estratégia de guerra de extermínio efetivada naquele momento, além de ressaltar a condição humana dos índios. Marcava-se aqui a diferença entre colonizadores "bravos e "mansos". Da parte dos índios, não há depoimentos ou testemunhos expressamente elaborados. Mas as atitudes dos Botocudos aparecem nas fontes históricas de diversas formas. Podemos verificar que os índios, pela resposta prática da resistência efetiva, além dos lances ofensivos, defensivos ou vingativos que praticavam, também exprimiam sua perplexidade diante dessa guerra. Saint-Hilaire recolheu uma canção, da qual, infelizmente, não oferece a versão na língua original, mas apenas a tradução em francês e português, que é a seguinte: Os Brancos estão furiosos I A raiva é grande I Vamos fugir rápido I Mulher, pega as flechas I Vamos matar índios. 20 Destacam-se nesta cantiga: a ferocidade do adversário não índio, a movimentação rápida das tribos na selva, o apelo à solidariedade do chamado grupo doméstico e, o que é mais significativo, a conclusão com a matança de outros índios. Essa última frase traz, consigo, uma das chaves para explicar a atitude dos índios, cujo comportamento guerreiro estruturante impedia, com frequência, a formação de alianças com outras tribos. Uma vez que suas relações sociais pareciam ser fundadas na facciosidade (o que se verifica em outros grupos Jê, como os Xavantes), 21 o ataque dos brancos não gerava necessariamente laços de união com os Outros das tribos vizinhas. Ao contrário, verificava-se, nesses momentos, que os conflitos interétnicos podiam se acirrar, como maneira de levar ao extremo a tentativa de solução de um conflito não resolvido com os adversários não índios. A guerra era, ao mesmo tempo, o ponto fraco e o ponto forte desses índios. Tal tendência à facciosidade é também indicada no relato de um administrador colonial, que conviveu longos anos com os índios da região e afirma que em 1810 os Botocudos moveram guerra contra 20
A. Saint-Hilaire (1830), t. 2, p. 166. Sobre as sociedades Xavante, v. os trabalhos de D . Maybury-Lewis (1984) e A. Silva (1998). 21
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outras tribos. Chegando mesmo a se formar, no Jequitinhonha, uma aldeamento "em que se ajuntarão os restos das Naçoens Cammachos, Capoches, Pantimes e Maguari fugindo da sua total destruição pelos Botocudos do Rio-doce". 22 Também no mesmo período os índios Camacãs (de Minas Gerais e Bahia) foram usados pelos portugueses na guerra contra os Botocudos por suas habilidades no uso do arco e flecha. Ao passo que entre os Pataxós (representados na Figura 4) foram achadas cabeças reduzidas e mumificadas de Botocudos (Figura 5), levadas ao Rio de Janeiro como objeto de curiosidade. 23 Os Pataxós aqui retratados estavam nos arredores do rio Pardo em 1817 e combinavam a utilização de seus utensílios tradicionais com instrumentos como machados, o que revela um grau de convivência ou mesmo aliança com setores da população luso-brasileira diante do adversário comum, no caso os Botocudos.
Figura4
22
José Pereira Freire de Moura [1810]. RAPM, II, pp. 31-6. Informação reforçada pelo testemunho de Wied-Neuwied, t. 1, p. 273. 23 Jean-Baptiste Debret. Viagem pitoresca . .. , Prancha 28, n.• 10, "Cabeça de Botocudo mumificada pelos Patachós". O mesmo autor refere-se aos Camacãs que combatiam os Botocudos.
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FiguraS
Ou seja, a investida dos luso-brasileiros causou redução dos terrenos por onde transitavam variados grupos indígenas, levando, por conseguinte, a um acirramento dos conflitos das tribos de Botocudos entre si e com outras etnias que frequentavam o mesmo território, cada vez mais estreito devido à crescente investida das frentes de expansão, situação acirrada durante a Guerra de 1808-1824. A forte impressão causada pela ferocidade dos colonizadores, expressa na cantiga acima, permanecerá na memória deste grupo étnico ainda no final do século XX. A primeira frase da cartilha de educação elaborada pelos jovens professores índios da aldeia Krenak é: "Kraí Unhak Ynhanmo" (O!Ie homem branco bravo!). Os Botocudos também se preparavam para os combates à sua maneira (Figura 6). Eles possuíam três tipos de flechas. Uma, chamada de "ouagicki", era específica para a guerra: tinha a ponta mais alongada e aguda e era encerada, o que lhe dava mais firmeza. Outra flecha era a "ouagicki bacannumock", mais fina, porém feita da mesma madeira do arco, mais resistente: era farpada como um arpão, também encerada, servindo tanto para guerra quanto para caça de grandes e pequenos animais. E havia a flecha chamada "ouagicki nigméran'', utilizada apenas para a caça de pequenos animais. Havia ainda dois tipos de arco: um longo, para as duas primeiras flechas e outro menor, usado sobretudo na pesca e para o aprendizado das crianças. Possuíam também uma vara comprida, utilizada como lança.
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Figura6
Estes índios tinham como armadura a própria pele, de aspecto rijo, bronzeado, curtida pelo sol e caminhadas no mato. Sua pele era espessa e evitava arranhaduras das folhagens e espinhos - mas não lhes protegia das balas dos fuzis, dos facões dos soldados, nem das flechas do inimigo. Wied-Neuwied distinguiu três formas de pintura corporal, baseadas nas tintas negra (de jenipapo) e vermelha (de urucum), a exemplo da maioria das tribos existentes no Brasil (Figura 7).
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Figura 7
Alguns pintavam só o rosto de vermelho, da boca para cima, o que lhes dava uma aparência de que a face estaria maior, inflada, o que poderia ter efeito intimidador - a exemplo das máscaras de monstros usadas tradicionalmente para estes fins em outros povos. Outros, dividiam o corpo em duas partes, de alto a baixo, com traço vertical: metade vermelho, metade preto. Outros, enfim, pintavam o rosto de vermelho e o resto do corpo de negro, menos os braços, antebraços e a perna do tornozelo para baixo, que ficavam sem pintura. Pode-se supor que essas três maneiras de pintar o corpo estariam ligadas a algum tipo de proteção simbólica, ou ainda de pertencimento a clãs, linhagens ou posições na hierarquia da tribo, mas isso não foi devidamente verificado. A preocupação de diversos desenhos de índios neste período, como os das Figuras 6 e 7 (feitos para a viagem de Wied Neuwied), era de caráter etnográfico, isto é, de reproduzir da maneira a mais fiel possível aspectos de sua aparência física e cultura material. Entretanto, também o comportamento dos índios e, acima de tudo, a percepção que os artistas e cientistas tinham deles, aparecem de maneira acentuada em tais imagens. O aumento considerável de ícones sobre os Botocudos corresponde ao período da Guerra de 1808-1824. Estabelecemos assim uma relação entre reprodução da guerra e produção da imagem, entre
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a possibilidade de fixação dos corpos pelas imagens com a possibilidade de domínio ou destruição desses mesmos corpos pela guerra. Ambas provinham do mesmo movimento civilizatório, embora com atitudes diferentes no contato direto com os índios. Qyais os primeiros passos desta guerra? Se o príncipe regente D. João foi o signatário da Carta Régia, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, todo-poderoso ministro português, era o articulador central e o capitão-general de Minas Gerais constituía-se num executor e mentor do conflito, coube também ao governador da capitania do Espírito Santo, Manuel Vieira de Albuquerque Tovar, a tarefa de ser um dos executores iniciais da ofensiva aos índios: ele instalou quartéis e organizou tropas de acordo com as diretrizes traçadas. Em agosto de 1809 Tovar vai à frente de uma expedição com dezenas de soldados subindo o rio Doce, com canoas carregadas de munições, armas e mantimentos. 24 A expedição deparou-se primeiro com os militares da 13! Divisão encurralados numa ilhota, exaustos, depois de terem passado a noite em claro defendendo-se dos ataques dos Gentios. Por todo lugar onde passava, Tovar registrava traços recentes da presença dos Botocudos, mas em nenhum momento foi atacado - o que indica que os índios haviam percebido a superioridade numérica e de armas da expedição e se deram conta de que estavam diante de um elemento novo. A declaração de guerra chegava às tribos. Inspecionando as redondezas através de uma picada no meio do mato, o governador achou um terreno plano, perto da lagoa do Riacho, que lhe pareceu adequado para estabelecer povoação e abrir no futuro uma estrada. Ordenou aos soldados que saíssem da ilhota e deixou-lhes víveres e munições suficientes para se instalarem na área, estratégica. Tovar criou assim um novo Destacamento, que deveria servir de base para outros quartéis. A terra lhe pareceu fértil. "Aquelle Destacamento puz o nome de Linhares", assinalava o governador, que mandou logo construir uma capela. Estava fundada a cidade de Linhares, homenagem a D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Mas para
24 Diário de viagem ao rio Doce pelo governador Manoel Vieira Albuquerque Tovar, abril de 1809. ln: Correspondências dos governadores da capitania e presidentes da província do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN. E, do mesmo personagem, "Navegação do rio Doce". Revista do Instituto Histórico e Geogr4fico Brasileiro, t. 1 (3), pp. 134-8, 1839.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 129 evitar surpresas os membros da expedição de Tovar dormiam nas ilhas ao longo do rio Doce. Durante vários dias o grupo dedicou-se a cortar madeira para construção de barcos, quartéis e armazéns. A destruição da floresta e a perspectiva de urbanização acompanhavam a guerra aos índios. Logo se juntaram a eles os soldados da 12! Divisão, fugidos, pois "o Gentio os tinha perseguido". A numerosa expedição de Tovar voltou a Vitória sem ter combatido os Botocudos, mas deixando as bases para que o embate fosse feito de maneira eficaz. Logo depois da passagem da expedição de Tovar eram erguidos os quartéis de Aguiar e Anadia, sempre visando a "Guerra ao Gentio". Entusiasmado, o governador escreve ao conde de Linhares informando que o quartel que leva seu nome já tinha forja de ferreiro, tecelão, olaria e novas casas não paravam de crescer, com derrubada de matas para plantações de mandioca, milho e feijão. "Em poucos annos sera hua das grandes Povoações do Brasil". 25 Três meses depois de criado o Oliartel de Linhares, já se haviam estabelecido no local, em pleno território indígena, 235 pessoas, sendo 172 livres (77 homens e 95 mulheres) e 63 escravos (58 homens e 5 mulheres). Sabe-se que a criação de núcleos urbanos sempre foi elemento básico para a Conquista: era a cidade se opondo à floresta, como a civilização à barbárie. A floresta capixaba em 1809 vivia em clima do século XVI: Conquista de selvas nativas, guerra contra o Gentio e batismo de lugares até então não colonizados. A capitania do Espírito Santo possuía, em 1816, 76 engenhos e 65 engenhocas- o que era uma quantidade semelhante à dos primeiros tempos da chegada dos portugueses. Mas ao contrário do que o governadorTovar buscava dizer, não se tratava exatamente de colonizadores voltados apenas para atividades agrícolas. Pelo menos o sucessor de Tovar no governo, Francisco Alberto Rubim, não deixaria de assinalar: ''A Povoação de Linhares teve principio com a gente mais ínfima: criminosos e desertores mandados estabelecer naquelle lugar por meos antecessores". 26 A falta de um povoamento colonizador é atestada pelo fato de que, oito anos depois de criada, a povoação contava com 224 habitantes, ou seja, um ligeiro decréscimo demográfico. Em 1810 foi criado um Batalhão de Artilharia de Milícias na mesma localidade. Mas até meados de 1817 a 25
Cf. nota anterior. Ofício de 12-11-1817, Correspondências dos governadores da capitania e presidentes da província do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN. 26
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povoação limitava-se ao acampamento militar e às atividades de subsistência. Linhares era comparável em tamanho a uma aldeia indígena.27 As primeiras investidas das tropas luso-brasileiras contra os Botocudos não foram bem realizadas. Sucede-se da parte dos índios uma série de ataques a fazendas no Espírito Santo, em localidades diferentes. A fazenda Santa Maria foi atacada pelos índios, em bando numeroso. E também os "Assassinatos que tem praticado os Botocudos na Villa de Benevente [atual Anchieta], pondo ali os Povos na mais cruel situação". 28 Em 1817 o Gentio Barbaro atacou uma residência de índios no Qyartel de Benevente, matando seis pessoas. Dois que escaparam testemunharam que os corpos das vítimas foram despedaçados - o que mais uma vez indica a prática de descarnar ou mutilar cadáveres. 29 Era, aliás, a localidade da antiga Missão jesuítica de Reritiba, onde o padre Domingos Monteiro acreditara, dois séculos antes, que os Aimorés estavam pacificados. Ainda na década de 1810 os Botocudos deixaram mortos e feridos na fazenda de D. Ana Inocência (viúva do sargento-mor Antônio Mariano Borges), na localidade de Santa Cruz, no rio Santo Antônio. E foram também registrados ataques simultâneos a propriedades rurais em torno do rio Pardo. 30 A estratégia política dos índios estava clara: o alvo eram as propriedades agrícolas, cerne da ordem econômica e social naqueles territórios. Assim, atiçados por investidas sangrentas, mas ainda senhores do terreno, os Botocudos, sentindo-se acuados pela estratégia da Coroa (que justamente buscava traçar um cerco em torno do território indígena, como já foi visto), responderam com mais força às investidas e passaram, também, à guerra ofensiva- dentro de suas possibilidades e raio de alcance e nos limites de seus conhecimentos da sociedade luso-brasileira. Percebe-se, nos ataques quase simultâneos às fazendas, atitude articulada dessas tribos que, em resposta aos ataques militares revigorados com a Carta Régia de 1808, traçaram sua estratégia de combate ao tentarem destruir a principal base social da colonização. Mais uma vez os Botocudos tentavam a Reconquista de seus territórios. 27
A Saint-Hilaire (1974), pp. 90-2. Livro da capitania do Espírito Santo, correspondências de 28-2-1810 e 10-101810, AHE 29 Ofício de 16-2-1817, Série Accioly, livro 67, p. 34, Apes. 30 Guerra aos Botocudos. Carta de Balthazar da Silva Lisboa ao conde de Linhares, 1810, Lata 109, Doe. 14, n.0 1, Arquivo do IHGB. 28
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Algumas tribos atacam pequenas povoações. Grupos de Boto-· cudos chegaram em 1808 até a freguesia do Serro e em Carapina, nos arredores de Vitória - mas às portas da capital foram rechaçados, num verdadeiro massacre, obrigando-os a recuar para o rio Doce. 31 Tovar envia carta para o conde de Linhares dando conta do clima de pânico entre os moradores luso-brasileiros do Espírito Santo depois da contraofensiva dos índios. O governador chega a advertir que "em breves dias toda a Capitania sera atacada e destruhida" e que "toda tropa e habitantes tem desgostado e afligido a ponto de todos quererem dezertar". 32 Talvez a autoridade local exagerasse no alarme como forma de obter mais recursos, mas se suas demandas fossem infundadas, poderiam ser facilmente desmascaradas. No momento inicial da guerra ofensiva aos Botocudos os atacantes chegaram a temer pela derrota e pela Reconquista indígena em toda a capitania, onde ainda era frágil a presença do colonizador. A mobilização foi impressionante e durante anos o Espírito Santo transformou-se num campo de guerra. O governo local passou a exigir que a população masculina civil vivesse em constante estado de mobilização bélica. Todos os moradores eram obrigados a praticar treinamento militar e a se incorporarem ou contribuírem às tropas regulares na luta contra os Botocudos. A situação gerava descontentamentos, pois desviava os colonos de suas atividades agrícolas ou comerciais para o treinamento militar, para os quais muitos não tinham aptidão ou não queriam correr o risco. Essa mobilização guerreira da população civil durou pelo menos oito anos, pois em 1817 foi presenciada pelo estupefato viajante francês Auguste de Saint-Hilaire. 33 Era uma guerra travada dentro do território brasileiro, simultânea, aliás, à efêmera República de 1817 em Pernambuco e capitanias vizinhas. As prisões capixabas ficaram repletas de índios durante a Guerra de 1808-1824. Na Vila Nova de Almeida, 1815, dois índios fugiram carregando armamentos, o que bastou para que o juiz Vicente Pereira emitisse ordens para "prender quantos lndios achou nesta Vila a torto e direito, [o] que encheo a cadea". 34 As condições de cárcere 31
Braz da Costa Rubim. "Memorias historicas e documentadas ... ", pp.
271. 32
Ofício de 18-4-1809, Correspondências dos governadores da capitania e presidentes da província do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN. 33 A. Saint-Hilaire (1974), cap. I. 34 Ofício de 20-4-1815, Série Accioly, livro 67, p. 9, APES
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eram desumanas e até as autoridades admitiam que os indígenas passavam fome na cadeia de Guarapari, como nessa correspondência dirigida ao governador Rubim: Os Índios que ficão ao contrario na Cadea desta Villa para serem remetidos a Va. Sa. Sofrem algumas vezes fome, não só pela demora, que podem ter na mesma enquanto se apronta a sua condução [... ] como pela grande viagem que tem a fazer para essa Villa. 35 Embora os Botocudos fossem constantemente acusados de canibalismo, o certo é que passavam fome quando encarcerados na sociedade luso-brasileira. Indica-se também que os índios aprisionados eram remetidos para Vitória. Os conflitos não ocorriam apenas com os índios ou entre estes. O facciocismo e a autofagia política estavam presentes entre os guerreiros luso-brasileiros. Arvorado em chefe da guerra, Tovar se transforma no todo-poderoso homem da província: além de dispor da população civil para o treinamento militar, prende militares seus desafetos, persegue e ameaça os notáveis da política local que questionam seu domínio ou reclamam de seus atos. Chovem cartas e reclamações para a Corte. A crise política agrava-se e Tovar acaba demitido do cargo. O governador interino, Luís José Pereira, indica que a Guerra não tinha trégua ao relatar que em Guarapari os Botocudos mataram duas índias "mansas", cujos corpos foram esfolados. 36 A crer nesse relato, os índios em guerra estariam atacando o adversário em suas diversas faces, procurando também destruir a presença dos Conquistadores no interior dos grupos indígenas, consubstanciada na incorporação dos "mansos" à sociedade luso-brasileira. Tal gesto parece ser também uma advertência interna entre as tribos, visando fortalecer o elo entre os índios e ameaçando os que se passavam para o lado do inimigo. Nesse momento e local predomina, entre luso-brasileiros e índios, o comportamento guerreiro. Napoleão Bonaparte e os Botocudos eram inimigos simultâneos do Reino português. Qyando chega a Vitória a notícia de que o 35
Ofício de 7-6-1815, Série Accioly, livro 67, p. 9, Apes. Ofício de 30-3-1809, Correspondências dos governadores da capitania e presidentes da província do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN. 36
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Exército francês fora expulso de Portugal, o combate aos índios é · momentaneamente interrompido para os festejos. Entretanto, a notícia mais alarmante na capitania nesse momento, agosto de 1809, era a de que quatro soldados haviam sido mortos pelos Botocudos no Destacamento de Piraquê. E para celebrar a derrota do inimigo (na Europa) houve te-déum com a presença do Clero, da Nobreza e do Povo capixabas, em que não faltaram aclamações e vivas a essa nova Restauração portuguesa do outro lado do oceanoY A Guerra de 1808-1824 desencadeia uma série de mudanças importantes entre as tribos de Botocudos. Uma delas é o movimento crescente de remessa desses índios aos núcleos urbanos, sobretudo para a capital do império, como bárbaros conquistados. Por vezes eram prisioneiros de guerra, ou então outros que se rendiam ou que buscavam aproximação pacífica para tentar escapar à violência dos combates. Mas de qualquer maneira eram moradores das selvas que se dirigiam aos espaços urbanos. Ainda em novembro de 1808 sabe-se de dois Botocudos capturados no Espírito Santo e levados para o Rio de Janeiro. A tribo deles fora dizimada pelas tropas do governadorTovar, que preservou a vida apenas de "três pequenos", dos quais dois remetidos ao Rio de Janeiro, onde ficaram sob a custódia da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Por pedido de D. João, "que se dignou tomallos debaixo de sua especial Proteção", foi solicitada ao Real Erário a quantia de 120 réis diários para despesas com esses índios. 38 É de imaginar o trauma e a dificuldade de adaptação de jovens que viram os familiares serem mortos e em seguida serem levados por seus assassinos para instituições sociais completamente diferentes das que conheciam, sendo obrigados a viver numa cultura para eles estrangeira - e inimiga. Outro registro indica que Botocudos, vindos desta vez de Minas Gerais, estavam em 1811 sob os cuidados do coronel Francisco Manuel da Silva e Melo, da mesma Secretaria dos Estrangeiros e da Guerra, que solicitava ao Real Erário a diária de 400 réis para cada índio, com a obrigação de sustentar-lhes (alimento, roupas, etc.) e cuidar de sua educação. 39 Observe-se que a diária aumentara mais de
37
38
Ofício de 6-8- 1809, idem, ibidem.
L ivro da capitania do E sp frito Santo, correspondência de 19-11-1808, AHE. 39 Livro da capitania doEsp frito Santo, correspondências de 22-7 e 10-10-1811,
AHE.
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seis vezes em relação ao pedido anterior, o que sinaliza que tomar conta de índios poderia ser negócio tão rentável quanto ter escravos de ganho, por exemplo. A tutela tornava-se lucrativa ao tutor. O próprio conde de Linhares solicitou ao governo de Minas um inventário das aldeias indígenas "donde se tiravão os Indios, que se achão empregados no Real Serviço indicando se he praticavel que sem vexame maior se possão tirar mais alguns para os escaleres das Fortalezas, onde com effeito há grande precisão de tal gente". 40 Do mesmo modo, o marquês de Aguiar ordenaria às autoridades mineiras o envio de seis índios da aldeia de São Lourenço para servirem no Arsenal Real do Exército.41 Como se vê, havia uma política oficial e deliberada de aproveitar a guerra para incorporar os índios ao serviço militar luso-brasileiro. Entretanto, a chegada desses "troféus de caça" poderia causar mal-estar. É o que parece ter sido o sentimento no Palácio do Rio de Janeiro. O governador capixaba, Tovar, enviara dois presentes a D. João: um amostra de café finalmente transportado pelo rio Doce e uma "Selvagem Boticuda". O príncipe regente agradeceu o café, felicitou o êxito no combate aos "barbaros", mas condenou "actos violentos e despoticos" - o que indica que o estado físico da índia devia ser deplorável. 42 Os membros da Corte preferiam não sujar as mãos no sangue da guerra, deixando a tarefa para os guerreiros nas frentes de combate. Reforçando este contraponto entre a sensibilidade cortesã dos grupos dirigentes e os embates que ocorriam sob orientação oficial, vemos que um certo João do Monte da Fonseca recebera elogio do governador da capitania de Minas Gerais como "hábil e valoroso", pois matara treze Botocudos e apreendera número ainda maior deles. 43 Além do café (estímulo da crescente ocupação das terras na região Sudeste), havia outras buscas de riqueza na terra dos índios. 44 Em 1810, aproveitando o ímpeto da guerra, uma expedição chefiada por José Pereira Freire de Moura partiria em busca da Lagoa Dourada. O chefe da empreitada guardava um roteiro elaborado 40
Livro da capitania de Minas Gerais, correspondência 30-1-1810, AHE. Livro da capitania de Minas Gerais, correspondência de 28-9-1815, AHE. 42 Livro da capitania do Espírito Santo, correspondência de 13-11-1811, AHE. 41
43 44
RAPM, III, p. 1077.
Sobre a intensa tomada de terras indígenas para a produção cafeeira no Sudeste brasileiro, v. M. Sant'anna Lemos. O índio virou pó de café?. ..
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por um primo de seu pai, José Roiz Betim, que ainda era vivo na ocasião. Betim participara da expedição do bandeirante paulista José de Sousa Caldas, em meados do século XVIII e afirmava que, chegando à tal Lagoa, os bandeirantes recolheram de suas águas e dos ribeirinhos ao redor meia arroba de ouro em folha, coletados de maneira rudimentar, com pratos de madeira ou só com as mãos. Betim, que já devia ter idade avançada, guardara de memória o trajeto, um tanto impreciso: seguia-se o rio Jequitinhonha até seu fim, continuava-se por mais três dias de viagem, encontrava-se uma tromba de serra, depois outra mais alta, a qual não se devia subir, mas acompanhar, com "a cara para o Norte". Era preciso percorrer um total de 27 dias nas matas beirando a serra chamada dos Aimorés. Em 1810 sabia-se apenas que a Lagoa Dourada deveria estar em algum ponto entre Porto Seguro e o vale do Jequitinhonha ... Mas o que essa expedição de Freire Moura encontrou, no distrito de São Domingos, foi um território exposto "às invazoens dos Botocudos", que impediam assim a exploração das fortunas almejadas. 45 Com o tempo o movimento de índios em direção à capital do império foi aumentando. O índio Inocêncio, em 1820, aparece em Vitória acompanhado de outros doze Botocudos que se dirigiam à Corte, "por causas que ele explicará a V. Excia", adiantava o governador do Espírito Santo ao ministro Tomás Vilanova de Portugal. 46 Por essa época o conde de Linhares já falecera e corria à boca pequena que sua morte fora por envenenamento: são as possíveis autofagias cortesãs. Ocorre que esses índios estavam nus e o governador capixaba tratou de pedir verba suplementar para poder vesti-los, evitando escândalos entre os cortesãos. De qualquer maneira, há a indicação de que esses índios, por intermédio de um porta-voz, pretendiam negociar com a Corte, solicitar algum tipo de benefício ou proteção caracterizando assim a existência de uma relação que buscava negociar pela sobrevivência, diferente da guerra ofensiva. Na mesma época o governador do Espírito Santo notificava ao Palácio do Rio de Janeiro que passava por Vitória o alferes Julião Fernandes Leão, então comandante da 7." Divisão de Minas Gerais, 45 José Pereira Freire de Moura. Exploração no Jequitinhonha [1810]. RAPM, II, pp. 31-6. 46 Ofício de 13-7-1820, Correspondências dos governadores da capitania epresidentes da prov íncia do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
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"conduzindo trinta e tantos Indios, a maior parte Botocudos, dos quaes elle tem domesticado pelos meios da brandura e docilidade". 47 Julião seria logo promovido a coronel e teria atuação de destaque, durante o Império, no contato com os Botocudos. Aqui não seriam prisioneiros de guerra, mas exemplo de índios pacificados ou, mais precisamente, "domesticados", embora também pressionados pela guerra existente. Essa presença de Botocudos na Corte pode não ter sido muito significativa do ponto de vista demográfico, nem para as tribos e muito menos para a capital brasileira. Muitos deles pareciam estar apenas de passagem. Porém, a importância dessa movimentação, que se intensifica com a Guerra de 1808-1824 e com a chegada da Corte portuguesa no Brasil, exprime a força de atração do polo centralizador de poder implantado no Rio de Janeiro. Levados neste primeiro momento como troféus ou atraídos em busca de armistício, estes Botocudos eram recebidos como uma espécie de povo guerreiro que começava a se submeter ao domínio do império luso-brasileiro. Curiosidade havia alguma, mas não ainda os olhares mistos de espetáculo e curiosidade-científica, que só começaria a se acentuar entre o público urbano décadas depois. Entretanto, as viagens serviam para aplacar alguma curiosidade em torno dessa tribo legendária e até então praticamente desconhecida pelas populações urbanas. Vê-se ainda que cabia aos militares e à Secretaria da Guerra, além do combate, uma improvisação de política indigenista, na qual militares escravizavam ou se ocupavam dos índios sobreviventes. E as autoridades interessavam-se também na inclusão ao serviço militar, na preparação de índios como mercenários de guerra a serem usados contra suas próprias tribos, como ocorrerá alguns anos depois. Em torno da guerra havia também a perspectiva de testar a adaptação de tais índios não apenas nas casernas, arsenais, escaleres e outros serviços militares, mas como mão de obra em diferentes trabalhos urbanos, sobretudo obras públicas. Sem falar das tentativas de incorporá-los à sociedade por meio da educação, quando os que eram trazidos serviriam como uma espécie de balão de ensaio para uma incorporação progressiva. Havia, pois, movimentos dos dois lados: dos índios, que buscavam canais de intermediação como estratégia negociada de sobrevivência e dos luso-brasileiros tentando dominar 47 Ofício de 16-1-1821. Correspondências dos presidentes da província do Espírito Santo ao Ministério do Reino e do Império (IJJ9), AN.
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inimigo antigo e obter novas fontes de poder militar, de mão de obra e de predomínio civilizador. Mas a ida de Botocudos à cidade imperial também poderia ter um impacto pedagógico (no sentido amplo) para as tribos: os índios que empreendiam essa viagem presenciam pela primeira vez, com os próprios olhos, a dimensão de uma cidade grande e da sociedade que se desenvolvia após a chegada da Corte portuguesa - que não se limitava às frentes de expansão e pequenos aglomerados urbanos que lidavam diretamente com os grupos indígenas. A província do Rio de Janeiro tinha cerca de 230 mil habitantes e pelo porto da capital passaram, em 1810, 1.634 navios portugueses e de outros países. O impacto desta visão de uma metrópole em plena expansão pode ter alterado a própria concepção que os Botocudos tinham sobre seus adversários luso-brasileiros e sobre a amplitude de sua presença no território. Os índios que voltavam da capital certamente traziam esse impacto e essa discussão para o interior das tribos. Os grupos de Botocudos que, nos anos subsequentes, passam a buscar convivência pacífica com as frentes de expansão, podem ter chegado a tal conclusão a partir da visão que iam adquirindo sobre a amplitude da presença dos colonizadores muito além das fronteiras dos territórios tribais. A estratégia desencadeada pela ofensiva de 1808 não dera os resultados fulminantes esperados pela Coroa nos três primeiros anos. Os Botocudos estavam acuados, sofreram baixas e viram surgir clarões de colonização no interior de seus territórios. Porém, além de não dizimados, continuavam ocupando parcelas importantes da região e até reagiram de forma violenta aos ataques. A demissão de Tovar do governo do Espírito Santo conduz à administração da capitania um capitão de mar e guerra da Armada Real, Francisco Alberto Rubim. Entretanto, a formação de militar não o leva a continuar a guerra na maneira até então predominante. Rubim toma novas iniciativas em relação aos Botocudos. Começa a haver uma tendência de mudança de atitude das autoridades, que não se limitam mais ao confronto. A guerra não fora abandonada, nem a mobilização forçada da população civil capixaba. Mas para vencer os índios, a administração Rubim começava a lançar mão, também, de ações que visavam o desenvolvimento econômico mais imediato. O progresso da região era não apenas objetivo final, mas meio essencial para a submissão dos índios.
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Para essa área ainda repleta de "índios bravos" foram enviados cinquenta casais vindos dos Açores para colonizar a região em 1813. A localidade onde eles se instalaram deu origem ao povoado de Viana no norte do rio Santo Agostinho. As frentes de expansão acossavam os Botocudos, mas estes também se impunham. Para as autoridades locais, os colonos vindos das ilhas dos Açores corriam risco, mas o "perigo que temem do Gentio he o que geralmente temem todos os Lavradores". 48 Ou seja, verificava-se aí um processo (que se repetiria em outras províncias no século XIX) de substituição da presença indígena pelos imigrantes europeus- jogando uns contra os outros. E, com o predomínio dos colonos de origem europeia, cria-se memória e identidade regionais que buscam silenciar os traços da presença indígena e de seus descendentes, como ocorreu no Espírito Santo e em Santa Catarina, por exemplo. No ano seguinte, 1814, começa a construção de uma estrada entre Vila Rica e Vitória, velho sonho dos colonizadores. As obras foram conduzidas pelo capitão Inácio Pereira Duarte Carneiro (mais tarde se tornaria governador do Espírito Santo). O trajeto teria 32 léguas e começaria nas cachoeiras do rio Santa Maria, nos arredores da capital capixaba, indo mato adentro até o destino almejado. Em pleno território indígena. Em seus relatórios, o capitão Carneiro narraria que os trabalhadores estavam o tempo todo "cheios de um terror pânico". Para surpresa geral não encontraram nenhuma hostilidade e a obra pôde ser concluída. Mas ao que parece a estrada não trouxe os efeitos esperados ao progresso da região. Num relatório de dezessete anos mais tarde, o governador capixaba Gabriel Getúlio Monteiro de Mendonça afumaria que o caminho se encontrava abandonado, coberto de mato, praticamente não utilizado: apenas três boiadas tinham se aventurado de Minas ao Espírito Santo durante todos esses anos. 49 Ao fazer um balanço no fim de seu governo, em 1818, Francisco Rubim reconhece que a questão indígena ainda estava longe de ser equacionada pelos colonizadores. Ele ainda vê "os povos de toda a 48 Ofício de 11-6-1822. Correspondências dos presidentes da provfncia do Espfrito Santo ao Ministério do Reino e do Império (IJJ9), AN. 49 Francisco Alberto Rubim. "Memoria estatística da provincia do Espírito Santo .. .", pp. 180-4.
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Capitania com horror ao lugar [distrito de Rio Doce] por causa dos insultos e perseguições do Gentio bravo". Depois de uma década de guerra ofensiva, as autoridades reconheciam as limitações. Os luso-brasileiros não haviam exterminado os Botocudos e estes ainda apareciam como perseguidores. Os índios tinham atuação política, uma vez que forçavam alteração das estratégias de seus oponentes. Isso explica a mudança da linha política efetuada pelo governo Rubim. No mesmo relatório ele valoriza "medidas pacificas e vigilantes", o incentivo à agricultura, ao comércio e a realização de melhorias urbanas. No tocante aos índios, ele destaca a "persuasão" e a "valente trincheira que formou em torno da povoação de Linhares". 50 Essa trincheira era impressionante: não só o núcleo urbano, mas as plantações e mesmo pastos para gado que circundavam Linhares foram literalmente entrincheirados numa extensão de mais de uma légua com troncos, galhos e vegetação espessa arrancados e arrumados ("entrincheirado de mataria groça derribada"). Só assim era possível manter uma cidade no interior do território indígena. Ou seja, mais do que atividade bélica isolada, o governador Rubim entendia que só erguendo fronteiras da civilização seria possível enfraquecer a resistência indígena e instalar um centro urbano no local. A própria estratégia de pacificação tinha como fim desarmar os Botocudos evitando os combates que, afinal, eram desgastantes também para os guerreiros da Coroa. É importante assinalar: algumas vozes surgiram contra essa guerra ofensiva, embora isoladas. E na maioria das vezes, significativamente, partiam de estrangeiros (não luso-brasileiros). O que demonstra como era uma questão crucial e difícil de ser tratada pelos que se viam diretamente envolvidos na luta da "civilização" contra a "barbárie". A visão predominante entre portugueses da Europa e da América (como então se denominavam os nascidos no Brasil) era a de perceber os índios como inimigo a destruir ou obstáculo a superar. Era mais fácil para alguém vindo "de fora", isto é, de outro país, ter uma percepção diferente desse processo. Um dos primeiros e mais contundentes críticos da guerra ofensiva contra os Botocudos foi o engenheiro germânico Wilhelm Ludwig voo Eschewege, futuro barão do mesmo nome: militar, cientista, 50 Ofício de 5-12-1818, Correspondências dos governadores da capitania epresidentes da prov íncia do Espírito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN.
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administrador público e um dos pioneiros da metalurgia no Brasil. Em ofício de 1811 dirigido de Vila Rica a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Eschewege mostrou abertamente sua indignação: "Civilização com espada na mão he contradição". 51 Conhecedor do terreno, Eschewege percorria os sertões de Minas Gerais e Espírito Santo em missões profissionais, sobretudo de pesquisas mineralógicas, acompanhado do militar francês Cuido Marliere, que se ocupava do contato com as tribos Puris e Coroados. Eschewege foi dos primeiros a registrar por escrito uma apreciação que contradizia a legenda de ferocidade em torno dos índios do rio Doce. Para ele o Botocudo é "suscetível de sentimentos humanos" e a atitude dos brancos "não deveria ser de Conquista, mas sim de conservação da amizade". Mais do que defensor da paz, Eschewege mostrou capacidade de compreensão e aceitação do Outro, das diferenças culturais, afirmando no mesmo ofício: O lndio tem os seos costumes, tem sua Religião, seja qual ella for, he muito natural que elle [a]defenda com a sua vida, em quanto não está persuadido do contrario. Nos contatos que travou com essas tribos, ele demonstrou esta abertura à cultura dos índios tentando se colocar do ponto de vista deles, expressando suas visões dos homens brancos: [... ] até os Botocudos estão persuadidos que nós somos Botocudos e Antropophagos. Esse testemunho assemelha-se ao que fora registrado pela índia Margarida, no tempo dos Aimorés no século XVII, que enxergava no vinho português o sangue dos índios mortos. Na verdade, como já foi visto, essa percepção de um "canibalismo" praticado pelos luso-brasileiros nos parece coerente diante dos atos desses guerreiros da civilização ocidental, que incluíam mutilações de cadáveres e coleções de pedaços dos corpos dos índios como troféus de guerra. E o termo "Botocudo" ganha aqui seu significado mais forte e é aplicado tanto aos índios quanto a seus adversários. 51 Copia de huma carta feita pelo sargento mor Eschewege acerca dos Botocudos e das divisões da Conquista, com notas pelo deputado da junta Militar, Matheus Herculano Monteiro, 1811, 8, 1,8, n.• 166, f. 135, FBN/MSS.
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O engenheiro Eschewege, assim, parecera compreender o perturbador jogo de alteridades desencadeado por esse conflito entre os luso-brasileiros e os Botocudos: ele dizia que se os atos de violência desta guerra "são capazes de reduzir uma Nação civilizada ao estado de barbárie, também o effeito contrário farão com uma Nação bárbara". Com lucidez, ele alertava que o progressismo desenfreado poderia levar as nações que se queriam civilizadas ao estado de barbárie. Por isso, em vez de pregar o extermínio indiscriminado dos povos indígenas, Eschewege acreditava que só os chamados métodos pacíficos, envolvendo diálogo e paciência, poderiam resolver essa guerra entre Nações de civilizações distintas. E previa que apenas a guerra ofensiva não resolveria a questão indígena do rio Doce. O futuro lhe daria razão nestes pontos. Eschewege assinala que estas tribos denominavam a si mesmas de Arari. Ainda em 1811, ocorreram outras tentativas de fixação de colonos nas áreas dos Botocudos. O coronel Bento Lourenço Vaz de Abreu e Lima fez uma viagem pelo rio Mucuri, a mando do conde da Barca, visando fundar uma cidade. Foi atacado pelos índios e não levou adiante a empreitada como desejaria- mas de sua presença resultou a instalação de uma fazenda, uma serraria e um quartel para proteger os moradores. No mesmo ano o colono João Filipe de Almeida Calmon teve mais habilidade. Começou a instalar uma fazenda nos arredores de Linhares, mas levava consigo um grupo de quarenta homens bem armados e municiados. Logo que os trabalhos começaram eles foram atacados por 150 Botocudos, reagiram, matando um índio. Em seguida, passaram a fazer muito barulho com as armas para intimidar, mas não atacaram mais as tribos e passaram a lhes oferecer presentes e acenar com uma convivência pacífica. Usando esse estratagema, Calmon conseguiu conquistar a confiança e ter uma convivência pacífica com os índios, sendo durante muitos anos o único fazendeiro da região. Logo ele construiu engenho, e tinha 25 pessoas trabalhando em sua propriedade. Anos depois da morte de Calmon, os Botocudos ainda se lembrariam dele como alguém que não buscou massacrá-los sistematicamente, ao contrário de outros fazendeiros. A fazenda de Calmon se transformaria num ponto de encontro entre os Botocudos e a sociedade luso-brasileira durante esses anos cruciais. 52 52
A. Saint-Hilaire (1974), p. 92.
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Também em 1811 chega ao local o militar Julião Fernandes Leão, que por longos anos seria encarregado de lidar com esses índios. Lentamente, o cerco começa a se apertar em torno das tribos que ainda resistiam. A situação do contato com os Botocudos na Bahia era diferente do que se passava no Espírito Santo e em Minas Gerais, onde a guerra ocorria de maneira violenta pelos luso-brasileiros. Até porque a Bahia não se incluía na região em torno do Rio de Janeiro que crescia em importância econômica e administrativa. Um dos elementos para essa situação diferenciada foi a atuação em terras baianas do capitão João da Silva Santos, também fazendeiro, que parece ter tido convivência pacífica com os Botocudos. Ou seja, os índios encontraram um luso brasileiro "manso" e conseguiram pacificá-lo. É o próprio capitão quem atesta: "[ ... ] no anno de 1786 em que o dito gentio me sahio de paz pela primeira vez [ . . .]". Esses primeiros índios que lhe saíram de paz (ou seja, a iniciativa coube a eles) procuraram o capitão em sua fazenda. O chefe deles se apresentou como cabo Tomé e, para comprovar a patente, apresentou papel assinado por D. Manuel, ex-governante de Vila Rica, onde se lia: "Ao cabo Thomé da nação do gentio barbaro, deixarão andar esquadrinhando com sua patrulha, as cabeceiras do Ribeiro Sancta Barbosa". Ou seja, o grupo indígena recebera um salvo-conduto, desde que assumisse a condição de patrulha das forças portuguesas-oque implicava, no mínimo, não hostilizar os colonos. Em contrapartida se delimitava um território onde os índios pudessem transitar- o que era um sinal de paz, mas ainda distante de reconhecer aos índios a posse do território. 53 Em 1798 os mesmos índios voltaram à fazenda de João da Silva Santos, pediram (e ganharam) machados, foices, facões e facas - o que comprova que já em fins do século XVIII os instrumentos de ferro eram introduzidos entre os Botocudos. Por essa época um escravo negro desse fazendeiro fugiu. Capturado e conduzido de volta ao dono em 1800, este constatou que o fugitivo ficara entre os Botocudos, onde aprendera a língua e travara bom relacionamento. O capitão então pode saber que os Botocudos estabelecidos na latitude 18°,47 e longitude 323°,0 eram em torno de 2.000, dados confirmados pelo "língua" (índio intérprete) Antônio José. 54 Temos aqui outro exemplo de integração, individual, entre negros e Botocudos. Como 53 54
Manuscritos Arq. 1.1.20 e Arq. 1.1.19, Arquivo do IHGB . Ibidem.
1808-1824: O IMPÉRIO CONTRA OS "ANTROPÓFAGOS" 143 já foi visto, havia relações de conflito e repulsa, mas também possibilidades de aproximação, sendo, por isso, impossível ftxar um comportamento de tipo "racial" entre negros e Botocudos. Por esse tempo, havia membros das elites culturais e administrativas baianas, como Baltasar da Silva Lisboa, que eram adeptos dos "meios brandos" para a submissão dos índios. Foi então que o governador conde dos Arcos encarregou a tarefa da pacificação ao mesmo capitão João da Silva Santos, que procurou usar como intermediários índios "mansos" e o seu escravo negro para chegar aos Botocudos "bravos". Por ordem do governador, o capitão-fazendeiro João da Silva Santos realizou uma expedição entre junho de 1802 e abril do ano seguinte. A expedição percorreu o litoral sul da Bahia e internou-se no sertão, passando pelos rios Belmonte, Grande, Jequitinhonha e Arepuaí (Araçuaí?), indo até a barra do rio Doce na fronteira capixaba. Nos arredores de São Mateus (povoado com cem casas de telha e onze de palha) o capitão enviou índios "mansos" para procurar as tribos da região, que, segundo ele, depois dos conta tos estabelecidos, "passaram a viver em paz comigo". Embora seja importante guardar a sutileza do militar e fazendeiro- a paz era com ele e não com a sociedadea medida parece ter tido melhor efeito, evitando que o impulso guerreiro da Coroa em 1808 tivesse maiores consequências no local. Mas a Bahia não estava isenta de conflitos com os Botocudos. Carta Régia de D. João ao conde dos Arcos em 1813 ordena a criação de um destacamento de vinte homens para "cohibir qualquer insulto que intentava fazer o Gentio Botocudo, que habita aquellas imediações". As queixas partiram do ouvidor da comarca de Porto Seguro, José Marcelino Cunha e referiam-se à localidade de Arcos, na ilha da Cachoeirinha. Note-se que o documento usa o termo "intentava", intencionava, o que indica um clima de tensão ou hostilidade- mas não fala em conflitos armados. A relação com os Botocudos na Bahia recebeu reflexos do ímpeto guerreiro da Coroa. Porém, nesta época de lutas tão cruentas entre Botocudos e a sociedade luso-brasileira, parece ter predominado uma certa trégua na Bahia, como testemunharia o viajante Wied-Neuwied. 55
55 lbidem. Carta Régia dirigida ao conde dos Arcos, governador da Bahia, autorizando o levantamento de um destacamento de vinte homens na Povoação dos Arcos, nessa capitania, para proteção dos colonos aí estabelecidos e repressão do provavel abuso dos vizinhos Botocudos, Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1813, II-33, 29, 98, FBN/MSS. M. Wied-Neuwied, cit., t. 1, pp. 274-5.
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Em 1816 D. João assinava outra Carta Régia que não descartava a intenção de extermínio, mas fazia um certo recuo na ofensiva, ou pelo menos acrescentava uma nuance à política oficial que se mostrara tão agressiva. Sem abandonar a cantilena contra a "feroz e barbara raça dos índios Botocudos", o monarca fazia uma concessão, decisão talvez influenciada pelas sugestões vindas de um Eschewege (que gozava de prestígio na Corte), pela política do governador Rubim, ou no caso da Bahia. Baseado, pois, na diversidade de experiências, D. João admitia na Carta Régia de 1816 que os Botocudos podiam "encontrar os attractivos de civilização, sendo convidados com brandura ao reconhecimento e sujeição às minhas leis, e castigados promptamente os que cometterem hostilidades". 55 Como já foi visto, continuavam a se esboçar duas linhas diferentes para conduzirem ao mesmo objetivo, que era submeter os índios. Uma, pela destruição direta, pela atividade bélica. Outra, implementando um certo progresso econômico na região e procurando incorporar os índios com "brandura". Com as Cartas Régias de 1808 e 1813, a Coroa optara exclusivamente pela primeira tendência. Com a de 1816, admitia as duas possibilidades. Difícil parecia ser abrir mão da índole guerreira, tão arraigada na tradição das armas e brasões da ocidental praia lusitana... Como os Botocudos, em sua maioria, também não pareciam dispostos a depor as armas, as hostilidades continuariam. A Guerra decretada em 1808, com ares apocalípticos, serviu para que os colonizadores ganhassem mais espaço na região, mas não produziu os resultados definitivos esperados. Diversas dificuldades apareceram para as tropas luso-brasileiras. Em primeiro lugar, aquilo que é elementar em qualquer combate, especialmente numa luta de escaramuças à maneira de guerrilhas: o conhecimento do terreno, no qual os índios levavam vantagem. Pesava também o tradicional sentimento de medo diante da legenda de invencibilidade de tais índios, arrefecendo o ânimo dos soldados, que não lutavam com o afinco de quem defende as próprias terras. O fato de que as tribos de Botocudos vivessem fracionadas em bandos pequenos ou médios dificultava um ataque conjunto das tropas organizadas - impossibilitava uma ação militar coordenada e unificada dentro dos padrões bélicos ocidentais. O nomadismo destas tribos continuava como entrave ao bom êxito 56 Francisco Alberto Rubim. "Memoria estatística da província do Espírito Santo . . .", p. 189.
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das tropas regulares - que dificilmente tinham alvo fixo para atacar. A própria organização social dos Botocudos (e seu desconhecimento pelos adversários) era até então um trunfo dessas tribos. Mais do que falar de vencidos ou vencedores, neste momento, parece adequado perceber que a partir daí estabeleceu-se um novo equilíbrio de forças, abriu-se outra etapa de relação entre essas tribos e a sociedade que as cercavam. Os Botocudos saíram enfraquecidos, mas não dizimados. Houve muitas mortes e demarca-se nova fase do contato com tais índios, mas não ainda o fim do longo conflito. O comportamento das tribos foi diverso. Alguns grupos foram derrotados, com muitos mortos e até desapareceram. Outros acabaram aceitando convívio intermitente. Sem esquecer os que se incorporaram aos postos indígenas e à vida da sociedade, como agregados, formando famílias, trabalhando em instituições públicas ou, ainda, como escravos. E alguns continuaram arredios, embrenharam-se nas matas. Mas de qualquer maneira abriu-se à força caminho para uma aproximação com os Botocudos - o que implicava mais conhecimento sobre eles, mais controle e importantes alterações na vida destes povos. A violência sangrenta da guerra abriu caminhos para as Luzes do progresso e da ciência (seria, a seguir, o tempo onde se forjavam a Independência, a modernidade política e os primeiros esforços de construção nacional do Brasil), dando continuidade à tarefa de decifrar e dominar esses grupos indígenas até então arredios. A ofensiva do "Reino Unido de Portugal e do Brazil e Algarves d'aquem e d'alem Mar em Africa, de Guine e da Conquista, Navegação, Commercio em Ethiopia, Arabia, Persia e da India" abalou mas não destruiu as nações de Botocudos. Daí por diante, o desafio estaria colocado para o Império do Brasil. Vale assinalar que o estudo dessa guerra contra grupos indígenas no Espírito Santo e Minas Gerais no começo do século XIX permite reflexão sobre elementos importantes para a compreensão das relações dos índios com a sociedade luso-brasileira, que em breve se transformaria em brasileira. Apesar da guerra de extermínio oficialmente decretada e praticada, das múltiplas violências e dos preconceitos existentes contra as populações indígenas, elas deixavam sua marca na sociedade, não só no âmbito das políticas oficiais e das atividades administrativas e bélicas, como é evidente, mas também de forma cultural e social.
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A guerra significava confronto, mas havia encontro e convivência desses diferentes grupos humanos num mesmo espaço geográfico, onde as condições de isolamento poderiam levar a aproximações, voluntárias ou não. Veja-se a curiosa experiência do soldado Raimundo Ferreira de Araújo, que desertou da 7.• Divisão do Rio Doce para não ser punido por falta grave de disciplina e acabou refugiando-se numa tribo de Botocudos. Conviveu entre eles por muitos anos, abandonou as roupas, passou a pintar o corpo de urucum e jenipapo e a cortar o cabelo à moda dos índios. Com a morte do chefe do grupo, Raimundo tornou-se cacique e acabou reaparecendo no quartel, foi perdoado e promoveu a aproximação da tribo com as frentes de expansão, levando os índios a construírem casas, praticarem agricultura, isto é, a ficarem sedentários e conviverem permanentemente com a sociedade, integrando-se a elaP O soldado Raimundo foi, assim, um agente de intermediação, ainda que de maneira informal e não prevista. Além dos soldados, essta aproximação entre índios e não índios era marcante por meio de uniões matrimoniais. Houve por exemplo situação constrangedora envolvendo Manuel Álvares Tomé, que teve seu ingresso vetado na Irmandade da Ordem Terceira do Carmo, em Vitória, "por ser filho de huma Mãy que tem sangue Indio com o de negro", além de ter sido prostituta, a qual, por sua vez, "nasceu d'huma mulher quasi em tudo semelhante, que afinal teve um pretto cativo por consorte". 58 Entretanto, Manuel Álvares deveria ser personagem influente, pois recorreu judicialmente e politicamente contra tal medida e obteve até intervenção direta da Corte para que fosse admitido na Irmandade. Registra-se ainda outro caso que traz à tona a inserção dos índios na sociedade luso-brasileira no início do século XIX quando Antônio Gomes da Cunha Braga, escrivão da Câmara da Vila de Benevente (atual Anchieta, onde havia aldeamentos dos Aimorés/ Botocudos), revelou sua frustração quando saiu a campo para apreender a índia Manuela, fllha do capitão-mor Manuel Pedro e casada com o índio Domingos Pereira, sem poder encontrá-la, pois ela estava "em outras terras". 59 57
A Saint-Hüaire (1830), t. 2, p. 227. Ofício de 17-2-1819, Correspondências dos governadores da capitania epresidentes da prov{ncia do Espfrito Santo ao Ministério do Reino (IJJ9), AN. 59 Ofício de 30-8-1815, Série Accioly, Livro 67, p. 15, APES. 58
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Estes exemplos, simultâneos à guerra ofensiva e mesclando preconceito, ascensão social e disputas no interior das hierarquias estabelecidas, seriam apenas casos isolados? Tudo leva a crer que não. O relato de Saint-Hilaire sobre a capitania do Espírito Santo é sintomático: o viajante francês respirava a presença indígena não só no meio rural ou nas frentes de combate no rio Doce, mas sobretudo no ambiente urbano. Ele destacava essa influência na alimentação, no vocabulário, no sotaque e entonação das falas, nas roupas, nos comportamentos e costumes e no aspecto físico, marcando, segundo ele, especificidade em relação a outras capitanias que conhecera. 60 Reforçando esses registros, é impressionante verificar como levantamentos demográficos capixabas, além dos dados de batizados, casamentos e óbitos, ainda nos anos 1840 e 1850, revelam considerável presença indígena numa província situada entre os dois principais polos de poder do Brasil nos séculos XVIII e XIX, Bahia e Rio de Janeiro. 61 Os índios e seus descendentes imediatos eram parte integrante e ativa da sociedade que se formava, em posição subalterna ou disputando espaços nas hierarquias estabelecidas. Ou seja, os Botocudos e outras tribos, mesmo quando derrotados militarmente ou forçados à vida sedentária, não desapareciam de uma hora para outra. Estavam nas residências urbanas, nas fazendas, mesclando-se à vida doméstica e do trabalho. Entretanto, na segunda metade do Oitocentos, sobretudo a partir do reforço das levas de imigrantes europeus vindos como colonos, diminui a visibilidade da presença indígena nesta vasta área que passaria a ser parte da região Sudeste - o que é também uma questão de memória e ocultação histórica coletiva, de escolhas e identidade. A Saint-Hilaire (1974), cap. I. V. documentação na Série Accioly, vol. 311, APES. Para a presença indígena na região Sudeste no século XIX, v. o trabalho preliminar de Bessa Freire & Malheiros. Aldeamentos ilndígenas no Rio de janeiro. . ., 1997 e a dissertação de M. Santanna Lemos, cit. 60
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Capítulo 5
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primeiro contato entre os Botocudos e um lídimo representante das Luzes da ciência e da civilização ocidental foi prosaico, cordial e pacífico. De um lado, estava um dos exemplares mais puros e tradicionais desta civilização: o príncipe Alexandre Philippe Maximilien, debutante naturalista. 1 Oriundo de uma das mais antigas linhagens da nobreza europeia (vinda do século XII), nascera em 1782 e fora criado no castelo da família, às margens do rio Reno. Na verdade, nunca contara herdar a coroa do principado de Wied Neuwied: oitavo fllho, parecia não ter chance na escala sucessória. Dedicara-se, com paixão, ao que realmente o empolgava: as Ciências Naturais, que englobavam, como se sabe, o estudo dos minerais, das plantas, dos animais e dos "povos selvagens". Deixando para os mais velhos da família as intrigas e disputas palacianas, ele reservara para si o livre trânsito nas Cortes europeias e o aprendizado em torno da República das Letras, onde considerava Alexandre Humboldt seu grande mestre. Isso correspondia, no campo científico, a uma visão herdada do Século das Luzes, do enciclopedismo, mas que se dirigia para uma dimensão historicizante e social dos elementos naturais, tão ao gosto do século XIX. Assim, pode-se dizer que a formação do príncipe Maximilien representava de maneira típica, no campo das ideias 1 Os trechos a seguir foram retirados de M. Wied-Neuwied, tomos I e II. Para a biografia deste autor e análises de sua obra, v. H . Baldus,J. Roder e Oceanos (Revi sta, n.• 24, 1995).
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científicas, esta passagem entre os séculos XVIII e XIX, entre a Ilustração e cientificismo historicista. Mas a tempestade da Revolução Francesa, a guerra contra Napoleão Bonaparte, doenças, mortes prematuras e acasos diversos acabaram por colocar Maximilien na condição de príncipe de Wied-Neuwied. Ele não fugiu à luta nem à solidariedade com a aristocracia, à qual pertencia. Oficial das tropas monarquistas, esteve à frente de episódios decisivos. Foi preso na batalha de lena, trocado por outros prisioneiros, voltou a combater. Vitoriosos os restauradores da monarquia, ele participou da ocupação de Paris ao lado das tropas contrarrevolucionárias austríacas e inglesas em 1814. Os canhões ainda fumegavam em 1815 e o príncipe Maximilien nem vacilou: aproveitando a abertura do Brasil às nações amigas, partiu imediatamente para realizar seu velho sonho. Equipado de outras "armas", ele não pensava mais em combater revolucionários e só queria coletar pássaros, animais, plantas e minerais raros, além de conhecer povos exóticos. Zarpou para o Rio de Janeiro, de onde pretendia realizar uma ambiciosa expedição pelo interior do Brasil. Ao chegar nos trópicos, ele apresentou-se com papéis adulterados, escondendo sua identidade principesca: para todos os efeitos era apenas o erudito cidadão Braunberg. Do cerne da luta entre Revolução e Restauração o príncipe Maximiliano mergulharia em outro ponto nevrálgico daqueles tempos, onde se dava o encontro e o confronto entre os índios e a civilização ocidental. Ao contrário de outros viajantes, que evitavam o território dos "índios bravos", o príncipe Maximilien foi quase em linha reta para a região dos rios Doce e Belmonte, almejando conhecer de perto os tão falados Botocudos, contra os quais o rei de Portugal declarara guerra, sem conseguir, entretanto, aniquilá-los. À frente de uma pequena tropa (Figura 8) de mulas carregadas de caixas, vidros e gaiolas, o príncipe Maximilien (Figura 9) era figura curiosa adentrando nas selvas tropicais: sempre vestido de casaca, botas e uma indefectível cartola (substituída nos momentos de mais calor por largo chapéu de palha). Com tal ar inofensivo, lembrava o viajante naturalista alemão Meyer, personagem do romance Inocência, do visconde de Taunay.
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Figura 8
Figura 9 (detalhe da Figura 8)
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Na Figura 8, o príncipe de Wied-Neuwied aparece como uma espécie de sol em torno do qual giram satélites e planetas, em meio ao amplo universo da natureza tropical. Tomando o plano central onde está retratado, temos, atrás do personagem principal, uma constelação de três civilizados (ou pelo menos, vestidos): um dorme com fuzil, outro escreve e o terceiro observa as ações do príncipe. Os três sintetizam, à sua maneira, as atividades de sobrevivência e de controle civilizador em meio à selva, encarnadas pelo naturalista: caça /coleta, registro escrito e observação - são como os braços ou olhos do cientista. Diante de Maximilien, estão dois índios que vêm lhe trazer uma caça, espécime que servirá para suas coleções ou quem sabe alimento para a expedição. Maximilien, como um imperador dosaber, mantém-se sentado, agente, fala e aponta para os índios que, por sua vez, são objetos também de seu olhar. Mais ao fundo, à esquerda, o conjunto de mulas, ladeando o improvisado abrigo de folhas, dá à cena um ar de presépio, de natividade das Luzes em meio à natureza. Maximilien costumava deixar o grupo cuidando dos equipamentos e saía sozinho à cata de espécimes de aves ou borboletas, retardando a marcha de muitas horas. Foi numa dessas ocasiões que ele se viu, inesperadamente, face a face com os temíveis índios que afinal buscava. Topando com um acampamento abandonado, o pesquisador não resistiu à tentação e já se dispunha a cavar uma sepultura indígena para coletar restos arqueológicos. Deixemos com o próprio viajante a narrativa do encontro: Nosso plano era terminar a busca com a maior rapidez, mas nos caminhos estreitos que serpenteiam entre as árvores gigantescas desta floresta, uma multidão de pássaros interessantes atrasou nossa caminhada; nós matamos alguns e eu me preparava a recolher uma ave no chão quando uma voz rouca me chamava de um tom breve e duro; eu me retornei rapidamente e imaginem a minha surpresa quando vi atrás de mim vários Botocudos nus e morenos como os animais das florestas, todos com grandes placas de madeira branca nas orelhas e no lábio inferior; reconheço que fiquei um pouco estupefato.
Aí estava o primeiro contato entre o olhar científico ocidental e os índios que, desde a época em que eram chamados de Aimorés, nunca haviam sido descritos e decodificados assim de perto de forma mais
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detalhada e por alguém que não se colocava, apriori, como seu inimigo, colonizador ou catequizador. A crer na lógica das narrativas existentes, o príncipe de Wied-Neuwied seria trucidado e devorado. Mas o altivo germânico, verificando que nenhuma agressão se consumava e passado o primeiro susto, caminhou direto para os índios, as mãos estendidas, disse-lhes duas ou três palavras que aprendera previamente no idioma deles. Procurou não mostrar nem rancor nem pânico, sentimentos que geralmente guiavam os homens brancos diante desses índios. Do outro lado do encontro estava a tribo do chefeJune, ouJuné, cujo nome indígena era Kerengnatnouck (retratado nas Figuras 10 e 11). Além do desenho, o naturalista traçou-lhe retrato escrito: já idoso, rosto sulcado de rugas, dava a impressão de ter a cara sempre zangada, mas facilmente se tornava expansivo e generoso. Seu botoque no lábio era maior que o dos demais, media cerca de quatro polegadas e apesar da idade era musculoso, rijo e carregava dois pesados fardos nas costas, além do arco e flechas . Logo, vieram outros guerreiros igualmente armados e com os cabelos negros e lisos cortados rente, em forma de coroinha no alto da cabeça. As mulheres, carregadas de pacotes e crianças, eram as mais curiosas. Eles já haviam percebido a presença do viajante muito antes do que este pudesse imaginar, mas não pensaram em atacar alguém que andava tão sozinho e despreocupado pela floresta, com trajes diferentes dos que costumavam ver. O grupo olhava curioso aquele espécime raro que lhes cruzara o caminho. Eles miravam o naturalista de alto a baixo e trocavam comentários entre si.
Figura 10
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Figura 11
Cada um dos lados já havia feito o exame inicial. Os olhares penetrantes, em rápidos segundos, cruzaram-se reciprocamente. De repente os índios mostram que haviam concluído sua análise e classificação: partem na direção do príncipe de Wied-Neuwied e lhe dão calorosos abraços, desses de estalar o peito. Todos riem, os abraços se repetem, os índios lhe dão amistosos tapas nos ombros. Em vez da ferocidade, o príncipe Maximilien, embevecido, deparou-se com a cordialidade dos selvagens. Era o ano de 1815, que marcou definitivamente o fim da Revolução Francesa com a Restauração da monarquia em toda Europa. O século XIX começava a projetar as Luzes da ciência sobre as tribos dos Botocudos - e seria um tempo decisivo também para a história desse povo. Note-se que este encontro deu-se em plena guerra ofensiva declarada por D. João, que reinava como príncipe regente. Nem nessa, nem em nenhuma outra ocasião, se tem notícia de que os chamados Botocudos do rio Doce tenham atacado algum homem branco que tenha se aproximado deles com intuitos de estudo, de conhecê-los, sem envolvimento direto com guerras ou projetos de colonização e catequese. Teria sido justamente este viés cordial que, paradoxalmente, ajudou a fazer o que as armas ainda não haviam plenamente conseguido, decifrar e derrotar esses guerreiros? É interessante perceber como os viajantes europeus dessa época, em suas narrativas, desenvolviam uma estratégia de inocência, que
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consistia justamente em atribuir a eles mesmos e seus empreendimentos um caráter ao mesmo tempo curioso e pitoresco, científico e atraente, exótico e exato. Entretanto, sabe-se que tais homens de ciência engajavam-se num projeto de dimensões planetárias, que consistia em conhecer, classificar e, também, controlar, o conjunto do "mundo natural" ainda não codificado pela civilização. Nesse sentido, apesar de aparecerem como neutros ou até humanitários, os viajantes cientistas eram também os olhos de um grande império, o da civilização ocidental. 2 Com a leva dos cientistas e viajantes europeus em direção ao Brasil desde princípios do século XIX, começou a surgir um novo tipo de contato com as tribos de Botocudos, agora com estes representantes da cultura europeia. Os povos indígenas ocupariam lugar privilegiado no interesse desses cientistas, artistas e homens de letras. E os Botocudos mereceriam especial atenção. A partir daí foi sendo criado, e divulgado de forma sistemática pela primeira vez, um corpo de conhecimentos em torno dessas tribos. Desaparecia a denominação de Aimorés, mas os Botocudos não ficariam isentos de serem envolvidos em outras legendas. Viajantes cientistas como Wied-Neuwied, von Martius e Auguste de Saint-Hilaire; pintores como Jean-Baptiste Debret e Maurice Rugendas- cada um, a seu modo, contribuiu para o conhecimento e fixação de determinadas imagens dos Botocudos. Ao longo do século XIX, este "invólucro" científico culturalque paradoxalmente produzia um discurso humanizador em relação aos índios - ajudaria a articular o cerco em torno desses povos. Os agentes culturais que entravam em campo não eram, certo, exterminadores de indígenas, nem seus colonizadores diretos. Mas contribuíram para o conhecimento deles, possibilitando, ainda que indiretamente, novas formas de controle. Num primeiro momento, surgiram descrições e algumas interpretações sobre a vida e os costumes desses grupos. Eram os embriões dos estudos etnológicos no século XIX tendo o Brasil como um dos campos privilegiados de investigação. Foi, assim, mais uma descoberta, pela civilização ocidental, de agrupamentos humanos até então mal conhecidos pelos homens de ciências e letras. Neste momento se produziram ícones desses índios. Utilizando técnicas como desenho, pintura, aquarela, litogravura ou quadro a 2
M. L. Pratt. Os olhos do império. Relatos de viagem e transculturação.
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óleo, alguns dos principais nomes da arte, no Brasil, deram sua contribuição para o conhecimento visual dos Botocudos. Durante muito tempo essas imagens foram tidas como "documentos" ou reproduções fiéis e realistas da aparência e dos costumes desses índios. Entretanto, com a distância de quase dois séculos, a tendência é de compreender esses primeiros ícones não só como "retrato" e registro da cultura material, mas também como produto de determinadas concepções artísticas e culturais daquela época, geradoras de imagens. A comparação, por exemplo, entre as duas imagens do índio June (Figuras 10 e 11) traz aspectos interessantes. Na Figura 10, feita originalmente a partir de indicações do próprio príncipe de Wied-Neuwied, existe como que um equilíbrio entre registro etnográfico e composição artística. O índio aparece com seu corte de cabelo, ornamentos, armas e mergulhado na natureza (água e vegetação) e com o produto da caça. Da mesma forma sua mulher, atrás, carregando os filhos (um nas costas), além dos respectivos utensílios ornamentos e características físicas, como representante do grupo doméstico na divisão de tarefas. O grupo em caminhada reforça a ideia de nomadismo. Entretanto, na Figura 11, refeita para publicação e difusão, parece haver uma concessão ao gosto do mercado editorial, visando um público mais amplo e correspondendo a determinados lugares-comuns relativos à vida selvagem: destaca-se a expressão de ferocidade de June (que não existe tão acentuada na Figura 10, onde há uma expressão severa) e o órgão genital masculino é escondido. Dessa forma, entre a percepção do artista ou cientista (carregada com seu conjunto de valores e conhecimentos) e a veiculação da iconografia impressa existe uma teia de mediações que ajuda a compor a imagem dos índios. Wied-Neuwied anotou a existência de cinco tribos (ele grafava "Botocoudys") na região de Belmonte: as que eram chefiadas por Gipakein (chamava-se de Mariênghiêng em sua própria língua), Jéparack e por }une ouJuné (Kerengnatnouck) viviam em paz com os luso-brasileiros. Enquanto as tribos chefiadas por Jonué Iakiiam (nas margens setentrionais do rio Belmonte) e por Iakiim recusavam qualquer contato com os brancos e mesmo com outras tribos. Logicamente, ele (e todos os que lhe sucederam) escreve baseado nas tribos que aceitavam o contato. Mas não explica, entre outras coisas, o motivo dessa duplicidade de nomes dos chefes, que serviam para batizar as
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respectivas tribos. Nem esclarece se a associação entre o nome do chefe e o da tribo era feita pelos "brancos" ou pelos próprios índios. Além da guerra com os portugueses, algumas tribos entravam em luta com outras vizinhas. Em 1815-1817, havia também confronto entre Botocudos e as tribos Malalis, Maconis, Pataxós e Maxacalis, segundo o mesmo viajante que retratou a cena de um índio Maxacali aprisionado por um Botocudo (Figura 12). Note-se, nessa iconografia, a recriação das rivalidades tribais atribuindo papel de vencedor aos Botocudos, cujo índio, na figura, aparece com ar vigoroso e resoluto, ao contrário da expressão de abatimento do prisioneiro. Tal dicotomia é visualmente reforçada pela posição de uma palmeira altiva, em frente e próxima ao Botocudo, comparada à palmeira mais baixa e parcialmente escondida pela figura do Maxacali capturado. Da mesma forma a vegetação avermelhada aparece sob o braço direito do Botocudo, em cor semelhante às penas de sua flecha, ao passo que a vegetação que cerca o Maxacali é homogênea cromaticamente.
Figura 12
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Eram antagonismos sangrentos que podiam ter longa duração. Anos mais tarde Teófilo Ottoni confirmaria o teor da guerra entre os Nacknenukes (tribo de Botocudos) com os Malalis. O conflito vinha de 1787, quando os últimos, acossados, foram procurar proteção dos portugueses em Minas Novas e aí se instalaram num quartel militar. Recrutados à força, submetidos a constantes torturas e violências pelos soldados, os Malalis foram aniquilados ao longo dos anos. Nos anos 1820, os poucos Malalis que restaram acabaram fugindo do quartel e voltando para as selvas. Aí, depararam-se com os Botocudos e foram dizimados. Apenas alguns poucos voltaram ao quartel onde contaram a história. Esse relato, acompanhado de outros, confirma a importância da facciosidade na vida destes grupos, originando confronto com outras tribos, acirrados durante a Guerra de 1808-1824, quando as divisões territoriais tradicionais entre as etnias eram despedaçadas pela presença maior de tropas luso-brasileiras. O príncipe de Wied-Neuwied teve oportunidade de presenciar um combate ritual (Figura 7), sem mortes, entre duas tribos rivais de Botocudos- e não pôde evitar que na sua mente surgissem comparações com os torneios da Europa medieval, o que revelava já um traço da sensibilidade romântica. O motivo da rivalidade foi o fato de o chefe June ter caçado porcos-do-mato (pecari) nos terrenos de Juparack. Como o limite das áreas de caça era importante para essas tribos, o gesto foi considerado ofensa, crescendo assim a rivalidade entre os dois grupos, que dividiam, também, a atenção dos brancos. 3 O encontro entre os dois grupos foi marcado para uma clareira próxima ao quartel na beira do rio Mucuri. Os não índios assistiam guardando distância e armados para qualquer eventualidade. Arcos e flechas foram depositados à parte e os homens de cada tribo portavam grandes varas. Os homens de June estavam com o rosto pintado de vermelho e negro. Juparack adianta-se e entoa longa canção, que devia ser um desafio: ele mantinha os olhos bem abertos e fixos e seus homens formavam um círculo em torno dele. As mulheres e crianças permaneciam de fora, mas formavam suas respectivas torcidas, manifestando-se por gritos e gestos. Terminada esta parte introdutória, um homem de cada lado avança e ambos se batem com 3 Esses combates rituais para resolver disputas foram registrados entre Aimarés no século XVII, cf. o jesuíta Jácome Monteiro, apud Serafim Leite, VIII, p.
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as varas. O embate é cheio de ímpeto. Eles se esbordoam, caem, levantam, brigam por longos minutos. Qyando os dois se cansam ou se ferem - são substituídos por dois outros, ou por dois pares, que continuam o confronto. Enquanto isso, em volta, as mulheres ensaiam alguns ataques entre si, se insultam, se puxam os cabelos, trocam tapas e se arrancam os botoques. Os homens não batem nas mulheres do grupo oposto, mas se elas se aproximam muito podem levar um empurrão ou um pontapé. O entrevera dura cerca de uma hora, pontuado de pancadas, gritos, lamentações. O cansaço cresce e os feridos vão caindo ou desistindo. O abatimento é geral, quando June abandona a batalha, seguido de seus aliados, e atravessa a nado o rio. Juparack continua a brandir sua vara, querendo combater mais. Aos poucos o terreno fica deserto, coberto apenas por botoques e varas partidas. Os combatentes, feridos, estão calmos, e sentam-se para comer farinha e comentar o episódio. Esse tipo de comportamento guerreiro seria classificado por antropólogos do século XX como "troca de energias", muito mais do que relação de destruição ou morte. 4 Além da belicosidade, chama atenção no relato de Wied (ele faz questão de destacar) a afetividade que percebeu nesses índios. O cientista germânico tornou-se defensor da "cordialidade dos selvagens", depois de conhecê-los de perto. Chegou até a ser ironizado por outros cientistas em sua época por comparar os Botocudos com os gauleses que desafiavam o império romano, numa analogia bem ao gosto do Romantismo. Na verdade o registro, ainda que agradavelmente surpreso, de uma atitude mais afetiva ou cordial dos índios, se insere no quadro das legendas de selvageria. Ou seja, a afirmação da cordialidade aparece como contraponto ou complemento à visão estereotipada e preconcebida de barbárie e desumanidade. Era como se dissessem: os selvagens, afinal, também têm sentimentos. Depois de ter recebido o abraço do chefe June no seu contato inicial, Wied diz que a primeira preocupação do índio foi indagar por notícias de um membro de sua tribo que tinha sido levado ao Rio de Janeiro. Ao saber que o índio estava de volta (são e salvo) June demonstrou satisfação ("todo seu rosto exprimiu a alegria mais viva") e apressou o passo para encontrar o índio no posto militar. Em segui4 J.-P. Chaumeil. Echange d'énergie: guerre, identité et reproduction sociale chez les Yagua de I' Amazonie Péruvienne.
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da: "O encontro foi muito afetivo. O capitão June canta uma canção para testemunhar sua alegria, e alguns viram-no chorar de prazer." Ol"tando foi apresentado a outro chefe, Gipakein, Neuwied conta: "Ele me aperta diversas vezes contra seu peito". Mesmo que Wied-Neuwied olhasse para os índios impregnado de seus valores culturais europeus e românticos, está claro que as manifestações de afetividade que ele presenciou eram traço marcante do comportamento dos Botocudos e não fruto da invenção ficcional do naturalista. Desse modo, há um contraste entre a impressão colhida no terreno e registrada por escrito e outros relatos (escritos e iconográficos) que apontam os Botocudos como bestiais e ferozes. Neuwied narra ainda: os Botocudos que conheceu gostavam muito de brincar e cantar, sobretudo depois da caça ou da pesca. Eles usavam a pele da preguiça amarrada e dobrada como uma espécie de bola para jogar: em círculo, arremessavam-na entre eles sem deixá-la cair. Em relação às crianças, o naturalista testemunha: "Eles amam muito seus filhos enquanto são pequenos e têm um grande cuidado com eles". Eles tratam as crianças com benevolência ou, na sua visão, "lhes deixam fazer todas as suas vontades", mas quando elas exageram nos gritos e barulhos levam uma advertência, que pode ser empurrão, sacudida, tabefe ou até um golpe de vara. E mesmo em plena guerra ofensiva do período joanino, os Botocudos ainda sabiam brincar, como testemunhou o mesmo viajante, com preferência para os divertimentos quando tomavam banho de rio (Figura 13). Acrescentava-se assim mais um traço ao perfil de cordialidade desses índios percebido e composto por Neuwied, em palavras e ícones.
Figura 13
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Essas tribos praticavam a poligamia, isto é, os homens tinham geralmente três ou quatro mulheres, podendo chegar até doze o número de esposas, caso houvesse espaço para tanto. Na visão de Neuwied, os casamentos se faziam e desfaziam "sem grandes cerimônias", mas as adúlteras eram espancadas e geralmente ostentavam cicatrizes pelo corpo, como resultado de tais castigos. A mulher do chefe Gipakein, por exemplo, tinha as orelhas e o lábio inferior cortados, o que lhe dava aparência de estar sempre com sorriso macabro. O viajante informa que uma tribo era composta de várias famílias, mas ele não buscou estabelecer os laços de parentesco nesses grupos. De qualquer maneira, percebe-se que havia no interior de cada tribo o chamado grupo doméstico, composto pelas mulheres e crianças, de um lado, e os homens adultos como guerreiros e caçadores, de outro. Moldando-os a seus valores pessoais, Neuwied via estes índios da seguinte maneira: Suas faculdades intelectuais são dominadas pela sensualidade a mais grosseira; entretanto, percebe-se com frequência entre eles provas de um julgamento muito saudável, e mesmo de um espírito fino. Animal ou racional... ? Nessa avaliação ambígua parecem conviver os princípios rígidos do príncipe da civilização europeia e o cientista aberto à diversidade do conhecimento humano. Wied-Neuwied registra ainda o nomadismo desses índios, que estavam sempre em acampamentos provisórios. Mesmo os que se instalavam no quartel mantinham a movimentação constante. Os motivos de tal nomadismo não estão bem claros e podem ter origens diversas, mas nem sempre estão ligados a razões estritamente econômicas. Um dos hábitos registrados é que eles costumavam enterrar os mortos pertos do acampamento e, passadas as cerimônias de luto, tratavam de mudar de local. O viajante presenciou um desses episódios. Com a morte de duas índias, os índios queimaram as cabanas (preservando as plantações) e se mudaram para a outra margem do rio, por não quererem morar onde estavam enterrados os dois corpos. A tribo se locomovia também em determinadas épocas para colher
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frutos nas florestas. E quando um terreno de caça se esgotava, eles se deslocavam para outras áreas próximas. O príncipe afirma que estas tribos em torno do rio Mucuri tinham o nome comum de "Engerecmoung". É interessante ressaltar que essa referência não se encontra nenhuma vez em registras posteriores. "O nome de Botocudo lhes desagrada muito", afirma Neuwied - o que é uma observação importante, já analisada neste trabalho. Ciosos de sua identidade, esses índios irritavam-se com o estigma imposto pelos colonizadores. Falando da cor da pele destes índios (fator considerado importante para classificação de tipo racial), Neuwied testemunha uma cor "morena avermelhada", alguns com a tez mais clara, outros, mais escura. Os cabelos são negros, finos e lisos e muitos arrancavam as sobrancelhas e, segundo ele, a barba. As mulheres não tinham pelo e todos tinham aparência robusta, musculosa, vigorosa. Raspavam-se na parte de trás da cabeça até três dedos acima das orelhas, restando apenas um pequeno tufo sobre o crânio. Os homens protegiam as partes genitais com um ornamento trançado em palha (giucann). Os botoques da boca (gnimato) e do lábio (houma) eram colocados na idade de sete ou oito anos, ou mesmo antes, dependendo da vontade do pai. A princípio eram pequenos pedaços de madeira, que vão aumentando sucessivamente. A madeira era a chamada "barriguda" (Bombax ventricosa). Podia-se retirar e colocar este ornamento, que não ficava preso fixamente. Com a idade, o buraco aumentava e às vezes a orelha ou o lábio rasgavam. Nesse caso, eles amarravam as partes rasgadas com um barbante e recolocavam o botoque. As mulheres usavam este ornamento menor e o do chefe geralmente era o maior de todos. Havia também os colares feitos de sementes pretas, tendo no meio dentes de animaisusados com mais frequência pelas mulheres e crianças. Os chefes usavam os dentes mais vistosos em seus colares. Qyando chegavam num local, vinham com plumas de pássaros na cabeça e em partes do corpo. Os Botocudos fabricavam utensílios diversificados, feitos à base de vegetal (palha e madeiras), para transportar e armazenar víveres e objetos, além de outros artefatos, revelando considerável saber acumulado nesse sentido, como registrou o mesmo Wied-Neuwied com acuidade etnográfica (Figura 14).
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Figura 14
Os Botocudos visitados por Neuwied conheciam o fogo, assavam e cozinhavam de forma rudimentar alguns alimentos, principalmente carnes. Sem esquecer que mamão na brasa era um dos frutos mais apreciados. Eles faziam fogo friccionando dois pedaços de pau. Depois que a fogueira estava acesa, as mulheres construíam as cabanas provisórias com folhas de coqueiros e bananeiras, fincando na terra as pontas enquanto as palmas, flexíveis, dobravam para o interior, formando uma cúpula (Figura 15, desenho de Debret).
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Figura 15
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Eram cabanas simples, algumas arredondadas, no meio das quais se conservava o fogo e várias famílias dormiam juntas. Qyando ficavam mais tempo no mesmo lugar acrescentavam galhos e grandes folhas, aprimorando a habitação. Mas não havia aldeias fixas. Depois de três séculos de pouca visibilidade, o interior da habitação dos Botocudos reproduzia-se impresso e a cores pelos quatro cantos do mundo. Os Botocudos conheciam a cerâmica. Entre os utensílios estavam potes para cozinhar (feitos de argila e cinza), grandes cantis para guardar água fresca, cabendo às mulheres e crianças buscarem a água. Os vasos e copos (kêkrock) eram feitos de pedaços de bambu cortados, utilizando os nós como fundo; quando estes últimos estão rachados, as rachaduras são vedadas com cera da abelha. Cada tribo possuía, já nessa época, pelo menos um machado de ferro e os facões eram bem recebidos - o que mostra alguma espécie de comércio entre os Botocudos e os luso-brasileiros, apesar da guerra ofensiva ainda em vigor. Paralelo ao afrontamento, havia formas de convivência e de troca que se estabeleciam. Possuíam alguns cães magros como animais domésticos. Entre os alimentos, a carne de macaco é considerada a melhor iguaria. Comem toda espécie de animais, como o jaguar (couparack ou Kuparak) ou jacaré, mas entre as cobras só aceitam a carne da sucuri. Alimentam-se também de larvas de insetos, de aves e colhem frutas selvagens e mel de abelhas. Não usam sal nos alimentos. Wied-Neuwied fez ainda investigações sobre o canibalismo, uma das questões centrais no relacionamento com os luso-brasileiros, que usavam essa afirmação como argumento para legitimar as guerras de extermínio. O cientista germânico não chega a conclusões definitivas, embora tenha a tendência a responder afirmativamente, pela existência desse hábito, por motivos rituais e não para alimentação. Um dos Botocudos ficou sendo auxiliar, guia e companheiro de viagem de Neuwied. Era Qyêck, que num deslize possessivo o naturalista chamava de "meu Botocoudy", o qual narrou ao viajante o seguinte caso: o chefe Jonué Coudji, filho de Jonué Iakiiam, prendeu um índio pataxó. Toda a tribo se reúne diante do prisioneiro, de mãos amarradas. O chefe o mata com uma flechada. O fogo é aceso. Os braços, as coxas, primeiro, e por fim todas as partes do corpo do prisioneiro são cortadas em pedaços e assadas. Todos comeram e depois se puseram a dançar e cantar. A cabeça foi suspensa a uma corda
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que entrava pelas orelhas e saía pela boca. Os jovens atiravam flechas contra esse alvo e a cabeça era posta a secar. Entretanto, não se conhece registro de nenhum testemunho direto desses rituais, nem nunca foi encontrado despojo de cabeças ressecadas entre os Botocudos. Esses índios usam remédios à base de plantas medicinais, que servem também para o preparo de venenos. Para dor de barriga, por exemplo, esfregam casca de tatu ou de tartaruga sobre o ventre. Em relação à morte, já foi dito que o enterro ocasionava mudança do local do acampamento. O enterro é feito na cabana ou perto. No primeiro dia, segundo Neuwied, o morto é carpido com gritos e choros dos parentes, cuja intensidade espantou o europeu. "As mulheres parecem loucas", afirmou. O cadáver tem as mãos amarradas com corda, sem ornamentos e objetos entre as tribos no rio Mucuri, mas com armas e víveres no rio Doce. O túmulo era cuidado durante algum tempo, a fim de afastar os "maus espíritos", e às vezes erguia-se sobre a sepultura uma pequena cabana de folhas de coqueiro. As mulheres cortavam os cabelos em sinal de luto. Os "maus espíritos" eram dois: Janchon Gipakeiu (grande) e Jauchon Coudji (pequeno). Note-se que esses nomes coincidiam com os nomes de dois chefes de tribos na época. Neuwied disse ter ouvido dos índios que os "espíritos" eram presentes na vida das tribos por diversos meios: atravessavam as cabanas, causando mortes; batiam nos cachorros até matar; matavam crianças que fossem buscar água. O medo dessas manifestações os impedia de sair à noite na floresta. 5 Nos dados colhidos por Neuwied, eles veneravam a Lua (tarou). O Sol chamava-se taroudipo; o trovão, taroudecouvoung; o vento, toutoutatouo. Os dois últimos seriam gerados pela Lua, que influenciava as colheitas e o tempo. O viajante estabeleceu um vocabulário com algumas palavras e frases, que foi assim o primeiro publicado da língua desses índios. Ao final de sua viagem, o príncipe Maximilien de Wied-Neuwied leva Qyêck (ambos retratados na Figura 16), o "seu" Botocudo, para o Rio de Janeiro e depois para Europa. Esse Botocudo morou por muitos anos no castelo de Wied-Neuwied, onde está enterrado.
5 Para uma visão de conjunto sobre as concepções cósmicas, espiritualidade e xamanismo desse grupo étnico, v. o pioneiro trabalho de A. Métraux (1930) e, recentemente, o levantamento e análise sistemática de I. M. Mattos. Civilização e revolta. Os Botocudos e a catequese na província de Minas . .. , capítulo 3.
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Figura 16
O quadro representando o príncipe Wied-Neuwied e o Botocudo (Figura 16) é uma alegoria que sintetiza os sentidos da viagem do naturalista germânico e de suas pesquisas. Aparecendo na frente, de frente e em primeiro plano, o europeu empunha numa das mãos a espingarda e na outra uma arara vermelha - é o próprio símbolo da força da civilização. Ao mesmo tempo, sua presença é informal, não violenta ou arrogante: a cartola com plumas e as pernas cruzadas emprestam-lhe um ar entre descontraído e generoso. Em segundo plano, Qyêck está devidamente vestido (o tecido branco traz uma aura de pureza), mas ainda empunhando arco e flecha, descalço e mantendo corte de cabelo tribal. O pintor teve o cuidado de colocar
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os olhares em direções diferentes: o príncipe Maximilien mira em frente, para seus interlocutores e para o futuro, enquanto Qyêck está voltado (e apontando) para a floresta. Os dois personagens, entretanto, estão próximos, fixados no tempo do raiar do século XIX e no espaço da floresta, destacando-se dela e marcando-a com suas presenças irmanadas e hierarquizadas.
*** Logo depois de Wied-Neuwied, em fins de 1817, foi a vez do francês Auguste de Saint-Hilaire passar algum tempo entre os Botocudos, dessa vez em torno dos rios Doce e Jequitinhonha. A obra de Saint-Hilaire só veio a ser impressa treze anos depois, isto é, em 1830.6 Baseado em sua viagem ao Brasil e em estudos a anotações posteriores, este francês construiu uma notável carreira no mundo da ciência: membro da Academia Real de Ciências do Instituto da França, da Sociedade de História Natural de Paris, da Academia de Lisboa, da Sociedade de Ciências Físicas de Genebra, entre muitas outras instituições. Tratado com grande respeito pelas elites culturais brasileiras, a obra de Saint-Hilaire foi durante muito tempo uma das principais e mais completas referências de tudo que se escrevia sobre o Brasil no vasto âmbito das Ciências Naturais. Na primeira edição das viagens de Saint-Hilaire, nos dois tomos que tratam das províncias do Rio Janeiro e Minas Gerais, não passam despercebidas duas interessantes homenagens prestadas pelo autor. Abrindo o primeiro tomo, há uma litogravura mostrando não uma pessoa, mas uma casa. Na legenda, explica-se que era a residência do duque de Luxemburgo no Rio de Janeiro. Tratava-se do embaixador extraordinário da França no Brasil, responsável pela vinda de Saint-Hilaire que, assim, dedica o trabalho a seu protetor, prática comum nos Antigos Regimes, quando os nobres eram mecenas de artistas e escritores. Na abertura do segundo tomo há outra homenagem iconográfica, que desta vez traz a litogravura de um homem (Figura 17). Trata-se de um jovem, com traços mongólicos, olhar meio estrábico, expressão séria, compenetrada, vestindo casaca, colete e blusa desabotoada no peito. Percebe-se um furo grande na orelha e outro menor 6 As viagens ao Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo estão publicadas em A. Saint-Hilaire t. I e II, 1830, e [1833] 1974.
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no lábio inferior, cabelos escuros, lisos e curtos, com franja caindo sobre a testa. A expressão, no fundo, não é das mais sorridentes e parece estar implícito, discreto, um certo ar de contrariedade na boca vincada ou no olhar direto, quase desafiante. Na legenda da litogravura, lacônica, apenas um nome: "Firmiano".
Figura 17
É preciso ler atentamente o volume para descobrir que Firmiano Durães era o nome (de batismo cristão) de um índio Botocudo que servira de guia e auxiliar a Saint-Hilaire. Ao longo do texto, são incontáveis as referências a Firmiano. O cientista francês não esconde admiração e gratidão pela inteligência do índio, que lhe desvelou importantes segredos das plantas, dos animais, da vida e costumes das tribos. Embora não esteja declarado com todas as letras, Firmiano foi o principal auxiliar de pesquisa (na linguagem de hoje) de Saint-Hilaire e suas informações e apreciações aparecem em certos pontos como estruturantes do trabalho desse viajante europeu. Firmiano tinha cerca de quinze anos e era ftl.ho de um chefe conhecido por "Capitão Branco" - que, segundo o francês, tinha a pele mais clara que os demais, podendo tratar-se de um caso de albinismo ou de m1sc1genação. Ao prestar esta homenagem a Firmiano, Saint-Hilaire parecia dividido. De um lado, ele se via impelido a reconhecer o valor e a importância cultural desse índio, com o qual ele aprendera e que
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Antropologia Física incorporando as tecnologias mais atualizadas da época a fim de obter as reproduções as mais "realistas" possíveis. Dentro desta Galeria, havia também "desenhos naturais". As primeiras fotografias que se incorporaram ao acervo do Museu foram as dos lnuits e estas dos Botocudos. Os daguerreótipos provavelmente foram feitos em Paris. Não se sabe exatamente onde nem em que condições foram tirados e as informações são desencontradas sobre a data exata de sua aquisição pelo Museu. Percebe-se assim que tais imagens foram uma das peças-chave no momento de fixação de parâmetros científicos no campo do estudo das populações humanas. Esses dois índios, retirados da periferia e da floresta, estiveram no epicentro metropolitano das Luzes, como novos Jonas levados ao ventre do grande cetáceo de onde se geravam paradigmas que se espalhavam pelo mundo. "Tudo" sobre eles foi decodificado, dentro daqueles parâmetros do conhecimento, como que servindo de modelos vivos para uma tipologia de saberes institucionalizados. Diante dos daguerreótipos a pergunta costuma surgir como que instintivamente: o que foi feito desses índios depois de fotografados? Tal pergunta já escapara do médico Phillipe Rey em 1878 e várias pessoas atualmente quando olham os retratos ainda repetem-na, quase invariavelmente. A resposta, até o momento, nos é desconhecida: depois de descobertos, desapareceram sem deixar rastros. Mas vale indagar sobre este interesse: de onde vem esta associação entre a objetividade rigorosa dos estudos de que foram objetos e a subjetividade quase sentimental da indagação sobre o destino individual desse homem e dessa mulher fotografados? Talvez seja pelo deslocamento tão profundo a que foram submetidos, de tempo, espaço e cultura. Talvez por serem "outros" que foram, simbolicamente, como que antropofagicamente devorados por "nós", depois de eternizados pela imagem. Esses daguerreótipos não deixam de ser um ritual de sacrifício em nome do progresso. Talvez esta reaproximação entre observador e observado se deva também como que a uma subversão do significado através do signo, onde o olhar dos que foram fotografados passa a nos interrogar também.22 Tal movimento de interesse, de certo modo afetivo (que afeta), pode advir da constatação de que aprendemos 22 Para esta perspectiva de "subversão do signo" pela pose do fotografado, v. o conhecido estudo de R. Barthes (1980).
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antropofagia era uma mentira inventada pelos portugueses como pretexto para destruir seu povo. Ele admitiu, no entanto, que esta calúnia pode ter sido originada pelo hábito de se descarnar e mutilar os corpos dos inimigos mortos em combate. Saint-Hilaire registrou que as tribos em torno dos rios Doce e Jequitinhonha se autodenominavam "Crecmun" ou "Cracmun". Cada tribo tinha entre cinquenta a cem guerreiros, além das mulheres e crianças. Ou seja, confirma-se a divisão entre o grupo doméstico e o grupo caçador-guerreiro, mas o francês acrescenta que os velhos (homens e mulheres) eram muito respeitados e sempre ouvidos nas questões de importância, além de exerceram a função de sentinelas durante a noite, enquanto os demais descansavam dos trabalhos diurnos. O chefe era homem e o posto não era hereditário. Ao contrário de Neuwied, Saint-Hilaire afirma que o principal culto desses índios era ao Sol, a quem pediam forças para vencer os inimigos. A Lua serviria para proteger as caminhadas noturnas outro ponto de diferença entre as observações do germânico e do francês . Para o francês, a pele dos Botocudos tinha cor de "bistre" (marrom enegrecido). Diante da morte, os Botocudos choravam muito, confirma Saint-Hilaire. E acrescenta que eles enterravam os mortos de braços dobrados sobre o peito, com as pernas dobradas sobre o ventre. Como as covas eram rasas, os joelhos às vezes saíam fora da terra. Os parentes plantavam quatro varas iguais em torno da sepultura e acrescentavam mais uma em forma de travesseiro, além de construir um pequeno abrigo com folhas de palmeira. O local era ainda limpo e enfeitado com penas de pássaros e peles de animais selvagens, mas o luto durava pouco tempo. Outra característica destacada em diversas oportunidades pelo viajante francês é que os Botocudos gostavam de cantar. Constantemente expressavam-se por meio do canto, letra e música, incorporando tal hábito em diversos momentos da vida cotidiana. Qyando estão emocionados, tristes, magoados, alegres, enfim, quando querem exprimir algum sentimento mais importante, eles põem-se a cantar, tom monocórdio, voz anasalada gutural. Saint-Hilaire presenciou certa vez uma dessas cantorias. Um índio chamado Agostinho, da tribo de Joahima, ficou por muitas horas diante da porta do posto militar cantando tristemente. Em seu
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lamento ele queixava-se de que não havia ganhado presentes, apesar de ter trabalhado muito para os portugueses. Finalmente, depois da longa lamúria cantada, ele disse apenas: "Vou me embora para a floresta e vocês não me verão nunca mais. Adeus". E partiu bruscamente, cumprindo a promessa. Depois de ter vivido um processo de incorporação à sociedade que o rodeava, esse índio experimentara um sofrido desengano e retornava à sua cultura de origem, desviando-se dos trilhos do progresso oitocentista. Saint-Hilaire notou ainda que os luso-brasileiros, por intermédio do coronel Julião, buscavam manipular as brigas e alianças entre as tribos, para melhor dominá-las. Assim, teria sido incentivada a disputa entre os chefes Joahima e Jan-oé, do mesmo modo que promovidas as pazes entre Tujicarama e Jan-oé. Aproveitando-se dessas desavenças e alianças, em 1817, os colonizadores conquistaram cerca de 50 léguas de terra em volta do rio Doce e trataram de estabelecer aí casas, construir fazendas e criar rotas de comércio. Ao regressar ao Rio de Janeiro, Saint-Hilaire trouxe Firmiano. Pretendia levá-lo para a Europa, mas perguntou ao índio o que ele desejava. Firmiano escolheu voltar para sua tribo. Saint-Hilaire diz ter-se inquietado sobre o destino do jovem e lhe dado dinheiro, além de cartas de recomendações para moradores não índios ao longo do trajeto. Porém, informa ainda, quando estava em meio do caminho, Firmiano ficou doente e teve de interromper a viagem. Saint-Hilaire afirma que mandou emissários tentando localizá-lo e não conseguiu, desconhecendo, portanto, seu destino - o que ele lamentava em seu livro. Entretanto, uma leitura mais atenta no próprio relato de viagem do cientista francês, e consulta à documentação correlata, revela outra trama, trágica, envolvendo o índio Firmiano. 7 Na verdade Saint-Hilaire mentiu em seu livro, como anotou a historiadora Leônia Chaves Resende, talvez preocupado em forjar de si mesmo uma imagem de proteção aos índios na figura do seu auxiliar de pesquisa, talvez sem querer admitir o fracasso da tentativa de convertê-lo à civilização ocidental. Durante os sete anos em que acompanhou o francês, Firmiano o fez contrariado, ludibriado e tentou várias vezes fugir, sendo recapturado em diferentes ocasiões. Ao término da estada 7 Informações e análises contidas em Leônia C. Resende. Gentios brasílicos: índios coloniais em Minas Gerais setecentista . . ., capítulo 6; agradecemos à autora que gentilmente cedeu o texto ainda inédito.
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no Brasil, Saint-Hilaire permitiu que ele voltasse a Minas Gerais, mas expressou por escrito ao compatriota e diretor dos Índios, Cuido Marliere, que impedisse o jovem Botocudo de retornar às selvas, mantendo-o retido no aldeamento. Diante de tal situação, Firmiano reagiu com ousadia, incitando os índios aldeados à rebelião e atacando gado e propriedades, o que levou Marliere a tomar uma medida drástica: prendeu-o em 1826 e remeteu para o Rio de Janeiro; desta localidade o jovem Botocudo deveria seguir, alistado à força, como soldado para lutar na Guerra Cisplatina (1825-1828), no extremo sul do país - de onde, ao que se saiba, não voltou. Saint-Hilaire, entretanto, passa a assumir uma postura intelectual de defensor da condição humana dos índios, isto é, da capacidade deles de raciocinar, ter e expressar sentimentos e de ascenderem ao progresso civilizado nos moldes europeus - postura que não correspondia ao comportamento "bravo" de boa parte da população não índia brasileira e que encontraria resistência e geraria atritos no interior de instituições científicas europeias, como se verá adiante. Os conhecidos Carl voo Martius e voo Spix, viajantes entre 1817 e 1820, deixaram registro mais superficial sobre os Botocudos. 8 Superficial e preconceituoso. Entretanto, a cena que eles vislumbraram não podia ser mais simbólica da situação em que viviam esses índios no século XIX. Numa trilha de terra batida que cortava aquele trecho da Mata Adântica, um bando de índios, homens e mulheres, caminhava silenciosamente. Taciturnos, calados, mas caminhando. As faces estavam pintadas de vermelho, com traço negro atravessando de orelha a orelha sob o nariz. Alguns traziam facão pendurado no pescoço com uma corda fina. Eram índios originários do rio Doce que, depois de contatados, haviam sido transferidos para a confluência dos rios Jequitinhonha e Araçuaí, onde havia outros Botocudos que recusavam o contato. Considerados "meio mansos", eles foram enviados para servirem como ligação e facilitar o trabalho de incorporação. Depois de percorrerem o trajeto de ida, estavam voltando ao rio Doce, mas ainda no meio do caminho entre a civilização ocidental e suas identidades culturais. Era um caminho árduo, onde idas e vindas pareciam não ter volta, nem chegada. Estavam sérios, calados, amargurados e caminhavam. Cruzaram pelos dois viajantes europeus e não os atacaram, nem os adularam. Continuaram andando. O encontro, 8
Spix & Martius. Viagem pelo Brasil. ..
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fugaz, se deu entre Minas Novas e Vila do Bom Sucesso. Mas parece ter sido suficiente para a publicação de uma gravura no livro de Martius com um rosto masculino de Botocudo (Figura 18).
Figura 18 f'l CJ'I' OI '!' D I J
Na figura destacam-se o corte de cabelo e os botoques como mescla de registro etnográfico e objeto de curiosidade, além de a expressão do rosto, ainda que de perfil, apresentar-se dura, típica de um "índio bravo". Não havia, aí, idealização neoclássica ou romântica, mas um reforço da legenda de selvageria. Além do ícone, há impressões "científicas" registradas em palavras por Martius e Spix, desses índios: semblante assustador, quase nenhum traço de humanidade, indolência, estupidez, selvageria animal; rostos quadrangulares e achatados, pequenos olhos esquivos: voracidade, preguiça e grosseria evidentes pelos lábios estufados, ventre, assim como o torso atarracado; andar incerto. Talvez esta última observação tenha sido a mais exata: a incerteza do andar, em tempos e caminhos tão difíceis. Resta perguntar: quem devorou quem? Seres descritos como tão horrendos não deixaram um arranhão nos dois germânicos. Entretanto, apesar da precariedade específica dessa observação de campo, não se pode negar a importância e profundidade do trabalho de classificação linguística e étnica dos índios do Brasil realizado por Martius. 9
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...... Em seguida foi a vez do pintor Johann Moritz Rugendas dar sua contribuição para aquilo que já começava a se tornar verdadeira sensação entre as revelações do mundo da cultura e da ciência: o conhecimento das tribos de Botocudos. 10 Rugendas, como se sabe, percorreu o interior do Brasil em 1825, a princípio acompanhando a malograda expedição Langsdorff, como desenhista. 11 Langsdorff, informa-nos Saint-Hilaire, também tinha um índio Botocudo como seu auxiliar, embora se lhe desconheça o nome. Em seguida, desvinculando-se da iniciativa, Rugendas passou a visitar outras regiões não incluídas no roteiro inicial. Rugendas retratou uma cena de Botocudos caçando animais selvagens. Trata-se de composição artística, ou seja, cena onde paisagem e personagens são compostos com cuidado, rigor e senso estético (Figura 19).
Figura 19
9 C. Martius. Glossarios de diversas lingoas e dialectos quefallão os indios no Imperio do Brazil. .. (1867). 10 J. M. Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil. . . 11 Sobre este artista, v. P. Diener. Rugendas e o Brasil .. , 2002; para a circulação e recepção da obra brasileira do pintor, com suas diferentes leituras, v. o artigo de C. Zenha, O Brasil de Rugendas ... 2002.
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Embora os índios e a floresta sejam elaborados em perspectiva naturalista e até realista, eles formam determinada composição, cujas figuras lembram os quadros mitológicos. O traço dos corpos - claros e bem delineados- reforça o estilo neoclássico. Os quadros com cenas de caça são tradicionais na pintura europeia, mas aqui cenário e personagens são diferentes do ambiente europeu. A valorização da Natureza e dos índios tem o toque do exotismo do Novo Mundo, tendência revigorada com o Romantismo da época. No centro da imagem aparecem dois homens, uma mulher e uma criança Botocudos (compõem conjunto de forma triangular), cujas faces, porém, não evocam belezas clássicas e, seguindo o realismo neoclássico, têm a aparência próxima aos índios retratados - que o olhar ocidental em geral considerava feios. O pintor reproduz aspectos da cultura material, como ornamentos, armas, cortes de cabelo e modo de carregar as crianças. Aos pés dos Botocudos, o animal abatido - enquanto o outro índio, de pele mais escura e de costas, mantém na mão uma colorida arara morta. Ao contrário dos quadros de caça europeus, onde ocaçador aparece com ares de triunfo, serenidade, força ou alegria, os índios parecem revelar uma certa empatia com os animais abatidos: expressão de tristeza e dor (reforçada pelo tom sombrio da floresta em contraste com a luminosidade dos três corpos), como se fossem, eles mesmos, também vítimas de uma caçada. Nesse desenho combinam-se a sensibilidade do cidadão europeu e homem das artes, preocupado com a sorte dos índios, com o desenhista-cientista, empenhado em documentar a vida nos Trópicos. As ideias da Ilustração sobre os bons selvagens e o romantismo indianista épico de Chateaubriand associados às Ciências Naturais. Rugendas desenhou ainda cinco rostos de índios deste grupo (um deles na Figura 21), além de um rosto feminino (Figura 20) .
Figura20
Figura21
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Neste caso, a exemplo do que fizera também com escravos africanos, a pintura de Rugendas tinha intenções etnográficas, de registrar características físicas de diferentes "raças" ou "nações" no Brasil, além de artefatos de sua cultura material. Era a arte-ciência, tendência de vanguarda na época, quando a fotografia ainda não fora desenvolvida. Porém, a Figura 20 chama atenção por alguns aspectos mais estéticos e subjetivos do que propriamente de anotação objetiva e científica. Seria fácil dizer que o rosto dessa mulher foi desenhado com traços europeizados, românticos e embranquecidos e representaria, portanto, uma deturpação do pintor. A expressão feminina tem até uns olhos de ressaca, como na personagem Capitu, de Machado de Assis. Entretanto, esse tipo de crítica só faria sentido se considerássemos a pintura em questão como documento fidedigno (ou falso). Mas o desenho, visto como produção artística em todas as suas implicações, reforça de maneira marcante a expressão sentimental da índia retratada e, assim, contribuía naquele contexto para humanizar a imagem desses índios: contrapunha-se à legenda de ferocidade então predominante e associava-se aos relatos que destacavam a cordialidade. Ao mesmo tempo, não se enquadrava na "feiúra" tão comumente associada aos Botocudos daí por diante. Posteriormente, fotografias e relatos escritos reforçariam esta percepção humanizada. Algumas mulheres Krenak, além de ainda fabricarem um colar bem semelhante ao da figura, têm, como pude captar, este mesmo tipo de olhar entre nostálgico e meigo - que, aliás, não é apenas característico das pessoas classificadas como índias. O rosto masculino (Figura 21) também aparece despojado do ar de ferocidade, apesar dos vincos no rosto, que lhe dão um toque realista e aparência sofrida. Já o pintor francês Jean-Baptiste Debret (discípulo e primo de Jacques-Louis David, o neoclássico que se destacara nos salões dos fins do Antigo Regime francês, se integrara às atividades artísticas da Revolução Francesa e tornara-se artista oficial de Napoleão Bonaparte) teve um projeto ambicioso. Um dos fundadores da Escola de Belas-Artes no Rio de Janeiro, responsável pelas principais pinturas de temas históricos contemporâneos da época da Independência (como a coroação de D. Pedro I), Debret associou sua atividade pictórica à formulação de uma imagem nacional para o Brasil. Começando sua viagem - que batizou de pitoresca e histórica pela nação que se formava, realizou "viagens" sem sair da Corte. E estabeleceu rigoroso plano para seguir o que chamava de "marcha
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progressiva da civilização". Nessa linha Debret transpôs para a criação artística um amplo mosaico da hierarquia da sociedade: partindo "do começo" (leia-se: índios selvagens), passando pelos índios incorporados e indo até o topo hierárquico, o retrato da Família Imperial, sem esquecer a escravidão africana e os hábitos urbanos, temas que tornaram sua obra mais conhecida. 12 ''A obra que ofereço ao público é uma descrição fiel do carater e dos hábitos do brasileiro em geral", afirmava o conhecido artista. E embora seja comum ver referências à pintura de Debret como "documentos fidedignos", é preciso ter cautela com tal perspectiva. Não se pode esquecer que a criação artística envolve concepção estética e elaboração, que resultam na escolha de cores, na posição dos personagens e nos traços que recriam os homens e a natureza. Não são simples "documentos" no sentido de descrição fiel ou realista- como pretendia o autor. Por meio de suas imagens dos "brasileiros em geral" Debret contribuiu na formulação de uma identidade nacional. Mesmo quando se colocava na perspectiva da arte-ciência, do desenho científico, de cunho etnográfico, quem desenhava era o artista marcado pelo neoclassicismo e pelo romantismo, assim como o intelectual europeu do século XIX engajado na construção de imagens para o Império brasileiro. Pintar "a história particular dos selvagens" sempre foi uma das preocupações marcantes de Debret que, assim, inseria os índios dentro de sua narrativa visual da história do Brasil. E como tal interesse foi despertado? Ele próprio nos conta: Qyanto à história particular dos selvagens, uma circunstância feliz forneceu-me os primeiros materiais: dois dias apenas depois de nossa chegada, foi-nos dado ver indígenas botocudos recém-trazidos ao Rio de Janeiro por um viajante que me facilitou desenhá-los com cuidado, acrescentando a essa amabilidade informações tão fidedignas quão interessantes acerca dos costumes desses índios entre os quais vivera. O acaso levou-me a iniciar, no centro de uma capital civilizada, essa coleção par-
12 Sobre o "retrato do Brasil" por Debret, v. Lima, Uma viagem com Debret. .. (2004). Consultar também T. Hartmann. A contribui;ão da iconografia para o conhecimento de índios brasileiros do século XIX . .
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ticular dos selvagens, que eu deveria acabar nas florestas virgens do Brasil. 13 O olhar do artista, desde o começo de sua estada nos Trópicos, foi marcado pela presença dos Botocudos, que despertaram sua sensibilidade para o que considerava os "começos" ou origens do Brasil. Pelo menos seis pranchas de Debret retratam os Botocudos. A mais conhecida ele deu o título de "Família de Botocudos em Marcha" (Figura 22).
Figura22
Para compor este quadro Debret explica que "imaginou" a cena a partir de um grupo de Botocudos que conheceu pessoalmente no Rio de Janeiro, trazidos por um militar da região de Belmonte para se apresentarem diante do príncipe regente D. João em 1816. Na ocasião, segundo testemunho do pintor francês, os índios trajavam, além de seus habituais ornamentos, calça e colete, para não ferir a decência da Corte. 14 Entre o testemunho ocular e a publicação de sua obra dezoito anos depois, Debret não só teve tempo para elaborar o ícone, como se beneficiou de relatos etnológicos publicados por Wied-Neuwied e Saint-Hilaire. 13 14
J.-B. Debret. Viagem pitoresca e hist6rica ao Brasil. .. Ibidem.
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A pintura (Figura 22) pode ser compreendida, inicialmente, na vertente proposta pelo próprio autor, isto é, como descrição etnográfica por meio do chamado desenho científico. Temos então registro da cultura material: armas, botoques, trançados de palha, corte de cabelo, cor da pele, modo de carregar as crianças, entre outros itens. Chama atenção - e o pintor francês a reforça no comentário escrito que acompanha a prancha- o manto de pele de tamanduá usado pelo chefe indígena, que Debret informa ter visto e que seria atributo exclusivo do chefe. Embora, por razões de visualização, o artista tenha acrescentado o mesmo manto ao filho do chefe no quadro. Curiosamente, não se verifica em nenhum outro relato sobre os botocudos esse hábito de usar um manto de pele de tamanduá. Outro modo de compreender esse mesmo ícone é como uma obra de arte, isto é, resultado de um conjunto de fatores criativos e históricos, com suas composições, escolhas e enfoques. A visão dos Botocudos ganha aí outros sentidos. A começar pela vista geral do quadro e da posição dos índios na tela, que formam uma espécie de espiral evolutiva, desde os que se encontram agachados no canto esquerdo, lembrando homens da idade da pedra pelo aspecto mais opaco e embrutecido, acocorados sobre rochas, espiral que avança pelas mulheres e crianças, colocadas num plano inferior no canto direito e subindo até o topo, onde gradativamente o olhar sobe ao filho do chefe até o chefe, que ocupa o centro do quadro, em primeiro plano, acima dos demais. Não seria o chefe, dentro da concepção hierárquica tão cara ao pintor francês, uma representação da majestade imperial de seu próprio povo? Do homem primitivo ao imperadorafinal este era o plano geral das pinturas de Debret sobre o Brasil. E, nessa linha, o manto de tamanduá pode sugerir de modo mais convincente essa concepção progressiva. As duas vegetações discretas nos cantos direito e esquerdo do quadro dão a ambientação tropical necessária, embora os rochedos predominem, seja por questões de fidelidade etnográfica (os grupos Tapuias conseguiam habitar regiões áridas) ou estéticas, representando o caminho duro que as tribos enfrentavam para passar da barbárie à civilização (a "marcha dos Botocudos", como indica o título do quadro). Sem deixar de lado a aproximação cromática entre a cor da pele dos índios e o solo rochoso, ambos como elementos naturais da terra. A concepção evolutiva da espécie humana parece estar sugerida no quadro, embora, nesse
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período, ainda predominassem as concepções fixistas no ambiente científico ocidental. 15 Ainda no relato do testemunho ocular sobre esses índios Debret registrou que, após o encontro com o monarca português no palácio, os Botocudos trataram de tirar as roupas que os incomodavam. Em seu quadro ele procura manter a nudez, em geral amenizada, a não ser pelo filho do chefe e de uma índia que lhe segue, ambos em nu frontal- ao passo que do chefe propriamente vemos mais o manto de tons dourados. Esse quadro de Debret pode ser visto como expressão iconográfica da visão civilizadora e ilustrada desses índios, já colocada, entre outros, por José Bonifácio de Andrada e Silva (como se verá adiante) e pelos citados viajantes europeus, que se demarcavam da postura de violência mais direta e da eliminação pura e simples do índio tido como bravo, ao mesmo tempo que classificavam os indígenas numa posição inferior da escala humana, embora passível de ascender à civilização ocidental.
Figura23
15 Para o predomínio da concepção foosta das espécies no início do século XIX, v. o artigo de F. Tinland. "Les limites de l'animalité et de l'humanité selon Buffon".
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Na Figura 23 vemos detalhe do conjunto no qual Debret retratou onze "cabeças" de índios. O rosto do Botocudo, à direita, é o único que aparece com duas imagens laterais ao fundo, representando perfis, possivelmente para permitir uma percepção mais completa do efeito estético dos botoques. Afinal, os mais indomáveis e inatingíveis agora podiam ser vistos sob diferentes ângulos. Destaca-se novamente a mescla entre o registro etnográfico e a criação estética: os detalhes dos ornamentos (sobressaindo botoques e colares) estão emoldurados na visão do rosto com olhar fixo, sobrancelhas erguidas, expressão séria e dentes à mostra denotando certo ar de ferocidade. Percebe-se (ainda Figura 23) no canto esquerdo do quadro uma cabeça de Botocudo mumificada por Pataxós, conforme já citado. A cabeça, decepada, pode trazer efeitos diferentes: colocada próxima do rosto masculino do Botocudo, aponta um contraste entre vida e morte, ao mesmo tempo que sugere a possibilidade de eliminação física da figura ameaçadora e feroz. Como informação etnográfica, assinala a existência de rivalidades interétnicas e envolve os rostos numa certa aura de exotismo marcada por costumes "bárbaros", tão a gosto do público leitor oitocentista. Apesar de certas características etnográficas se assemelharem no conjunto desses registros, havia especificidade entre as criações intelectuais: o Botocudo atarracado e imperial de Debret (que evoluía da condição de homem da caverna à de chefe ornamentado), os Botocudos helênicos e sentimentais de Rugendas (que denunciavam a destruição da Natureza e deles próprios), os Botocudos vigorosos e em harmonia com a natureza de Neuwied (que enfrentavam corajosamente os combates) e o Botocudo compenetrado, auxiliar de cientista, passível de civilização e cantor de Saint-Hilaire. Mesmo com singularidades, tais produções foram publicadas nos anos 18201830, isto é, pertenciam a um mesmo contexto e compunham uma determinada imagem desses índios, gerando um ponto de vista ou sensibilidade comum. Obras de repercussão marcante, como a de Ferdinand Denis, reproduziam imagens de indígenas feitas pelos referidos artistas e viajantes. 16 Entretanto, a recepção de tais imagens entre as elites culturais e políticas brasileiras não seria imediata, isto é, passaria por mediações consideráveis. Fica difícil falar, neste ponto, numa influência cultural europeia agindo de forma linear e retilí16
F. Denis. Descripção histórica do Brasil. .. , 1845.
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nea, pois a condição dos índios no território brasileiro envolvia interesses e visões complexas. Durante e depois da guerra ofensiva, veio o contato com a leva de intelectuais europeus nas duas primeiras décadas do século XIX - artistas e cientistas. Depois da Igreja e das armas, as ciências e as artes descobriram os Botocudos. É interessante notar que na percepção de homens como Wied-Neuwied, Saint-Hilaire, Rugendas e Debret ressalta-se a humanização e, até, a cordialidade dos índios encontrados, em contraste com os tradicionais registras de ferocidade. Oriundos ou herdeiros da República das Letras europeia, impregnados da tradição humanista do Renascimento ou universalista da Ilustração, suas sensibilidades contrastavam com as dos homens das letras, administração e armas do universo luso-brasileiro, para os quais os índios eram prioritariamente um problema a ser resolvido, um obstáculo a ser superado, um inimigo a ser combatido ou escravo a ser dominado. A perspectiva eurocêntrica dos homens de letras e artes, uma espécie de vanguarda intelectual da época, caracterizava os mesmos índios como: imperfeitos, inferiores, incivilizados, mas interessantes objetos de estudo, humanos e passíveis de afeto e aprimoramento. Ao mesmo tempo, tal descoberta estava vinculada à Guerra de 1808-1824 e ao recrudescimento das frentes de expansão, sem as quais não teria sido possível a tais europeus se aproximarem dos índios, como representantes da mesma civilização ocidental. A partir de então estes índios passam a ser objetos de pesquisas e estudos, fossem estéticos, fossem científicos - afora os contatos explicitamente colonizadores. Era o ponto de partida para verdadeira avalanche cultural em torno dos Botocudos que, expandido-se pelas fronteiras nacionais e internacionais, estaria em voga pelo menos até a primeira década do século XX. Surgem daí mutações significativas nas imagens e representações sobre esses índios, permeadas por complexas interações entre a percepção dos agentes culturais e a propagação do material produzido por eles para diferentes públicos, contextos e mentalidades. Manter a legenda de ferocidade atribuída aos índios que se submetiam (sem maiores reações) a tais atividades de pesquisa só fazia aumentar a aura de exotismo e o interesse em torno deles - que, ao que se sabe, nunca mataram um artista ou cientista. A transformação dos Botocudos em objetos dessas pesquisas talvez tenha ocasionado uma das faces mais paradoxais dentre as formas de
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sujeição, pois se alimentava da fama de selvageria e ferocidade embora lidasse, em muitos casos, com índios controlados ou despojados de suas tradições e das possibilidades guerreiras. Ao final das contas o conhecimento desses Botocudos não serviu como desmistificação. Ao contrário, levou à mudança de paradigmas e fortaleceu outro tipo de mitificação, substituindo paulatinamente o medo pela curiosidade, pelo deboche e pelas tentativas crescentes de controle, desqualificação e aniquilação. O Aimoré ameaçador e feroz cederia lugar ao Botocudo feio, incômodo e rústico. Se na Corte dos Trópicos não havia um "Jardin des Plantes" destinado ao conjunto das Ciências Naturais como em Paris (o Jardim Botânico no Rio de Janeiro ocupava-se dos vegetais), os índios trazidos para a capital eram instalados no Campo de Santana- que então marcava um dos limites urbanos e abrigava as principais unidades militares. Como povos bárbaros que se submetiam ao imperador, os indígenas vindos das selvas eram levados à presença de D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II, quando ofereciam ornamentos, utensílios e armas de suas tribos. "O Museu de História Natural do Palácio de São Cristóvão melhora dia a dia sua preciosa coleção", afirmava com sutil ironia Jean-Baptiste Debret, acrescentando que as famílias de índios que traziam os objetos não iam para o museu, mas eram conduzidas para trabalharem na agricultura, nas obras públicas e nas forças militares. Eis uma síntese do contato com os indígenas no Brasil do século XIX (além das selvas e dos confrontos com as fre ntes de expansão): a História Natural abrigada no Palácio do monarca, o conhecimento dos índios separado do conhecimento da Natureza, os objetos indígenas se transformado em peças de museu e de interesse cultural, ao passo que os índios se viam sem tribo, inseridos nas atividades produtivas ou escravizados. Havia, pois, paradoxo instigante na multiplicidade de registras em torno desses índios, vistos num mesmo tempo como obstáculo ao progresso, potencial mão de obra, cordiais selvagens e valiosos objetos de estudos científicos e artísticos.
Capítulo 6
INDEPENDÊNCIA E MORTE: O IMPÉRIO DO BRASIL SUBMETE OS "ÍNDIOS BRAVOS"
No
período da Independência no Brasil ocorreram não só guerras contra as tropas portuguesas que resistiram à separação (como na Bahia, Maranhão, Piauí e Pará), mas, também, batalhas contra outros adversários do Império: os "índios bravos" do Espírito Santo e Minas Gerais. Após a Independência, o governo central brasileiro passaria a ter atitude (próxima à da Ilustração europeia do século XVIII) que visava integrar os índios à nação e à civilização por meios ditos "brandos". Mas os ataques contra essas tribos continuam e partem de milícias organizadas por proprietários rurais e comerciantes, embora se registrassem violências cometidas ou apoiadas por militares das tropas efetivas e autoridades locais. Os casos de escravidão de Botocudos são frequentes neste raiar da nação brasileira, acompanhados de situação de miséria e fome, além de epidemias. O conflito com as tribos ocorreu simultaneamente, também, à mobilização guerreira do Império brasileiro contra republicanos e oposicionistas da Confederação do Equador (Pernambuco, Alagoas, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte) e houve até casos de as mesmas tropas - como na fronteira de Bahia e Minas - ficarem de prontidão pelos Botocudos e contra os rebeldes do liberalismo exaltado. Evidentemente eram adversários díspares (uma vez que estes últimos pertenciam à mesma civilização e sociedade dos governantes do Império), mas que exprimiam as contradições enfrentadas no início da formação de uma ordem nacional - que não foi pacífica. Encerrava-se, assim, a Guerra de 1808-1824, que geraria uma nova fase da relação entre os Botocudos e a sociedade nacional. 183
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Ao mesmo tempo, as acusações de antropofagia praticamente desaparecem, após terem sido recorrentes durante três séculos - o que parece ser resultado da nova mentalidade civilizadora em relação a esses índios. Caso eles fossem realmente canibais (o que nunca foi efetivamente comprovado ou registrado em testemunho direto), teriam subitamente abandonado tal hábito, com medo de represálias ou por conversão aos hábitos ocidentais? Pode-se deduzir que a proximidade forçada desses grupos indígenas com a sociedade nacional, o conhecimento mais detalhado de seus costumes pela arte e ciência e, ainda, o enfraquecimento paulatino do seu potencial guerreiro, tenham levado ao abandono do estigma de ferocidade desumana, ao qual a imputação de antropofagia se ligava. O estereótipo do invencível canibal foi sendo substituído pelo do nativo atrasado, bravo e tolo. Para melhor compreender os contatos entre Botocudos e a sociedade brasileira ao longo do período imperial, pode-se ter em mente o seguinte esquema: de um lado as forças que atacavam esses índios (vinculadas às frentes de expansão), de outro lado, índios que guerreavam (ofensiva e defensivamente) e, como intermediários do conflito, buscando integrar tais tribos pela via da pacificação, estavam dirigentes da Corte, alguns brasileiros, europeus e índios que então escolhiam essa maneira negociada de convivência. 1 Desde os momentos iniciais da Independência colocava-se tal relação. Entre os primeiros papéis que recebeu após assumir o ministério em 1822, José Bonifácio de Andrada e Silva deparou-se com uma correspondência da Junta Provisória do Governo do Espírito Santo, assinada pelos seis integrantes, em termos inquietantes: [.. .] os quotidianos insultos do Gentio barbaro, que incessantemente destroe a agricultura e tem morto muitos Lavradores , causa lastimosa do atraso desta miserável Provincia. [... ] E desta forma todos temem estabelecer-se no interior, onde os Lavradores se vem obrigados a guardarem suas forças para vigiarem em sua defesa. 2
1
Essa contradição entre agentes da sociedade brasileira oitocentista é apontada por M. M. C. da Cunha. "Política indigenista no século XIX". ln: Idem (org.). História dos índios no Brasil. .. , p. 134, que, entretanto, afirma que tal dicotomia diminuiu a partir de 1808, o que não nos parece comprovado para o caso aqui estudado. 2 Correspondência da Presidência da província do Espírito Santo. .. , 12-4-1822, AN.
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O quadro traçado pelos governantes provinciais era semelhante ao das épocas anteriores. Desta vez, apresentava-se de maneira mais clara a preocupação com a falta de progresso, isto é, do atraso do Espírito Santo, no qual os Botocudos tinham papel decisivo. Estava evidente, mais uma vez, que a ofensiva guerreira não alcançara plenamente êxito. Porém, um dos efeitos desta Guerra de 1808-1824 continuava a se fazer sentir: o movimento de alguns grupos de Botocudos em direção às cidades, para tentar trégua, aliança ou ataques. Os mesmos governantes testemunhavam a permanência do conflito: [... ] que o obstaculo que havia a vencer-se na Povoação de Linhares cita no Rio Doce era o gentio Antropophago que se acha pacifico e alguns ja vierão a Capital desta provincia onde este governo se tem disvelado para que de h uma vez fique aquelle ponto isento das invazões destes barbaros, que só procuravão a sua total ruina, comettendo frequentes hostilidades, e por esse motivo se achava estagnada a Cultura, e Commercio [... ).3 Aparecem aqui as duas atitudes dessas tribos durante e após a guerra ofensiva: manter os ataques e resistência ou tentar um contato - quem sabe a pacificação dos guerreiros brasileiros? Exemplo dessa última tendência - de tentar pacificar ambos os lados da guerra - está na ação do alferes do Corpo de Pedestres, Antônio Leite Barbosa, e no cabo Bernardino de Freitas, do Q9artel de Sousa (Linhares), que em 1822 já haviam conseguido arregimentar considerável contingente de Botocudos "mansos" que, por sua vez, trabalhavam na "pacificação" - termo então usado - dos demais índios e mantinham bom relacionamento com os militares. Nesse mesmo ano o alferes conduziu, orgulhoso, 44 Botocudos a Vitória, acompanhados do chefe da tribo, desejosos de obter ferramentas, roupas e recursos para subsistência e sedentarização. 4 Seja pela guerra ou pela via pacífica, o desafio estava posto para a Coroa brasileira. De um lado, pois, a pressão das frentes de expansão e seus representantes políticos provinciais. Na outra ponta, na sede do Império, as concepções ilustradas de dirigentes como José Bonifácio. 3 4
Correspondência da Presidência da prov{ncia do Espfrito Santo . .. , 22-8-1822, AN. Ibidem.
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Exercendo seu papel de "Patriarca da Independência" e preocupado em formar um povo e uma nação no país que se engendrava, Bonifácio escreveria longa e interessante dissertação sobre o assunto: Apontamento para a civilização dos indios bravos do Imperio do Brasil,
impresso no Rio de Janeiro em 1823 e dirigido à Assembleia Constituinte.5 Texto, aliás, que viria a ser resgatado pelos positivistas republicanos do início do século XX, entre eles o general Rondon, como exemplo e bandeira para defesa dos índios e de modelo de sua integração à sociedade. A ideia-chave que guiava José Bonifácio era a necessidade de construção de uma nação brasileira, homogênea, integrada - e para isso era preciso eliminar ou suavizar as diferenças e contrastes. Transformar os antigos povos num povo. Os desafios eram consideráveis. Em outras ocasiões, Bonifácio se ocuparia de diferentes problemas para este processo de unificação nacional, como: a diversidade regional, a centralização administrativa, a influência dos portugueses e o papel da escravidão dos africanos, entre outros. 6 Debruçando-se sobre os índios, o Andrada se baseia evidentemente na literatura que existia até então: cronistas coloniais, relatórios administrativos e, ainda, a experiência histórica das Missões e dos Diretórios pombalinos. Qyanto às referências intelectuais, José Bonifácio tinha matrizes definidas pelos autores das Lumieres do século XVIII sobre os "selvagens": exprimia afinidade com Georges Buffon, o tradicional naturalista francês cujas ideias representavam não só a negação do evolucionismo emergente como a classificação das "raças inferiores" e a aproximação delas com os animais, ponto de vista não muito distante do abade Cornelius de Pauw, outro eminente naturalista cujas teorias estavam em voga e foram apropriadas por José Bonifácio. 7 Desse substrato múltiplo o deputado da Constituinte e todo-poderoso ministro de D. Pedro I esboçou uma proposta de política indigenista para o Brasil recém-independente. Política essa que não se efetivaria de maneira abrangente, mas apenas de forma esparsa e incompleta. De que "índios bravos" tratava Bonifácio? Uma simples leitura nos indica que ele cita duas vezes os Carijós do século XVI, uma vez 5
José Bonifácio de Andrada e Silva, 1998, pp. 89-149. Ibidem. 7 Para uma análise das ideias de Bonifácio sobre os índios, v. Maria M . C. da Cunha, 1986, pp. 165-73. 6
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"os indomitos Caiapós" e "os cruéis Chavantes" e três vezes os "Botocudos" do Espírito Santo, o grupo mais citado no texto. Os três últimos eram grupos não tupis que, avessos à pacificação, ainda resistiam à civilização em diferentes pontos do território. Como o "Patriarca da Independência" via em geral esses antigos habitantes do território? Eram, segundo suas palavras, vagabundos, preguiçosos, ladrões, sem freios religiosos, dominados pelas paixões, sem leis e costumes regulares, dados a bebedeiras e instabilidades nas relações conjugais, sempre envolvidos em violências e rivalidades. Esse o perfil do índio brasileiro traçado por José Bonifácio, embebido aqui nos tradicionais relatos de selvageria e depreciação dos colonizadores. Percepção ainda compatível com a perspectiva civilizada moderna, já que Bonifácio reproduzia quase literalmente a definição da Encyclopédie sobre os sauvages (selvagens): "peuples barbares qui vivent sans loix, sans police, sans religion, & qui n'ont point d'habitation fixe" (povos bárbaros que vivem sem lei, sem polícia, sem religião e que não têm habitação ftxa). 8 Entretanto, a visão do mais velho dos Andradas não se limitava a esses aspectos negativos. Em seus Apontamentos ele assume vertentes diversificadas, como o pensamento generoso e um tanto idealizado de europeus da República das Letras do século XVIII ao afirmar que "o Indio do América parece um homem novo", capaz dos sentimentos de coragem e valentia. Estava aí outro ramo de sua concepção, que indicava linhagem da Ilustração vinda de Voltaire e Diderot, por exemplo. Essa exaltação de um "bom selvagem", todavia, nunca foi formulada ou defendida por Jean-Jacques Rousseau, ao contrário do que com frequência se afirma. 9 Afinal: homem novo americano ou ladrão preguiçoso, violento e amoral? Bom ou mau selvagem? Chegando a uma resposta dessa equação e sintetizando sua visão sobre o indígena, Bonifácio é lapidar:
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D'Alembert. Encyclopédie ou dictionnaire raisonné. . . Para a desconstrução da afirmativa de que Rousseau exaltava o "bom selvagem", v. a lúcida entrevista de Lévi- Strauss (em J. de Léry, 1994). Rousseau, efetivamente, formulou em termos filosóficos a figura ideal de um "homem em estado natural" que, entretanto, o mesmo autor reconhecia como inexistente em termos históricos, cf. seu conhecido texto Discurso sobre a origem e osfundamentos da desigualdade entre os homens [1753]. 9
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Com efeito o homem primitivo nem é bom, nem é mau naturalmente, é um mero autómato, cujas molas podem ser postas em acção pelo exemplo, educação e benefícios. Assim, buscando equidistância da linha do "bom selvagem'',José Bonifácio criticava, ao mesmo tempo, o extermínio dos índios e os "maus colonizadores". Sua perspectiva era a de incluir os indígenas na argamassa de um povo nacional brasileiro, com a condição de que deixassem suas identidades tribais e se tornassem cidadãos pertencentes à civilização ocidental e ao trabalho. Não estava na perspectiva de Bonifácio desenvolver ainda mais o trabalho escravo no Brasil, mas, ao contrário, extingui-lo gradualmente. Daí ele tinha o cuidado em não apregoar a escravidão dos índios. Pode-se dizer mesmo que estava imbuído das ideias de modernidade ao comparar os indígenas aos autômatos ... Bonifácio passa a lamentar abertamente as violências cometidas pelos colonos, discordando (embora sem citá-la) da guerra ofensiva de D. João VI que ainda vigorava. Ou seja, o Andrada era colonizador do tipo "manso", embora seu principal protetor e orientador, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, tivesse sido um dos "bravos" em relação aos Botocudos - ambos imbuídos das ideias Ilustradas, o que dificulta uma associação automática dos iluministas com o controle dito pacífico dos índios. Para José Bonifácio, o índio não estava irremediavelmente embrutecido e poderia aceder às Luzes da razão, mediante os já citados benefícios e educação - tornando-se, assim, um cidadão útil ao sistema produtivo. Ele citava como exemplo histórico bem-sucedido a famosa experiência das Missões dos Guaranis sustentadas pelos jesuítas no sul do Brasil, Paraguai e Uruguai no século XVII. Mas, "déspota esclarecido" à maneira de um Pombal, o Andrada não deixava de criticar "a teocracia absurda e interessada" dos jesuítas e o fato de não permitirem a miscigenação com os brancos. Nesse sentido, ele reconhece que o Diretório dos Índios dos tempos de Pombal tinha "benignas e paternais intençoens", mas que no fim das contas, com a destruição das Missões, os índios passaram a viver em mais pobreza e ignorância. Depois desse retrospecto histórico, que deveria servir de lição, o Andrada chegava ao presente. José Bonifácio desenvolveu então 44 proposições para uma política indigenista no Brasil, mesclando elementos do ideário pombalino (como o incentivo ao casamento entre brancos e índios e a gradativa
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transformação deles em súditos prósperos e livres da Coroa), com o exemplo das Missões (criando um Colégio de Missionários especializados em catequizar os índios e induzi-los às atividades produtivas, sobretudo na lavoura), sem desprezar a formação de novos Bandeirantes que caçariam os índios para trazê-los aos aldeamentos, mas pregando sempre cautela e paz. O trabalho cultural deveria merecer atenção destacada: substituição dos costumes indígenas pelo culto católico e ensino massificante do português escrito e falado, tudo na base da persuasão e convencimento, com paciência e sem violência, segundo suas palavras. Seria criado ainda um Tribunal Superior para reger e legislar os aldeamentos, composto de autoridades civis, militares e eclesiásticas de cada província. Bandeirantes, missionários, administradores e iluminismo: eram elementos já tradicionais, mas Bonifácio inovava pela mescla e pelo momento em que expunha tais proposições - não pregava a guerra ofensiva, mas propunha outras formas de sujeição, mais modernas. No entanto, o projeto também não teve futuro imediato. Como se sabe, a Assembleia Constituinte foi dissolvida pelo imperador que outorgou, ele mesmo, uma Constituição. Diversos deputados e redatores de jornais foram presos e exilados, entre eles José Bonifácio que passou sete anos fora do Brasil. Com a dissolução da Constituinte, o país recém-independente começa a se organizar - não pelo exercício do debate no Poder Legislativo, nem pelas polêmicas na imprensa ou na prática das associações, pois todos esses canais se encontravam reprimidos com o verdadeiro golpe militar que marcara o fim dos trabalhos dos deputados da Constituinte em 1823. A reorganização política inicia-se pela via da imposição do Poder Executivo concentrado na mão de D. Pedro I, do chamado grupo cortesão e dos aliados provinciais. Um dos homens que passa a exercer as funções-chave na nova situação é João Severiano Maciel da Costa, marquês de Qyeluz. Maciel era natural de Minas Gerais e, por isso, conhecia de perto o problema dos Botocudos. Além disso, ele se distinguira na ocupação portuguesa na Guiana Francesa ao tempo de D. João e se notabilizara por valorizar a importância das Ciências Naturais no estudo e recolhimento de plantas economicamente importantes. Maciel era o principal signatário da Constituição de 1824, que ajudara a elaborar, tornara-se o ministro mais influente (ministério do Império) com a saída de cena de José Bonifácio, além de membro do Conselho de Estado.
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Por sua mão passaram assuntos vitais, como a reforma ministerial e a lei de imprensa, entre outros. Maciel decide também se dedicar à questão dos Botocudos, cada vez mais aguda para o país que buscava consolidar-se internamente e obter lugar destacado no cenário internacional- a começar pelo reconhecimento da Independência pelas grandes potências. Pelo decreto de 28 de janeiro de 1824, o ministro Maciel publicou o Regulamento interino para o aldeamento e civilisação dos Indios Botocudos do rio Doce, da província do Espfrito Santo. 10 Tratava-se de mais uma investida contra a resistência dessas tribos, desta vez com efeitos consideráveis. O decreto (que não tinha a mesma profundidade e alcance do projeto de Bonifácio, engavetado) criava três aldeamentos nas margens do rio Doce, que teriam um diretor responsável, um secretário, um cirurgião com botica, um prático-mor para a barra do rio Doce e uma guarda com oitenta soldados. Essas aldeias estariam subordinadas ao Ministério do Império, com a mediação do governo da província. Entre os objetivos, estava o de ensinar aos índios a agricultura e permitir a navegação pelo rio Doce. A previsão era separar "terrenos" para os índios e "Sesmarias" para os colonos que aí quisessem estabelecer-se. Havia a preocupação de não dizimar ou expulsar os índios e, sim, de integrá-los paulatinamente à sociedade brasileira, embora sem maiores detalhes dos meios de tal integração. Era, pois, uma incorporação subalterna que se oferecia aos Botocudos, antigos senhores das terras. 11 Assim, com tal medida, a Coroa brasileira atacava em várias frentes e operava, à sua maneira, uma síntese das diversas propostas já elaboradas em torno desses índios. O estilo leigo, a predominância da administração pública e o nome de diretor mostrava a influência pombalina, já que a Igreja era deixada de lado da empreitada. A preocupação com a navegação e a agricultura evidenciava as demandas dos grupos econômicos locais e o resgate do sonho de se criar uma colônia próspera na região - privilegiando, pois, a linha do desenvolvimento econômico e do apoio às frentes civilizatórias para obter o controle do território. Embora não revogada oficialmente, a ênfase 10 ]. S. Maciel da Costa. "Ofícios sobre a existencia de indios botocudos as margens do Rio Doce" [1824] . Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 6 (24), pp. 480-3, 1845. 11 Registro da correspondência do Espírito Santo . .. , 28-1-1824, AN.
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na guerra ofensiva era deixada de lado. Mas a militarização estava presente ainda, não só no corpo de soldados que formava a maioria do pessoal, mas pela escolha do diretor dos aldeamentos, que recaiu sobre um militar, o coronel]ulião Fernandes Leão, que já atuava com os índios da região desde a época de D. João VI. Buscando completar a estratégia traçada em relação aos Botocudos, o governo do Primeiro Reinado nomeia como diretor-geral dos Índios do Espírito Santo, em 1824, o francês Guido Marliêre, que fora o companheiro de Eschewege em 1811. Marliêre (do qual se falará mais adiante) partia de uma atitude de certo respeito e até de alguma empatia com os índios - sempre tentando atraí-los para a civilização ocidental, mas privilegiando meios pacíficos. E dessa maneira o governo central brasileiro mantinha uma porta aberta para a mentalidade científica europeia que não via nos índios um adversário, mas um interessante objeto de estudo ou uma manifestação original do "homem americano", além da chance de poder aproveitá-los no sistema produtivo. Com o coronel Julião no comando das tropas e com Marliêre à frente do contato, os Botocudos continuavam diante de duas opções: a espada e a pluma; ou partiam para o confronto ou buscavam integrar-se (e se entregar) pacificamente. As duas tentativas foram feitas pelos índios. Também dos brasileiros, diversas movimentos surgiram: eliminar os índios pela guerra, submetê-los à escravidão, ou integrá-los de maneira mais ou menos pacífica à sociedade dominante. A Coroa, no Primeiro Reinado, definiu-se pela última opção - o que geraria um certo descompasso dos dirigentes da Corte com as duas partes, imersas num conflito sangrento e tricentenário: de um lado os colonos capixabas, mineiros e autoridades provinciais, que desejavam maciçamente usar o trabalho escravo indígena e se apossar das terras; de outro lado os Botocudos, que não deixariam de reagir a mais uma investida. O governo do Espírito Santo chegou mesmo a solicitar à Corte autorização para o recolhimento de "porções destes barbaros para serem destribuidos no serviço de casas particulares e dos Arsenaes e obras publicas, com o que mais depressa se civilizarão, sem tanta despesa"Y Percebe-se assim que tipo de integração era oferecido aos Botocudos: a escravidão mal disfarçada. O!Jando pediam autorização, u Correspondência da Presidência da prll'lJÍncia do Espirita Santo . .. , 12-4-1822, AN.
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os governantes locais pretendiam legitimar uma situação instalada. Tanto que o governo imperial respondeu ao pedido ordenando que os índios já capturados e repartidos entre as fazendas como escravos fossem imediatamente devolvidos aos aldeamentos. A correspondência subsequente não menciona mais o destino dos índios em questão - talvez tenha prevalecido um silêncio tácito entre as divergentes autoridades e permanecido a escravidão.U Com os trabalhos de construção do aldeamento e implantação do novo esquema de controle, além da manutenção e reforço dos quartéis, os Botocudos logo perceberam que estavam diante de uma investida de grande vulto (era o primeiro passo da política indigenista do Brasil independente sobre essas tribos). E perceberam de várias maneiras, algumas dramáticas, este novo tempo de fundação da nacionalidade que chegava. Como o Brasil recém-proclamado chegou até esses índios? Entre os primeiros sinais veio uma epidemia de bexiga (varíola). Uma tribo inteira, a do chefe Jacu, foi dizimada pela peste, que começou a ceifar vidas, num quadro apocalíptico. 14 A primeira trombeta foi soada pelo próprio Jacu, cambaleante, que chegou ao aldeamento e quartel da Onça Pequena em dezembro de 1823 amparado por seu filho Kijame. Era a época das chuvas violentas na Mata Atlântica: granizo, fogo e sangue, misturados, caíam na terra, destruindo árvores e relva verde. Atrás dos dois índios vinha o resto da tribo, todos infectados. O aldeamento se transformou num purgatório: gemidos e agonia pelo chão, corredores e cômodos. ~ando a segunda trombeta tocou,Jacu e sua mulher Punanj foram as primeiras vítimas, seguidos, poucas horas depois, de uma filha pequena: uma parte das criaturas morria, parte das águas e montanhas se abriam para recebê-las. Ao soar a terceira trombeta, Kijame, à maneira de todas as nações, tribos, povos e línguas, coloca o corpo do pai nos joelhos e entoa canção fiínebre. Em seguida, veste-o com a farda de capitão (que o chefe recebera recentemente como signo de sua adesão à sociedade brasileira), cujos galões e botões tornavam o corpo como um astro ardente que caíra em facho do céu. ~ando tocou a quarta trombeta, até soldados do quartel choravam diante da cerimônia fiínebre: os habitantes da terra, feridos, aguardavam as outras trombetas que ainda iam soar. Tocou a 13
Registro da correspondência do Espírito Santo . . . , 4-6 e 18-9- 1824, AN. As informações contidas no trecho a seguir foram extraídas de G. T. Marliêre, ofício de 5-1-1825. RAPM. . ., 1905, pp. 541-2. 14
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quinta trombeta. Kijame chamou os sobreviventes para fugirem enquanto era tempo, mas eles, sem forças, não atenderam. O tormento não era morrer, mas sofrer: a morte fugia, prolongando o sofrimento. A sexta trombeta soou. Desgarrados, tropeçando, os sobreviventes tentavam escapulir pelos matos e, tocados pela praga, iam caindo. Exalavam fogo, enxofre e fumaça. Horas depois, ao redor de duas léguas, todos estavam mortos. Fez-se silêncio nos céus, mas a sétima trombeta não soou ainda. Os povos, as tribos, as línguas e as nações verão os cadáveres insepultos pelos séculos dos séculos. Até que o sétimo anjo toque a trombeta sobre as nações que se haviam enfurecido, recuperando o tempo de julgar os mortos, de dar recompensa aos pequenos e grandes e exterminar os que corrompem a terra. O ministro Maciel, informado do ocorrido, limitou-se a lamentar "o descuido de não terem sido vaccinados" os índios e ordenou a retirada do local dos que não estivessem infectados. 15 Entretanto, nos anos seguintes, novas epidemias de varíola atingiriam estes índios. 16 Uma epidemia de oftalmia deixou pelo menos oito Botocudos cegos na região do CuietéY Além das epidemias, ocorriam outros problemas. Os contatos com os Botocudos se intensificaram após a Independência e a Guerra de 1808-1824, mas logo faltaram recursos para manter essa dispendiosa e demorada fase de adaptação das tribos à vida sedentária e produtiva. As correspondências do presidente da província do Espírito Santo para a Corte entre 1824 e 1826 batem sempre nesta tecla da falta de dinheiro para se efetuar a integração dos índios. É o que diz o presidente Inácio Accioli para o ministro Maciel: [...] accomodar com mais despesa de trinta mil reis um magote de Gentio, que sahio de paz em outro ponto desta Província, por não achar ainda no Rio Doce o commodo, e alimento que buscão. [... ] por outro lado os magotes que de dia em dia apparecem em outros pontos com grave damno dos Lavradores, que exigem despesas para se conservar com elles amisade e chama-los a civilisação. 18 15 Registro
da correspondência do Espfrito Santo . .. , 18-9-1824, AN. Oficios de 31-1 -1834, p. 299 e de 3-3-1835, p. 327, Série Accioly, Livro 67, Apes. 17 G. T. Marlíêre, ofício de 26-12-1825. RAPM.. . 18 Correspondência da Presidência da provfncia do Espfrito Santo para oMinistério do Império . . ., 5-4-1824, AN. 16
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Além da falta de recursos, o relato acima mostra como a presença crescente dos não índios, no que até então era território predominantemente indígena, causou abalo na vida das tribos, que vagavam de um lado para outro não mais dentro dos comportamentos nômades que marcavam sua organização social, mas em busca de awa1ios que não chegavam e deparando-se a toda hora com novos invasores, proprietários e frentes de expansão (Figura 24). A ocupação do território por mais colonos desestruturava a vida desses grupos. As delimitações territoriais entre as tribos- elemento básico da vida desses povos - se pulverizavam, desarticulando os limites e códigos: subsistência pelos terrenos de caça e colheita, relações intertribais, trocas, vinganças, alianças - tudo parecia ruir e a esperada ajuda dos "brancos", que pretendia substituir estes modos de vida, não chegava a contento. Era momento difícil na vida das tribos chamadas de Botocudos. A perspectiva dos governantes locais, entretanto, era outra: "da visinhança de Collonos civilisados resultão grandes beneficios a civilisação dos selvagens". 19 Em julho e agosto de 1824, diante da instabilidade da situação, que persistia, o presidente capixaba previa o pior ("hum terrível mal vai cahir"): a pacificação dos índios paralisada pela falta de dinheiro, as tribos vagavam de um lado para o outro alimentando-se das plantações e criações dos fazendeiros (que se irritavam com isso) e novas epidemias de varíola se manifestavam ceifando a vida de muitos índios. O quadro era tenso e potencialmente explosivo. 20 A resposta dos Botocudos ao novo impulso dado às frentes civilizatórias foi à altura das iniciativas do governo brasileiro. Diversas tribos vindas dos rios Doce e Itapemirim começaram não mais a vagar de um lado para outro, mas agora com destino definido. Ao mesmo tempo, bandos vindos dessas duas localidades deslocaram-se numa marcha em direção ao litoral, mais precisamente para Vitória. 21 Tudo indica que houve acerto entre eles, pois a marcha foi quase simultânea. 19 Correspondência da Presidência da província do Espírito Santo para oMinistério do Império . . ., 25-5-1824, AN. 2 °Correspondência da Presidência da província do Espírito Santo para oMinistério do Império . .. , 1.0 -7, 22-7 e 4-8/1824, AN. 21 A documentação sobre esta ida dos Botocudos a Vitória não se encontra na correspondência oficial da província no AN, há uma lacuna na sequência cronológica do acervo, como se tais papéis tivessem sido retirados. Outros documentos, entretanto, como as Atas das Sessões do Conselho do Governo, aparecem transcritos nas Notas . .. de Rubim, 1856, de onde extraímos as referências dos parágrafos seguintes.
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Desta vez o peso das ameaças externas parecia superar a facciosidade, levando as tribos a tentar uma ação conjunta contra o inimigo comum. No dia 1. 0 de outubro de 1824 o Conselho de Governo do Espírito Santo reuniu-se às pressas. O "gentio do Rio Doce" estava às portas da capital. Eles não atacavam, mas pareciam aguardar as tribos do rio ltapemirim, que também caminhavam para lá. Porém, houve decalagem entre as caminhadas dos grupos indígenas que partiram dos dois locais diferentes. Aproveitando-se desta brecha, as autoridades procuraram contornar a situação. O governo decidiu alojá-los na ilha do Príncipe e eles aceitaram. As autoridades ofereceram alimentos, provisões, e os índios receberam. E o governo pediu para que eles retornem ao rio Doce- aí, eles não aceitaram. A lógica era cortante. Os Botocudos atravessavam a fronteira da floresta na tentativa de ocupar a cidadela urbana. No momento em que a civilização ocidental instalava-se no coração do território indígena, as tribos se instalavam na capital da província. Mais uma vez a alteridade perturbava a lógica de uma Conquista que, ao longo de três séculos, ainda não se consumara. No dia 16 de outubro a crise persistia. Os índios recusavam-se a voltar. Os moradores de Vitória estavam vivendo "em grande alarma e terror pânico". Muitas fazendas dos arredores e casas dentro da capital foram abandonadas. Os moradores que não fugiram "armaram uma Bandeira", ou seja, pegaram em armas, reacendendo o espírito do Bandeirantismo. Os quartéis estavam em prontidão permanente. No dia 21 as tribos do Itapemirim chegam e ocorre o massacre. Os recém-chegados são rechaçados à bala, com numerosas mortes o que confirma, apesar da escassez de detalhes sobre tal fuzilada, que durante o Primeiro Reinado brasileiro ainda ocorriam combates sangrentos entre autoridades e índios. A partir daí, as tribos vindas do rio Doce se veem na posição de prisioneiras na ilha do Príncipe. Por três vezes elas tentam desembarcar no litoral e são impedidas. E assim, durante quatro meses, a situação foi tensa. O presidente do Espírito Santo, neste meio tempo, enviava longos relatórios à Corte, endereçados ao ministro Maciel, fazendo malabarismos verbais para defender a política de pacificação do Império e, ao mesmo tempo, justificar as violências praticadas e anunciar que outras agressões poderiam ocorrer. 22 É interessante notar que em 1824 o governo do Espírito Santo não pôde contar com uma ajuda efetiva das tropas imperiais para 22 Correspondência da Presidência da prov(ncia do Espfrito Santo para o Ministêrio do Império . .. , 20-10-1824, AN .
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reprimir essa sublevação dos Botocudos. No mesmo ano as atenções estavam principalmente concentradas em outra rebelião, em Pernambuco, que buscava separar-se do regime monárquico e se tornara sede provisória da República, proclamada com o nome de Confederação do Equador, envolvendo as províncias vizinhas, sobretudo Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Mal saído dos combates com as tropas portuguesas que resistiram à Independência até 1823, o governo imperial brasileiro se via às voltas com o federalismo e o liberalismo exaltado, reivindicações dos que pegavam em armas. Era a reação contra a centralização administrativa e os rumos que tomava a nova nação. Entretanto, seria um equívoco pensar que Botocudos e republicanos poderiam formar uma frente comum contra o Império. Ao contrário, a Câmara Municipal de Caeté, em Minas Gerais, pretendia até utilizar os guerreiros Botocudos pacificados como tropas imperiais para atacar possíveis incursões dos rebeldes da Confederação do Equador na província- o que não chegou a ocorrer. 23 Somente em 31 de janeiro de 1825 esvazia-se a tensão em Vitória: as autoridades capixabas conseguem negociar uma solução com as tribos que ainda se encontravam na ilha do Príncipe. Os índios recebem consideráveis provisões de milho e mandioca e se retiram para o rio Doce. O retorno desses índios que intentavam assediar a capital da província marca o fim da Guerra de 1808- 1824 e o início do declínio dos guerreiros Botocudos, que não puderam Reconquistar o território nem abalar a cidadela urbana. Vitória estava definitivamente nas mãos dos vitoriosos. Tal investida sobre a capital capixaba, caracterizando uma tentativa de insurreição dos índios, foi o último lance grandiloquente da guerra praticada desde os remotos tempos da chegada dos portugueses, encerrando a Guerra de 1808-1824. A partir daí os combates ainda ocorreriam, mas esporádicos e acompanhados de uma política civilizatória de mais em mais consistente que paulatinamente iria estrangulando as tribos que restavam. Muitas mortes ainda ocorreriam. Continuavam, nesta fase nacional brasileira, o massacre, o movimento de extermínio e destruição e as resistências indígenas - pois a guerra começava a ser perdida pelos Botocudos, num processo que ainda levaria em torno de um século.
23
C. T. Marliere. RAPM.. ., ofício de 10-11-1824.
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Integração à sociedade brasileira: a violência por "meios brandos"24
Após a Guerra de 1808-1824, os grupos de Botocudos vivem cotidiano de tensões e dificuldades: embates bélicos intermitentes e a constante expansão das atividades agrícolas, mineradoras, comerciais e administrativas sobre suas terras. Forçava-se, assim, uma integração de tipo subalterna à sociedade brasileira que se consolidava, enfraquecendo o potencial guerreiro das tribos, mas realçando outras formas de resistência, como o aprendizado de iniciativas econômicas e a casarem ou terem filhos com não índios, que levavam a transformações na identidade étnica, mas não necessariamente à sua extinção, dada, porém, como inelutável pela perspectiva progressista típica dos Oitocentos. Depois dos episódios do cerco a Vitória e do decreto do marquês de O!Jeluz em 1824, mais três aldeamentos foram criados ao longo do rio Doce, a fim de melhor controlar as tribos e consolidar a presença militar na região. Estradas eram abertas mantendo o binômio caminhos e povoamento. Os quartéis serviam como ponto de apoio às frentes de expansão. Nos anos que se seguiram à Independência, grupos de mineradores nacionais e internacionais, comerciantes, fazendeiros, coletores de plantas medicinais ou mesmo "vadios" (delinquentes, desertores, desempregados, etc.) ganhavam espaço e desbravavam a Mata Atlântica (Figura 24). 25 A mineração foi retomada, entre outros, pelo coronel Julião Fernandes Leão, que pede licença do seu cargo de diretor dos Índios e vai explorar as famosas Minas do Castelo, desativadas desde os tempos dos Aimorés. Julião monta sua expedição: dewito escravos negros, três índios Botocudos, oito homens assalariados e dois velhos que haviam trabalhado nestas minas. O grupo instala-se nas ruínas 24 A integração dos índios à sociedade nacional no século XX, com suas formas de coerção e violência, foi estudada, entre outros, por Darcy Ribeiro (1996), que desenvolveu importantes considerações teóricas e metodológicas sobre o tema. 25 Sobre a devastação da Mata Atlântica e sua relação com as vidas dos grupos indígenas, bem como os projetos de exploração e preservação, v. as obras de W . Dean, 1997 e J. Augusto Pádua, 2002; especificamente sobre os Botocudos e a devastação ambiental em Minas Gerais, v. R. H . Duarte (2002) e, no Espírito Santo, R. Medeiros (1983).
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Figura24
causadas pela Reconquista dos índios e começa a trabalhar recolhendo ouro e recuperando o local para a Conquista. Eram, segundo as palavras do militar, "Sertões habitados de Feras e de Selvagens unicamente". Durante oito meses o grupo abriu cinco novas minas e mais seis léguas de estrada, recolhendo considerável quantidade de ouro. Os Botocudos, que normalmente frequentavam o local para se alimentarem nos pomares e hortas que sobraram, não apareceram nenhuma vez durante a estada do grupo, embora fossem vistos sempre rastros frescos e outros indícios da presença deles nos arredores. O coronel Julião, depois dessa jornada, parece ter feito seu pé-de-meia: abandona o serviço militar e a vida pública e vai viver tranquilamente na sua Fazenda Regência, nos arredores de Vitória. Saía de cena um dos importantes guerreiros e pacificadores dos Botocudos nesta fase crucial que engloba os governos de D. João Vl e D. Pedro I. Na mesma época o tenente-coronel Inácio Pereira Duarte Carneiro (construtor da estrada Vitória-Vila Rica e futuro presidente do Espírito Santo) ganha concessão para explorar outras minas na mesma região do Castelo. 26 26 Correspondência da Presidência da província do Espírito Santo para o Ministério do Império ... , 31-8-1824 e 2-8-1826, AN.
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Penetravam pelos territórios indígenas - no século XIX grupos que se autodenominavam de Entradas e Bandeiras. Entre elas, a Bandeira capitaneada por Francisco Teixeira Guedes que percorreu o rio Todos os Santos em 1829 para fazer mineração na serra das Esmeraldas. Mal começou o garimpo, os Botocudos atacaram pondo-os em retirada. Isso mostra que a resistência indígena continuava de maneira significativa, apesar da situação que lhe era desfavorável. 27 A crescente presença do capitalismo inglês no Brasil nas primeiras décadas dos Oitocentos teria peso sobre o destino das tribos de Botocudos de Minas Gerais. Não foi apenas em torno da abolição do tráfico de escravos da África que a Inglaterra marcou presença, mas também sobre os índios, embora de maneira menos ostensiva e ainda mal conhecida. Já em 1825 (decreto de 6 de maio) o governo de D. Pedro I aprovara a concessão da Sociedade de Agricultura, Mineração e Navegação do Rio Doce para capitalistas ingleses. Entretanto, o Conselho de Governo da Província de Minas Gerais opôs-se com vigor a tal medida. O presidente desse Conselho era Bernardo Pereira de Vasconcelos, que se destacou como um dos políticos mais antibritânicos do período, fazendo oposição sistemática à predominância inglesa e também ao imperador, ao mesmo tempo que defendia os interesses escravistas e comerciais brasileiros. A concessão acabou revogada. 28 Com a saída de D. Pedro I do poder em 1831, a Regência que se instalou decretou a abolição do tráfico de escravos da África medida que só seria efetivamente cumprida em torno de 1850, mas que naquele momento visava atender às pressões britânicas e de parte das demandas oriundas de setores reformistas da sociedade brasileira e, ainda, da pressão indireta dos cativos através de resistências diversificadas. Nos primeiros tempos da Regência foi revogada a guerra ofensiva decretada em 1808 por D. João contra os Botocudos da região do rio Doce e contra os "Bugres" de São Paulo. Na verdade, durante o Primeiro Reinado, a guerra ofensiva desaparecera do discurso oficial. Cabe perguntar: por que tal gesto de abolir a guerra ofensiva tantos anos depois? Um surto humanitário atingira subitamente as elites 27
Cf. T. Ottoni, cit.
28
O . T. Sousa. Bernardo Pereira de Vasconcelos . .. , p. 26
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dirigentes da Corte? A preocupação com a sorte dos índios era uma das prioridades da Regência?29 O decreto em questão (27 de outubro de 1831) revogava as Cartas Régias joaninas "na parte em que autoriza na Provincia de Minas geraes a essa guerra e servidao dos Indios Prisioneiros". 30 Ou seja, eliminava a guerra declarada formalmente pela Coroa e também a escravidão- mas mantinha a militarização do território indígena, ponto básico das Cartas Régias. Assim, pelo menos juridicamente, o Estado brasileiro se eximia da responsabilidade da guerra contra os índios e também proibia a condição servil deles, embora os mantivesse sob a tutela oficial e militar. A mesma lei afirmava que os índios em estado de servidão seriam "desonerados" dela e, ainda, estendia aos índios do Brasil em geral a condição jurídica de órfãos, que deveriam ser amparados pelo Estado até que aprendessem ofícios. O decreto, porém, não detalhava meios nem a fiscalização necessária para reverter a escravidão dos índios - e tal prática continuaria a ocorrer de forma espalhada e mais ou menos disfarçada ao longo do século XIX. Em rápidas pinceladas, sem aparato erudito e dispensando alentados projetos civilizatórios tradicionalmente dirigidos aos Botocudos, a Regência traçou sua posição. A preocupação do governo brasileiro com a escravidão dos índios não produziu maiores consequências. Os anos 1830 e 1840 foram marcados pela continuidade da escravização e tráfico de Botocudos, como se verá adiante, e não se conhecem medidas efetivas da Regência ou do governo de D. Pedro II para coibi-la. Mas além de abolir formalmente a servidão, o decreto regencial apontava para o aprendizado de ofícios como forma de integração dos índios à sociedade nacional. Ora, a preocupação em abolir a escravidão (ainda que apenas formalmente) e ao mesmo tempo formar mão de obra livre especializada atendia a que interesses? Para quem o terreno estaria sendo preparado? Menos de um ano depois (6-7 -1832), novo decreto regencial determina a transferência de aldeias para novos estabelecimentos e a venda pública de terras indígenas, o que geraria uma verdadeira investida sobre tais áreas. 31 29
Sobre o contexto, v. M. Morel, O período das R egências (1831-1840} .. .
°Collecção das Leis do Imperio do Brazil. . .
3
31 M . M . C. da Cunha. "Política indigenista no século XIX". ln: Idem (org.), História dos índios no Brasil. .. , pp. 144-5.
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Não tardou para que fosse apresentado à Regência um plano para organização da Companhia Brasileira do Rio Doce, definida como "uma Sociedade pela união de Capitalistas Brazileiros e Inglezes", cujo objetivo era estabelecer a navegação entre o Rio de Janeiro e a foz do rio Doce e em todo o seu curso, além de promover agricultura, colonização nas terras das margens fluviais, mineração, extração de sal à beira-mar, abrir caminhos terrestres, etc. O responsável pelo projeto chamava-se João Diogo Sterz Stockexchange (o sobrenome comporta curiosa associação de palavras). Mas desta vez, para evitar reações protecionistas em defesa do mercado interno, apareciam incorporados como sócios da empreitada os nomes mais expressivos da política brasileira, a fina flor da elite dirigente das Regências e dos liberais Moderados: Evaristo da Veiga, Hermeto Carneiro Leão, Chichorro da Gama, Limpo de Abreu, Antônio Ferreira França, Miguel Calmon Du Pin e Almeida, Francisco Jê Acaiaba Montezuma, além de Estêvão Ribeiro de Resende (barão e futuro marquês de Valença), marquês de Inhambupe e outras figuras da monarquia. E quanto aos Botocudos? O referido plano de colonização afirmava: os que aparecessem seriam logo empregados como canoeiros, lavradores e lenhadores. Pretendia-se, a princípio, uma colonização "mansa", na qual os índios seriam tratados "com todo o melindre, circunspecção e justiça". 32 Os capitalistas ingleses também se faziam presentes na mineração nos arredores de Caeté, Mariana, Ouro Preto e São João del-Rei - áreas que, anos antes, ainda eram em parte ocupadas pelos Botocudos. A Brazilian Company (1832-1844) e National Brazilian Mining Association (1833-1851) funcionavam nestes locais. 33 Ainda que tardiamente (em relação ao apogeu da extração), a mineração era feita nas áreas onde a presença indígena até então a impedira ou dificultara. Da mesma maneira que as pesquisas históricas falam da influência britânica na escravidão africana no Brasil, é importante também considerar como os interesses econômicos ingleses afetaram a vida das populações indígenas - deixando às autoridades nacionais o ônus de "limparem o terreno" e nem se dando ao trabalho, neste caso, de 32 ]. D. S. Stockexchange. "Plano para a organização de uma sociedade com a denominação de «Companhia Brasileira do Rio Doce»" [1832] . RAPM, IV, 1899. 33 F. Iglésias. "Minas Gerais" . . . , p. 396.
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elaborar grandes argumentos humanitários para exploração dos territórios e da mão de obra indígena. Se no caso dos escravos africanos a passagem para o trabalho livre, ainda que apenas hipoteticamente, pudesse ter uma conotação humanitária, no caso dos índios, a passagem da vida tribal para a inserção no mercado de trabalho representava uma violência mais evidente, dado as resistências que muitos opunham. Nesses casos o interesse poderia ser de eliminá-los, já que não se prestavam para mão de obra. Nessa prática de extermínio dois índios Botocudos ficaram famosos na região: Cró e Crahy. Feitos prisioneiros pelos soldados e "adestrados", tornaram-se temíveis mercenários, a soldo dos brasileiros, cuja missão profissional era matar índios e dizimar tribos. Esses dois índios excediam em violência os mais ousados soldados brasileiros. Da atividade desses dois surgiu o termo, usado na época, de "matar uma aldeia", que constituía em dizimar de uma vez um grupo inteiro de Botocudos, sem poupar velhos, mulheres e crianças. Em 1830 houve um desses episódios trágicos. Um grupo de índios, reagindo contra trabalhos forçados numa fazenda em Córrego Novo, distrito de Calhão (MG), assassinaram diversas pessoas da família do proprietário. Os moradores "brancos" da região, sedentos de vingança, formaram uma verdadeira tropa, chamaram alguns soldados para reforçá-la e colocaram à frente Cró e Crahy- que eram, aliás, originários da tribo em questão. Marcharam para a localidade chamada Capivara. Nenhum dos atacantes foi morto. Ottoni resumiu o que se passou do lado dos índios, enojado: "A aldeia foi um açougue, não um lugar de combate". Contam que Crahy, numa prova de fidelidade, matou com as próprias mãos a mãe de sua mulher. Ainda em 1854, na localidade de Guariba, às margens do rio Jequitinhonha, os mesmos mercenários "mataram'' outra aldeia - em represália ao assassinato, pelos índios, de um morador branco da região. 34 Este foi um exemplo de como os colonizadores conseguiram canalizar a energia guerreira de índios contra os próprios grupos indígenas aos quais pertenciam. Belicosidade acrescida da desagregação dos valores culturais e sociais dos mesmos índios, a ponto de fazê-los matar a própria tribo ou grupo familiar. O laço que ligava esses dois índios guerreiros e exterminadores de seu próprio grupo aos assépticos capitalistas ingleses e aos poderosos interesses econômicos brasileiros podia não ser 34
T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri" . ..
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visível ou formalizado legalmente, mas era o mesmo que buscava estrangular a resistência indígena em nome do triunfo da civilização ocidental e da sociedade nacional em busca do progresso. Aqueles dois índios converteram-se em braços dos impérios britânico e brasileiro. Três décadas depois da declaração da guerra ofensiva de D. João, alguns Botocudos, de temidos guerreiros que infringiam medo, tornaram-se miseráveis, a ponto de causar incômodo na população brasileira que vinha se instalar nas áreas que até então pertenciam às tribos. O contato com as frentes de expansão, quando não ocasionava chacinas, acabava por inserir os índios na sociedade nacional. Mas era uma inserção geralmente subalterna e parcial. Em palavras claras: tornavam-se famintos. A fome crônica nos territórios brasileiros. Em 1830, por exemplo, um grupo de cerca de cem Botocudos atacou o quartel do Porto de Sousa (ES), resultando do conflito dois soldados feridos a flechas e dois índios mortos a tiros (entre eles o cacique Araque, "por serem os mais teimosos em investir o quartel"). O motivo do ataque, segundo as autoridades locais, foi "a fome que os Botocudos sofrem". 35 O mesmo relato contém uma frase lapidar dirigida ao ministro do Império: "Tenho a honra de participar a V. Exca. que os Boticudos não estão satisfeitos." Desse modo, a insatisfação dos índios e suas iniciativas, ainda que não registradas em escrito por eles, expressavam-se em palavras e gestos que, por sua vez, ganhavam tradução e forma escrita nos registros oficiais, permeados assim pelas presenças e vontades indígenas. Grupos destes índios foram vistos em torno de Belmonte em 1838 mendigando pelas fazendas, infectados por diversas doenças, nus ou vestindo farrapos (Figura 25). Um abaixo-assinado dirigido ao imperador chamava atenção para o "lamentavel estado de desleixo e abandono total em que vivem os Botecudos, que andam vagando à direção pelas margens deste rio". Ou então uma carta dirigida ao chefe de polícia pela comarca da Vila do Rio Grande do Belmonte, do mesmo ano, referindo-se a um grupo de "Buticudos, ja quase 35
Oficio deJoão Antonio Santana para oMinistro e Secretario dos Negócios do Império, 1-10-1830, Série Accioly, Livro 67, Apes, p. 253.
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domesticos, no Estado antiquíssimo de sua criação [... ] reduzidos de nudez e falta de todos os socorros". 36 O clima de tensão evidenciado no testemunho é localizado: Belmonte, 1838. Eles resultaram de uma experiência malsucedida de sedentarização de um grupo de Botocudos que, na localidade conhecida por Capoeirinha, haviam se estabelecido em regime de pequenas plantações, com suas roças, três anos antes. Estes índios eram tidos como "meio selvagens" pelos brasileiros, ou seja, estavam numa situação híbrida. Mas estes Botocudos atacaram e mataram vários índios de outras tribos (não especificadas nos registros), provavelmente por antigas rivalidades tribais ou posse de territórios. Depois do conflito, os Botocudos largaram as roças e voltaram a se embrenhar nos matos, mas apareciam sempre nas fazendas pedindo alimentos e auxílios. Oltase domésticos ou meio selvagens - onde o "quase" e o "meio" parecem significar uma espécie de limbo, purgatório da civilização, mas também indicam resistência à dominação e permanência, ainda que com transformações, das identidades culturais indígenas diante das frentes civilizatórias. (f
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Figura 25 36
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Em 1840, desta vez na região do rio Doce, houve registro de "alguns casais de Botocudos pertencentes a huma família" que estavam "sofrendo a miséria da fome". 37 O testemunho confirma, ao mesmo tempo, a escravidão e a fome, associadas, nos sete adultos e duas crianças Botocudos. E chegando até o final da década de 1840 ainda há referências de escravidão mal disfarçada de Botocudos. A amplitude destas práticas de posse de indígenas pelos brasileiros levou a um pronunciamento do presidente da província capixaba em 1848 que, com certo melindre, assinalava aos deputados da Assembleia provincial: "[ ... ] há hoje muitos Botocudos espalhados por casas e fazendas particulares, onde trabalhão". Para em seguida comentar que era preciso "acautellar os abusos e falta de boa fé". 38 Mantinha-se, no Segundo Reinado, a mesma disparidade entre a visão ilustrada de alguns dirigentes com as violências cotidianas no convívio entre índios e brasileiros. 39 Também na Bahia a escravização não declarada de Botocudos existiu com frequência, pelo menos até 1846, quando as autoridades provinciais tinham por hábito distribuir os índios aprisionados ou retirados das florestas "por alguns amigos em perpétua domesticidade". 40 Além das terras, fica claro que a mão de obra indígena ainda interessava a parcela expressiva da sociedade brasileira em meados do Oitocentos. No caso dos Botocudos, bem como de outras tribos, registra-se ao longo de todo século XIX a incorporação cotidiana de índios arrancados das tribos ao trabalho não remunerado em fazendas, residências urbanas e obras públicas, prática que se generalizou em províncias próximas ao centro de poder imperial, verificando-se, assim, que a força de trabalho era ainda um componente importante do interesse sobre tais indígenas, ao lado da posse de suas terras. Os testemunhos acima (e outros citados a seguir e nos capítulos seguintes) apontam esta tendência de escravização e mesmo de tráfico de indígenas. 37 Ofício de João Rodrigues dos Santos Azevedo, Diretor das Aldeias do Rio Doce, 5-3-1840, Série Accioly, Livro 67, APES, p. 400. 38 Relatório do Presidente da Província do Espírito Santo, o Doutor Luiz Pedrosa de Couto Ferraz . .. , 1848. 39 A permanência da escravidão indígena em meados do século XIX é também assinalada por M .M . C . da Cunha. "Política indigenista no século XIX". ln: Idem (org.). História dos índios no Brasil. .. , p. 146. 40 Cf. T. Ottoni. "Noticias sobre os selvagens do Mucuri" ...
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Nos anos posteriores à Independência vemos índios que, após uma fase de contato com a sociedade brasileira, acabaram por se tornar miseráveis, despojados de suas terras e com suas formas de vida alteradas e ameaçadas. O que gerava tal arremedo de piedade entre os colonos era, sobretudo, o incômodo pela nudez, o temor de doenças com os quais os índios haviam sido infectados e a indisfarçável insegurança diante dos mendicantes que, premidos pela fome, poderiam voltar ao "antiquíssimo" estado guerreiro e atacar as propriedades pois a memória da Reconquista indígena ainda estava acesa na região. Os referidos colonos apelavam ao Estado monárquico para que, através da retomada da catequese ou da interferência mais direta da administração pública, houvesse uma solução para a questão indígena. Os comerciantes também estão presentes nessa invasão das terras indígenas. Diversas pessoas pedem ao governo capixaba autorização para se instalarem no Aldeamento de São Pedro de Alcântara, nas margens do rio Doce, sobretudo no ramo de secos e molhados. As autorizações são sempre concedidas sob o parecer de que o aumento da população branca vai "contribuir muito a civilisação dos Botecudos". O novo motor deixava de ser a guerra justa ou ofensiva para visar o progresso. Mas que civilização era essa na prática? Entre os comerciantes havia taverneiros. Começou a introdução da aguardente de cana entre as tribos, muitas vezes como pagamento de serviços prestados. O resultado, trágico, não se fez esperar: a cachaça "matta mais destes infelizes que a peste"Y Outra consequência deste contato mais intenso entre os Botocudos e a sociedade brasileira foi a presença, no território indígena, não só de grupos econômicos, mas de malfeitores, desertores, enfim, "vadios" que entraram de cheio na vida das tribos já fragilizadas e desestruturadas. Agrediam os homens, abusavam sexualmente das mulheres, escravizavam jovens e crianças e chegavam a formar bandos armados com alguns índios para cometer assaltos e outras formas de banditismo. 42 E, sobretudo, são as fazendas que vão ter papel marcante entre as frentes de expansão. Pelo relatório de uma visita de inspeção ao Aldeamento de São Pedro de Alcântara (feita pelo presidente do Es41 G . T. Marliêre. RAPM.. ., ofício de 11-7- 1825 e Correspondência da Presidência da Província do Espírito Santo para o Ministério do Império . .. , 11-6-1825, AN. 42 G. T. Marliêre. RAPM. . ., ofício de 11- 7-1825.
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pírito Santo, Inácio Accioli, em junho de 1825) pode-se perceber como era o cotidiano dos grupos aldeados, as transformações que ocorriam em seus modos de vida e a influência que as propriedades rurais podiam ter sobre as tribos. O governante pretendia encontrar os mais de cem Botocudos (pertencentes, segundo ele, a quatro famílias - o que poderia equivaler a clãs ou mesmo a fragmentos de quatro tribos que se juntaram) que moravam lá, mas estes, cinco dias antes da chegada da autoridade, haviam pedido licença para saírem a caçar e colher cocos de sapucaia. Estavam no aldeamento apenas dezesseis índios, homens e mulheres, que não quiseram acompanhar os demais. A crer na observação de Accioli, estes que ficaram estariam mais adaptados à sedentarização, pois "vivem contentes e entretidos na Pescaria". Q.tanto aos demais, que formavam um considerável grupo, foram seguindo pelas margens do rio Doce até a fazenda da viúva de João Filipe Calmon, onde compraram a dinheiro bananas, canas e laranjas, já que os mantimentos fornecidos no aldeamento estavam acabando. Como haviam se passado apenas cinco meses do desfecho da invasão de Vitória pelos Botocudos, Accioli tratou de evitar conflitos ou reações da parte de colonos e autoridades locais e, para isso, expediu mensagens recomendando bom tratamento e mesmo auxilio à centena de Botocudos que se locomovia. 43 O relato acima traz elementos importantes para o período posterior da guerra de 1808-1824 e da Independência. Esse aldeamento se transformara num verdadeiro centro de treinamento e adaptação dos Botocudos à sociedade brasileira- onde, estrategicamente, estava a fazenda de Calmon, que nos tempos da Guerra de 1808 fora uma das únicas pontes de ligação entre os dois lados do conflito. Os índios eram conduzidos a aprender os códigos básicos da civilização ocidental: desde as formas de ir e vir, passando pela relação com a floresta, com as maneiras de morar, vestir e até o uso do dinheiro e da prática regular do comércio. Embora, ao que parece, ainda não houvessem incorporado a produção agrícola. Entre estes Botocudos que aceitavam convivência constante e pacífica, havia diferentes gradações de comportamento e adaptação. Uma minoria tinha aceitado a sedentarização, parecia se satisfazer com a pesca e alimentos fornecidos no aldeamento, embora não praticassem 43 Correspondência da Presidência da Provfncia do Espfrito Santo para o Ministêrio do Império . . ., 11-6-1825, AN.
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agricultura. Outros, em maioria neste local, ainda guardavam traços do nomadismo, da caça e da colheita, mas de uma forma híbrida e controlada: para sair pediam autorização, pareciam regular estas saídas apenas pela subsistência (deixando de lado o nomadismo referente a valores rituais, como o abandono de um acampamento após a morte de algum membro da tribo ou pelo temor de "espíritos" da floresta), limitavam a colheita a determinado produto (o coco da sapucaia) e - o mais significativo - haviam introduzido o dinheiro nas suas relações de troca e passaram a adquirir nas fazendas frutas que até então eram colhidas livremente pela Mata Atlântica. As quatro "famílias" citadas pela autoridade capixaba, por exemplo, não estavam praticando agricultura. Registra-se também nestes primeiros anos posteriores à Independência uma intensa atividade extrativista da ipecacuanha, ao longo das margens do rio Doce, envolvendo índios Botocudos a uma considerável rede de comércio em torno deste produto. Tratava-se de uma forma de exploração da flora da Mata Atlântica. A ipecacuanha (também conhecida por poalha ou poaia) é uma planta medicinal utilizada em larga escala, com efeitos expectorantes e, em doses maiores, vomitório. Alguns brasileiros enriqueceram com essa atividade lucrativa e que, por ser extrativista, deixava aos índios que a praticavam uma certa liberdade de movimentação na floresta, poupando-os da sedentarização e da agricultura, embora mantendo-os vinculados ao comércio, na medida em que se transformaram em "poalheiros". Havia fartura dessa planta nas florestas da região, o que parece ter levado a uma colheita predatória e indiscriminada. A poaia era um produto de grande procura nas boticas (farmácias) dos centros urbanos. Para que fizesse o efeito desejado era preciso mastigá-la bastante antes de engolir e depois tomar uma dose de raiz-de-guiné para cessar a expectoração ou os vômitos. 44 Ndiv Nosso Senhor disse: Não há água. No mundo inteiro não há água. Então Ndiv Nosso Senhor falou: Eu vou lá à casa do beija-flor, vou beber água. Aí o beija-flor não deu. Então Ndiv Nosso Senhor disse à irara: Ó valentão, vá tomar água na casa do beija-flor. A irara falou: Se você me pagar, eu a tomo toda. 44 Há vários registros sobre a colheita da poaia: G. Marliere, RAPM. .. , ofício de 6-4-1825; W. Dean, 1997, pp. 147, 177, 380; Debret, 1940, prancha 9, 38.
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Ndiv Nosso Senhor falou: Pode tomar, eu dou vinte contos a você. A irara foi à casa do beija-flor. Foi lá pedir água primeiro. Então o beija-flor falou: Você traga dinheiro, senão eu não dou água. Depois a Irara entrou, tirou o pote e quebrou-o. Qyebrou o pote e o mundo inteiro tinha água. Então Ndiv Nosso Senhor falou: Agora nós temos água. O mundo inteiro tem água. Fez um festão de vinte dias de festa. 45 Esse relato mitológico traz elementos interessantes para conhecermos de que maneira as tribos de Botocudos perceberam a introdução de regras e valores comerciais para os produtos da floresta -fatores que ocasionaram mudanças na relação entre índios e brasileiros, mas também na própria relação dos grupos tribais com a natureza. Percebe-se aqui que a presença do dinheiro e da exploração comercial da floresta não destruiu a identidade étnica indígena, embora tenha servido para transformá-la profundamente. Esse mito de origem da água foi narrado de maneira sincrética, mesclando elementos da civilização ocidental (catolicismo e comércio) com tradições destes grupos, cujas relações com a Mata Atlântica eram antigas na época da chegada dos europeus. O beija-flor (que posteriormente será escolhido pelos ecologistas brasileiros como símbolo da Mata Atlântica), a exemplo de outros mitos recolhidos entre os Botocudos, aparece como o elemento criador da água. Mas aqui as relações estão pautadas pelo dinheiro e foi preciso que o pote da água fosse quebrado, rompendo também a lógica comercial, para que a água se espalhasse pelo mundo inteiro. Assim, invertendo o mito, a origem se transforma em utopia e a visão do passado condicionava a expectativa do futuro: só depois de quebrada esta relação mercantil que se implantava é que todos poderiam usufruir da água, fonte da vida e de uma relação harmônica entre os homens e a floresta. O conjunto de contatos com Botocudos mencionado nas páginas anteriores caracteriza, como já foi dito, uma forma de inclusão subalterna à sociedade nacional que se edificava. Pode-se constatar que as próprias frentes de expansão, muitas vezes, incorporavam os índios em suas flleiras como batedores, trabalhadores braçais para abrir caminhos na floresta e mesmo como proteção contra os índios hostis (Figura 26). Foi uma tendência que se acentuara durante a 45
Narrativa recolhida por Egon Schaden, 1947.
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Guerra de 1808-1824 e que ganharia ainda mais força após a Independência, persistindo no raiar do século XX: a utilização do trabalho indígena, inclusive de Botocudos, nas frentes de expansão.
Figura 26 Havia simultaneamente Botocudos que não aceitavam esta pacificação (e suas consequências) oferecida pelo Império e continuavam a guerrear. Os relatos de ataques a propriedades e quartéis e outras formas de resistência dos índios são constantes nas décadas de 1820-1830, o que mostra que os Botocudos continuavam a interferir como agentes históricos vigorosos no período pós-Independência. Ainda em 1825 autoridades capixabas lamentavam a grande despesa com construção de casas para Botocudos que fugiam para as selvas, deixando os imóveis vazios. Qlatro anos depois constava de dados oficiais que não havia nenhum Botocudo aldeado em Sousa (Linhares), localidade construída para este fim duas décadas antes. 46 46 Ofícios de 4-8-1825, p. 62 e de 25-12-1829, p. 179, Série Accioly, Livro 67, Apes.
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Dois soldados brasileiros foram mortos pelos índios no Aldeamento de São Pedro de Alcântara em 1826, o que ocasionou uma mensagem quase atrevida do governante capixaba ao governo central. Escreveu Inácio Accioli ao ministro José Feliciano Fernandes Pinheiro, visconde de São Leopoldo: "V. Excia. terá a bondade de fazer presente a S.M.I. [Sua Majestade Imperial] certificando à V. Excia. que estes Selvagens apesar do bom acolhimento que se lhe faz não se esquecem as vezes de nos atraiçoar quando podem."47 Em outros termos, o que o chefe do governo local dizia era algo como: é muito fácil querer ser progressista e civilizado no conforto da Corte, enquanto nós aqui é que temos de enfrentar os conflitos. O governante capixaba não parecia interessado em coibir as violências cometidas contra os índios e as determinações do governo central nesse sentido eram visivelmente dribladas. Na mesma época registram-se confrontos nos arredores de Linhares. Dois Botocudos que serviam de intérpretes aos militares foram mortos a flechadas por outros Botocudos que, vindos da parte norte do rio Doce, mantinham a guerra com os brasileiros. 48 Mais uma vez se verifica o ataque contra índios que não só aceitavam conviver com os brasileiros, mas que funcionavam como agentes das políticas civilizatórias. O gesto de matar os índios que assumiam tal papel é expressivo e certeiro: da mesma maneira que a presença da sociedade brasileira destruía os modos de vida e as próprias vidas em muitas tribos, havia um movimento de vingança e de revide, buscando destruir justamente os índios que simbolizavam, na prática, o êxito da colonização e da Conquista. A resistência guerreira dos índios às frentes de expansão permanecia. A fazenda Moribeca, no Espírito Santo, ficara conhecida na região como local de escravidão indígena, chegando a haver reclamações do governo imperial a este respeito, sem falar que foi nela que surgiu uma das epidemias de varíola que matou muitos índios. Em 1825 esta propriedade foi atacada pelos Botocudos, que fizeram 47 Correspondência da Presidência da Província do Espírito Santo ao Ministério do Império, 12-6-1823, AN. 48 Ibidern, 22-4-1825, AN.
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grandes estragos. No mesmo momento mais uma estrada estava sendo aberta, ligando Itapemirim a Minas Gerais. Trabalhavam na construção desta via alguns índios Puris que foram atacados pelos Botocudos. O sargento-mar Manuel José Esteves Lima perseguiu o grupo, matou três índios e prendeu uma mulher e um menino. O barão de Valença escreveu, do Palácio do Rio de Janeiro, lamentando o ocorrido e reiterando as propostas de civilização pela pacificação, porque desta "resultta o maior proveito a este Império". 49 Não consta dos documentos oficiais nenhuma punição ao referido sargento-mar. Qyanto ao aspecto proveitoso citado pelo ministro do Império, vale lembrar que ele próprio, Estêvão Ribeiro de Resende, futuro marquês de Valença, era natural das Minas Gerais, proprietário de terras na província e um dos sócios da Companhia Brasileira do Rio Doce, associação entre investidores brasileiros e ingleses que pretendia explorar as riquezas das terras indígenas. O assassinato dos Botocudos poderia servir como "limpeza do terreno" feita pela administração pública, visando interesses dos proprietários. Mas persistia a reação dos índios, exasperando militares que deveriam combatê-los. Veja-se as correspondências de João Antônio Lisboa, comandante do Qyartel de Sousa (Linhares), que em 1829 enviou sucessivas mensagens ao presidente da província do Espírito Santo, Inácio Accioly Vasconcelos, dando conta "das afflições que tenho por ver a abundância dos botecudos que sahem do matto" e que, premidos pela fome, alimentavam-se nas roças de propriedades locais, além de cercarem constantemente o quartel- o que levava o referido comandante a sentir-se inseguro e pedir com insistência reforço de mais soldados e orçamento para alimentar os índios. Por fim, o mesmo João Antônio Lisboa solicita demissão ou transferência do cargo, por não aguentar a pressão dos Botocudos. 50 A resistência indígena continuaria no período Regencial, diante das legislações e projetas que intensificavam o cerco. Mesmo entre os que aceitavam convivência com a sociedade nacional, explodiam situações de conflito localizado. Como no episódio do Qyartel de Divisão da V Linha, em Linhares, quando um soldado deu uma bofetada num chefe Botocudo em 1834. Do entrevera resultou que os índios atacaram 49
Registro da Correspondência do Espírito Santo . .. , 18-10-1825, AN. Ofícios de 10-3, 14-3, 2-5, 15-9 e 4-10 de 1829, pp. 145-60, Série Accioly, Livro 67, APES. 50
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a unidade militar levando alimentos e espingardas e matando dois soldados, enquanto outros dois conseguiram escapar a nado agarrados em troncos de madeira pelo rio Doce. O corpo de um dos soldados teve a carne da perna arrancada, gesto que parece reiterar uma tradição guerreira dessas tribos, descarnar corpos de adversários. É sugestivo notar que a acusação de antropofagia não aparece mais no discurso das autoridades, embora a vista de cadáveres mutilados ou descarnados pelos índios tenha sido o principal indício de acusação de canibalismo em outros tempos. No ano seguinte, na mesma localidade, o clima de tensão permanecia, como se percebe nas queixas de que os índios Botocudos "vêm e vão quando querem, andam nus, o que sem duvida he uma grande indecência para o povo desta villa". 51 O conflito permanecia, mesmo que assumisse dimensões bélicas apenas em momentos agudos. Aparecem nestas falas de autoridade local do Brasil oitocentista a resistência indígena através do nomadismo, traço marcante de suas culturas, resultando em modo de utilização das terras antagônico ao regime de propriedade privada que se alastrava, além de se contrapor aos códigos culturais básicos da civilização ocidental ao permanecerem nus.
*** Vimos nas páginas anteriores o efeito das frentes de expansão (mineração, comércio e agricultura) na vida dos Botocudos, causando perda de territórios, escravidão e mesmo fome crônica. Mas a integração desses índios à sociedade nacional no período pós-Independência, consequência também da Guerra de 1808-1824, tinha mais duas vias: a ida aos centros urbanos e a captura de crianças. Ao longo do Primeiro Reinado continua e se intensifica o movimento de índios em direção à capital do Império, semelhante ao que ocorrera no período joanino. O pintor francês Jean-Baptiste Debret presenciou vários índios, entre eles Botocudos, trazidos para a capital do Império, onde eram objeto de curiosidade da população (inclusive do próprio artista) e, depois de ficarem hospedados no Campo de Santana, eram levados para trabalhar nas obras públicasY D. Pedro I se ocuparia diretamente dos Botocudos. Seguindo o exemplo de seu pai e antecessor, o imperador também incentiva a 51 Ofícios de 31 -1- 1834, p. 299 e de 3-3-1835, p. 327, Série Accioly, Livro 67, APES. 52 Debret (1940, pp. 7-8) .
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vinda de alguns Botocudos para a capital do Império, de acordo com a correspondência do ministro Estêvão Ribeiro de Resende, marquês de Valença, ao governo do Espírito Santo: Manda Sua Magestade o Imperador, pela Secretaria d'Estado dos Negocios do Imperio, que o Presidente da Província do Espírito Santo remetta a dita Secretaria dous Indios, que não excedão a doze annos de idade, e manifestem bem formada constituição, e viçosa; para serem educados em um Collegio
[... ]. Tal pedido de D . Pedro I fora feito na véspera do Natal de 1824, como se, mesmo sem perceber, estivesse propondo o nascimento de um novo tempo para esses índios, que deveriam ser retirados das aldeias e dos conflitos que as envolviam para, de alguma maneira, se incorporarem à sociedade nacional. Semanas depois, o imperador acusa a "remessa" de dois índios menores de idade que foram recolhidos ao Seminário São Joaquim, onde seriam submetidos "com todo zelo de discrição no trato" ao ensino, à educação e à religião católica. 53 Em seguida D. Pedro solicita que mais oito índios fossem enviados à Corte nas mesmas condições. Os pedidos também se referiam a jovens, meninos. Foram reunidos apenas cinco Botocudos, julgados em condições de atenderem à demanda, por já estarem numa fase inicial de contato com a sociedade brasileira. A Portaria Imperial de 24 de dezembro de 1824 acusa a remessa de José Ponamgran (batizado e até então criado na casa do soldado da 6.• Divisão do Rio Doce, Joaquim de Sousa), José Haume (batizado e oferecido pelo cabo da mesma Divisão, José Monteiro), Lino Bokeune Tanuk (batizado e oferecido pelo soldado da mesma Divisão, Manuel de Araújo), Iknuk (apontado como catecúmeno e oferecido pelo cabo Simplício Roiz de Medeiros) e Krene-mang (também chamado de catecúmeno e oferecido pelo alferes Joaquim Roiz de Vasconcelos). 54 Esta simples lista oferece aspectos interessantes. Primeiro, quanto aos nomes, confirmando que estes índios batizados ganhavam um 53
Registro da Correspondência do Espírito Santo . .. , 24-12-1824 e 22-5-1825,
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G . T. Marliere, RAPM.. ., ofício de 6-4-1825.
AN.
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prenome português e mantinham o sobrenome indígena, embora aparentemente esta regra não se mantivesse para os descendentes. Ou seja, o sobrenome indígena não virava identidade familiar e nem se transmitia hereditariamente, como os sobrenomes de origem europeia: pareciam funcionar como etiqueta étnica e como expressão da fase lubrida que estes jovens índios recém-batizados viviam, mal saídos da tribo e ainda não incorporados à sociedade brasileira. Qyanto aos não batizados, ostentavam somente o nome indígena. O batismo aparecia como forma de incorporação, mas também de proteção dos índios diante dos que pretendiam eliminá-los: o índio batizado era cristão, tinha alma e portanto sua vida deveria ser preservada. Se o batismo visava evitar o extermínio, ele significava ao mesmo tempo uma incorporação subalterna e uma tentativa de negação ou ocultação da identidade étnica. O contato mais estreito com os não índios poderia significar a destruição pelas doenças ou pela condição social, associando assim o batismo com a morte. A lista desses cinco jovens Botocudos requisitados por D. Pedro I mostra também que, na medida em que os índios eram "oferecidos" ao imperador, é porque eles pertenciam a alguém- o que mais uma vez indica relação de posse de vidas humanas no período nacional brasileiro. Dentro da perspectiva ocidental, o homem civilizado tinha direito de possuir a Natureza, os animais e os selvagens, isto é, tudo aquilo que lhe fosse inferior ou não civilizado. Pode-se neste caso até especular se haveria uma relação de violência, de trabalhos forçados, ou de proteção e educação, ou todos estes aspectos misturados nesta posse de crianças indígenas. Mas o que havia aqui era escravidão e não incorporação à família - pois ninguém ofereceria um membro de sua própria família como doação. Isso mostra também que havia entre os soldados que cercavam os índios Botocudos este hábito de guardar para si as crianças - das quais é possível que os pais tenham sido mortos em combate. O que significava, para esses jovens índios - curucas, como eram chamados no idioma dos Botocudos, expressão repetida pelos não índios - não o extermínio de suas vidas, mas um tipo de inserção subalterna na sociedade. Essa preocupação de utilizar as crianças indígenas como veículos de incorporação era típica na formação da sociedade, hábito que vinha desde os primeiros tempos das Descobertas. Gilberto Freyre, ao analisar a presença indígena no seu modelo de formação da família e da sociedade patriarcal, destacou que as crianças (e as mulheres)
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foram principais responsáveis pelas marcas da presença indígena na sociedade brasileira. 55 Segundo o sociólogo, os homens, em geral, ou eram eliminados na guerra ou dizimados no trabalho escravo. Mas os curucas tapuias ou curumins tupis, desde os tempos das Missões jesuíticas, eram levados para os Colégios (Conventos). Esses Colégios exerciam papel semelhante ao da Casa-Grande para os jovens indígenas - local onde eles faziam sua incorporação na sociedade conquistadora e também, de alguma maneira, deixavam sua influência na cultura, nos jogos, brincadeiras, comportamentos e na "mistura" com os não índios. O que predominava em relação às crianças dos Botocudos era a escravidão - cujo tráfico chegou a se tornar considerável em Minas Gerais e Espírito Santo no século XIX. Em fins do Primeiro Reinado, por exemplo, autoridades capixabas registraram em Linhares a captura de "dous machos e três fêmeas" Botocudos. Esclareceu-se a seguir que eram crianças de três a doze anos destacadas para "aprender officios". O mesmo relatório indicava que a menor de todas, com três anos, estava muito doente e que duas meninas de doze anos ''já tiverão maridos". Nas entrelinhas colocava-se, com disfarce precário pelas palavras, a exploração sexual e do trabalho de crianças índias. 56 "Ha muitos Portuguezes Indios em Minas", alertava o francês Guido Marliere. A integração do índio à família patriarcal no Brasil ocorreu marcada pela escravidão e pelo esmagamento da identidade cultural - embora ainda não tenha sido bem dimensionado o outro lado da moeda, isto é, a presença e a herança indígenas na identidade nacional. A denúncia do preconceito contra os índios e seus descendentes não era uma quimera do Diretório do marquês de Pombal, mas ocorria de maneira vigorosa. Apesar desse processo de opressão, é possível falar em resistências e permanências indígenas. Mas o momento de fundação do Estado nacional brasileiro não precisa ser visto, sempre, do ponto de vista das mudanças. A nação recém-independente estava enraizada numa sociedade que não se transformava tão rapidamente. Independência podia também estar ligada à tradição. A questão da pluralidade de etnias, comunidades e identidades no território que se transformava institucionalmente em nação 55 G. Freyre. Casa-grande e senzala ... , pp. 88-187. 56 Ofício de João Antonio Lisboa em 12-1-1830, Série Accioly, Livro 67, p. 87, Apes.
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brasileira era bem complexa. Sobretudo diante do conceito moderno de nação, que implica homogeneidade e progresso. 57 Aqui valem rápidas palavras - no âmbito deste trabalho sobre a complexa relação entre os grupos étnicos presentes no território brasileiro em fins do século XVIII e começo do XIX. Para citar apenas alguns elementos, lembramos diferentes grupos indígenas, diversas origens entre escravos africanos, ciganos, sem esquecer os vários tipos de mestiçagem e a inserção dos mestiços na sociedade luso-brasileira e, ainda, o papel desempenhado pela Coroa e por outras instituições. Essa teia de relações foge a esquemas explicativos simplistas ou maniqueístas e tem sido estudada sob vários aspectos. No tocante aos índios, se fica difícil conceber o predomínio de um processo pacífico de integração com a sociedade (e a visão de Gilberto Freyre está eivada de uma certa docilidade patriarcal e também da afl.fmação da passividade indígena), não é possível também abordar exclusivamente o antagonismo, a destruição - o que acaba levando ao negativismo de anular a força dos índios que deixaram suas marcas na sociedade. Por outro lado, fica difícil aplicar para a época esquemas triunfalistas que tentam construir a imagem de uma aliança entre alguns destes grupos "dominados"- unificação que praticamente não ocorreu na época - sobretudo no caso dos Botocudos, a não ser em casos individuais. Dois anos após a Independência, as mentalidades e as instituições não haviam mudado tanto assim, pois o ministro Estêvão Ribeiro de Resende, marquês de Valença, talvez sensibilizado pela véspera de Natal em que escrevia a correspondência, recomendava que Botocudos conduzidos ao Rio de Janeiro fossem "tratados de maneira propria a fazer-lhes menos sensível a reprovação dos lugares em que nascerão".58 Reprovados pelo local onde nasceram. Esta simples frase do ministro (que nasceu em Minas Gerais, seria senador pela província e conhecia bem a mentalidade de seus conterrâneos) mostra, ao mesmo tempo, a matriz ilustrada de suas concepções e o peso que a sociedade brasileira jogava sobre os índios. Além da guerra feita com pólvora, chumbo, bala e armas brancas, havia outra peleja, de gestos, palavras e atitudes, mas também com efeito destrutivo. 57 Sobre as concepções modernas de nação diante de sociedades multifacetadas e os processos de Independência no mundo ibero-americano, v. F.-X. Guerra. Modernidad
e independencias . .. , 1992. 58 Registro da Correspondência do Espfrito Santo . .. , 24-12-1824, AN.
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Simultânea ao preconceito e à guerra, as alianças ocorriam, mesmo entre soldados e índias das tribos de Botocudos. Num relato sobre deserção no Q!artel de Linhares, Espírito Santo, fala-se do soldado Inácio que fugiu acompanhado de sua esposa "Marianna India" e de seu ftlho "Marianno", como de "Florinda Maria India" que também morava no local. 59 Entre segregação e incorporação, entre guerra e casamento, dava-se o contato dos Botocudos com a sociedade luso-brasileira, contatos que caracterizam as relações humanas ao longo dos tempos. O mito do Botocudo indomável e inatingível, criado nos tempos coloniais como justificativa para violências desmedidas sobre as tribos, pode significar mais uma tentativa de negar-lhes a condição humana. Em meio à troca de correspondências sobre o combate aos Botocudos, as autoridades se preocupavam também com outros grupos tidos como desviantes. Em Campos dos Goitacazes foi detectada ameaça: [...] bando de Siganos de mais de vinte pessoas armadas, entre brancos, mulheres e escravos, que no Districto de sua Jurisdição roubavão e espancavão, sem temor e respeito da Authoridade de Vossa Mercê. 60 Havia, portanto, escravos entre os ciganos, embora não se saiba aqui qual tipo de relação se estabelecia entre ambos. O referido bando acabou detido pela polícia em Cantagalo (RJ). Em regiões ainda ocupadas pelos Botocudos após a Independência registra-se também o aparecimento de quilombos e rebeliões escravas. Num desses casos, dezesseis cativos negros (sendo cinco mulheres) fugiram de fazendas nos sertões de Biririca, nos arredores de São Mateus, Espírito Santo, em abril de 1823. 61 De posse de armas, os quilombolas atacaram o Q!artel dos Macacos, ocasião em que morreram um soldado, três escravos e uma escrava, e duas foram capturadas vivas. As tropas brasileiras adentraram no mato com o objetivo de destruir o quilombo que principiava, "para soccegar o 59
Correspondência da Presidência da Província do Espírito Santo . . ., 11-11-1817,
60
Registro da Correspondência do Espírito Santo. .. , 4-7-1815, AN. Correspondência da Presidência da Província do Espírito Santo . .. , 19-4-1823,
AN. 61
AN.
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Povo das Roças, que vive muito amedrontado dos taes Negros, que não respeitam a ninguem". Apenas quatro fugitivos, dois homens e duas mulheres, foram encontrados e os outros seis estavam ausentes na hora do ataque. O tenente João Antônio Lisboa, comandante do Destacamento do Qyartel dos Macacos, cortou a cabeça dos quatro prisioneiros e espetou-as em estacas que foram espalhadas em diferentes partes da cidade de São Mateus. Era o espetáculo punitivo para aterrorizar outros escravos e acalmar os proprietários. Mais uma vez se constata que a mutilação de cadáveres não era praticada apenas pelos Botocudos. Esta saga guerreira de militares brasileiros foi narrada em ofícios enviados ao Comandante das Armas da Província e ao ministro José Bonifácio de Andrada e Silva- que não fizeram, ao que consta, nenhuma condenação ou reprimenda aos seus subordinados. 62 A relação entre escravos africanos e Botocudos era complexa. Segundo o relato de uma autoridade colonial, em 1798, um grupo de Ambarés/Botocudos se aproximou de alguns negros aquilombados no riacho Jenipapo, afluente do Jequitinhonha, convidando-os a irem a um local onde haveria ouro. Lá chegando, os três escravos que haviam acompanhado os índios foram atacados traiçoeiramente. Um dos cativos, ferido, conseguiu escapar e contou o que ocorrera. Um grupo armado seguiu para o local e encontrou ossadas tostadas e roídas. O "testemunho desta abominavel comida", de acordo com o mesmo relato, foi enterrado no cemitério do aldeamento dos Tocoiós. 63 Em contrapartida, entre os intérpretes dos contatos entre os índios e não índios, Saint-Hilaire registrou em sua viagem ao rio Doce em 1817 um negro escravo que dominava o português e a língua dos Botocudos - o que indica que havia também espaços de convivência e que os escravos de origem africana poderiam servir de intermediários culturais entre índios e nacionais. Assim, superar a pluralidade de grupos étnicos era um dos desafios que se punham aos construtores da nação brasileira no século XIX. Neste alvorecer da nacionalidade não houve escolha entre Independência ou morte para os índios: a perspectiva oferecida era a 62 63
Ibidem.
J. P. Freire de Moura. "Noticia e observações sobre os índios Botocudos que
frequentam as margens do rio Jequitinhonha e se chamão Ambarés ou Aymorés" [1809]. ln: RAPM, II, 1897, pp. 28-36.
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morte, cultural ou física. Entretanto, os índios, enquanto agentes históricos, dariam respostas inusitadas a estes mesmos desafios. A síntese da situação dos Botocudos nos anos que sucederam a Independência pode estar no desabafo de Cuido Marliere que vivia imerso nesta questão. Ao saber de mais um desses episódios de violência, quando "huns Brazileiros endiabrados" invadiram o aldeamento Cachoeirinha, em Belmonte, e mataram dois índios Botocudos, em 1824, o francês desabafou: Pois quando S.M. [Sua Majestade] o Imperador manda dar agazalho aos seus Indios, os seus proprios Soldados lhes attirão, sem provada necessidade? 64 Justamente quando as autoridades da Corte rejeitam as guerras ofensivas e passam a assumir um discurso civilizatório pacifista e "desenvolvimentista" (colonizadores "mansos"), para os índios, entretanto, este momento significa, na prática, recrudescimento da colonização "brava". Agrava-se o aniquilamento dos grupos indígenas nos vales dos rios Doce e Jequitinhonha: acossados pelas frentes de expansão, controlados pelos aldeamentos, atacados por autoridades e proprietários locais, contaminados por epidemias, induzidos a se inserirem nas atividades produtivas, escravizados, embriagados, sofrendo abusos sexuais, desterritorializados, cooptados para atividades militares, enviados para trabalhos urbanos e colégios religiosos ... A sociedade hierárquica e escravista do Império brasileiro, buscando se estabelecer num modelo progressista de nação - monárquico constitucional, homogêneo e unitário -tentava esmagar as pluralidades. O auriverde pendão não se rasgava numa batalha, mas servia a estes povos de mortalha, à qual os índios chamados de Botocudos ainda resistiam e não se deixavam facilmente destruir. 64
G. T. Marliere, RAPM. . ., ofício de 14-12-1825.
Capítulo 7
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO
Seria possível romantizar os Botocudos? A resposta predominante, no plano literário, foi transformá-lo em vilão, estereótipo do mau selvagem, sugestiva herança recuperada dos autores coloniais por seus "descendentes" brasileiros do século XIX, que não pareciam dispostos a assimilar os recentes relatos etnográficos de cientistas e pintores europeus que compunham uma imagem razoavelmente cordial para os "índios bravos". Ainda assim, ocorreram tentativas de romantização dos Botocudos, seja no terreno das relações diretas, através do francês Guido Marliere, quanto nas páginas de um dos primeiros romances publicados no Brasil por Teixeira e Sousa. Havia convergência entre o aparecimento de um ideário romântico indianista e a perseverança, neste sentido incômoda, de populações indígenas que mantinham atitudes de resistência, gerando uma situação paradoxal. A mesma pergunta talvez tivesse um prerrequisito: seria possível civilizar os Botocudos? Além de Marliere, a questão mereceu tentativas práticas de envergadura, destacando-se as ações de Teóftlo Ottoni. E nesta fronteira difusa entre letras e empreendimentos, unidos na gestação de nacionalidade, autores românticos tiveram visões díspares e travaram debates em história e literatura, nos quais transparecia a presença contemporânea dos "índios bravos" nos territórios continentais do Brasil. Como os intelectuais letrados e os índios Botocudos lidaram, respectivamente, com tais desafios? O indianismo, literário ou alegórico, foi de algum modo esvaziado ou contido nas quatro primeiras décadas do século XIX no Brasil em razão da presença ainda expressiva do "problema" indígena 221
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em amplas partes do território- também no que seria a região Sudeste. A presença de índios vivos e ao vivo ocupando expressivas faixas de terra, corporificados nos centros urbanos, opondo resistências e mantendo importantes aspectos de suas identidades culturais, a narrativa constante de conflitos, mortes e escravidão envolvendo populações indígenas e brasileiros, não apenas na periférica região amazônica, mas em províncias próximas do centro de poder imperial, se constituíram em obstáculo a ser considerado para a elaboração de um imaginário indianista que pudesse brotar livre de constrangimentos ou de contradições evidentes. E mais particularmente quanto aos índios que apresentavam formas mais e contundentes de resistência aos padrões civilizadores da sociedade nacional, gerou-se um antagonismo que se expressava, também, no plano do ideário Romântico. Como transformar tais "índios bravos" em personagens históricos ou estéticos? Essa questão, gerada em boa medida pelas próprias iniciativas dos índios, ocupou considerável espaço entre a intelectualidade e os homens de poder da época. Para ficarmos no âmbito geográfico deste trabalho, vimos nos três capítulos anteriores a significativa visibilidade de índios em Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo com diversos modos de vida: contatos intermitentes ou permanentes, tribos nômades ou sedentárias, destribalizados ou guerreando, escravizados ou incorporados como cidadãos. Sem esquecer que na província do Rio de Janeiro ainda existiam quinze aldeamentos com etnias identificadas ao longo do século XIX, além dos indivíduos que afluíam às cidades, desgarrados das tribos.1 As elites culturais e políticas não poderiam estar alheias a esse contexto.
*** É verdade que surgiram ensaios de representação indianista, embalados pela sensibilidade patriótica e mesmo romântica que discretamente ganhava terreno nas três primeiras décadas do século XIX. Mas se tratava em geral do índio alegórico, não do índio personagem, para retomar a terminologia de Antonio Candido. 2 No caso do poema épico Uraguai (1769), de Basílio da Gama, a alegoria indianista situava-se mais no plano de uma identidade cultural geograficamente 1 Cf.levantamento em Bessa Freire &Malheiros.Aideamentos indígenas no Rio de janeiro. .. cit.; v. também M. S. Lemos. O índioviroupódecaft?. .. eJ. N. S. e Silva. Memória lústórica e documentada das aldêas dos índios da província do Rio de Janeiro... 2 A. Candido. Formação da literatura brasileira. .. , vol. 2, p. 21.
O MAU SELVAGEM: ROMANTISMO, HISTÓRIA E CIVILIZAÇÃO
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localizada, mas não usava o elemento indígena como base simbólica de uma identidade nacional. Não é curioso, por exemplo, que o jovem príncipe português Pedro de Alcântara, ao entrar para a maçonaria em 1822, tenha escolhido o pseudônimo Guatimozim, o último "imperador" asteca morto pelos espanhóis? O mesmo D. Pedro, como imperador, submeteria os "índios bravos" do Brasil, aos quais, por isso, não poderia erguer em símbolo pátrio. Daí que a escolha de seu apelido tenha recaído para os índios que resistiam. . . aos espanhóis no século XVI, não aos brasileiros do XIX. Na mesma linha vale lembrar o talentoso baiano mulato, Francisco Gomes Brandão: optou pelos sobrenomes de Jê Acaiaba Montezuma, temperando a nova identidade simbólica tapuia com dois sobrenomes igualmente oriundos de indígenas da América espanhola, aludindo ao soberano asteca que morreu de maneira heroica depois de capturado pelo conquistador espanhol Cortez. Escolha feita, aliás, antes de Francisco Gomes Brandão se tornar visconde de Jequitinhonha, nome do território habitado, entre outros, pelos Botocudos, justamente na época em que estas tribos foram mais combatidas e espoliadas na região. A opção por um certo "anticolonialismo" cultural direcionado para os indígenas da América espanhola parecia ser uma tentativa de escapatória, no plano simbólico, para uma questão do tempo presente do Brasil na época da Independência. E mesmo os títulos de nobreza que, no primeiro Reinado, tinham nomes oriundos de palavras indígenas (como José da Silva Lisboa, visconde de Cairu e José Egídio Gordilho, visconde de Camamu, por exemplo), em geral referiam-se à toponímia e não diretamente à nomenclatura indígena. Sem esquecer o jornal O Tamoio, do Rio de Janeiro em 1823, inspirado politicamente por José Bonifácio e seus irmãos Andradas (formados e oriundos na constelação luso-brasileira de fins do século XVIII), mas que, apesar do título, não aprofundava em suas páginas as metáforas indianistas. Ao contrário, esse jornal mantinha uma dose de ambiguidade, pois tamoio era um dos nomes atribuídos às tribos tupis estabelecidas no Rio de Janeiro no século XVI- grupos que ficaram conhecidos por combaterem os portugueses, daí a oportunidade da comparação na época da Independência. Entretanto, em outros momentos, grupos chamados de tamoios também se aliaram aos portugueses.
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Outro dado interessante são as mudanças de nomes, quando indivíduos passaram a adotar sobrenomes patrióticos após a Independência. Entretanto, em lista onomástica publicada em jornais do Rio de Janeiro e Pernambuco logo após a aclamação de D. Pedro I como imperador, dos onze nomes alterados, quatro foram para animais (Periquito, Papagaio, etc.) e sete para vegetais (Jacarandá, Malagueta, etc.). E nenhum novo sobrenome indígena neste caso. 3 A representação simbólica da pátria parecia estar mais vinculada, nestas opções, ao chamado reino da Natureza (fauna e flora), evitando-se sobrenomes indígenas, embora estes tenham ocorrido. Veja-se, nesta linha, o caso do major pernambucano Emiliano Filipe Benício, mulato e simpatizante da revolução dos escravos do Haiti, que adotou o sobrenome Mundurucu, relativo aos índios conhecidos por sua resistência guerreira aos colonizadores na Amazônia. Ou ainda outro major, Joaquim Antônio de Macedo, que no Rio de Janeiro incorporou o sobrenome Tupinambá. Estes dois últimos exemplos de metamorfose onomástica referem-se a personagens dos anos 1820-1830 identificados aos liberais Exaltados, participando em tentativas de insurreição armada e com críticas mais agudas ao poder vigente. O que permite formular a hipótese de que a adoção de cognomes indígenas, neste contexto imediato pós-Independência, poderia estar vinculada a posições poüticas mais radicais. Ou seja: o conflito entre as populações indígenas e a sociedade nacional, quando transposto para a instância simbólica das metamorfoses de nomes, corresponderia a uma posição poütica também de contradição mais evidente. As alegorias indígenas, em contrapartida, apareceram em algumas iconografias e obras literárias desde o período do governo de D. João VI, sobretudo alinhadas a uma certa tentativa de construir uma identidade brasileira de moldes americanos, diferenciada da europeia, mas não configuraram um movimento orgânico e substancial, nem propriamente uma expressão nacionalista. Qyase sempre retratavam um índio sem etnia definida ou referenciado em épocas remotas. O embrião do Romantismo e a preocupação de civilizar dos índios confluíam no sentido de se edificar uma nação moderna no Brasil. É interessante, porém, lembrar que o termo nação sempre foi 3 Cf. Gazeta Pernambucana. Recife: Typographia Cavalcante & Companhia, n." 5 (27-11-1822), transcrevendo Diário de Rio de janeiro, n.0 9 (10-10-1822).
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polissêmico. Até então tinha vários sentidos, mas podemos destacar os que predominavam. Um dos mais tradicionais entendia nação como "nome coletivo que se diz da Gente". 5 Ou seja, não se tratava de um corpo político ou territorial definido, mas remetia à noção ampla de coletividade. De algum modo, os demais sentidos derivam desse, ainda que modificados ou mais definidos. "Nação" servia também para designar uma mesma origem ou identidade étnica. Assim, havia referências aos escravos africanos da "nação Mina", por exemplo, bem como era comum falar da "nação dos Carijós", ou seja, para designar tribo ou conjunto de tribos pertencentes a um mesmo grupo etnolinguístico ou oriundas de uma mesma região. Havia também a concepção tradicional de "Nação" europeia que, por sua vez, era também diversificada. Nessa linha, temos a "Nação" dos tempos medievais, plural, formada por um conjunto de reinos, senhorios, principados ou províncias. Esta concepção era anterior ao Estado-Nação absolutista, que predominava ainda no começo do século XIX, baseado na unificação nacional em torno de um Estado centralizador. E o que marca esse período é justamente a expansão das "novas ideias" que desembocaria num Estado-Nação fundado no liberalismo constitucional, ou seja, a ideia moderna de nação homogênea como expressão da união (ainda que por alcançar) do conjunto de indivíduos soberanos, livres e iguais. A própria Encyclopédie, obra referencial da Ilustração francesa, definia sauvages (selvagens) como "peuples indiens quine sont point soumis au joug du pays, & qui vivent à-part'' (povos indígenas que não são submetidos ao domínio do país e que vivem à parte). Desse modo, cada grupo indígena "forme une petite nation" (forma uma pequena nação). 6 Assim, levando em conta os significados que se cruzavam, pode-se dizer que havia conflito entre as nações dos Botocudos e a nação brasileira - que herdava da nação portuguesa o antagonismo com estes índios, no plano social, mas também no cultural, apesar das políticas civilizadoras se diferenciarem na passagem de colônia a 4
Para a pluralidade ou mosaico político e social das sociedades ibero-americanas nas primeiras décadas dos oitocentos: F.-X. Guerra (1999/2000) e I. Jancsó &J. P. G. Pimenta (1999); para a polissemia e mutações do conceito de nação, v. os textos de A. Hespanha e F.-X. Guerra em I.Jancsó (org., 2003). 5 R. Bluteau. Vocabulario portuguez e latino . . . 6 Encyclopidie. . ., cit.
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império. Ainda que seja importante não perder de vista que tais tribos de Botocudos não formavam um grupo coeso e articulado entre si: ao contrário, fracionavam-se em "bandos", de acordo com suas organizações sociais. Todavia, estas tribos apresentavam alguma homogeneidade pela língua, aparência física, costumes, artefatos e, sobretudo, pela localização numa mesma e vasta área geográfica o que emprestava-lhes coerência. 7 No mesmo sentido, a nação brasileira, embora apresentada e desejada como unívoca, era também heterogênea. A sociedade brasileira tinha entre seus desafios completar a Conquista nos pontos onde ela não se resolvera nos tempos (então bem próximos) das "trevas coloniais". E transformar um inimigo interno em símbolo nacional não era tarefa que se fizesse sem contradições, sobretudo num tempo que se pretendia de Luzes. A tarefa, pois, dos construtores da nacionalidade brasileira oitocentista colocava-se na perspectiva de retirar os índios das pequenas nações: seja remetendo-os simbolicamente ao passado ou integrando-os concretamente na argamassa da grande nação, onde, aí então, poderiam até ser erguidos em símbolos e alegorias nacionais. Para que o indianismo literário e patriótico se afirmasse era preciso resolver (ou pelo menos elaborar determinadas representações culturais e ocultações para) a questão dos "índios bravos", que desafiava o novo Império americano. Só então o Romantismo indianista brasileiro poderia florescer sem riscos de se transformar em Realismo ... O que aparecia nos documentos da época do processo de consolidação da Independência era a distinção entre índios e brasileiros, sobretudo no que se refere aos Botocudos. Fala-se, por exemplo, de um grupo de 78 mineradores compostos "entre Indios e Brasileiros", em 1825. 8 A própria Constituição de 1824, ao definir no título II os critérios de cidadania brasileira, ignorava a especificidade da condição indígena, embora levasse em conta libertos, portugueses e colonos estrangeiros. Mesmo vinculando o direito à cidadania ao local de 7 Para a identificação étnica e diversidade dos Botocudos, v. I. M . de M attos (2004), Introdução e capítulo 3 eM. H . Paraíso (1998a e 1998b). 8 Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministério do Império, ofício de 4-8-1824, AN.
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nascimento, de residência e de propriedade, a primeira Carta brasileira não considerava os índios nessas três categorias nas quais eles poderiam ter evidente primazia. Sem direitos civis, os índios não tinham direitos constitucionais e, muito menos, direitos políticos. A visão de José Bonifácio sobre os índios era compartilhada por grande parte das elites políticas e culturais (sobretudo nos aspectos negativos, da preguiça, violência, amoralidade, etc). Sem esquecer que o Andrada, nos seus Apontamentos sobre os índios bravos, em nenhum momento os considera brasileiros, embora reivindique para eles a progressiva incorporação à civilização e à nacionalidade, mas ainda como algo por se realizar, desde que deixassem de ser índios e se tornassem cidadãos nacionais. Ainda na variedade das concepções de nação temos outro exemplo em Cipriano Barata, tido como "homem de todas as revoluções" de seu tempo e o principal expoente dos liberais Exaltados, cuja concepção e tentativas práticas de Revolução eram das mais arrojadas dentro do seu contexto. 9 Barata reivindicava, nas Cortes de Lisboa em 1822, direitos políticos e de cidadania para os "caboclos ou índios naturaes do país", como também para a "os mamelucos que são o produto dos brancos misturados com os referidos caboclos" e não esquecia de incluir também "mestiços que são a prole dos indios combinados com a gente preta". Cipriano, mesmo lutando pela ampliação da cidadania aos índios e descendentes sem exigir que eles antes se tornassem nacionais, mesmo com sua vigorosa busca de forjar uma identidade nacional brasileira através de géstos, vestuário e discursos, mesmo com seu combate inglório contra o expansionismo inglês e contra as permanências do monopólio comercial português, não se vangloriava das origens indígenas do Brasil. Percebe-se isto na citação: [...] a pouco eramos um mixto de Tupinambás, Caités, Boticudos e outros Caboculos, e gentes brancas e morenas, misturados com Portuguezes na aparencia forros, na realidade escravos; mas hoje todos somos Brasileiros e formamos um só corpo, e povo de irmãos livres, uma só palavra abrange tudo. 10
9 10
1831
M . Morel. Cipriano Barata na Sentinela da liberdade. .. , 2001. Sentine/la da Liberdade na Guarita do Quartel General de Pirajá. Alerta!, 12-1-
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Percebe-se que Barata não renega ou esconde a presença indígena na formação da sociedade. Mas ele não coloca esta presença como fator de formação da nacionalidade, o que era diferente. Imbuído da ideia moderna de nação, homogênea, formada por um conjunto de indivíduos livres e iguais, o político baiano destaca como passo fundamental para realização desse projeto nacional superar a condição pluralista e heterogênea do conjunto de etnias ou comunidades (ele não esquece de citar os Botocudos) que até então compunham predominantemente a tradicional sociedade da América portuguesa. Ainda aqui se demarca o antagonismo entre os índios e o Brasil. Nesse sentido se compreende o escape de parcela das elites culturais brasileiras em direção ao índio hispano-americano. Esta formulação já constituía uma razoável tradição cultural e tinha como uma das fontes inspiradoras um autor na época tão célebre quanto René de Chateaubriand e cujos títulos eram verdadeiros best-se//ers nos anos 1820, sobretudo na América do Sul: o francês Jean-François Marmontel, cujas obras eram traduzidas para o português e espanhol. Autor de ensaios literários como Éléménts de littérature ou do romance Be/izario, Marmontel tinha como carro-chefe o volume Os Incas ou a destruição do Império do Peru, lançado em 1777.11 Os livros de Marmontel representaram uma das bases de construção de uma identidade americana moderna. Este autor, típico intelectual da República das Letras do século XVIII, tinha um traço singular em seus trabalhos. Ele valorizava ao mesmo tempo o papel dos índios (sobretudo da civilização inca, que foi um fenômeno pré-colombiano tardio na América do Sul) e não condenava a ação dos Conquistadores espanhóis nem rejeitava em bloco a Conquista. Ou seja, propunha conceber as novas nações, no campo do imaginário político, como fruto desta "irmandade", ainda que forçada a princípio, entre o indianismo e a europeização. Ele criticava a "tirania" de ambas as partes, indígena ou espanhola, atacava a sujeição de um povo a outro e deplorava os "maus governos". Além do mais, o estilo de Marmontel se caracterizava por uma sensibilidade dramática e grandiloquente constituindo-se num gênero híbrido entre o romance poético, a narrativa histórica e a discussão moral. A influência deste autor sobre as concepções indianistas das elites nacionais americanas, hispânicas e portuguesas, foram consideráveis. 11
J.-F. Marmontel. Los Incas.. ., 1777.
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Este tipo de construção da memória era oportuno no nascente Império brasileiro. Sobretudo porque deslocava a delicada relação entre indígenas e Conquistadores para o contexto hispânico e para eras remotas, poupando assim os portugueses e brasileiros de se verem representados como protagonistas deste conflito. Sem falar que valorizava um tipo de nobreza (ainda que ameríndia), o que de certa forma legitimava a nobreza brasileira como herdeira simbólica de outra nobreza "original" do Novo MundoY Além disso, cristalizava-se a noção que atribuía às populações indígenas da América hispânica feições mais "adiantadas", por causa dos relatos dos primeiros conquistadores e de registros de uma cultura material mais palpável e imponente e que se contrapunha, por isso, ao "atraso" ou "primitivo" das populações indígenas do lado da América portuguesa. Botocudo, herói romântico?
O olhar romântico esteve mesclado, em certa medida, com o neoclássico, no resgate de origens primitivas. Em relação aos Botocudos ele parece começar com Wied-Neuwied (que os compara aos gauleses em luta contra o Império romano), desponta de maneira mais discreta em algumas passagens de Saint-Hilaire, surge com certa majestade em Debret e ganha tons trágicos em Rugendas; passa por Guido Marliere (que lhes enaltece a coragem e altivez e projeta germanizá-los) e culmina, de maneira ambivalente, com o romancista Teixeira e Sousa. Até no célebre Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1856), característico da mescla entre Realismo e Romantismo, há rápida passagem onde a própria personagem central cita os Botocudos. Entretanto, pode-se concluir que foi descartada do projeto nacional hegemônico a produção científica e iconográfica que pretendia moldar uma imagem cordial e positiva para os "índios bravos" contemporâneos. Apesar desses ensaios, não houve casamento feliz entre os Botocudos e o Romantismo brasileiro. Entre as tentativas malogradas, mas sugestivas para se compreender as relações e propostas estabelecidas, temos as do francês Guido Thomaz Marliere que realizou abrangente e sistemático contato com os Botocudos nas décadas de 1810-1820, com ênfase nos métodos de pacificação, não de guerra ofensiva. Ao se instalar na explosiva 12
L. Schwarcz. As barbas do imperador. .. , pp. 132-41.
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fronteira dos territórios indígenas, Marliere tinha como objetivo justamente alargar as fronteiras da sociedade luso-brasileira. E nesse sentido ele desempenhou papel importante também na época da Independência e nos anos posteriores, uma vez que destoava da atitude bélica predominante que tinham então portugueses e brasileiros nas frentes de expansão diante destes índios. 13 Marliere destacou-se também pela "veia literária": gostava de escrever e deixou vasta documentação (sobretudo de relatórios, mas também artigos em jornais e até um vocabulário português-botocudo). Entretanto, sua acuidade "etnológica", isto é, de percepção da especificidade das culturas alheias, era bem menor que a simpatia e esforços que dedicava ao trabalho de incorporação desses grupos à civilização ocidental. Marliere se colocava como civilizador e amigo dos índios (não como observador científico ou adversário que visava ocupar terras) e seus relatos, ainda que valiosos, devem ser compreendidos dentro de tal perspectiva: era um agente civilizador europeu, humanista, teoricamente disponível a valorizar os índios, admirador da cultura germânica, tocado pela sensibilidade Romântica e com formação militar. De onde surgiu tal figura? Nascido emJarnage, Manche, França, 1767, alistou-se aos dezoito anos nos exércitos de Luís XVI. Sua juventude fora marcada pelos tempestuosos períodos da Revolução Francesa, como ele mesmo salientou: [...] a minha mocidade tormentoza, principiada no tumulto dos combates e das Revoluçoens. 14 Ou ainda, numa significativa autocrítica, típica do período pós-revolucionário do século XIX: [ ... ] se na minha mocidade, em lugar de ler Ponjsegur, d'Alembert, Clairac e outros matadores de gente, tivesse estudado Raynal, Pene outros amigos do Genero Humano[ .. .]_15
13 Para trabalhos com outros enfoques sobre o personagem, v. L. P do Coutto Ferraz. Biografia de Cuido Marliêre e Pocrane ... 14 Documento de 7-1-1825, RAPM, X. 15 Documento de 11-7-1825, RAPM, X.
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Se ele possuía simpatias pelas ideias revolucionárias (ou pelo menos Ilustradas), como deixa entrever, entretanto, em 1791, deserta e abandona o país natal. Este ano marca um momento de radicalização do processo revolucionário francês, com a prisão do rei e o enfraquecimento dos Girondinos ou revolucionários moderados, que defendiam a manutenção da monarquia constitucional. A saída de Marliêre neste momento permite de alguma maneira associá-lo a esta tendência. Ele passa então a integrar as tropas de Emigrados (nobres franceses no exílio que combatiam a Revolução) e nesta condição chega a Portugal em 1799. Teria lutado contra as tropas francesas em Portugal? Sabe-se porém que ele acabou incorporando-se às tropas portuguesas e em 1808 vem na frota que traz a Corte Real ao Brasil. Fica no Rio de Janeiro por dois anos e segue para Minas Gerais. Em 1810 é nomeado capitão do Regimento de Cavalaria de Linha de Minas Gerais (sediado em Vila Rica) e recebe da Coroa uma sesmaria de meia légua de terras em quadras no caminho para o Rio de Janeiro, na passagem do rio Nova Pia. Isso indica que ele pretendia instalar-se definitivamente. Já em 1811 começa a percorrer as selvas em companhia do mineralogista germânico Wilhelrn Eschwege e pela primeira vez entra em contato direto com a questão indígena. As críticas abertas à religião católica feitas por Marliêre (então um francês marcado pelas "abomináveis" ideias de seu país) causaram má impressão nas elites locais, marcadamente mergulhadas no universo católico tradicionalista da Monarquia portuguesa. Logo chegou da Corte um aviso do próprio conde de Linhares afirmando que Marliêre "he um Emissario de Bonaparte, e ligado com elle para subverter estes Estados". Marliêre foi preso, seus papeis vasculhados. O conde da Palma, governador de Minas Gerais, intercedeu em seu favor, alegando que, irreligiosidade à parte, era um súdito fiel. O que havia, esclareceu o conde da Palma, é que Marliêre era odiado pela elite de Vila Rica pelo simples fato de ser francês, já que o trauma da invasão napoleônica em Portugal era recente, gerando reação de xenofobia. Nos anos seguintes Marliêre confirmaria essa fidelidade à Coroa e chegaria mesmo a denunciar por escrito dois franceses que, segundo ele, mantinham conversas suspeitas. 16 Em 1813 Marliêre era nomeado diretor-geral dos Índios das freguesias de São Manuel da Porta, de São João Batista e do rio da 16 Documento de 11-7-1825, RAPM, X e RAPM, XI, p. 13.
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Pomba. Ele dirige então aldeamentos de Puris, Coroados e alguns Maxacalis. Dois anos mais tarde, passa a integrar a Junta Militar da Conquista e Civilização dos Índios, onde treinava os índios Coroados (também chamados de Coroatos ou Croatos) para atacarem o "Gentio Bravo", particularmente os Botocudos, que ameaçavam os fazendeiros da região. Era ainda o tempo da guerra ofensiva de D. João e Marliere integrou-se a essas atividades. Nomeado inspetor da 1.• e da 4.• Divisões Militares do rio Doce, era o responsável, entre outras coisas, a controlar para que pólvora e chumbo fossem utilizados exclusivamente no combate aos Botocudos. Em tal função Marliere reorganizava e deslocava patrulhas, abria picadas e caminhos de comunicação e cadastrava os colonos que se encontravam na região. O militar francês chegou mesmo a propor a criação de mais um quartel nas cabeceiras do rio Sassuí, afluente do rio Doce, para fazer frente às "incursoens dos Botecudos". Enviado à região para combater militarmente os índios, Marliere passaria por uma conversão: viria a ser, como ele gostava de se apresentar, defensor e amigo dos Botocudos. De guerreiro, tornou-se pacificador, mas sempre civilizador, isto é, colocando-se numa perspectiva eurocêntrica e exercendo sua autoridade. Marliere passaria a resumir sua visão sobre os índios ao dizer que a melhor maneira de conquistá-los para a civilização era com balas de milho e não com balas de chumbo. Tratava-se, pois, de submeter os povos indígenas. Mas num contexto de conflitos tão violentos, tal atitude fez com que o militar francês conseguisse a amizade e confiança de muitos índios, que buscavam aliar-se com ele. Ao ser nomeado diretor dos Índios do Espírito Santo em 1823 ele continuaria a pôr em prática suas concepções, que, aliás, eram afinadas com os métodos pregados por José Bonifácio. Por meio dos relatos de Marliere, é possível conhecer os nomes, algumas histórias de vida e também atitudes e testemunhos de índios Botocudos nestes princípios do século XIX, sobretudo dos que cruzaram com os caminhos da civilização ocidental. As tribos que conheceu se autodenominavam em 1824 de Kracmun, Pejaurum, Nacnenile e Naknenuk, as três primeiras na parte meridional do rio Doce e a última na margem norte do rio Caieté. Importante ressaltar que Marliere defendia a legalização da propriedade da terra em nome dos índios. Ele não demora em solicitar ao governo títulos de posse de terras para estes grupos. E especifica as
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seguintes localidades para os Botocudos na região do rio Doce, propondo em geral uma légua para cada uma: -Aldeamento de São Pedro, margem meridional do rio Doce; -Bananal Grande, antigo caminho de Cuieté, ponto de encontro de quase todos Pejauruns e Krakmuns (o que indica que ainda eram nômades; na localidade fica hoje o município de Tarumirim); -Barra do Rio Caieté para índios na margem meridional (incluindo os três aldeamentos nos arredores de Mariana); -Margem norte do rio Caieté, para os Naknenuks; -Barra do rio Sassuí, também para os Naknenuks, estes dois nos arredores da Vila do Príncipe. Entretanto, estas demandas de legalizar as terras não foram atendidas. Marliere procurava estabelecer o contato com as tribos sempre por intermédio do chefe de cada grupo, valorizando assim o poder político desses "capitães" (os chefes indígenas eram chamados de capitães desde os tempos iniciais da Conquista, denominação que permaneceu até o século XX) e colocando-os como intermediários da relação, além de deixar a estes a nem sempre fácil tarefa de administrar as contradições internas e distribuir presentes e mantimentos. Marliere propunha, pois, o fortalecimento do poder dos chefes e sua aliança com os não índios. Eis como Guido Marliere descreve em 1825 um destes capitães Botocudo que conheceu, chamado Paqueju Orotinon: Com 42 ou 43 anos, saúde robusta, cinco pés e cinco polegadas de altura, corpulento, rosto nobre e animado, olhos pretos e bem rasgados, nariz grande, sizudo por natureza. [... ] Este Indio se não he Rei, cuida que o hé: não pode sofrer que na sua presença se trata a outro qualquer indio de Capitão. 17 Paqueju se traduzia por "pai grande". Orotinon foi um dos que escolheu viver em contato pacífico com a sociedade nacional buscando nitidamente preservar sua condição indígena. O francês conta que teve "a honra de o hospedar" no aldeamento, onde o convidou a cear na mesa com pão, carne e vinho - hábito não usual entre brancos e índios. Orotinon não agradecia na forma da polidez ocidental, mas dançava para Marliere após cada refeição. Sempre no tom de quem 17
RAPM, X, pp. 569-70.
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dava ordens, Orotinon pegou uma canoa do aldeamento, colocou nela pessoas de seu grupo (mulheres e parentes), pediu roupas e mantimentos e foi se instalar no quartel de N aknenuk. Qyando apareciam por lá outros índios, Orotinon tratava de se vestir com as melhores roupas que ganhara e ostentar boné militar. Assim, buscando se demarcar ao mesmo tempo dos "brancos" e dos demais índios, Orotinon forjou sua estratégia de resistência, num registro híbrido, buscando salvaguardar a integridade de seu grupo. Já o capitão Qystote (ou Qyitote), zeloso "como um tigre" de suas quatro mulheres, era visto como "o mais atrevido que há no mato" e causava inquietação aos soldados da 1.' Divisão do rio Doce. Ao contrário do chefe precedente, este mantinha contato intermitente com os não índios e ficava ainda no tênue fio que separava a pacificação e o confronto. Mas os Botocudos não se limitavam a contatos constantes ou intermitentes. A guerra ainda estava em perspectiva. Este terceiro comportamento dos índios diante da presença da civilização ocidental ficou caracterizado pelo chefe Naknenuk Makuen que atacou o Qyartel D. Manuel no dia 8 de janeiro de 1825 disposto a eliminar os adversários que invadiam suas terras. Makuen fez ataque surpresa na tentativa de desarmar os soldados. Mas não conseguiu. Ao ver sua investida frustrada e dois de seus guerreiros mortos, subiu numa árvore de onde atirava flechas nos soldados e desafiava-os a atirarem nele, exibindo o peito aberto. Foi morto pela descarga de quatro fuzis. Marliere comoveu-se com a bravura e fez o elogio de Naknenuk, dentro do espírito Romântico: "O mais helio instante de sua vida foi o mais vizinho da sua morte". Mas entre os diferentes contatos que Marliere estabeleceu com chefes Botocudos o que mais frutificou - e ganhou maior repercussão - foi com Pokrane. O primeiro encontro com o índio Pokrane deu-se ao longo do rio Doce, onde Marliere navegava em companhia de uma guarnição chefiada pelo sargento-mar Antônio Pereira do Nascimento. Numa das margens avistam grande número de índios armados de arcos e flechas. Dos barcos, carregados de víveres e presentes, batem palmas e por meio de intérpretes explicam as intenções pacíficas. Os índios conversam entre si e pedem que os "brancos" deponham as armas. Exigência cumprida, os índios ainda vacilam. Entre avanços e recuos alguns chegam até a canoas e sobem, entre eles o jovem Prokrane, filho do cacique. O clima vai ficando
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descontraído e ao final alguns vão até o posto militar espontaneamente. Estava nascendo ali uma sólida aliança entre Pokrane (que se tornaria chefe da tribo pouco mais tarde) e Guido Marliere. Pokrane acabaria mesmo por incorporar diversos hábitos da civilização ocidental e se tornaria importante ligação entre os brasileiros e os Botocudos. Acrescentou a seu nome uma homenagem a seu aliado e protetor francês, passando a se chamar Guido Pokrane. Para alguns historiadores (comprometidos com a perspectiva de incorporação dos índios à sociedade nacional) Pokrane passou a ser figura exemplar, modelo de passagem bem-sucedida da barbárie à civilização. 18 No entanto, estes mesmos historiadores parecem surpreender-se com o que lhes parecem "contradições" no comportamento deste índio que mantinha a poligamia e os combates intertribais. Na verdade, na fórmula encontrada para seu novo nome, acrescentando "Guido" ao "Pokrane", pode estar a chave para a compreensão da atitude assumida por este índio: tratava-se de uma posição cultural híbrida, mesclando as permanências de suas tradições tribais com a aquisição de algumas técnicas e comportamentos do homem "branco" e que visavam sua sobrevivência como índio, ainda que fazendo consideráveis concessões. À sua maneira, Pokrane buscou uma saída de sobrevivência para os conflitos seculares e sangrentos - em vez de ser um quase perfeito "homem civilizado". De saída Guido Pokrane abandonou o uso do botoque, que era a característica mais marcante de seu grupo. E, segundo relatos dos não índios, ele estava sempre empenhado em convencer outros índios a fazerem o mesmo, dando mostras de contentamento quando conseguia demover alguém do uso do ornamento de madeira nos lábios e orelhas. Por um lado, agindo assim, ele eliminava um dos mais fortes componentes de sua identidade tribal. Por outro lado, os índios que abandonavam o botoque deixavam de ser Botocudos, isto é, buscavam se livrar do estigma e das perseguições externas. Tanto que Pokrane chegou a ser recebido, no início dos anos 1840, por D. Pedro II na Corte, ganhando presentes e uma proteção imperial que, diga-se de passagem, parece ter ficado só na palavraY Essa aliança entre o monarca e índio Botocudo Pokrane gerou tentativa de elaborar o indianismo pela iconografia, ou mais 18 19
Cf. biografia escrita por L. P. C . Ferraz (1855). Idem e J. Durco (1989).
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precisamente pela numismática (Figura 27). Uma medalha foi cunhada, no ano da coroação de D. Pedro II, tendo por efígie o rosto e o nome de Guido Pokrane que, assim, era apresentado como exemplo bem-sucedido de Botocudo civilizado. Note-se que o perfil de Pokrane eternizado na medalha imperial apresentava elementos híbridos. Na orelha via-se o furo para o botoque, embora tal ornamento não aparecesse mais. Pelas costas da efígie estavam cunhadas as armas tribais, arco, flecha e borduna; pela frente, como que sinalizando o futuro, o machado e a pá, símbolos do trabalho agrícola produtivo e da incorporação aos hábitos da sociedade nacional. O rosto de Pokrane mesclava a orelha furada com traços visivelmente helênicos, como o nariz retilineo. Era o emblema do selvagem que caminhava em direção à civilização, buscando ao mesmo tempo celebrar e associar o início do reinado de D. Pedro II à incorporação dos Botocudos, antigo problema que os colonizadores ainda não tinham conseguido resolver.20
Figura 27
Nesta corda bamba, tênue fio do hibridismo cultural, Pokrane parecia forjar estratégia de sobrevivência. Os índios da tribo de Pokrane destacaram-se na produção agrícola, além de terem construído casas. Abandonavam o nomadismo e a sobrevivência com base na caça, pesca e colheita, incorporando-se à agricultura e ao sistema de trocas comerctats. 20 Imagem do Museu Mariano Procópio. ln: L. Schwarcz. As barbas do imperador. .. , p. 81
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Certa vez Pokrane armou-se com sua tribo para deixar o aldeamento por alguns dias a fim de combater os Puris. Marliere pediu que ele não fosse, mas não conseguiu demovê-lo. O francês procurou então saber as causas do ataque e recebeu a explicação de que, quando morre um chefe Botocudo, isto ocorre por malefícios dos Puris, aos quais eram atribuídos tais poderes. Tratava-se assim de um código de vingança e de uma crença nos poderes imputados a outros grupos étnicos. 21 Isso ocorreu em fevereiro de 1825. No mês anterior morrera o chefe Naknenuk Makuen- mas atingido por soldados brasileiros. Atribuir a causa dessa morte a outras tribos era a reprodução de comportamentos tradicionais dos grupos Botocudos, que já haviam sido notados no período colonial e nos tempos da Guerra de 1808. Nessa incursão Pokrane matou alguns Puris e trouxe outros prisioneiros e ficou constatado que este grupo atacado não mantinha contato permanente com a sociedade nacional. Dessa maneira, através de antigos conflitos intertribais, Pokrane também era útil à Conquista. Com a morte de Guido Pokrane em 1843, um irmão dele, Mavan Patinan assumiu a chefia do grupo. Foi sucedido por Junac, sobrinho de Pokrane, sucedido por um índio chamado Antônio em 1855. O aldeamento, que se encontrava então na localidade de Bananal Grande, foi transferido para o Ribeirão do Qyeiroga Montina. Dessa forma, a tribo de Pokrane fora banida do território onde hoje é a cidade que tem seu nome - o que significa que nem em suas origens este núcleo urbano foi formado pelos índios da tribo de Pokrane ou seus descendentes. Essa é uma das características de longa duração do indianismo no Brasil: a valorização simbólica dos índios se entrelaça com a destruição física e cultural deles. Muitas vezes as observações de Marliere sobre os Botocudos eram rápidas como flashes, mas fixavam momentos da vida de índios que, sem isso, não teriam marcado presença nos registros escritos. Foi o caso de Merarang, uma das mulheres de Pomatu que, cega, apareceu três vezes no aldeamento guiada pelo filho de seis anos e carregando uma cesta feita de folhas de palmito (tang). Merarang, possivelmente infectada em uma das epidemias de oftalmia que atingiu os Botocudos no período, recusava as ofertas para ficar e se tratar e 21 Para uma síntese sobre os sistemas de vingança como código de conduta primordial nas sociedades indígenas, v. o verbete "Systeme de vengeance" em P. Bonté. Dictionnaire de l'ethnologie et de l'anthropologie. . .
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voltava para as selvas: sua figura não deixa de ter semelhança com a do "velho Timbira", personagem criado décadas depois por Gonçalves Dias no seu célebre poema "1-Juca-Pirama". Merece atenção a morte de um casal de índios e também a maneira romântica como Guido Marliere perpetuou o episódio. Hagemm foi um dos primeiros Botocudos a aceitar a pacificação do militar francês e a acompanhá-lo constantemente. Mas acabou se afastando para se casar com Gemm-táne, que era filha do já citado capitão Orotinon. Este casal de índios, quando estavam besuntados de unguentos quentes usados para o tratamento de alguma doença, mergulharam no rio Santo Antônio e tiveram, com o choque térmico, morte instantânea. Marliere ficou arrasado com a perda e plantou um cipreste no lugar do túmulo, sobre o qual chorou copiosamente. Passou a denominar o local de "Mausoléu Indiático no Deserto do Rio Doce". 22 Cada vez que voltava a este Qyartel de Naknenuk, Marliere não deixava de visitar as sepulturas de Hagemm e Gemm-táne. Em outras palavras: semeava um lugar de memória e criava símbolos visíveis de afetividade, valorizando o enredo amoroso deste casal indígena. Diferente, portanto, da preferência por casais de brancos e índias, mais ao gosto conciliatório e harmonizador do indianismo literário. Marliere foi elo entre índios e brasileiros que permitiu que alguns nomes do idioma dos Botocudos se perpetuassem na toponímia da região. A toponímia é uma forma de memória histórica e, como tal, resulta de uma elaboração que pode servir para escamotear conflitos e diferenças. Basta ver as cidades de Nanuque e Pocrane todas nos territórios onde antes habitavam índios, que acabaram expulsos das mesmas terras. Tarumirim, por exemplo, onde ficava o aldeamento Bananal Grande, é nome tupi-guarani e existe nesta pequena cidade uma rua dos Aimorés ... A própria cidade de Aimorés também evoca o nome hostil tupi-guarani atribuído, como já foi citado, a estas tribos que pertencem ao grupo Macro-Jê. O nome dessas cidades foi mantido não porque os novos moradores fossem ou se considerassem, no tocante a identidade, como descendentes dos ocupante's anteriores do território. Mas porque - e Marliere foi um dos pontos de partida para isso - foi possível idealizar uma certa tradição indígena com valores originais, nobres e sentimentais, relegando os índios que estavam sendo varridos de suas terras a um pas22
Documento de 26-12-1824, RAPM, X.
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sacio remoto e até heroico. Rendendo homenagem aos "primitivos" habitantes, os novos moradores conseguiam dois objetivos: de certa maneira se isentavam das violências cometidas, apresentavam-se como herdeiros (ainda que apenas simbólicos) dos ocupantes anteriores do território e ainda contribuíam para forjar uma identidade regional peculiar, comprometida apenas simbolicamente com os índios. Assim, a toponímia indígena aparece nestes casos específicos como instrumento cultural de consolidação da Conquista. Dessa maneira, os temíveis (e intragáveis) Botocudos, vistos como antropófagos, passaram a ser, em parte, palatáveis para a memória coletiva dessa região. Os colonizadores acabaram em grande parte devorando a digerindo a presença indígena. O próprio militar francês recebeu homenagem póstuma, com o Posto Guido Marliere criado pelo SPI nos anos 1910 às margens do rio Doce. 23 Guido Marliere era, como se pode perceber, marcado pela sensibilidade Romântica então emergente, pois Renê de Chateaubriand publicara naqueles anos suas obras-primas do indianismo literário. O Romantismo, aliás, seria uma expressão artística fundamental para as tendências conservadoras da época, como a Restauração monárquica francesa ou o Império Germânico, uma vez que valorizava as tradições culturais e o retorno às "raízes" históricas das sociedades como forma de legitimar as monarquias e os impérios diante da vaga liberal ou revolucionária. Dessa forma, compreende-se a "conversão" de Marliere nos sertões das Minas Gerais nos princípios do século XIX: sem muito espaço entre as elites urbanas (católicas, ibéricas e manifestando tendências liberais), buscando apoio na monarquia luso-brasileira e deixando-se sensibilizar pelas populações indígenas, o militar francês acabaria por abandonar as ideias politicamente revolucionárias e assumiria radicalmente a proteção aos índios e o apoio à monarquia portuguesa. Mais tarde, Marliere manteria sua adesão ao Império brasileiro, referenciando-se numa visão marcada pelo exemplo imperial russo. E não deixaria de buscar uma maneira de inserir os grupos indígenas como parte integrante do Império do Brasil. A originalidade de Marliere estava no fato de que seu indianismo não era urbano, 23
Cf. Capítulos 10 e 11 do presente livro.
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abstrato nem fruto apenas de leituras ou aspirações idealizadas. Ele manteve e forjou sua sensibilidade Romântica ao longo das décadas em que esteve no meio dos Botocudos e também dos Puris, Coroados e Maxacalis. Assim, é preciso ter em mente que naquele momento histórico no Brasil a rejeição da hostilidade aos índios era sobretudo um signo de conservadorismo político. Basta lembrar outro exemplo, o do viajante e príncipe prussiano Wied-Neuwied, conservador politicamente, tocado pelo Romantismo. Pois os revolucionários, monarquistas constitucionais, modernizadores e liberais de diferentes tendências estavam mais preocupados em avançar o progresso nacional - diante do qual os índios apareciam como obstáculo. Condecorado como "Chevalier de l'Ordre de Saint Louis" {Cavaleiro da Ordem de São Luís) na França e posteriormente como "Cavaleiro da Ordem de Christo" (comenda criada em Portugal e mantida no Brasil), Marliêre chegaria a coronel da Cavalaria do Estado-Maior do Exército Brasileiro. Ele pediu ainda uma condecoração a D. Pedro I e não foi atendido, o que o teria deixado desgostoso do trabalho com os índios. Engenheiro com formação técnico-cientifica das Academias Militares, Guido Marliêre foi um dos expressivos representantes dessa formação profissional e ideológica que tornava os militares agentes do progresso e da civilização com perspectiva humanista - da qual o marechal Cândido Rondon seria expoente um século mais tarde. Afinal, como se dava mais precisamente a relação {mediada pelo Romantismo) desse militar francês com os Botocudos? Além dos lugares-comuns que o apontam ora como uma espécie de apóstolo humanista, ora como mais um Conquistador de índios, é interessante averiguar o tipo de contato que havia e o que Marliêre pretendia e pensava em relação aos Botocudos. Toda ênfase na postura de Marliêre em defesa dos Botocudos não basta para compreender as múltiplas dimensões dessa relação e mesmo qual sua visão desses índios e da sociedade em geral. Se o coração de Marliêre parecia estar do lado dos Botocudos, sua cabeça funcionava com outros parâmetros: no fundo ele sonhava com uma espécie de modelo de perfeição social e humana fundado na rigidez simétrica tão marcante nas culturas prussiana e russa, inspirado pelo Romantismo e concretizado politicamente num poder imperial. Em alguns de seus testemunhos fica uma certa impressão de que os índios seriam assim como uma matéria-prima ideal para a realização dessa
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utopia, por não estarem ainda impregnados da civilização em sua vertente ibérica- à qual ele nutria discreto mas perceptível desprezo. Marliêre permanecia fiel à ideia imperial de poder. Acusado de bonapartismo, elogioso diante de D. Pedro I e II, enviando índios à proteção de Francisco II (imperador germânico) são evidentes os sinais de sua lealdade à forma imperial de governo. E que não se limitava às vertentes germânica, francesa ou brasileira, mas se estendia também ao Império Russo. Diante do Império brasileiro que se formava, Marliêre projetava a inserção dos Botocudos nessa ordem imperial à luz da experiência russa. Ao colocar no papel um projeto que denominava de "Educação Religiosa, Civil e Militar dos Indios", Marliêre não escondia elogios às instituições políticas do Império da Rússia que governava "muitas Nações ainda pouco civilisadas", citadas textualmente: Cossacos, Calvenkos e Tártaros. O imperador russo concedia títulos honoríficos ("Hettman") aos chefes dessas nações caracterizadas pelos comportamentos guerreiros. A mensagem de Marliêre é direta: "O Imperador do Brazil tem muitos Cossacos e pode tirar delles, com o tempo, o mesmo partido". 24 Ou seja, era isso que Guido Marliêre pretendia fazer com os Botocudos: inseri-los na ordem nacional imperial como os Cossacos na Rússia. Isso explica o cuidado de não transformar radicalmente os hábitos e costumes dos Botocudos, sobretudo a prática guerreira, que poderia ser canalizada não contra o Império brasileiro, como ocorria até então, mas a favor dele. As companhias de Coroados organizadas por Marliêre em 1815 para atacar os Puris bravos, suas constantes tentativas de incorporar Botocudos às tropas militares, sua política de privilegiar os chefes das tribos - tudo no fundo parecia ter como motivação essa utopia prussiana e militarista tropical. Por isso, não é de surpreender que uma discussão onomástica tenha ocupado grande parte dos escritos de Guido Marliêre: qual nome deveria ser dado ao principal Aldeamento sob sua responsabilidade? Inicialmente o local se chamava Aldeamento São Pedro de Alcântara. Mas Marliêre achava que tal denominação não soava bem ... Village de Pierre não lhe parecia tampouco adequado. E sem querer desautorizar a homenagem ao imperador Pedro I, o francês propõe que o local passe a ter o nome de Aldeamento Petersdoff. 24
Documentos de 7-1-1825, RAPM, X.
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Tanto fez, insistiu, enviou cartas a autoridades provinciais, à Corte, aos ministros, ao próprio imperador que os brasileiros acabaram concordando em que o aldeamento dos Botocudos se chamasse de Petersdoff. Mas ninguém - além de Guido Marliere e do ministro, nas correspondências oficiais - chamava a aldeia com este nome. E quando Marliere saiu de lá a denominação desapareceu. As tentativas de germanização dos trópicos seguiram adiante. Marliere conseguiu enviar à Confederação Germânica o índio Botocudo batizado de João Boquejune (ainda aqui se verifica a regra de dar prenome português aos índios, mas manter como sobrenome sua denominação tribal ou familiar), que permaneceu cerca de dois anos na Europa. O francês parecia depositar esperanças nesse índio como cobaia para a civilização, mas decepcionou-se. João recebeu a proteção imperial de Francisco II, de quem ganhou dinheiro, presentes e sustento. Mas a esposa de João, uma índia de sua tribo, morreu nessa estadia. Ele retornou ao Brasil para arranjar outra esposa na tribo. Para desalento de Marliere, João fizera poucos progressos na língua alemã, perdera a espingarda e os presentes e ainda por cima "tudo quanto recebeo da generosidade de S.M.I. Teutonica bebeo". João ganhou nova espingarda, pela qual Marliere emitiu diversos documentos oficiais, a fim de justificar e garantir que um índio Botocudo pudesse andar armado. Mas Boquejune envolveu-se com dois capitães Botocudos, os irmãos Inocêncio e Filipe, que eram incorporados às forças militares brasileiras. Esses dois acabaram tomando tudo que João possuía e mais uma vez ele ficou na penúria, malogrando a tentativa de germanizar os Botocudos. 25 Nunca é demais lembrar que se Marliere mantinha sua sensibilidade e convicções intelectuais marcadas pelas matrizes culturais referidas (e era com esses olhos que via o mundo), ele vivia literalmente cercado pelos Botocudos. Como ele desabafou em carta a seu compatriota, o famoso cientista Auguste de Saint-Hilaire: Continuamente cercado de Botecudos, pouco me he possível escrever; se fecho a porta, entrão pella janella; n'huma palavra, elles me põe as vezes fora do assunto; [ ...] a sua impertinencia h e excessiva. 26 25 26
Documentos de 1-3 e 18-2-1825, RAPM, X. Documento de 6-12-1824, RAPM, X.
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A ausência de noção de individualidade entre os índios incomodava a Guido Marliere, que se sentia invadido em sua privacidade. Autocentrado em seus próprios valores, o militar francês pretendia civilizar e proteger os índios, mas parecia pouco disponível para compreender as diferenças culturais. Entretanto, ele teve a capacidade de perceber aspectos importantes deste universo do Outro. Anotou que "cada Horda ou Tribu tem nome diferente" 27 e que os nomes gerais eram impostos pelos não índios. Da mesma maneira, ao registrar que o comportamento dos Botocudos se baseia "na sua vingança, a qual religiosamente excitão" 28 ele estava percebendo que os códigos de vingança eram um dos fundamentos que estruturavam a vida destes grupos. Marliere registrou ainda a presença, entre as crenças dos Botocudos, do "espírito mau", Natshone, que ele associava ao Tupã da cultura católica tupi-guarani. E anotou ainda a existência de danças ao Sol, à Lua e às estrelas. Uma sensual canção de amor de uma índia solteira foi por ele traduzida da seguinte maneira: Tu que diz sou feia, Porque vens de noite, Depois de meu fogo accezo, Deitar-se de vagar nas minhas costas? A mulher do chefe Nho-une, do Cuieté, dançava e cantava: Não posso mais dançar Vou-me sentando; Kejah está em suor, já está chorando. Havia, portanto, a iniciativa de registrar um cancioneiro Botocudo. Marliere elaborou até um vocabulário português-botocudo, que permanece inédito e pode ser consultado em manuscrito na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro.29 Ele escrevia os nomes e expressões indígenas sem critérios fonéticos bem definidos, misturando as sintaxes do francês, português e alemão. Sua percepção etnográfica era inferior à dos viajantes europeus da época. Mas sua atuação no 27
28 29
Documento de 26-10-1824, RAPM, X. Documento de 14- 12-1825, RAPM, X. Vocaóularioportuguez-botocudo p or Cuido Thomaz Marliere. . ., 1835.
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terreno, junto dos índios, teve dois efeitos: de um lado colaborou na desintegração dos modos de vida tradicionais de parcelas consideráveis destas tribos; de outro, significou uma linha de confronto com as frentes de expansão que pretendiam dizimar os Botocudos, possibilitando para eles um espaço de aliança e sobrevivência. A política de Marliere encontrava forte resistência entre as diversas frentes de expansão - fazendeiros, mineradores, comerciantes, e outros- que desejavam aniquilar os índios, tomar suas terras ou utilizálos como mão de obra escrava. O fato de Marliere ter recebido uma sesmaria da Coroa não o alinhava automaticamente com as reivindicações de outros proprietários rurais. Ao contrário, tal relação era mais de conflito. As queixas dos moradores se acumulavam e o clima continuava tenso entre Botocudos e colonos, com escaramuças constantes. As atitudes de antagonismo em face dos índios permaneciam como herança dos tempos luso-brasileiros para a época posterior à Independência. Pode-se perceber tal fator na Representação dos habitantes de Ponta Nova para D. Pedro I, de 1826, que combatiam abertamente"[ ... ] a Direcção d'aquella barbaresca nação às mãos do Tenente Coronel Guido Thomaz Marliere, que faz hum errado sistema de civilização [e] tem reduzido aquelles povos quasi ao antigo tempo de callamidades, roubo e mortes". 30 A citação acima é sugestiva: ao lado do interesse pela posse das terras, expressa-se também o conflito de uma concepção de nação que se queria moderna com as sociedades acusadas de barbárie ou arcaísmo e que, por isso, deveriam ser eliminadas. Os colonos proprietários de terras moviam sistemática campanha contra o francês Guido Marliere. Como se pode ver nesta outra Representação dos moradores de várias localidades da freguesia de São Miguel, termo do Caeté, solicitando providências contra as incursoens dos indios Botocudos, de 1827, onde os "Desgraçados Povos Habitantes da
Ribeira de Santa Anna da Onça" reclamavam que Marliere não tomava providências para evitar os prejuízos dos fazendeiros e negociantes e nem estaria realizando a "catequese" desejada.Jl Os moradores
30 Representação dos habitantes da região de Ponte Nova, dirigida ao Imperador Pedro I, 1826, II, 36,5,21, FBN/MSS. 31 Representação dos moradores de várias localidades dafreguesia de São Miguel, termo de Caeté, solicitando providências contra as incursões dos indios Botocudos, 7 p., 17 de outubro de 1827, II, 36,4,44, FBN/MSS.
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pediam mais soldados para atacar os Botocudos. Ou seja, preferiam optar pela via guerreira em vez da chamada via pacífica. Não faltava disposição ao militar francês para enfrentar tais reações e se colocar em defesa de sua própria postura em face dos Botocudos. O!tando dois brasileiros foram flechados por índios da Aldeia de Cachoeirinha, Marliere diz que "infelismente não morrerão", pois eram "homicidas e perturbadores do socego publico" e constantemente atacavam os índios. E quando um fazendeiro pedia reforço militar para atacar as tribos, Guido Marliere não tinha meias palavras:"[ ... ] este estupido não sabe que por hum Indio que manda matar, attrahe sobre si, e sua Fasenda, hum seculo de Represalias". 32 No ano da Independência, ele afirmaria por escrito à Corte, alinhando-se às ideias racionalistas da Ilustração europeia: "Os Indios estão ao desamparo, mortos, perseguidos, e expoliados alguns de suas terras. Os opressores desculpão-se dizendo que elles não são Baptizados, e isto no Seculo XIX!!"33 Diante de tantas pressões, Marliere encontrava algum apoio no governo central. Ele chegou mesmo a afirmar em carta ao compatriota Saint-Hilaire que D. Pedro I era seu protetor e amigo dos índios. Mas o que ocorreu é que o extermínio desses índios passou a ser praticado menos pelos governos e mais por iniciativa de fazendeiros, negociantes, garimpeiros e outros- contra os quais o governo imperial não pretendia se indispor. Em 1830 Marliere acabou deixando o cargo que exercia, escrevendo, cinco anos depois, seu vocabulário botocudo-português. A maioria de seus escritos permaneceu inédita na época, lidos apenas pelas autoridades a quem os endereçava, à exceção de algumas colaborações na imprensa mineira e de correspondências privadas. Na época da fimdação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, as propostas e exemplos de Marliere seriam utilizados como referências importantes por dirigentes da instituição, como o cônego }anuário da Cunha Barbosa. 34
••• Mas a tendência de associar positivamente os Botocudos ao nascente Romantismo brasileiro teria outro defensor além de Marliere.
Documento de 14-12-1824, RAPM, X. Documento de 24-4-1822, RAPM, X. 34 J. da C . Barbosa. Qyal seria hoje o melhor systema de colonizar os Indios entranhados em nossos sertões. Revista do Instituto Histórico e Geognifico Brasileiro, t. 2, vol. 2, 1840. 32
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Sabe-se que o indianismo romântico teve seu apogeu no Brasil entre os anos 1850 e 1860. De modo geral este indianismo significava uma busca do específico brasileiro e, como destacou Antonio Candido, a preocupação dos românticos brasileiros era sobretudo equiparar qualitativamente os índios aos colonizadores em cavalheirismo, generosidade e força poética. 35 E o Romantismo marca neste terreno a passagem do índio-signo para o índio-personagem (da ficção literária, entenda-se). Seria possível enquadrar os Botocudos nessa tendência? Tal tentativa foi feita, de certa maneira, no romance Asfatalidades de dous jovens - Recordações dos tempos coloniais, publicado em 1856, por Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa, autor considerado cronologicamente como o primeiro romancista brasileiro, embora geralmente visto como de baixa qualidade literária pela maioria dos contemporâneos e críticos posteriores. 36 O herói do livro é Gonçalo Pereira Dias, nome tão português atribuído a um filho de mãe indígena (de tribo não especificada na trama) e pai luso. O cognome desse personagem é Botocudo. Exercendo papel benéfico e salvador no enredo, Gonçalo, o Botocudo, comete um assassinato por questões de honra familiar e defesa de perseguições injustas, amargando por isso longos anos de prisão. Numa passagem autobiográfica o personagem explica o próprio perftl e origem do apelido, depois de ter sido preso: Dalli por diante os meus inimigos me chamaram uns, o assassino, e outros, por me tornarem ridículo, o botocudo: cumpre notar que eu sempre fui feio como me vêem [... ]. Assim, o nome de Botocudo aparece ligado ao estigma da brutalidade, ridículo e feiúra: características da percepção sobre essas tribos que passa a ser propagada à medida que vão tornando-se objeto de estudos culturais e de interesse pelo exotismo -isto é, quando são mais visivelmente derrotados ou despojados de suas terras, de sua capacidade guerreira e de resistência aos colonizadores. Mas a solução romanesca buscada por Teixeira e Sousa (na perspectiva de colocar o índio como elemento regenerador da identidade brasileira) foi a 35
A. Candido. Formação da literatura brasileira. .. , vol. 2, p. 21. Antonio Gonçalves Teixeira e Sousa.Asfotalidades de dousjovens: recordações dos tempos coloniaes. 3 t., Rio de Janeiro: Typ. Dous de Dezembro, de Paula Brito, 1856. 36
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de, por trás dessa aparência feia e feroz, criar um personagem Botocudo que tivesse tanto ou mais virtudes do que os melhores luso-brasileiros que aparecem também como personagens no livro. Ou seja, considerá-los como capazes de aprimoramento: converter a fera aos belos sentimentos. O olhar romântico sobre os Botocudos teve um representante de peso no pintor francês François-Auguste Biard (1799-1882). Em seu livro Deux années au Bresi/, 37 narrando a viagem empreendida entre 1858-1859, há 180 desenhos de Riou, conhecido ilustrador (desenhava, entre outros, para a coleção das Viagens Extraordinárias de Jules Verne) que trabalhou a partir de croquis realizados in loco por Biard. François Biard era artista que partilhava com Vítor Hugo a tendência romântica politicamente revolucionária da geração de 1848: pintou cenas de escravidão urbana no Rio de Janeiro, índios na floresta amazônica e foi autor do quadro que retratava, de forma alegórica e comemorativa, a abolição da escravidão nas colônias francesas no mesmo ano. Registra-se em sua biografia que compartilhava com Vítor Hugo não apenas convicções, mas ao chegar em casa certo dia o pintor encontrou a esposa nos braços do célebre escritor. Inconformado, processou-a por adultério, num episódio rumoroso nas rodas parisienses, que acabou levando a ex-madame Biard à prisão. A partir daí François Biard empreendeu constantes viagens pelo mundo, pintando, entre outros, os !apões do norte da Europa. Ao passar pela província do Espírito Santo, Biard tinha em mente visitar os famosos Botocudos do rio Doce. Em seu texto e nas iconografias, o artista francês destacava a natureza exuberante com descrições bem ao gosto do Romantismo e do mercado editorial: ao mesmo tempo ameaçadora, misteriosa e plena de surpresas romanescas, como o encontro com animais estranhos, cobras gigantescas, insetos desconhecidos, entre outros. Os dramas humanos não faltaram em seu relato, como o desenho do índio Almeida morto sobre uma esteira de palha, no interior de uma rústica choupana, velado pela própria mãe, cena à qual o artista devotou um sentimento intenso, embora não tenha identificado a etnia do referido índio, de quem traçou também o perfil, recriando-o vivo. Biard testemunhou ainda a constante captura e utilização do trabalho indígena na província. Afirmou que era usual entre as famílias 37
F. A. Biard. Deux années au Brés{/. .. , 1862.
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pegar índios jovens, considerados como crianças abandonadas, para o trabalho doméstico ou agrícola. Porém "não como escravos, mas na qualidade de servidores", ressalvou, sem, entretanto, explicar a diferença.38 Ele próprio teve um grupo de índios a seu serviço durante toda estadia, "emprestados" por um brasileiro que o hospedara. E pareceu particularmente impressionado pelo "pequeno Manoel", um indiozinho que lhe servia de cozinheiro e também para carregar os fardos mais pesados durante a excursão, desenhando-lhe o rosto, mas igualmente sem identificar-lhe a etnia. O encontro com um grupo de cerca de uma dúzia de Botocudos na floresta deixou forte impressão em Biard. Estes índios retornavam de Vitória, onde haviam se encontrado com o presidente da província para solicitar auxílios e vinham, segundo testemunhou, com muitas roupas e promessas vazias. Biard presenciou e descreveu em palavras a cena: eles se desfizeram das roupas, juntaram-nas em forma de trouxa e, assim nus, continuaram a marcha pela floresta, despojados da principal característica da civilização, numa espécie de reação contra o homem vestido que parece ter impressionado o artista romântico europeu. Entretanto, ao desenhar uma índia desse grupo de Botocudos, Biard estampou um discreto retrato da cintura para cima, realçando o botoque (Figura 28). Optava assim pelo registro de cunho etnográfico e evitava, talvez, reações escandalosas que poderiam advir da visão mais explícita da rejeição das roupas e nudez coletiva deste grupo indígena.
Figura 28
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F. A . Biard. Deux années au Brésíl. . ., 1862.
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Na iconografia e nas palavras de Biard (cuja obra teve considerável repercussão no Brasil da época) sobre os índios, estes aparecem emoldurados por uma natureza vistosa e avassaladora, envolvidos por sentimentos e dramas, ou ainda rejeitando as roupas da civilização europeia sobre seus corpos. Ao mesmo tempo, Biard tendia a escamotear a relação de sujeição e violência a que os mesmos índios estavam expostos, e nisso ele se parecia com os românticos brasileiros do período. E quanto aos índios que, como os Botocudos, ainda resistiam aos padrões ocidentais, Biard, também à maneira dos românticos da época, tinha dificuldade em enquadrá-los como personagens romantizados, ficando tal vertente para os índios percebidos sem uma identidade étnica precisa. Os exemplos acima citados, na verdade, indicam que os Botocudos não mereceram atenção especial no cenário Romântico. Mas o mesmo não se pode dizer da antiga denominação de Aimorés, que esteve sob o foco do indianismo brasileiro. O poema "I-Juca-Pirama", do maranhense Antônio Gonçalves Dias, escrito em 1851, é um dos marcos do indianismo literário no Brasil. Ao compor, com reconhecida beleza e qualidade estética, a imagem mítica dos povos chamados primitivos, o autor, ao mesmo tempo que valoriza o papel nobre e guerreiro dos Tupis, não esquece de incluir neste poema duas referências aos "vis Aimorés". Numa delas, no trecho do "Canto de Morte", saem da boca do personagem tupi os seguintes versos: Andei longes terras Lidei cruas guerras, Vaguei pelas serras Dos vis Aimorés; Vi lutas de bravos, Vi fortes - escravos! De estranhos ignavos Calcados aos pés. Notável pesquisador da história e da etnografia indígena, Gonçalves Dias sabia que dos encontros destes "ignavos" com as frentes de colonização (ou com adversários indígenas) saíram chispas guerreiras que custaram milhares de vida, durante três séculos. Aimorés apareciam como espelho invertido, paradigma negativo na composição
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de um índio bom e selvagem no âmbito do nacionalismo romântico brasileiro. Avançando na mesma trilha, José de Alencar dedica aos Aimorés páginas ferozes em seu romance e expressão maior do Romantismo, O Guarani, de 1856. Em oposição ao comportamento cavalheiresco do fidalgo português D. Antônio Mariz e do índio (Tupi) Peri, herói do livro, os Aimorés, que não têm nomes ou personagens individuais na trama, aparecem como o inimigo coletivo e modelo de atitudes embrutecidas e animalizadas, quase fora da condição humana. As passagens são muitas, mas algumas delas mais marcantes, como a descrição que faz dos Aimorés (capítulo VII da Terceira Parte): Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz, cobertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates, armados de grossas clavas e arcos enormes, avançavam soltando gritos medonhos. Perpassa boa parte do romance a tensão iminente de um ataque dos Aimorés, que assim se constitui num dos artifícios literários centrais do livro, criando suspense, definindo o enredo e gerando alianças. O refrão se repetia nas páginas do romancista cearense, em tom de pavor: -
Os Aimorés! ...
Os ataques a propriedades rurais são descritos como cenas infernais, de horror, colocando-se assim o autor do ponto de vista do colonizador português, ao mesmo tempo que direcionava seu indianismo para os índios que se aliavam aos europeus. O contraste entre o bom Tupi (Peri) e o mau (Aimorés) selvagem é reiterado (capítulo 1, Parte III): Peri lhe havia contado com todas as particularidades de seu encontro com os Aimorés; e o cavalheiro, que conhecia a ferocidade e espírito vingativo dessa raça selvagem, esperava a cada momento ser atacado. José de Alencar, um dos fundadores da literatura brasileira, assimilava e reproduzia, como se percebe, as formulações típicas dos
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escritos do período colonial em relação a estes índios. Retomava a legenda depreciativa dos Aimorés, elaborada nos séculos anteriores: invencíveis, indomáveis, intangíveis, inomináveis e desumanos, apenas captados em relâmpagos guerreiros. Insistia, na estratégia de desumanização dos Aimorés, em associá-los às feras, mediante recursos estilísticos como: adjetivos, gritos inarticulados, vestimentas, maneira de andar nas selvas, enfim, no ímpeto com que ameaçavam o que a civilização apresentava de bom, nobre e honrado. Essa herança cultural dos primeiros cronistas e historiadores portugueses, no tocante à imagem dos índios, se constituía num problema, ou dilema, para alguns Românticos brasileiros. Para tratar especificamente desse assunto, outro destacado autor indianista do período, Gonçalves de Magalhães, escreveu o texto Os indígenas do Brasil perante a História, 39 em 1859, direcionado a criticar a maneira como os índios eram concebidos pelo historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, em sua História geral do Brasil. Baseado em boa parte na obra quinhentista de Jean de Léry, Gonçalves de Magalhães buscava valorizar a cultura e os índios tupi, defendendo-os como protótipo do bom selvagem e como elementos importantes "na riqueza e prosperidade" da sociedade que se tornara brasileira. Olianto aos índios do tempo presente, porém, sua atitude era sintomática. Logo na abertura do ensaio, ele considera os índios em geral como "povo vencido e subjugado" (p. 157), alertando, por isso, para a postura crítica que os historiadores deveriam ter ao analisar documentos produzidos pelos conquistadores sobre as vítimas, para não repetirem os mesmos equívocos e preconceitos. Mais adiante (p. 229), ele volta a se referir à condição indígena contemporânea nos seguintes termos: Si podessemos ir por todas as Províncias do Império, contando as aldeias, e numerando os Índios christianizados e domesticados, em serviço das cidades, villas, fazendas, navegação, excursões militares em prol da civilisação, veríamos o quanto em maior cópia se fundiram na actual população do Brasil [.. .). A ideia de uma escrita da história em defesa dos "vencidos", pelo autor da famosa e polêmica obra A Confederação dos Tamoios e 39 D. J. Gonçalves Magalhães. Os indígenas do Brasil perante a História... (1865). Texto publicado no número 23 da Revista do IHGB em 1860.
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protegido direto de D. Pedro II, pode parecer à primeira vista generosa ou solidária com as populações indígenas. Havia, porém, um aspecto a ser levado em conta: os índios não estavam completamente subjugados. Permanecia, como o próprio Magalhães explicita, uma considerável presença e visibilidade dos índios em todas as províncias do Império. Apenas ele realiza a sutil (e bem-sucedida) operação intelectual de colocar os conflitos indígenas para um remoto passado colonial, enquadrando, a seguir, todos os índios seus contemporâneos do Brasil na condição de domesticados e cristianizados. Não foram poucos os autores dos séculos XX e XXI que embarcaram nesta armadilha romântica. Os índios que conviviam de forma constante com a sociedade nacional não perdiam, imediatamente, suas identidades étnicas (embora as transformassem), nem deixavam de desenvolver estratégias de hibridismo cultural e resistência, mesmo que abandonassem o confronto bélico. É certo que muitos morriam pela onda de violência ou perdiam identidade étnica. Atritos e explosões intermitentes de violências ainda ocorriam. É preciso uma certa imersão naquele contexto para entender o que Magalhães, visconde e frequentador assíduo dos palácios imperiais, queria dizer com o apoio dos índios tidos como domésticos a "excursões militares em prol da civilisação". Era a utilização de índios "mansos" no combate a índios "bravos". Os silêncios de Gonçalves de Magalhães eram eloquentes. Eles apontavam para a presença de populações indígenas não plenamente enquadradas nos moldes civilizadores da sociedade nacional, em confluência com o Romantismo indianista. 40 Se os índios não deveriam mais ser aniquilados pelo Estado, nem poderiam desaparecer repentinamente, tratava-se, pelo menos, de fazê-los perder a visibilidade ou de considerá-los totalmente controlados e em via definitiva de extinção, enquanto identidade específica. Ou, para retomar a perspectiva enciclopédica e ilustrada, retirar os índios das pequenas nações e dissolvê-los na grande nação. A questão dos índios contemporâneos, pois, era crucial para a elaboração do indianismo, fosse no plano literário, alegórico ou histórico. O paradoxo permanecia: como defender a escolha das popu-
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A presença de populações indígenas na segunda metade do século XIX no Brasil como agentes históricos com diversificadas estratégias de resistência aparece em vários estudos, como os de I. M. de Mattos (2004), J. R. B. Freire (2004) e nos capítulos de A. L. Silva, M. K.arasch eM. H. Paraíso, in: M. M . C . da Cunha (org.), História dos índios no Brasil. . . (1998).
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lações indígenas em símbolos da singularidade cultural e das origens da nacionalidade no Brasil se, naquele mesmo tempo, os índios ainda estivessem sendo subjugados, como na época (não tão longínqua) dos portugueses? Os defensores do indianismo, como Gonçalves de Magalhães, buscavam solucionar essa equação negando as opressões dos índios no presente. Outros, como o historiador e visconde Francisco Adolfo de Varnhagen, tinham posição oposta e rejeitavam o indianismo justamente baseados na experiência de uma relação ainda conflituosa e mal resolvida entre os índios e a sociedade nacional. ~al
o lugar dos índios na (história) pátria?
Antes de tratarmos das divergências entre os viscondes de Araguaia (Magalhães) e de Porto Seguro (Varnhagen) sobre os índios e suas representações culturais, que envolveram outros nomes expressivos do período romântico, como Gonçalves Dias e João Francisco Lisboa, vamos nos ater ao lugar destinado aos Botocudos na elaboração de um campo intelectual e, mais especificamente, de uma história nacional no Brasil na primeira metade do século XIX. Até onde constatamos, não houve nenhum estudo histórico ou científico sobre os índios Botocudos feito ou publicado por brasileiros antes da década de 1870, quando tais índios seriam abordados pela nascente antropologia, como se verá no capítulo seguinte. Apareceram apenas relatos e apreciações, desiguais, relacionados às atividades administrativas ou projetos de civilização. Entretanto, do outro lado do Atlântico, em Paris, no verão de 1843, a sensação no mundo científico foi a discussão em torno dos índios Botocudos do Brasil, mobilizando o venerável Institut de France, a Société de Géographie e outros grupos, gerando publicações em francês (cf. capítulo seguinte). Ou seja, os Botocudos se transformavam em reconhecidos objetos de estudo no cerne das instituições científicas europeias que serviam como paradigma às congêneres brasileiras. O debate sobre os Botocudos na Academia de Paris não poderia passar despercebido entre as elites intelectuais brasileiras. Os dirigentes do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB, fundado cinco anos antes) parecem então ter se dado conta: um tema que girava no centro das mais recentes polêmicas científicas no Velho Mundo (cuja "matéria-prima" era oriunda do Brasil) não havia ainda sido tratado ou sequer considerado como tal no próprio país. Curiosa
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triangulação, que fez os Botocudos entrarem no mundo da produção intelectual e científica brasileira via Paris. Como que buscando suprir tal lacuna, a Revista do IHGB começa a imprimir os primeiros textos sobre os Botocudos no Brasil (os trabalhos de Saint-Hilaire, Wied-Neuwied e Debret foram impressos na Europa e não haviam sido traduzidos). Inicialmente aparecem no tomo 6 da Revista (1845) nada menos que os relatórios elaborados na época da Independência pelo ministro João Severiano Maciel da Costa, marquês de Qyeluz. O primeiro texto foi intitulado "Ofício sobre a existência de índios botocudos às margens do rio Doce", título aliás significativo, que não consta no original e parece instaurar oficialmente o reconhecimento, para o meio intelectual brasileiro, da existência de tais grupos indígenas. No mesmo volume aparece outro relatório do mesmo ministro, trazendo o projeto de colonização a ser imposto aos Botocudos na mesma data. Temos, pois, dois textos estritamente administrativos, sem caráter etnográfico ou histórico, embora importantes para compor a documentação sobre a relação daqueles índios com a sociedade brasileira. Era o que tinha a oferecer o então denominado Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil. Acrescente-se que a caracterização como documento histórico de um texto administrativo de apenas vinte anos antes, e cujas determinações até então vigoravam, tinha a sutil consequência de sugerir uma dimensão de passado histórico à relação entre os Botocudos e o Império do Brasil. Aparece depois, no tomo 9 da mesma Revista (de 1847), uma tradução do "Notes sur les Botocudos", escrito pelo barão Edme François de Jomard, célebre egiptólogo e publicada no ano anterior no Bulletin de la Société de Géographie de Paris (da qual Jomard era o presidente) e que, a bem dizer, consiste num trabalho superficial, que retoma algumas citações de Wied-Neuwied e analisa um vocabulário botocudo-francês elaborado por um certo Marcus Porte (ao que tudo indica um traficante de índios), baseado nos dois Nacknenucks fotografados e levados à Europa. A produção historiográfica do IHGB no período caracterizava-se pela idealização do futuro à custa da manipulação do presente e da construção de um passado a serviço da política, como definiu a historiadora Lúcia Guimarães. 41 Essa resistência das elites intelectuais 41 L. M. P. Guimarães, Debaixo da imediata proteção de sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ... (1995).
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brasileiras, a tratarem os índios chamados de Botocudos (e mesmo outras tribos) como objetos de estudos nos anos 1840 está, justamente, ligada às resistências que tais indígenas ainda apresentavam. O lugar dos índios no campo cultural não se dissociava do espaço que ocupavam no território nacional. Era o mesmo dilema que se manteria na década seguinte para a geração romântica: como conciliar, simultaneamente, a valorização cultural (científica, estética ou política) destes e de outros grupos indígenas, com as relações de contradição que permaneciam? E mesmo a lição do reconhecido von Martius (que pregava a incorporação primordial dos índios à composição de uma história do Brasil baseada na "mistura das raças", embora premiada em concurso como "projeto de história do IHGB") não foi, paradoxalmente, seguida pelo próprio instituto no período imperial. Tal texto, intitulado "Como se deve escrever a história do Brasil", depois de laureado, foi alvo de restrições dos membros da instituição, que afirmaram: "talvez seja inexequível na atualidade". E a presença indígena foi mitigada nas páginas da Revista do IHGB em seus primeiros tempos. 42 Era, ainda, o mesmo quadro intelectual que gerava defasagem entre as "novas ideias" europeias e as formulações das elites culturais brasileiras, que, por sua vez, faziam uma triagem nas "influências" que desejavam acolher. Seria preciso aguardar algumas décadas, ainda no século XIX, para solucionar a dupla e interligada equação. A literatura e as alegorias indianistas afloraram em fartura nos anos 1850-1860, conforme foi demonstrado e analisado por Lilia Schwarcz. 43 Mas deixavam de lado os Botocudos e destacavam positivamente os Tupis ou imagens indígenas sem identificação étnica. E somente quando os Botocudos deixavam de ser um problema contemporâneo, poderiam ser admitidos no cenário científico. Em fins do Oitocentos e primeiras décadas do século XX uma considerável quantidade de estudos nacionais e estrangeiros, bem como textos que ganhavam o status de documentos históricos, foram compilados, selecionados e impressos não só pelo IHGB, mas pelos Institutos Históricos de outras províncias (sobretudo Espírito Santo e também pela Revista do Arquivo Público Mineiro, no 42
Ibidem, pp. 573-8. A autora analisa do ponto de vista quantitativo e qualitativo a produção da Revista do IHGB sobre os índios no período. 43 L. Schwarcz. As barbas do imperador. . ., pp. 132-41.
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caso tratado aqui) e pelo Museu Nacional. Era, ao mesmo tempo, o ocaso dos Botocudos enquanto guerreiros. Evidente que tais tribos já eram bem conhecidas, fosse porque ocupavam ainda parcelas do território brasileiro numa região próxima da Corte, ou porque já tinham sido visitadas por autores europeus. Mas justamente pelo fato de se manterem em áreas estratégicas (que como tal não podiam ser plenamente incorporadas ao território nacional) esses índios constituíam desafio presente e não eram percebidos como objetos de estudo ou passíveis de se transformarem em símbolos alegóricos, a não ser os pejorativos. Os Botocudos eram (a contragosto de todos, até mesmo deles próprios) agentes históricos da sociedade nacional, apesar das tentativas de desqualificação ou de invisibilidade pelas elites intelectuais e políticas que tinham como preocupação central contribuir para a elaboração de uma homogênea nacionalidade brasileira. Elaborar identidade nacional é como construir espelho onde uma coletividade possa se enxergar. Os Botocudos, nesse caso, apareciam como imagem invertida, avesso do que não se pretendia, origem ao mesmo tempo renegada e que se buscava superar. 44 Os historiadores de então não ignoraram - nem poderiam ignorar - a presença indígena na sociedade, mas conceberam de diferentes pontos de vista a maneira como esses povos entrariam na construção da narrativa. E, por se tratar de uma história voltada para a elaboração de uma identidade nacional, tratava-se indiretamente de definir a inserção dos grupos indígenas no corpo da nacionalidade brasileira. Episódio marcante na vida pessoal do então jovem Francisco Adolfo de Varnhagen foi quando, na fronteira entre Paraná e São Paulo, caminhando ao lado de "bugreiros" (caçadores de índios ou de "bugres"), na espreita dos índios inimigos, chegou a carregar duas pistolas, com a intenção de atirar. Mas as pistolas não foram disparadas e o embate acabou não ocorrendo. 45 Porém, a guerra feita de palavras foi adiante, detonada com vigor. A predisposição de Varnhagen de atirar para matar revelava traços arraigados em suas convicções acerca do "problema" indígena no Brasil, delineando a escrita do futuro 44
Sobre o papel dos Botocudos nas representações raciais brasileiras do século
XIX,]. M. Monteiro. fu raças indígenas no pensamento brasileiro durante o Império... 45 F. A . de Varnhagen. Os índios bravos e o Sr. Lisboa . . ., 1867. fu citações a seguir de Varnhagen são dessa mesma fonte.
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historiador, que literalmente se colocava ao lado das frentes de expansão do século XIX. O estudo da História pátria veio a contribuir a radicar em meu ânimo as ideias que acerca da civilização dos nossos Índios, já professava, como cidadão e como político, pela simples observação do que se passa no país. Ou seja: foi, também, na percepção do contato com os índios seus contemporâneos que Varnhagen desenvolveu sua visão sobre tais povos na história do Brasil, numa posição clara, a favor das violências que se cometiam contra os indígenas. Ainda quanto aos índios de sua própria época, o visconde de Porto Seguro criticava abertamente a postura adotada pelo governo central após a Independência, isto é, a incorporação à sociedade nacional e à civilização por meios ditos brandos: Precisamos civilizar o Império, fazer todos em sua extensão obedecer ao pacto proclamado, e a experiência de mais de meio século tem provado a insuficiência dos meios brandos, que são justamente os mais gravosos para o Estado. Nessa perspectiva se compreende o elogio histórico que fazia à Guerra de 1808-1824, como se verá a seguir, além de formular sua atualização. Isto é, apregoava a retomada oficial do combate ofensivo e da escravização dos índios. Ou seja: para superar a dicotomia entre a postura civilizadora do governo central e a iniciativa guerreira das frentes de expansão e autoridades locais, o historiador-cidadão incitava a adesão da Coroa imperial à violência explícita. Varnhagen, dando seguimento ao mesmo raciocínio, propôs (escrevia em 1866) que os heróis da Guerra do Paraguai, então em curso, ao voltarem dos campos de batalha recebessem como prêmio as terras onde ainda estavam "índios bravos", bem como seus "braços" para trabalhar. A ação de diversos grupos indígenas - entre eles os Botocudos - aparece na obra e na elaboração das ideias que nortearam o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen- presença nem sempre admitida claramente, mas que se percebe num exame mais atento dos diversos textos do autor, que aliás dedicou grande parte dos seus esforços a estudos sobre o passado indígena no Brasil. Varnhagen,
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normalmente chamado "pai da história oficial", elaborou uma das mais bem estruturadas obras de história do Brasil, com ampla base documental, mesmo sendo conhecidas suas intenções apologéticas em relação à Monarquia e o caráter acentuadamente conservador, contrarrevolucionário e racista de sua visão de mundo, segundo alguns de seus próprios contemporâneos. Sabe-se que a preocupação central de Varnhagen ao escrever história era a construção da nacionalidade - daí o título de visconde de Porto Seguro outorgado por D. Pedro II a este que, relendo o passado, redescobria e elaborava um Brasil. A maneira como Varnhagen registrou e analisou a presença dos índios na História permanece ainda nos dias atuais, em alguns livros didáticos, nos meios de comunicação e mesmo num certo senso comum. Suas posições a esse respeito são fáceis de resumir: defendia sempre o ponto de vista do conquistador, do branco, da civilização, da guerra e da sujeição dos índios, que por sua vez eram associados à barbárie, ao primitivismo, à violência, irracionalidade e ferocidade. Poder-se-ia dizer que Varnhagen retomava neste tema a abordagem dos chamados "cronistas coloniais" (legenda de ferocidade, defesa do extermínio). Mas afirmar apenas isso seria inexato e empobrecedor. Inegavelmente ele herdara e reforçava em grande parte essa perspectiva, mas sua obra se pautava pela busca de cientificidade e exatidão nos estudos históricos e pela perspectiva de fundar uma nação homogênea dentro dos parâmetros da modernidade liberal conservadora. Ao contrário de muitos historiadores da nação do século XX (também marxistas), Varnhagen não começa sua História geral do Brazil (primeira edição de 1854) em 1500, com a chegada dos portugueses. Mas dedica uma Seção inicial ao meio geográfico, formação do solo, fauna e flora, seguida de mais três Seções sobre a vida dos índios no período pré-cabralino, onde fala das tribos em geral, mas refere-se apenas aos Tupis: língua, usos, armas, indústria, ideias religiosas e organizações sociais. Ainda no tomo I, escreve outra Seção sobre os primeiros contatos entre colonos e índios. Não cabe aqui analisar exaustivamente a posição de Varnhagen sobre os índios, mas apenas algumas referências que situem o tema estudado. Uma síntese lapidar da visão de Varnhagen sobre os índios é feita por ele próprio:
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Essas gentes vagabundas que, guerreando sempre, povoavam o terreno que hoje é do Brasil, eram pela maior parte verdadeiras emanações de uma só raça ou grande nação (p. 24). Assim, colocava-se: a vagabundagem, contraponto do trabalho produtivo; o caráter guerreiro, que caracterizava muitas destas tribos e que representava também a resistência contra os colonizadores; a homogeneização racial, eliminando a pluralidade de grupos e etnias existentes; e a ideia de simples ocupação de um terreno opondo-se à uma organização nacional. Há um ponto na obra de Varnhagen bem curioso. Na polêmica que travaria com João Francisco Lisboa acerca dos índios bravos, ele tenta criar um "fato histórico" ou uma "data histórica" (pois datas e fatos também passam pelo crivo da subjetividade). Varnhagen afirma com sua habitual ênfase e apoio nas fontes documentais que a primeira agressão entre portugueses e índios no Brasil ocorreu por iniciativa destes. Descendo a detalhes, ele situa o episódio no dia 27 de agosto de 1501, quando a expedição de Américo Vespúcio aporta na costa onde hoje é o Rio Grande do Norte, um dos membros da tripulação desembarca e é cercado por um grupo de índias que o atingem na cabeça com tacape, morrendo na hora. 46 O restante dos portugueses volta correndo para a nau em meio a uma chuva de flechas. Foi aí que, segundo Varnhagen, tudo começou. O "fato" tem conclusões lógicas e é apresentado para legitimar todas as posteriores agressões cometidas pelos colonizadores, pois, afinal, os índios é que começaram a guerra. Esta "data histórica", ao contrário de outras, não vingou na memória ou nos estudos históricos, provavelmente por sua fragilidade e pela avalanche de iniquidades que ela procura justificar. Varnhagen não poderia ignorar a importante presença dos Aimorés ao longo de todo período colonial. E realmente diversos episódios envolvendo esses grupos são citados na sua História geral. Mas o nome ''Aimorés" raramente aparece (salvo para os "cruentos Aimorés"), 47 ou melhor, não é escrito para nomear e identificar agentes históricos. Varnhagen utiliza largamente a noção de "Bárbaros", que ele aplica aos índios em geral e aos Tapuias em particular, evitando também esta última classificação. Mesmo os episódios notoriamente 46 47
F. A. de. Varnhagen. Os fndios bravos e o Sr. Lisboa. . ., 1867. Hist6ria geral do Brasil. .. , t . 1, seção I, p. 28.
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envolvendo os Aimorés, como o fracasso das capitanias de Ilhéus, Porto Seguro, São Tomé e Espírito Santo são narrados com referência genérica aos "Bárbaros", sem cara, sem palavra e sem nome. Os Aimorés são nomeados na obra do visconde de Porto Seguro sobretudo nos Anexos, onde se transcrevem documentos das épocas estudadas, ou ainda em edições póstumas, nas notas e comentários de Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. Com tal operação intelectual de usar uma expressão genérica (Bárbaros) englobando todas as tribos, Varnhagen demonstra uma dimensão de suas posições ideológicas menos evidente que seus discursos veementes contra os índios, dimensão que permanece nos dias de hoje, em que o progresso, a modernização nacional e homogeneizadora tendem a apagar a pluralidade étnica das populações do Brasil. Os índios são muitas vezes percebidos de maneira estereotipada e uniformizada, além de terem negada ou minimizada sua presença como atores do processo histórico. Ignorar o nome equivale a negar identidade e recusar a presença desses grupos como atores do processo histórico. Entretanto, numa escorregadela semântica e anacrônica, ao referir-se a um castelhano que no século XVI, no Rio Grande do Norte, passou a viver entre os índios, Varnhagen afirma que ele "se fez Botocudo". 48 Mesmo ao tratar da declaração de guerra ofensiva em 1808 pela Coroa portuguesa, Varnhagen não escreve "Botocudos" e sim "índios bravos" e refere-se a essas tribos nômades como "quilombos de índios", acrescentando a sugestão de que tais "quilombos" de índios deveriam ser tratados da mesma forma que os formados por escravos africanos, ou seja, perseguidos e dizimados. No vocabulário desse historiador nacional permanecia a tradição de considerar os índios como "negros da terra". E Varnhagen defendia (ainda em 1854) a iniciativa de D. João VI sob a argumentação de que a guerra apenas defensiva era inócua e improdutiva, uma vez que deixava a iniciativa com os atacantes e permitia que estes guerreassem em seus próprios terrenos. Varnhagen era um "colonizador bravo" que não se furtava em criticar os "colonizadores mansos". Assim, ainda a propósito da guerra ofensiva de 1808, ele reprova a experiência das Missões jesuítas, afirmando que elas só fizeram reduzir os territórios da Conquista em benefício dos territórios indígenas. E afirma que, para o Brasil do século XIX, não queria o que considerava o exagero dos Estados 48
Hist6ria geral do Brasil. .. , t. 1, p. 197.
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Unidos, onde havia uma política deliberada de extermínio das populações indígenas. Para Varnhagen, era preciso colocar as forças militares e as frentes de expansão de caráter privado em contato com os índios, fazendo que estes se submetessem à força e levando-os para reformatórios educacionais e trabalhos forçados, onde aos poucos eles iriam se integrando à sociedade e ao trabalho produtivo e deixando de serem índios. Como foi visto, não só o Varnhagen historiador trataria dos índios, mas também o polemista, escrevendo panfletos e defendendo suas posições. 49 Nesses escritos ele atacaria os "philotapuias", que consideram os índios como "verdadeiros donos da terra", ironizando que, se assim fosse, todos os brasileiros seriam "criminosos" que estariam "de posse do que é de outrem". Explicitando seu ponto de vista como cidadão, o visconde-historiador faz questão de lembrar que, no momento em que ele escreve suas obras, ainda existem "índios bravos" que fazem uma "guerra civil" em pelo menos dez províncias do Império: Santa Catarina, Paraná, Maranhão, Amazonas, Goiás, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Minas Gerais e Espírito Santo, onde ele não deixa de assinalar o problema da região do rio Doce. Para comprovar a existência desses conflitos com indígenas Varnhagen citava os relatórios dos presidentes destas províncias entre 1834 e 1850, por ele estudados minuciosamente- documentação, aliás, ainda hoje facilmente disponível para verificação. Diante desta "guerra civil" (entra aí exagero, pois os índios a esta altura não colocavam em perigo a nação como um todo, mas sim em conflitos localizados, embora ainda abrangentes e portadores de situações de violência) o historiador-cidadão-visconde-patriota não podia deixar de tomar partido e essa posição prévia, ou preconceito, reflete-se em suas obras. Confirmando mais uma vez que o historiador olha para o passado com os pés no presente. O visconde de Porto Seguro encontrava respaldo para seus argumentos pragmáticos aproveitando-se da fragilidade da idealização e do gosto pelo exotismo que caracterizava muitos dos "defensores" ou simpatizantes dos índios nos meios urbanos - que de um modo geral desconheciam as condições de vida das tribos e se inspiravam num Romantismo europeizado. Varnhagen, por sua vez, servindo como diplomata em Lima, deplorava os ataques que índios haviam feito naquele momento (em 49
F. A. de. Varnhagen. Os {ndios bravos e o Sr. Lisboa. .. , 1867.
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1866) no rio Javari à Comissão de Limites Brasil-Peru, lamentando "os insultos feitos à humanidade, aos interesses internacionais e até as ciências". Para o historiador-diplomata-visconde-cidadão, os índios eram um problema de Estado, no passado e no presente. Se românticos como Gonçalves de Magalhães buscavam minimizar os conflitos contemporâneos com os grupos indígenas para justificar o indianismo literário, outros românticos de matiz diverso, como Varnhagen, realçavam os mesmos conflitos, para criticar a opção indianista nacional. Neste caso, apesar do exagero ao enfatizar uma guerra civil contra os índios, o conservadorismo anti-indígena do visconde de Porto Seguro era mais coerente do que as alegorias do indianismo oficial do Segundo Reinado brasileiro. Os grupos indígenas não estavam completamente domesticados e cristianizados (como pretendiam Gonçalves de Magalhães e outros) e ainda apresentavam resistências, mesmo diante do massacre cotidiano que persistia contra eles. Tais ideias de Varnhagen, embora expressassem práticas sociais da monarquia brasileira, dificilmente passariam incólumes num momento de ascensão do Romantismo - onde a figura do indígena, ainda que mitificada, era valorizada em algumas circunstâncias. E foram precisamente as ideias do visconde de Porto Seguro sobre os "índios bravos" que geraram uma polêmica com um historiador e jornalista, o maranhense João Francisco Lisboa, redator do conhecido jornal de Timon, onde fazia oposição liberal ao Segundo Reinado. Com este autor temos uma visão distinta do tema. Francisco Lisboa acusava Varnhagen (de quem fora amigo próximo) de fazer apologia da guerra, de ter ideias retrógradas e de demonstrar não só animosidade, mas de pregar o extermínio dos índios. A polêmica teve réplicas e tréplicas. Mas o escritor maranhense, embora criticasse os "colonizadores bravos" do tipo de Varnhagen, não se preocupava em propor nenhuma política indigenista: seu objetivo era situar a questão indígena dentro da escrita da História. Partindo também do ponto de vista da civilização ocidental, que era a sua, Lisboa concebia a História como "longa narração de crimes e atrocidades de todo gênero". E sobretudo procurava destacar, dentro dos paradigmas de seu tempo, o caráter científico, objetivo e verídico da escrita da História. Francisco Lisboa também considerava os índios como bárbaros, mas defendia o direito de se conservarem enquanto tal e de permanecerem de posse das terras. O que era uma considerável diferença com
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seu antagonista visconde. E desejava que não houvesse incompatibilidade entre a permanência dos índios e a ocupação simultânea do território pelo colonizador europeu, enquanto agente da civilização, que poderia até, nessa perspectiva, trazer melhores condições de vida para as populações autóctones. O que Francisco Lisboa condena com veemência são as guerras, extermínios e escravidão a que os índios foram submetidos. (Seria esta uma das razões pela qual ele nunca escreveu sua história geral do Brasil, obra que tantos esperavam dele? Enquanto patriota convicto ele não gostaria de escrever uma longa narrativa de crimes e atrocidades?) Em seguida o autor faz reflexões sobre a guerra e sobre as relações entre esta e o progresso, concluindo, contra Varnhagen, que embora a guerra possa trazer algum estímulo ao progresso e à civilização, ela possui um caráter eminentemente destruidor e tanto pode servir à civilização quanto à barbárie. 50 João Francisco Lisboa coloca-se numa espécie de equihbrio, ou juste milieu, como se dizia então nos meios intelectuais e políticos. Se ele critica o conservadorismo de Varnhagen, também se opõe, embora num tom mais respeitoso, ao indianismo literário do poeta Gonçalves Dias - seu contemporâneo e conterrâneo maranhense. Francisco Lisboa faz questão de lembrar que o Brasil era fruto da civilização ocidental, dos portugueses colonizadores, dos quais herdara a língua e os costumes. No mesmo trabalho ele lamenta que Gonçalves Dias fizesse o que lhe parecia ser a apologia dos índios: [... ] confundindo a historia com a poesia e a ciências dos fatos, e o juízos severos da razão com os devaneios da imaginação, quis identificar a atual nação brasileira com essas tribos ferozes e pos a nossa prosperidade dependente da sua completa reabilitação [... ]. Mas qual seria então a perspectiva de Gonçalves Dias? Além de Gonçalves Magalhães, Varnhagen e Francisco Lisboa, temos aí uma quarta visão sobre os índios e a História do Brasil no mesmo período romântico. Antônio Gonçalves Dias, primordial poeta do Romantismo brasileiro, teve sua obra marcada pelo indianismo literário. Numa atitude típica do Romantismo (mas que neste poeta maranhense ganhou 50
F. A. de. Varnhagen. Os índios bravos e o Sr. Lisboa . .. , 1867.
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forma original, sobretudo pelo vigor e qualidade de sua poesia), os índios foram por ele considerados como símbolo das "origens" nacionais que se buscava valorizar. Mais do que valorizar, tratava-se de elaborar estas tradições no século XIX. E seus textos poéticos foram precedidos de longas pesquisas históricas. A pretexto de escrever a Introdução para a reedição dos Annaes Historicos do Estado do Maranhão, um clássico da narrativa histórica do século XVIII escrito por Bernardo Pereira de Berredo, Gonçalves Dias acaba escrevendo um verdadeiro manifesto com suas concepções sobre a dimensão dos índios na escrita da história do Brasil. 51 Eis um trecho: O primeiro topico de que havemos de tratar na historia do Brasil é dos lndios. Elles pertencem tanto a esta terra como os seos rios, como os seos montes e como as suas arvores. [. .. ] Elles forão o instrumento de quanto aqui se praticou de util e de grandioso; são o princípio de todas as nossas coisas; são os que derão a base para o nosso caracter nacional, ainda mal desenvolvido, e será a coroa da nossa prosperidade o dia de sua inteira reabilitação. Dessa maneira, Gonçalves Dias colocava como indispensável a presença indígena na escrita da História no Brasil. Usava um argumento que dava a tal presença um direito, digamos, natural, ao lado dos demais elementos da natureza. Em seguida, valoriza os indígenas como instrumentos do que se produziu de útil, subtendendo-se provavelmente daí a utilização como mão de obra na colonização. Em seguida, destaca a base para o "caráter nacional" (não é um ponto muito claro: estaria ele falando das contribuições cultural ou genética na formação da sociedade?). E ressalta o que considera como a incompletude da identidade nacional brasileira - deixando entrever que determinada valorização do elemento indígena poderia contribuir para o futuro da elaboração de tal identidade. O poeta e pesquisador critica ainda a brutalidade das guerras, da Conquista c da escravidão (vendo nos índios, cm contraponto, o "amor ardente da liberdade"). 51 A. G . Dias. Introdução aos Annaes Históricos do Maranhão por Berredo. ln: Bernardo Pereira de Berredo. Annaes Históricos do Estado do Maranhão . .. , 1849.
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Na mesma medida em que propunha esses fatores, Gonçalves Dias criticava outros pontos de vista na própria elaboração do passado histórico brasileiro. Ainda a propósito de Berredo, ele atacava determinado modelo historiográfico e afirmava: O que lhe importa é a Conquista, o que lhe interessa são aquellas insignificantes commoções de uma cidade dividida em classes tão disparatadas - são as representações da C amara do Senado - as exigências dos colonos, as ordens da metropole, os comboios annuos, as digressoes dos Governadores, os resgates dos Indios. O que é portuguez é grande e nobre, o que é de índios é selvatico e irracional, o que é de extrangeiros é vil e infame. Assim, além de criticar a concepção de uma História escrita do ponto de vista dos Conquistadores e colonizadores, o poeta maranhense propunha, também, a presença dos grupos indígenas neste processo. Presentes como símbolos ou como personagens? Tudo leva a crer que como personagens da narrativa histórica, da mesma forma que ele fazia em seus poemas ou romances. "Eis porque as primeiras paginas da historia do Brasil estão alastradas de sangue, mas de sangue innocente vilmente derramado". Em seguida, Gonçalves Dias defende o estudo sistemático dos povos indígenas, suas culturas, suas línguas, etc. E passa a fazer um rápido resumo dos principais grupos do Brasil. Procurando não explicitar o binômio Tupis e Tapuias e evitando o estigma de bravos ou mansos, ele fala das tribos tratadas aqui (e que correspondem a uma parcela dos que são atualmente considerados como Macro-Jê): Goitakases, Aymorés, Cramcrans ou Botocudos erão talvez outras raças que vierão do Peru; habitavão os certões [... ] os aymorés tinhão medo a agua, o que prova quam pouco affectos estavão elles a vista do mar. A possibilidade dos índios do território brasileiro terem emigrado da região do Peru apresentava-se para Gonçalves Dias plena de possibilidades: ao mesmo tempo ele associava-os às civilizações andinas materialmente mais complexas e aventava a hipótese de que tais grupos teriam vindo para o Brasil a fim de escapar da "tirania" dos incas, atribuindo-lhes assim mais uma vez, ainda que implicitamente, o gosto
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pela "liberdade". Sendo assim, o poeta maranhense estaria afinado ao já citado escapismo em direção aos indígenas da América espanhola. Por outro lado, é significativo destacar que nesta rápida referência aos Aimorés e Botocudos o escritor maranhense não retoma as denúncias de selvageria, antropofagia e barbárie ainda vigentes. Entretanto, Gonçalves Dias não esconde sua predileção pelos Tupis e Guaranis, considerados por ele numa visão de conjunto como a "tribo mãe" do Brasil, como, aliás, deixou transparecer em suas obras poéticas. Nesse ponto, aliás, Gonçalves Dias e Varnhagen estariam de acordo. Verdade que ambos tinham percepções diametralmente opostas ao papel do índio na história, na invenção das tradições nacionais e mesmo nas políticas indigenistas contemporâneas. Mas por detrás dessas diferenças ambos se viam marcados pela produção intelectual (oriunda dos antigos cronistas, dos relatórios dos administradores e das tradições orais) que estigmatizava os índios "bons" (Tupis-Guaranis) e os "maus" (Aimorés-Botocudos). Neste cruzamento entre História, Romantismo e Nação a sociedade brasileira continuava seu embate "simbólico", isto é, de símbolos culturais, ao mesmo tempo que mantinha, na prática, atitude violenta no âmbito das relações sociais, nas tentativas de domesticação ou destruição dos modos de vida das populações indígenas. Minas Gerais no tempo do Romantismo: ainda entre civilização e conflito Enquanto tais polêmicas historiográficas e literárias perfaziam caminho de idas e vindas entre os índios do passado e do presente, entre os símbolos criados e as relações estabelecidas, o contato direto com os Botocudos continuava gerando iniciativas registradas em testemunhos escritos. O principal registro para o conhecimento dessas tribos nos anos 1830 (embora só tenha sido impresso em 1903) veio do francês Pierre Victor Renault (fixou residência em Minas e passou a se chamar Pedro), encarregado de trabalho na região dos Botocudos em 1837.52 Renault era médico homeopata e engenheiro responsável por estudos geográficos e topográficos para a escolha do local de construção de uma "colonia de degredados e vagabundos". Repetia-se a fórmula do 52
Pedro Victor Renault. RAPM, VIII, pp. 1049-56 [1836].
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século XVIII, quando da criação de presídios de "vagabundos úteis" para ocuparem territórios indígenas. Agora, fins dos anos 1830, os Botocudos ainda impediam a mineração em Minas Novas, sobretudo a tribo dos Jiporocas (Gyporocks, referidos por Ottoni). A localidade tinha jazidas de crisólitas e águas marinhas, mas vivia na pobreza. Os índios causavam temor e sua presença não incentivava a colonização. Mas eles não eram os únicos causadores da falta de desenvolvimento: o solo estava gasto por anos de agricultura predatória. Os fazendeiros da região exultaram com a chegada de Renault, esperando que ele fosse livrá-los dos índios, e se cotizaram para financiar sua expedição, que incluía os rios Mucuri, Todos os Santos e afluentes. O principal financiador foi Antônio José Coelho, dono da maior propriedade rural da região, com mais de cem escravos, mas cujas terras na fronteira da floresta eram as mais atingidas pelos Naknenuks, outro importante grupo Botocudo, que matava gado e destruía plantações. O francês conseguiu arrecadar cerca de 300$000, os quais seriam usados para abertura de uma estrada e para compra de brindes aos índios. O governo colaborou com o envio dos militares da 2. • Divisão, reforçados com mais vinte praças. Mas para surpresa dos militares e dos financiadores da empreitada, o engenheiro Renault reuniu-se e avisou que não se tratava de uma expedição guerreira ou punitiva. E foi além: quem atirasse contra os Botocudos levaria um tiro dele próprio. Descendo o rio Preto (onde deságua o Mucuri) em canoas, o grupo penetrava em pleno território ainda ocupado pelos índios. Logo eles se deparam, numa das margens, com um grupo de oitenta índios, em atitude hostil, mas que não atiram flechas em razão da extensa largura do rio. Mas, com gritos, avisam aos outros, que se encontram mais adiante, da presença dos exploradores. Assim, as canoas iam avançando pelo rio sem poderem aportar, cercadas de índios que os ameaçavam. Os grupos de Botocudos se sucediam, causando pavor aos invasores. Eram ainda, nas palavras do francês, "mattas tão vastas, gigantescas, bellas e ricas regadas por tão abundantes rios". Dessa forma, impedidos de parar para se abastecer, a expedição passou a viver em estado de penúria, sobrevivendo, como os índios, de caça, pesca e colheita feitas em fugazes paradas. O grupo dirigido pelo francês experimentava, ainda que temporariamente, o que era viver como essas tribos viviam.
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A situação se prolongou por vários dias, pois a maioria do grupo ainda aguardava a volta de mensageiros que retornaram, pelo rio, para buscar reforços. Numa das paradas, porém, se viram cercados por Botocudos. Choviam flechas. Renault insistia com os soldados para não atirarem. As flechas silvavam cada vez mais perto, o pânico e a tensão aumentavam. Os "línguas" que acompanhavam a expedição gritavam para os atacantes que o grupo era de paz, mas os apelos não faziam efeito. Renault, numa última cartada, lembrou-se das referências que ouvira sobre a facciosidade do grupo e teve súbita inspiração: pediu aos intérpretes para dizerem que a expedição estava ali para guerrear a tribo encontrada anteriormente. As flechas cessaram. Os índios, após alguns momentos, apareceram rindo, descontraídos, pedindo vingança contra o grupo anterior, aceitaram os presentes e deixaram a expedição passar. Renault prometia ser um bom pacificador. No rio Setúbal, ele encontrou-se com trezentos Botocudos, alguns ainda "bravos", mas que acompanhavam os "mansos" para buscar os presentes e se internarem nas matas de novo. Renault conviveu largamente com os índios, incorporando os "mansos" à sua expedição. Seu convívio foi com os Naknenuks (que segundo ele significava: habitantes da serra). Os Jiporocas recusavam o contato: rondavam a expedição, deixavam rastros evidentes mas não aceitavam os presentes deixados na floresta nem respondiam aos chamados dos intérpretes. Estes dois grupos eram nômades. O francês recolheu dados de interesse etnográfico, também um vocabulário. O que lhe impressionou foi a semelhança desses índios com os chineses, não só na aparência física, mas na "linguagem muito aspirada". Ele foi tocado também pela relação carinhosa entre os pais e filhos, citando um caso onde uma criança bateu no pai e este fingiu chorar de dor, sem repreendê-lo - o que contrastava com a rigidez familiar e educacional das sociedades ocidentais do século XIX. Renault registrou também, ainda que de forma rudimentar, a transmissão da identidade cultural de geração em geração, notando que os adultos ensinavam aos filhos a "nunca deixar impune qualquer offensa" e reforçavam o "genio extraordinariamente vingativo e independente". O médico e engenheiro francês afirma a antropofagia desses grupos, embora não dê indícios de que tenha testemunhado algo nem explica de quem ouviu tal afirmativa, se de índios ou de colonos. Mas diz que a carne humana preferida seria a dos negros, cujo nome, ankorá, significaria "macaco do chão". Renault colheu várias espécies
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de plantas para homeopatia, algumas já conhecidas, outras cuja aplicação ele desconhecia, apropriando-se, assim, de saberes desse grupo indígena. Do ponto de vista religioso, o francês anotou a existência de um "ente supremo", associado por ele a Tupã, cujo nome era Krenhouh Jissa Kiju, traduzido simplificadamente por Chefe Grande. Qyando trovejava, os índios lançavam flechas para o ar e gritavam: "Krenhouh Jissa Kiju Jemes!" ("Chefe grande está bravo, é preciso acalmá-lo"). Ele anota também o Nantchou (que traduz como "Diabo"). O engenheiro notou ainda que a maioria dos índios não usava barba, mas, ao contrário dos observadores precedentes, supõem que eles a arrancavam, cabendo apenas aos mais bravos a prerrogativa de portar pelos no rosto. Cita como exemplo o "capitão" dos Naknenuks que tinha cavanhaque. Não seria um caso de descendência de brasileiros ou africanos? Aliás, este mesmo chefe, cujo nome ele não cita, pouco tempo depois acabou largando a selva, tornou-se empregado doméstico numa residência. No vocabulário feito por Renault encontra-se um dado interessante. Ele registra cozinhar como "kitote" ou "kitute". Os dicionários brasileiros atribuem origem africana à palavra quitute, cujo sentido original seria indigestão, mal-estar causado pela alimentação. É difícil sair do terreno das suposições. Os observadores teriam anotado o que seria uma influência ou empréstimo linguístico africano entre os índios? Ou a palavra incorporada à üngua portuguesa teria vindo dos Botocudos, onde o sentido de cozinhar se aproxima mais da conotação positiva, de iguaria e sabor, associada à palavra quitute? Neste caso, na diferença entre o cru e o cozido, teria se cristalizado uma das influências (ainda que não reconhecida) das tribos de "índios bravos" à cultura brasileira. Mesmo produzindo seu conhecimento etnográfico a partir de uma perspectiva de colonização, Pedro Renault formulou, com firmeza, a condição humana e inteligente desses índios, até então predominantemente vistos e caçados como animais, bárbaros e desprovidos de características humanas básicas. Este engenheiro francês mantinha-se, assim, na perspectiva intelectual da Ilustração europeia presente nos primeiros viajantes do século XIX, de afirmar o caráter potencialmente humanizado (e até mesmo criativo e cordial) e passível de civilização dos índios, o que encontrava oposição entre os grupos letrados brasileiros.
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He incrível a facilidade com que os Botocudos inventam palavras para designar objectos desconhecidos; he como por uma inspiração e acclamação unanime e sempre no meio de risadas e alaridos. Ao contrário da imagem de embrutecimento e ignorância diante da civilização, percebe-se aqui estes Naknenuks tocados pelo mais fino espírito de inteligência, reelaborando e reinventando os nomes dos objetos que até então lhes eram desconhecidos, criando para eles novos códigos, assimilando o novo à sua visão de mundo já sedimentada, rindo diante do desconhecido e transformando essas situações com criatividade, alegria e gritos. As palavras registradas por Renault entre os Naknenuks são expressivas. Bravo (máiokomme). Tocaia, emboscada Uiiomme). Guerra, briga, tomar tudo do adversário, até mulheres (iipamme). Apaziguar (ampang-nu-tepp). Ir, andar (mu). Estar vivo, existir (knang). Relacionava, assim, a atividade guerreira, de resistência, com a própria sobrevivência.
*** Se os contatos anteriores contribuíram para desarticular a preponderância indígena no vale do rio Doce, ainda havia tribos de Botocudos hostis mais ao Norte, em torno dos rios Mucuri e Jequitinhonha. Foi aí que entrou em cena o mineiro Teófilo Ottoni, um dos nomes mais expressivos da vida política do Império brasileiro. Ele teve papel de destaque no contato com os Botocudos. Conseguiu estabelecer alianças e recebeu de alguns índios o tratamento de "Capitão Paqueju" (Capitão Grande). E, tendo em mãos este trunfo, implantou uma colônia e conseguiu construir em plena selva dos "índios bravos" a cidade que hoje tem seu nome, contribuindo assim para incorporar ao mapa do Brasil uma parcela do território que antes era ocupada pelos Botocudos. A ação de Ottoni, embora de método em geral pacificador, contribuiu para a aniquilação dessas tribos, uma vez que conseguiu estabelecer um expressivo polo de atividades comerciais e urbanas numa região que até então vivia sob a hegemonia dos índios. Mas foi da pena de Ottoni que partiu um dos mais vigorosos e indignados protestos contra os maus-tratos a que esses índios eram submetidos, contribuindo para esclarecer violências narradas de forma contundente e detalhada. Na medida em que era um "colonizador manso", ele não media esforços em denunciar e criticar os "colonizadores bravos".
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Aliado e civilizador dos índios, Ottoni distribuía presentes e víveres e quase sempre evitava, dentro de seu raio de poder, que se ofendesse, ferisse ou matasse os índios. Estes, em contrapartida, mesmo quando atacavam os brancos, pouparam-lhe a vida por mais de uma vez. O móvel dessa iniciativa de Ottoni precisa ser compreendido dentro de sua trajetória política e da trajetória de embates vividos pelas tribos. A carreira de Teófilo Ottoni começa marcada por seu pertencimento aos liberais Exaltados. Em 1831, é um dos partidários do combate às tendências absolutistas de D. Pedro I. Filiando-se então aos ideários de um Cipriano Barata, o principal líder dos Exaltados dos anos 1820-1830 no Brasil, Ottoni redige em Minas A Sentinela do Serro, incorporando-se assim à rede de jornais "Sentinelas" que apareceram em diversos pontos do país. É eleito deputado provincial entre 1835 e 1838, quando consegue uma vaga na Câmara dos Deputados no Rio de Janeiro. Envolvendo-se na vida política da Corte, participa do grupo que articula a antecipação da maioridade de D. Pedro II e integra a associação conhecida como Clube da Maioridade, dirigida pelo ex-padre Martiniano de Alencar, que combatia o chamado grupo palaciano. Membro proeminente, em Minas, do grupo político que viria a ser o embrião do chamado Partido Liberal, Ottoni envolve-se de corpo e alma na rebelião armada de 1842, que tenta combater os grupos mais conservadores que se haviam apossado do poder. Na rebelião, age como um líder militar e político audacioso, fazendo seu nome associar-se às legendas em torno do episódio. Esmagados os liberais, Teófilo Ottoni continua seu combate político, mas vai perdendo cada vez mais espaço. Em 1847, decide então dar um novo rumo à sua vida pública e dedicar-se aos negócios. Os ventos estavam mudando e Ottoni não se envolve mais nas tentativas revolucionárias de 1848. Era a hora de trocar a vida pública pela iniciativa privada. Abandonando (por alguns anos) a luta parlamentar e jornalística na Corte, Ottoni, acompanhado dos membros de sua numerosa e influente família, mergulha pelos sertões mineiros e decide começar um empreendimento, batizado de Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri. Entre os acionistas dessa empresa estava Irineu Evangelista de Sousa, o barão de Mauá, sócio e amigo de Ottoni: ambos partilhavam o mesmo ideal progressista e civilizatório, o mesmo espírito empreendedor. Visitando o terreno, Ottoni viu logo que o principal problema que poderia impedir o florescimento de sua empresa era a presença
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maciça dos índios Botocudos. Partidário do desenvolvimento econômico como instrumento civilizador, Ottoni mostrou-se chocado com a violência que se abatia sobre esses índios, da parte dos moradores ou de tropas regulares, e passou a combater tais atitudes. Entre 1847 e 1860, Otttoni conheceu as seguintes tribos de Botocudos: os N acknenukes (os quais ele chamava de federação, por se constituírem de vários bandos interligados), que se deslocavam entre as cabeceiras do sul do rio Mucuri e do alto rio Todos os Santos, os mesmos que haviam sido contatados por Marliere décadas antes; as tribos dos chefes Casimiro e João lmmá, aliadas entre si, nas cabeceiras do norte do rio Mucuri e no vale do rio Preto; pequenos bandos que vagueavam entre os rios Preto, Pampam e Santa Clara; a tribo chefiada por Pojichá, na margem esquerda do rio Mucuri, descendo pelo vale do rio Todos os Santos, nos arredores de Filadélfia; os Gyporoks, no vale do rio Urucu; e entre o vale do ribeirão da Pedra e Santa Clara, as tribos de Batata, Poronhum e diversos outros pequenos bandos. As denúncias que Ottoni fez de violências servem para levantar uma tipologia de práticas repressivas sobre os índios, mas são bem escassos e superficiais os dados etnográficos sobre a vida dos grupos (língua; costumes, etc.). O que indica que o político mineiro estava mais propenso a defender o próprio modelo de colonização do que valorizar os índios. Num texto em forma de carta ao escritor Joaquim Manuel de Macedo, Ottoni fez substancial relato, até hoje muito citado, de seu contato com os Botocudos. 53 E desse texto é possível depreender, entre outras coisas, uma tipologia das violências cometidas contra tais indígenas durante o período monárquico brasileiro: - cães treinados na caça aos Botocudos, alimentando-se da carne de índios assassinados; -grupos organizados para "matar uma aldeia", cf. já foi visto, inclusive, na pintura de Rugendas (Figura 2); -índios (inclusive Botocudos) recrutados como soldados eram estimulados a praticarem violências contra Botocudos; - comércio de crianças, onde uma kuruca valia uma espingarda, e também de crânios de índios, vendidos para Museus; 53
T. Ottoni. Notícias sobre os selvagens do Mucuri . .. , (1858).
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- invasão de terras e utilização da mão de obra indígena, inclusive em trabalho escravo. 54 Na verdade, o projeto civilizador de Ottoni tinha qualquer coisa não de socialismo, mas de um "mercantilismo utópico". Ele tinha em mente a imagem do progresso ascendente e da prosperidade dos Estados Unidos da América do Norte. Inspirado também em algumas experiências regionais bem-sucedidas de convivência entre colonos e índios na Filadélfia, Ottoni pretendia lançar no interior de Minas Gerais as bases de uma sociedade onde pudessem conviver pacificamente os índios e os brancos, onde cada um teria terras e atividades respeitadas e poderiam realizar uma profícua parceria entre comércio, artesanato e agricultura- ficando porém o trabalho mais pesado por conta do escravo africano. O ideal formulado por Ottoni era de que a coexistência entre índios e brancos deveria ser pacífica e na base de trocas, da reciprocidade, todos com suas propriedades delimitadas e enriquecendo-se à custa do trabalho produtivo e do comércio. Nem sempre o ideal se concretizou. Teófilo Ottoni se bateu por tais premissas. Estabeleceu ligações com diversas tribos de Botocudos, denunciou as violências cometidas contra eles. Levou adiante sua empresa de comércio e navegação até onde pôde, chegando a construir uma cidade que batiwu de Filadélfia. Mas em 1860 o governo liquidou sua empresa (atolada em problemas e denúncias de irregularidades), que, entretanto, servira para implantar de maneira sólida a civilização nacional em pleno território indígena. Estes, continuaram a ser massacrados, espoliados de suas terras, restando apenas o registro impotente dos protestos de Ottoni, desbravador de florestas, aliado, protetor e indiretamente destruidor de índios. Em 1878, reconhecendo que não havia nenhuma Filadélfia ali, os governantes mudaram o nome da cidade para Teófilo Ottoni, numa homenagem a seu fundador. Homenagem paradoxal, pois a utopia capitalista e de certo modo solidária do fundador também acabou derrotada. A própria memória local- que se expressa, assim, na afirmação da superioridade do civilizador sobre os índios - se constrói também pela iconografia. 54 Essa tipologia foi sistematizada, a partir do texto citado de Ottoni, por S. A. Marcato (1979).
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Figura 29 No desenho aquarelado de Shirner feito em 1860 (Figura 29), retratando a Filadelfia que surgia nos sertões mineiros, é de se notar que os índios estão, literalmente, na periferia: vê-se um grupo no canto direito do quadro, na extremidade, próximo a fronteira visual da imagem - e também na fronteira do incipiente núcleo urbano que, por sua vez, ocupa o centro do espaço desenhado. É sugestivo reparar, ainda, que tais índios aparecem em estado selvagem, isto é, sem roupas e portando arcos e flechas. Ou seja, como se não fizessem parte da nova forma de povoamento e organização do espaço territorial. E também como se ficassem, além de apartados, intactos em sua "selvageria", sem serem utilizados como mão de obra, nem incorporados de maneira violenta ou subalterna à sociedade nacional.
Figura 30
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Da mesma forma, o quadro de Santa Rosa (Figura 30), do século XX e pertencente à prefeitura local, retrata o civilizador em primeiro plano, tendo ao fundo uma locomotiva e um prédio ou fábrica (chaminé soltando fumaça), emblemas do progresso. Nesse traço, um dos mais expressivos do modernismo brasileiro, vê-se em segundo plano um casal de índios com criança no colo: além de apresentarem certo ar sombrio (rostos divididos pela sombra), aparência de vitimização ou tristeza, os índios não têm feição própria, nem identidade étnica ou ornamentos específicos. Aparecem como índios genéricos, sem face definida, ao contrário de Ottoni, que teve sua fisionomia recriada com traços de veracidade a partir de desenhos anteriores. Temos, nas Figuras 29 e 30, a ideia de dominação dos povos indígenas e da natureza pelo progresso. O povoamento urbano aparece em sua centralidade, dinâmico, a mover homens, veículos e animais, domesticar plantas, destruir florestas, erguer casas e fábricas. A violência sobre os índios é escamoteada nessas imagens (o que é, aliás, típico do indianismo): empurrados para a periferia e representados apenas em estado "selvagem", sem fisionomia própria, perpetuam-se como objeto da benevolência do protetor e civilizador Teóftlo Ottoni. Os índios persistem e as frentes de expansão também Os índios não eram apenas personagens literários, símbolos ou alegorias no Brasil de meados do século XIX e continuavam como um desafio aos projetos de civilização e expansão interna do Império brasileiro. Entre os anos 1830 e 1870 as frentes de expansão, como bola de neve, ampliavam-se na esteira de atuações bem-sucedidas dos brasileiros- fossem colonizadores "mansos" ou conquistadores "bravos". A força do progressismo do século XIX pressionava os Botocudos. As primeiras décadas do Império marcam um certo vazio no que se refere a políticas, ainda que localizadas, para os índios no Brasil. Desde a extinção dos Diretórios Pombalinos em 1798 até 1845, quando o governo imperial regulamenta em termos administrativos a questão indígena, ocorriam definições e decretos no varejo e multiplicavam-se situações híbridas e indefinidas. A partir de 1845 o governo central opta por uma administração laica, mas com a presença de padres e ordens religiosas sob a supervisão dos representantes
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civis. 55 No caso dos Botocudos, o fim da presença dos intermediários das décadas anteriores, como Marliere e Julião, faria que ocorresse contato (e conflito) mais direto entre as tribos e as frentes de expansão. Este contato muitas vezes aliava a atitude guerreira de alguns índios com interesses das frentes de expansão. Foi o caso, entre outros, do índio José que, depois de ter sido soldado nas tropas regulares, desertou e tornou-se "Capitão" de uma tribo na serra do Chifre e praticava atos de banditismo, além de atacar outros grupos de Botocudos para vender crianças e prisioneiros como escravos, segundo testemunho de Ottoni. Desde a ofensiva guerreira dos luso-brasileiros em 1808 já se verificava o crescente número de Botocudos escravizados- mulheres e crianças sobretudo, mas também homens, prática que continuaria nas décadas seguintes. A escravidão e a utilização da mão de obra de Botocudos é confirmada em documentos oficiais. Como este ofício do presidente da Província do Espírito Santo para o Ministério do Império: Varios fasendeiros tem conseguido domesticar os Botecudos e os empregão em suas lavouras a troco de sustento e vistiario e além d'outros desses Indígenas que vivem em casas particulares ha uma maloca no Sertão do Rio de São Matheus com plantaçoens a qual vem as vezes a Villa vender poaia e outros generos. 56 Nesses casos citados havia dois tipos de trabalho: a escravidão (doméstica e do eito) e os serviços de empreitada, no qual em geral os índios não eram pagos com dinheiro, mas na base da troca de mantimentos, roupas e apetrechos - numa permanência do regime de escambo ainda no século XIX. Os índios faziam colheita de poaia, de cocos, caça de animais para comércio de peles ou aves exóticas que alcançavam bom preço nos centros urbanos nacionais e internacionais. Além de trabalhar para proprietários, os Botocudos passam a ser incorporados como mão de obra para obras públicas, como a abertura de estradas. Foi o caso dos índios do aldeamento fundado por Guido Pokrane que, desde 1845, passaram a ter a companhia constante do alemão Frederico Willner, engenheiro da Companhia 55
M. M. C. da Cunha. Política indigenista no século XIX . . . Relatório do Presidente da Prov(ncia do Espfrito Santo, o Doutor Luiz Pedrosa de Couto Ferraz, na Abertura da Assembléia Legislativa Provincial, 1 de março de 1848. . . 56
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do Rio Doce e também diretor do Aldeamento Mansinho, onde moravam sobretudo índios Puris. 57 A dupla condição de diretor de aldeamento indígena e responsável pela construção de uma estrada que ligasse este trecho de Minas Gerais ao litoral do Espírito Santo não deixa muitas dúvidas quanto à atuação de Willner: seu objetivo era usar a mão de obra indígena. O próprio diretor-geral dos Índios do Espírito Santo em 1848 era Joaquim Marcelino da Silva Lima, primeiro barão de ltapemirim, dono dos dois maiores engenhos da província. À medida que a militarização cumpria seu papel, os representantes de interesses econômicos passavam a assumir a administração dos grupos indígenas. Tal presença da administração pública, entretanto, acabou gerando um conflito com os proprietários locais, que se beneficiavam do trabalho dos Botocudos. Referindo-se aos remanescentes dos Pokranes contatados por Marliêre, o engenheiro alemão afirma: Todos os Indigenas me forão entregues nus, e achão-se hoje vestidos de brins, riscados, algodões Americanos, de boas chitas, chales e lenços, tendo todos os homens carapuças e alguns deles espingardas. 58 Ele lembrava as despesas que fizera com os índios, mas nem ousava pedir reembolso por elas. Em seguida, reconhece que os índios utilizados no trabalho de abertura da estrada "não deixarão de fazer falta a algumas pessoas d'aquella Provincia que por meio d'elles tem augmentado a sua fortuna". Isto é, através desta "briga de brancos" percebe-se como os até pouco tempo temíveis Botocudos eram utilizados como mão de obra escrava ou de empreitada no Segundo Reinado - pois não há referência a trabalho assalariado, nem a guerras justas ou ofensivas. O que se discutia aqui era se os Botocudos e Puris deveriam ser usados preferencialmente como mão de obra nas propriedades privadas ou em obras públicas. Defendendo este último interesse, Willner apresenta tal atividade como benemérita: aos índios, por terem a chance de serem civilizados, de ganharem roupas, alimentos e eventualmente espingardas. E aos brasileiros, por motivos 57 Trabalho de índios no Espírito Santo. Carta de Frederico Willner ao Dr. Luiz Pedreira do Couto Ferraz, 13 de novembro de 1846, Arquivo do IHGB.
58
Ibidern.
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mais evidentes: "algum serviço se tem feito com os Indigenas à margem da mesma estrada, cuja utilidade tem revertido em beneficio dos mesmos [proprietários locais] e dos viandantes". Por esse conflito de interesses foi possível perceber que a proibição do trabalho servil indígena decretada pela Regência em 1831 ficara letra morta. Estava em jogo nas regiões onde ainda havia Botocudos nos anos 1840 e 1850, a consolidação de uma rota comercial, onde embarcações vindas do Rio de Janeiro pudessem penetrar na barra do rio Doce até Linhares, para vender sal para Minas Gerais. Neste ponto entravam a estrada construída por Willner e a visão estratégica das autoridades capixabas - ainda que contrariando interesses imediatos de alguns proprietários locais. Mas, empecilho para este plano, em 1845 nos arredores de Linhares (Porto de Sousa, São João e Guandu) ainda havia tribos de Botocudos que recusavam a sedentarização e insistiam em permanecer nas florestas. A resistência contra as frentes de expansão continuava, preservando ainda fronteiras dos territórios indígenas. A violência normalmente cometida pelos exploradores da mão de obra dos Botocudos "occasionou a retirada de muitos para as matas do Mucury", segundo documento oficial. 59 Mesmo entre índios que mantinham contato com a sociedade nacional havia também uma postura de resistência. Iam às vezes até os centros urbanos, mas numa estratégia de preservar sua sobrevivência, coesão social e identidade cultural. E o que indica uma testemunha: Apresentou-se em Linhares não pequeno numero de Botecudos das mattas do Juparanan, havendo entre elles alguns já baptizados, porem ainda na sua vida selvagem. 60 Eram batizados, porém mantinham a vida selvagem. E iam até a cidade- polo civilizador- na tentativa de entabular negociações. Nesse momento se cruzavam os diversos fatores. Do lado da sociedade nacional, interesses econômicos gerenciados pela administração pública e ganância imediatista de proprietários locais. Do lado dos índios, diante das opções que lhes eram oferecidas pelas frentes 59 Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministro do Império, ofício de 11-10-1847, AN. 60 lbidem.
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de expansão (escravidão ou trabalho de empreitada), havia os que se internavam nas florestas e os que tentavam negociar ou pacificar os colonizadores. Explica-se desse modo o relativo sucesso das alianças propostas por Teófilo Ottoni aos índios: mais uma opção destes do que simples benevolência daquele. A iniciativa de negociação dos índios podia ser vista em outro relatório do governo capixaba de 1848: Diariamente os Indios do Rio Doce deixão as florestas e procurão os povoados, sendo, porem, estes nimiamente pobres, e não encontrando elles hum funcionamento regular, voltão de novo para as matas; entretanto, muitos d'elles se tem batisado em grande parte [... ] e estão domesticados. 61 As idas e vindas desses índios às cidades e propriedades núcleos da civilização ocidentalizada- mostravam-lhes que tal caminho estava fechado, que a sociedade nacional só pensava em eliminá-los, culturalmente ou fisicamente. Não se conseguia ainda compreender nessa sociedade nacional, mesmo da parte de seus elementos mais generosos, esta dimensão pluralista que alguns desses Botocudos - como outras etnias indígenas - haviam compreendido e tentavam pôr em prática. Desse modo, os índios que optavam pela "via pacífica" não encontravam resposta imediata e o próprio comportamento dos colonizadores incentivava a tendência guerreira destas tribos. Nestes dois caminhos - da guerra e da tentativa de pacificação da sociedade nacional- iam e vinham os Botocudos em suas andanças que os brasileiros (enquanto membros da civilização ocidental) muitas vezes consideravam sem sentido. Nessa região onde ainda permaneciam áreas consideráveis da Mata Atlântica e onde o conflito entre índios e as frentes de expansão da sociedade nacional era marcante, o espírito de 1848 não era o mesmo da Europa nem de grandes centros urbanos como Recife onde estouravam revoltas e revoluções liberais levantando bandeiras dos socialismos ou da modernidade política. Mostrando a pluralidade de questões de uma mesma época, vê-se que neste mesmo ano o 61 Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministro do Império, ofício de Antonio Pereira Pinto para o Visconde de Monte Alegre, 20-11848, AN.
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governo capixaba registra "existencia de varios quilombos, que definhão e matão a Lavoura, e incitão tão conhecidamente a insubordinação dos escravos". Tanto que, em março de 1848, uma insurreição de trinta escravos portando armas de fogo chega às portas de Vitória. Diante desses desafios colocados pelas resistências de escravos negros e de índios, uma solução encontrada pelas autoridades foi a criação da Colônia Santa Isabel, de alemães, que chegam como colonos livres e povoadores da sociedade que se pretendia edificar. 62 A instalação de imigrantes europeus em territórios indígenas foi constante no Brasil do século XIX, fazendo que aqueles servissem de ponta de lança no combate às tribos. Qyando estas eram dizimadas ou enfraquecidas, em geral com muitas mortes, elaborava-se em seguida uma memória local privilegiando o papel "fundador" dos colonos europeus. Importante assinalar que o tráfico de crianças de Botocudos foi intenso nesta época e tornou-se fonte de renda considerável em Minas Gerais e no Espírito Santo. A tal ponto que a palavra usada por estas tribos para designar as crianças (curuca ou kuruka) acabou incorporado ao vocabulário brasileiro. Teófllo Ottoni refere-se a esse tráfico de escravos como largamente expandido, lucrativo e generalizado e seu relato é um dos mais pormenorizados sobre tal comércio de índios escravos no Brasil do século XIX, citando vários casos, nomes e localidades. As crianças eram utilizadas no trabalho doméstico. O engenheiro francês Renault trocou uma criança índia por um pedaço de rapadura oferecido à mãe dela. 63 Logo depois, ficou surpreso quando a mãe apareceu de volta querendo levar o filho. O francês afirmou que a mãe se arrependera e queria desfazer a troca. Teria a índia dos Botocudos realmente efetivado uma troca definitiva? Não pode ter ocorrido um problema de compreensão entre as duas partes? O fato é que Renault tratou de procurar outro curuca, a quem batizou de Monso. O garoto teria ficado extremamente apegado ao seu "dono" a ponto de, quando este empreendeu uma viagem, a criança entristeceu, definhou e morreu, segundo registrou o europeu. Ou teria morrido por outras razões, incompreensíveis para o engenheiro? 62 Correspondência do Presidente da Província do Espírito Santo para o Ministro do Império, ofício de Antonio Pereira Pinto para o ministro José Pedro Dias de Carvalho, 25-8-1848, AN. 63 P. V. Renault, cit.
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Esses exemplos localizados no Espírito Santo (e que se espalhavam por pelo menos dez províncias, como alertara o diligente Varnhagen) mostram o árduo e conflituoso trabalho de edificação nacional: um mosaico de etnias e grupos- índios, negros, europeus, descendentes de portugueses e diversas mesclas. Mesmo marcado por violências e opressões, vale perguntar: até que ponto o tráfico de crianças contribuiu para integrar, apenas genética ou também cultural (ainda que parcialmente), esses índios à sociedade nacional? Até que ponto a sociedade brasileira não foi formada também por estes índios trazidos à força e que, apesar da negação em termos de memória coletiva, participaram da composição dessa sociedade, que se pretende espelhar preferencialmente em modelos da colonização europeia? Na segunda metade do século XIX os Botocudos ainda se constituíam num problema para a expansão interna do Império brasileiro. Mesmo sem um levantamento sistemático, que foge aos objetivos deste trabalho, é possível perceber a presença expressiva de populações indígenas ainda não completamente submetidas aos padrões da sociedade nacional em áreas na Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo. A dificuldade de contabilizar demograficamente esses índios era, justamente, um dos principais indícios de suas resistências. Na Bahia, em 1861, registrava-se a presença de 478 índios "Botocudos, Camacans e outros" aldeados em Catolés, Barra do Salgado e Lagoa do Rio Pardo. 64 No entanto, o mesmo relatório apontava que havia "nas mattas ainda muitos selvagens", tidos como "bravios que assim convém atrahir". No relatório de 1869, o presidente da província baiana admitia que a presença indígena era tratada com esquecimento: Há alguns annos como que se tem esquecido este assumpto aliás bem interessante para o futuro da Província ante a necessidade de braços para a lavoura, cada vez mais sensível e objecto de serias apprhensões.65 Tal esquecimento, que facilmente empurrava os índios para a condição de invisibilidade, aflorava aqui na medida em que outro 64
Mapas das Aldeias Indígenas da Província da Bahia . . ., 1861, Apeb. Relatorio que apresentou aAssembléa Legislativa da Bahia o excellentissimo senhor Barão de S. Lourenço, presidente da mesma província . .. , 1869. 65
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Mutum "e mesmo para os que costumam aparecer vindo de outros lugares". 43 Entre o apagar do Oitocentos e o raiar do século XX, experiência marcante no contato com os Botocudos ocorreu nos aldeamentos de Itambacuri, em Minas Gerais, por iniciativa de frades capuchinhos, na mesma região onde décadas antes Teófilo Ottoni intentara seu malogrado projeto capitalista utópico. A iniciativa missionária de Itambacuri, detidamente estudada pela antropóloga I. Misságia de Mattos, começou em 1873 e chegou a contar com mais de mil Botocudos aldeados ao lado de número equivalente de brasileiros. 44 Foi inicialmente liderada e construída por dois capuchinhos também "mestiços", isto é, de origem italiana e austríaca, e incorporou grande número de índios à sociedade nacional, destacando-se os professores indígenas como intermediários. Durante duas décadas a ação missionária floresceu, encravada no que até então se constituía como um dos últimos bolsões de grupos Botocudos no território brasileiro. Entretanto, uma vigorosa rebelião dos índios contra a missão e os padres, em 1893, causou surpresa, comoção e gerou violenta repressão sobre os indígenas que muitos acreditavam devidamente cristianizados e pacificados. A partir daí, a presença indígena, ou seu reconhecimento, foi declinando no local, que ainda em 1894 contabilizava cerca de mil índios entre "puros e mestiços" e nos primeiros anos do século XX falava-se indistintamente em "habitantes", gerando um considerável crescimento populacional para as cidades que ali se ergueram, também com a vinda de famílias de imigrantes europeus. Em pouco mais de dez anos os índios desapareceram por completo dos registras demográficos de Itambacuri. Era a República nascente que, herdeira do Império, intensificava a consolidação da homogenei;dade para a nação brasileira. 43 Relatorio apresentado áAssembléa Legislativa Provincial do Espírito-Santo pelo presidente da província, desembargador Antonio Joaquim Rodrigues, em 5 de outubro de 1886 . .. 44 I. M. de Mattos. Civilização e revolta . .. , cit.
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demografia nem para a produção. O discurso oficial que se consolidara sobre tais índios não submissos ao longo do século XIX não era mais o de enquadrá-los como ferozes e temíveis, mas, sim, colocá-los na postura de vítimas, de infelizes por viverem nas trevas da ignorância, longe dos propalados benefícios da civilização. Era o registro da filantropia, um dos principais motores do movimento associativo oitocentista, que implicava o movimento de levar os que detinham tais benefícios a alcançar os despossuídos deles. Ou seja, uma relação de poder e de superioridade para com os que seriam carentes de tais benesses. E que visava, em última instância, enquadrar os beneficiados nas formas de vida e produção da sociedade vigente. No ano seguinte as autoridades mineiras tomaram providências mais efetivas e de tendência menos filantrópica quanto aos indígenas. Em primeiro lugar, se reconhecia a existência, ainda, de "milhares de selvagens, que habitão muitas das frondosas mattas desta bella província". E, em seguida, enviava-se circular a todos os juízes municipais exigindo que informassem quais as terras que estavam de fato ocupadas e aproveitadas pelos índios, para que as demais pudessem ser consideradas devolutas. 68 A exemplo da Bahia e Minas Gerais, e com presença indígena ainda mais intensa, no Espírito Santo, o relatório do presidente da província de 1854 alertava: [... ] existem hordas selvagens nos sertões e margens do rio Itabapoana, bem como nos sertões de Benevente, no rio Doce e em São Matheus. Na mesma província, no ano seguinte, o governo se surpreendia com a "descoberta de uma aldeia de Botocudos" perto da estrada para Santa Teresa. 70 E ainda em 1871 o relatório oficial do presidente da província capixaba arriscaria um prognóstico: calculava em 4.500 os índios 68 Relatorio que d Assembléa Legislativa Provincial de Minas Geraes apresentou no acto da abertura da sessão ordinaria de 1870. .. 69 Relat6rio com que o Senhor Dr. Sebastião Machado Nunes, Presidente da Província do Espírito Santo, Abriu a Assembléia Legislativa Provincial. .. , 1854. Apes. 70 Relat6rio com que o Senhor Dr. Sebastião Machado Nunes, Presidente da Província do Espírito Santo, Abriu a Assembléia Legislativa Provincial. .. , 185 5. Apes. Sobre a questão das terras indígenas no Espírito Santo nos anos 1850, v. o artigo de V. L. Moreira (2002).
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"selvagens" que vagueavam pelas margens do rio Doce. 71 O que corresponderia a aproximadamente cinco por cento da população provincial e que ocupavam áreas abrangentes, pelo [racionamento em bandos e nomadismo dos grupos. As estimativas oficiais brasileiras apontavam, em 1869, a existência em todo o território de quinhentos mil índios "errantes", número que poderia ainda estar menosprezado, mas que correspondia também, aproximadamente, a cinco por cento do total da população estimada do país. Os índios sedentários ou tidos como "mansos", isto é, que mantinham contato mais frequente com a sociedade nacional, não eram arrolados entre os "errantes".72 A estratégia das autoridades provinciais, a partir da segunda metade do século XIX, parece ter sido atribuir, gradativamente, invisibilidade aos índios, seja pelo silêncio omisso, pelo argumento de falta de verbas para administrá-los, mas sobretudo visando ocupar suas terras e aproveitar sua força de trabalho, baseando-se na presunção de que deixavam de ser índios à medida que se incorporavam à sociedade, mantinham contato permanente ou, no vocabulário da época, civilizavam-se. Entretanto, nesta passagem para a condição de invisíveis cidadãos ou mesmo escravos disfarçados, os índios, com suas presenças e gestos, seja de ataque, negociação ou submissão, ainda infiltravam-se nos documentos oficiais, mostrando-se, paradoxalmente, visíveis e presentes. É certo que muitos índios morreram por causa de violências ou deixaram de se identificar como indígenas, dissolvidos na argamassa da construção da nacionalidade. A queda demográfica das populações indígenas no século XIX é evidente no Brasil, como resultado das múltiplas formas de opressão. Todavia, os próprios relatos oficiais se encarregavam de contestar a afirmação de intelectuais do Romantismo, como Gonçalves de Magalhães, que garantiam precipitadamente na década de 1850 que os índios não eram mais problema no Brasil, por já estarem todos domesticados e cristianizados. Qyase na mesma proporção e no mesmo momento em que alegorias indianistas floresciam nos meios urbanos da sociedade imperial brasileira, os índios existentes iam sendo cobertos com o manto da invisibilidade. 71 Relatório lido no Paro daAJJembléia LegiJiativa da Prov íncia do EJpírito Santopelo prezidente. .. , 1872. Apes. 72 IBGE. &tatúticaJ hiJtóricaJ do BraJil. . .
Capítulo 8
SOB O RIGOR DA CIÊNCIA: MÚLTIPLAS IMAGENS E ESQUELETOS VIAJANDO
As lentes de Daguerre Uma série de sete daguerreótipos (cinco imagens, pois duas são repetidas) tirada na França em 1844 por E. Thiesson e que se encontra guardada na Phototheque du Musée de l'Homme, Paris, retrata um homem e uma mulher Botocudos (Nacnenucks) trazidos do Brasil. 1 Essas fotografias engendram "descobertas" que se cruzam através de diferentes olhares. O encontro entre a fotografia e os índios no século XIX tem qualquer coisa de impressionante. Trata-se de campo de análise instigante, que envolve abordagem interdisciplinar englobando a dimensão iconográfica e remete ao contato entre tecnologia surgida numa Europa tão marcada pela preocupação com o progresso com populações que viviam em tribos. A diferença de culturas e a pluralidade assimétrica de tempos num mesmo momento histórico. Uma leitura dessas primeiras fotos nos põe diante da relação entre guerra, expansão da civilização ocidental e imagem. O instante eternizado remete a um momento de passagem crucial para as transformações da civilização europeia e seu mundo da ciência, também para a trajetória 1 Os dagucrrcótipos pertencem à Colcção Jacquart c têm os seguintes códices: D-80-1317, D-80-1318, D-80-1319; D-80-1315 c E-79-1396 (repetidos); E-791397 c D-80-1320 (repetidos). Em 1995 estas imagens não constavam de nenhum dos fichários do Musée de l'Homme disponíveis ao público, só cheguei a elas por referências de documentos do século XIX. Mas diante do meu pedido à instituição não tive dificuldade em consultá-las e reproduzi-las.
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histórica das tribos indígenas enfocadas pelas lentes e para a história de vida dos que foram fotografados - dimensões como que unidas através da fixação das imagens. Esses daguerreótipos dos Botocudos são umas das primeiras fotografias de índios feitas no mundo. Possivelmente as primeiras. Instaurar esse tipo de primazia não é importante: outras fotos de seres humanos classificados como "índios" podem ter sido tiradas antes e isso não alteraria em nada a dimensão dessas imagens naquele contexto e as interpretações que podemos fazer delas hoje. De qualquer maneira, vale ressaltar o pioneirismo (sem nenhum sentido valorativo) da realização. Sabe-se que a invenção da fotografia fora anunciada oficialmente em 1839 no Institut de France, sacramentando e difundindo pelo mundo a invenção de Jacques Daguerre, cujo nome batizou a primeira solução técnica para tirar e reproduzir fotos. Dois anos depois os irmãos Bisson registraram em daguerreótipos uma série de duzentas litogravuras de indígenas da Nova Zelândia, ou seja, transpuseram para a nova técnica retratos feitos de forma tradicional. 2 Em 1847 o chefe índio Watchful Fox teve seu retrato em daguerreótipo feito por T. M. Easterly, dos Estados Unidos. 3 Ainda neste domínio hoje chamado de "etnofotografia" sabe-se de outros daguerreótipos: do esqueleto de um homem negro em 1847, do crânio de um árabe na mesma época e do rosto de Caesar, o último escravo negro de New York, em 1850. 4 Fotografias de lnuits estão entre as primeiras a serem incorporadas à coleção do então Muséum d'Histoire Naturelle de Paris, mas não há informações sobre a data em que foram realizadas. 5 As fotos mais antigas que se conhece de índios feitas no território do Brasil são de 1865, de autoria do suíço A. Frisch, que viajou ao longo do rio Amazonas. 6 2 T. Starl. Un nouveau monde d'images. Usage et diffusion du daguerréotype. ln: Michel Frizot (dir.). Nouvelle histoire de la photographie. Paris: Adam Biro, 1994, p. 47. 3 M. Oppitz. Anthropologie visuelle. Verbete no Dictionnaire de l'ethnologie et de l'anthropologie, org. por P. Bonte & M. Izard. 2.' ed., Paris: PUF, 1992, pp. 742-3. J. Scherer. Documento fotográfico: fotografias como dado primário na pesquisa antropológica. Cadernos de Antropologia e Imagem, n.• 3, Núcleo de Antropologia da Imagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1996. 4 T. Starl, op. cit., p. 43; M . Frizot. Corps et délits. Une ethnophotographie des différences. ln: M. Frizot, op. cit., p. 267. 5 Cf. M. E. Conduché. La photographie au Muséum d'Histoire Natrurelle. La Lumiere-Revue de Photographie, n.• 16, 17-4-1858. 6 J. R. Bessa Freire (coord.). Os índios em arquivos do Rio de janeiro. Rio de Janeiro: Uerj, vol. II, 1996, p. 401 .
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Em que circunstâncias ocorreu o encontro entre os índios do Brasil e a fotografia, que resultou nos daguerreótipos parisienses de
1844? A fotografia recém-nascida tinha uma dimensão de lazer, consumismo, modismo tecnológico, empolgação pela novidade, mas sobretudo de possibilidade de "reprodução do real". E aí tinha usos mais "sérios". Ligou-se estreitamente à medicina e ao controle da criminalidade. Doentes mentais, prisioneiros, pessoas com deformidades físicas e povos considerados exóticos (ex-optico, fora da ótica) passaram a ser enquadrados pelas lentes implacáveis. A fotografia torna-se uma forma de conhecimento, fixação e controle dos corpos por meio da imagem. 7 A "Cidade-Luz" vivia os tempos da Monarquia de Julho, sob a efígie do "rei cidadão", onde ideólogos e doutrinários do liberalismo buscavam fortalecer o primado das classes médias na sociedade francesa. No]ardin de Plantes (próximo ao Quartier Latin e à Sorbonne) o Muséum abrigava esqueletos humanos, espécies animais, vegetais e minerais em torno de agradáveis e bem cuidados jardins, onde estavam as casas que (ainda em plena atividade, como até hoje) haviam servido de residência e gabinete de trabalho para George Buffon, Carl von Lineu e outros criadores das Ciências Naturais. E no mesmo recinto do anúncio da invenção da fotografia, cinco anos depois, esses daguerreótipos de Botocudos estavam no cerne do debate de uma disciplina que se transformava, inclusive metodologicamente: as Ciências Naturais, marcadas pela Ilustração do século XVIII, privilegiavam o "desenho científico", ao passo que a emergente Antropologia Física se impregnaria do evolucionismo e passaria a usar a foto. 8 No caso desses daguerreótipos há uma relação entre ciência, guerra de extermínio étnico e escravidão. As tribos de Botocudos viviam um contato de três séculos com as frentes de expansão no território brasileiro e havia forte componente bélico nesta relação, mesmo que as dimensões de diálogo, negociações, miscigenação e submissão estivessem também presentes de maneira clara, fazendo parte deste encontro mais que secular. Era um confronto de longa 7
M . Frizot. Corps et délits. Une ethnophotographie des différences, cit., pp.
259-71. 8 Uma síntese do estado da discussão sobre as relações entre história, etnologia e antropologia encontra-se no Dictionnaire de /'ethnofogie et de /'anthropologie, org. por P. Bonte & M . Izard. 2.' ed. Paris: PUF, 1992.
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duração. E nos anos 1840 o conflito era conjugado no presente: ainda resistiam e sofriam verdadeiro genocídio por parte da sociedade brasileira, havia tráfico de escravos dessa tribo nas províncias de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo em benefício de trabalho agrícola, obras públicas, construção de estradas e trabalho doméstico. Sobretudo levando-se em conta que suas terras situavam-se numa região próspera e com reservas de riquezas minerais exploradas por firmas britânicas. A sede do progresso cobiçava estas faixas de florestas tropicais próximas ao litoral brasileiro conhecidas hoje como Mata Adântica, da qual foi destruída noventa e cinco por cento de sua superfície original. Nesse contexto os dois índios foram levados de Minas Gerais a Paris em 1843 por um certo Marcus Porte. Enquanto o então obscuro dinamarquês Peter Lund desencavava, nas grutas do interior de Minas Gerais, os esqueletos do chamado Homem da Lagoa Santa, os dois Botocudos estavam sob os holofotes das luzes da ciência na capital francesa. As placas registrando os corpos vivos dos dois índios causaram viva impressão, também pela qualidade técnica. "Depuis cette époque, dix-huit ans se sont écoulés, on n'a rien fait de plus pur, de plus limpide, de plus franc", exclamava com certa volúpia visual um crítico da arte fotográfica da época. 9 Apesar de toda carga de objetividade típica do século XIX, a apreciação dessas imagens (do ponto de vista estético, técnico ou científico) não era vinculada às condições de vida dessas pessoas fotografadas. Há na pioneira La Lumiere- Revue de la Photographie 10 alguns dados sobre esses daguerreótipos. Consta que foram feitos por um fotógrafo chamado Thiesson (provavelmente um francês) em 1844. Confirmando esta proposição pode-se ler gravado nas próprias imagens, no canto esquerdo embaixo: "Thiesson 1844". Eram, portanto, os mesmos índios que motivaram as discussões na Academia de Paris em 1843, pois os registros da Academia também falam das fotos de Thiesson e de Botocudos (Nacknenuks) trazidos do Brasil. Antes mesmo de serem fotografados, os Botocudos trazidos das selvas brasileiras ganharam notoriedade graças ao debate que ocupou 9
M. E. Conduché, op. cit. Na verdade, haviam se passado catorze anos e não
dewito. 10
La Lumiere- Revue de la Photographie, Paris, abril de 1858.
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mongólicos que o surpreenderam, representam um "rebaixamento da raça americana". Considerando a relação homem - mulher como um dos importantes parâmetros civilizatórios e acrescentando a este quadro as análises físico-raciais, Serres concl ui propondo que os Botocmlos sejam estudados dentro da Zoologia. Note-se que Serres procurou aproximar os Botocudos de seu objeto preferencia l de estudo, os chamados homens das cavernas, dando o ponto de partida para uma afirmação que seria reiterada ao longo do século XlX c mesmo no XX: a aproximação entre esse grupo étnico e os chamados homens pré- históricos. Nesse ponto pede a palavra um dos mais antigos membro·' da Academia, cujos cabelos brancos caídos sobre os ombros atestavam que ele não se enquadrava no padrão de comportam ento da cmer~c n te burguesia parisiense, mas que pertencia à geração do Antigo R t:gime, das Ciências Naturais ainda marcada pelo Iluminismo do sécu lo XVIII c combatida como descritiva e literária pela "objctividade" dos novos cientistas da Antropologia física. Era Augustc de Saint- Hilairc (ver Capítulo 5) que, um quarto de século antes, estudara demoradamente e convivera com os Botocudos nos sertões do Brasi l - c cujos trabalhos, então já publicados há mais de uma década, não mere,·eram nenhuma citação no relatório de Serres.' 1 Havia aí, implici ta, uma tensa disputa de poder intelectual. Falando de improviso, Saint-Hilaire fez um breve resum o de seu contato com esses índios, defendendo-se, ressaltando que os atulisara com todo cuidado c atenção de que era capaz. Sem polemizar de maneira contundente com Serres, Saint-Hilairc lembra que -;cu principal auxiliar de pesquisas no Brasil durante cinco anos fo i um índio Botocudo, Firmiano. E que também na mesma ocasião outro conhecido cientista c viajante, o russo Langsdorti, teve outro índio Botocudo como auxiliar nas pesquisas que reali zou . M es mo sem explicitar, ficava a contestação: corno enquadrar ern categoria de in ferioridade seres humanos que revelavam inteligência considerável a ponto de serem não apenas guias, mas coadjuvantes das mais importantes expedições científicas da época? Percebe-se que Saint-Hilaire mantinha a mesma linha de reafirmar a humanidade e a possibil id.ule 11
A. de Saint- llilairc, vóyage dam !es provim·es de Rio d,·.fantiro et de 1\lznw 1 ct 2, Paris: Grimbcrt cl Dorcz, 1830. A es tad ia deste viajante entre os Botocudos foi entre 18 l6 c 181 7. Geraes,
t.
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de desenvolvimento e civilização dos índios, em contraponto aos tradicionais discursos colonizadores que depreciavam as "raças indígenas". Mas tal postura de Saint-Hilaire, embebida na perspectiva ilustrada de unidade da espécie humana, esbarrava nas novas classificações raciais que se cristalizavam com base na Antropologia Física e, também, na nova fase de expansão colonialista europeia pelo mundo. Saint-Hilaire também apontou, apenas na base da intuição e observação empírica, a semelhança física entre estes grupos indígenas brasileiros e as populações orientais, especificamente chinesas. 14 Alongando-se sobre a semelhança dos Botocudos com os traços mongólicos, à qual Serres fizera referência sem se aprofundar, Saint-Hilaire faz alguns comentários. Sempre remetendo ao que escrevera em seus livros - citando tomo, capítulo e página - Saint-Hilaire lembra que havia um grupo de chineses no Rio de Janeiro na época de sua visita (Figura 31).
Figura 31 14 Os atuais estudos de antropologia biológica tendem a referendar a percepção esboçada por este cientista-viajante. Ver, por exemplo, a obra de divulgação Tous parents, tous dijférents, de A. Langaney et alii. Paris: Chabaud, Muséum National d'Histoire Naturelle, Musée de l'Homme, 1992.
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Eram plantadores de chá que foram trazidos da China para trabalharem no Jardim Botânico carioca (então um jardim de aclimatação de plantas), onde se pretendia adaptar e explorar comercialmente esta erva oriental. Vindo de uma longa permanência nas selvas, Saint-Hilaire ficou impressionado com a semelhança física que lhe apareceu entre os chineses e os índios do Brasil, especialmente os Botocudos do Jequitinhonha. O cientista francês resolveu então aproximar ambos, levando seu auxiliar Firmiano para conhecer os chineses. "Aí estão teus primos", disse-lhe Saint-Hilaire. Firmiano, que em geral evitava a convivência com os negros escravos, mostrou-se contente em conhecer os chineses e passou a referir-se a eles como seus primos. Os chineses, ao que parece, responderam sorridentes às aproximações do índio -levando Saint-Hilaire a concluir que havia certa afinidade entre ambos. O fato de esse Botocudo evitar a convivência com os negros escravizados pode ser entendido como atitude defensiva - colocado também numa posição subalterna ou pelo menos fora dos padrões predominantes (onde muitos de sua tribo eram escravizados também), este índio certamente não queria ser associado aos que eram tratados ainda pior do que ele - os cativos de origem africana. Diante dos chineses, além da semelhança física, Firmiano percebeu pessoas "diferentes" que, embora tratadas como tais, não eram maltratadas ou desconsideradas como os escravos. Daí a simpatia mútua que pode ter surgido entre os imigrantes chineses que viviam num certo estado de reclusão e este índio que bem ou mal transitava pela sociedade luso-brasileira, aproximação talvez reforçada pela empatia resultante da semelhança física. A intuição de Saint-Hilaire sobre a aproximação entre chineses e índios do Brasil pode ter parecido absurda para parâmetros da ciência da época. Mas em fins do século XX já se sabia - graças a estudos genéticos combinados a pesquisas arqueológicas - que os índios das Américas e os povos asiáticos têm identidades genéticas bem próximas e em alguns casos semelhantes, o que indica uma das possíveis origens do povoamento das Américas por grupos asiáticos, sobretudo a partir do estreito de Behring. Ou seja, asiáticos e indígenas são da mesma "raça" - afirmação que se chocava com as teorias raciais do século XIX. Talvez Saint-Hilaire tenha promovido um dos primeiros reencontros destes "primos" separados por milênios de movimentos migratórios. Voltando ao caso dos dois Botocudos fotografados em Paris, vemos que foi exemplar e interdisciplinar: além de fotografados e
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alvo de debates na Academia de Ciências, viram-se medidos, apalpados e objetos de outros ramos das ciências. O clima de curiosidade em torno desses índios expressava significativa mistura de espetáculo atraente e seriedade científica: a tênue fronteira entre o exato e o exótico. De certa forma eram tratados como animais selvagens que precisavam ser mais bem conhecidos O primeiro gorila "descoberto" pelos europeus na África em 1840 causara sensação .. .15 Esses dois índios foram examinados também por uma Comissão da Société de Géographie, cujo interesse principal foi de ordem linguística, dentro da tendência globalizante das ciências geográficas do período. 16 Ou seja, foram extraídas (é a palavra adequada) 194 palavras do idioma dos Botocudos. Tal extração deu-se em várias etapas. Inicialmente, por Marcus Porte, classificado no relatório da Société como um viajante sem critérios metodológicos adequados para registrar um vocabulário. Em virtude de tal insuficiência, os comissionários encontraram-se pessoalmente com os dois índios para tirar dúvidas quanto a fonemas e significados das palavras, recomeçando o que foi chamado de interrogatório. Exaustivo, pois incluía quase duas centenas de expressões. Tal método de enquete foi executado por Edme François Jomard, barão e presidente da Société de Géographie, que encarregou-se pessoalmente de interrogar os índios e redigir o relatório: "les voyageurs doivent bien se pénétrer de la nécessité qu'il y a non seulement de les interroger sur ce point, mais de revenir à la charge três souvent pour ne pas se méprendere sur la nature de la réponse". 17 Realçando o papel da insistência e de "revenir à la charge", temos a relação entre ciência e poder, no ato mesmo do exercício científico e da relação entre entrevistadores e entrevistados. Jomard era então um dos mais célebres cientistas europeus: orientalista, arqueólogo e egiptólogo. Seu relatório sobre os Botocudos termina com a recomendação de que tal vocabulário serviria "à aider les voyageurs futurs dans leurs recherches, et même à les servir puissamment". Ou seja, integrava-se de maneira clara na perspectiva de produção de um saber científico por viajantes tendo como meta uma 15 F. Tinland. Les limites de l'animalité et de l'humanité selon Buffon et leur pertinence pour l'anthropologie contenporaine. ln: E. Mayr (org.). Bt1fon 88 - Actes du Colloque International, Paris: 1992. 16 Cf. Joma.rd. Notes sur les Botecudos. ln: E xtrait du Bulletin de la Société de Géographie, Paris: novembre et décembre 1846. 17 lbidem, p. 3
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conquista planetária do homem e da natureza pelos cânones da civilização europeia ocidental. 18 Tanto Serres quanto Jomard confirmam que esses dois índios identificavam-se como pertencentes a um grupo Nacknenuck e uma comparação do vocabulário recolhido na ocasião com outros vocabulários mostra que se trata da mesma língua dos demais grupos de Botocudo, com pequenas variantes. Coincidência ou não, os primeiros textos publicados por brasileiros e no Brasil sobre essas tribos de Botocudos só começaram a surgir em 1844, logo depois desta exposição a que os dois "espécimes" foram submetidos em Paris (ver Capítulo 7) por Jomard, barão-presidente da Société de Géog;raphie e por Serres, um dos criadores da paleontologia humana. 19 Ou seja, após a "exportação" de índios do território brasileiro, vinha a "importação", pelas elites letradas do Brasil, dos debates científicos e culturais elaborados a partir da presença de tais índios, num curioso caminho de dois sentidos, onde a triangulação com a vanguarda científica parisiense como que induzia o contato dos homens de letras brasileiros com tais índios. A peregrinação científica dos dois Botocudos em Paris não parou por aí. Eles serviram ainda de modelos para portraits feitos por Werner e "moulages de la tê te et des membres" que teriam sido guardados, junto com os daguerreótipos, na Galeria Americana do Muséum. 20 A ponta de lança científica e tecnológica francesa se constituía no contato com os chamados povos primitivos. Nos anos 1850 começava a se organizar no Muséum d'Histoire Naturel/e de Paris uma Galeria especial, dedicada a colecionar reproduções de imagens "naturais" como: esqueletos, bustos moldados sobre corpos, reprodução em plástico de pés, mãos e órgãos, enfim, tudo que pudesse servir a um estudo comparativo entre as "raças" humanas. 21 Era a chamada 18 Ver sobre este aspecto a interpretação da canadense M. L. Pratt. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: Edusc, 1999. 19 Ofício sobre a existência de índios botucudos às margens do rio Doce. Revista do Instituto Histórico e Geogr4fico Brasileiro, t. 6, 1845. A mesma revista publicou a tradução do relatório do barão de Jomard no t. 9 de 1847. Era a "descoberta" deste grupo indígena pelas elites letradas brasileiras. 20 P. Rey. Etude Anthropologique sur les Botocudos. Paris: O ctave Doin Éditeur, 1880, p. 13. Sobre a relação entre as culturas indígenas e os museus enquanto instituições, ver o ensaio de]. Clifford. Muséologie et contte-histoire. Voyages sur la Côte Nord-Ouest. R évue d'Histoire et d'archives de l'anthropologie, Séction Histoire de l'ethnologie du Musée de l'Homme, Paris, 11, 1992, pp. 81-101. 21 Conduché, op. cit.
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Antropologia Física incorporando as tecnologias mais atualizadas da época a fim de obter as reproduções as mais "realistas" possíveis. Dentro desta Galeria, havia também "desenhos naturais". As primeiras fotografias que se incorporaram ao acervo do Museu foram as dos lnuits e estas dos Botocudos. Os daguerreótipos provavelmente foram feitos em Paris. Não se sabe exatamente onde nem em que condições foram tirados e as informações são desencontradas sobre a data exata de sua aquisição pelo Museu. Percebe-se assim que tais imagens foram uma das peças-chave no momento de fixação de parâmetros científicos no campo do estudo das populações humanas. Esses dois índios, retirados da periferia e da floresta, estiveram no epicentro metropolitano das Luzes, como novos Jonas levados ao ventre do grande cetáceo de onde se geravam paradigmas que se espalhavam pelo mundo. "Tudo" sobre eles foi decodificado, dentro daqueles parâmetros do conhecimento, como que servindo de modelos vivos para uma tipologia de saberes institucionalizados. Diante dos daguerreótipos a pergunta costuma surgir como que instintivamente: o que foi feito desses índios depois de fotografados? Tal pergunta já escapara do médico Phillipe Rey em 1878 e várias pessoas atualmente quando olham os retratos ainda repetem-na, quase invariavelmente. A resposta, até o momento, nos é desconhecida: depois de descobertos, desapareceram sem deixar rastros. Mas vale indagar sobre este interesse: de onde vem esta associação entre a objetividade rigorosa dos estudos de que foram objetos e a subjetividade quase sentimental da indagação sobre o destino individual desse homem e dessa mulher fotografados? Talvez seja pelo deslocamento tão profundo a que foram submetidos, de tempo, espaço e cultura. Talvez por serem "outros" que foram, simbolicamente, como que antropofagicamente devorados por "nós", depois de eternizados pela imagem. Esses daguerreótipos não deixam de ser um ritual de sacrifício em nome do progresso. Talvez esta reaproximação entre observador e observado se deva também como que a uma subversão do significado através do signo, onde o olhar dos que foram fotografados passa a nos interrogar também. 22 Tal movimento de interesse, de certo modo afetivo (que afeta), pode advir da constatação de que aprendemos 22 Para esta perspectiva de "subversão do signo" pela pose do fotografado, v. o conhecido estudo de R. Barthes (1980).
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"muito" sobre aspectos linguísticos, históricos, geográficos e culturais destes dois índios, mas nunca soubemos sequer seus nomes. A subversão das imagens ou o monólogo do historiador Esses daguerreótipos de Botocudos de 1844 podem ser interpretados, trazendo à tona aspectos interessantes - objetivos e subjetivos. Mesmo sem palavras, eles apresentam elementos para compor uma narrativa histórica - história muitas vezes sem palavras escritas. Os sentimentos e dores que não cabiam nos parâmetros do discurso científico ressaltam destas imagens mudas. Numa visão de conjunto o que logo impressiona é o ar de tristeza, de melancolia e abatimento que toma conta destes dois índios. Ainda que outras poses de daguerreótipos deixassem nos fotografados esse ar de cansaço, pela demora que a técnica ainda rudimentar causava, já havia, desde 1841, meios de agilizar para poucos minutos o tempo de pose para fotografias. Para um olhar do século XXI, é inevitável a comparação com prisioneiros dos campos de concentração: subnutrição (notadamente no homem) e flacidez (na mulher), um toque de resignação trágica, de raiva esmagada, de indignação contida e quase esquecida, um certo desprezo com o interlocutor, um olhar entre mortiço e odiento, de quem ainda resiste mesmo sem forças para resistir. O tom de desprew vem da altivez, da identidade cultural e da tradição da prática guerreira que, mesmo abafadas pelas circunstâncias, persistem em algum recanto desses índios como que enjaulados. Os dois estão com o mesmo pano no colo, dobrado em posições diferentes, no homem vê-se uma calça branca e na mulher algo que se parece com uma longa saia, indumentárias que devem ter sido impostas para a fotografia, para camuflar a nudez. Este velho pano traz um toque "civilizado" para a composição e serve para despojá-los mais ainda do que para cobri-los. Os torsos estão nus. Os dois encontram-se sentados numa cadeira simples de madeira. O local das fotos era, portanto, algo equivalente a um estúdio, onde as pessoas fotografadas são enquadradas em determinada composição visual e onde a imagem é composta- veja-se o pano, o fundo neutro, a cadeira e a posição sentada. Não havia cenários exóticos de palmeiras ou vegetação tropical colocadas ao fundo, como era comum para a imagem internacional oitocentista brasileira e ocorreu também em fotos do imperador brasileiro Pedro II - a intenção era o olhar científico,
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rigoroso, exato, implacável. São fotos que trazem a marca registrada do século XIX. Não vou me reter aqui com um dos usos mais óbvios, ainda que importante, da chamada fotografia etnográfica, ou seja, comparar detalhadamente algumas características da cultura material com outras imagens, relatos e descrições, em relação ao colar, corte de cabelo, furo nos lábios, etc. Há duas imagens da mulher, uma de frente (Figura 32) e outra de perfil (Figura 33).
Figura 32
Figura 33
Na primeira, ela olha direto seu interlocutor e seu olhar diz muito: denuncia sem palavras a violência, olha sem rodeios para o aparelho (e para tudo que está por trás dele, até hoje). 23 As mãos cruzadas placidamente no colo contribuem para um ar de resignação, de espera, mas ao mesmo tempo de harmonia - sem esquecer que são mãos vigorosas. Essa mulher, ainda jovem, transmite sensação de lucidez, serenidade, protesto indignado e aceitação trágica de seu destino. É uma verdadeira "Gioconda" dos trópicos, a nos desafiar com sua expressão enigmática e contundente ao mesmo tempo. 23
Cf nota 2. Trata-se aqui do daguerreótipo D 80 1319.
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A circunferência do ventre desta mulher visível sob o pano, e o volume dos seios, indicam alguma relação com maternidade. 24 Estaria grávida ou parira recentemente? Haveria uma criança implícita na foto? A espessura dos lábios um pouco aumentada e o matiz de docilidade em sua expressão associam-na com o lado feminino e materno, caracterizando a potência de sua delicadeza. As fotos dessa índia nos revelam ainda algumas pistas, digamos, materiais. O corte de cabelos, o colar no pescoço e o furo no lábio inferior (onde antes devia estar o botoque) indicam que ela nasceu nas selvas, no meio de uma tribo. O vigor e densidade do olhar da mulher nos levam a indagar se ela não seria também uma xamã de seu grupo, tendo desenvolvido sensibilidade mística. Estabelecendo uma espécie de monólogo diante dos daguerreótipos, pergunto- até que ponto é possível chegar ao diálogo? Trata-se de fronteira arriscada para ser transposta facilmente. Às vezes quando encaro a imagem dessa mulher de 1844 tenho a impressão de receber um olhar levemente irônico e superior, como se ela estivesse relativizando o sofrimento pelo qual passava. Em outros momentos parece-me que a índia fotografada sabe o tamanho da onda que se abateu sobre ela e seu povo e exprime melancolia dolorida, acompanhada de um certo ar de raiva e desafio. A aparência triste reforça a constatação de que a mulher foi arrancada de seu modo de vida original e que se encontra num lugar estranho já há algum tempo e, por isso, tal expressão facial pode ser considerada também como uma "prova material". Tal "melancolia dos selvagens" já fora percebida no século XIX, mas em geral era explicada por fatores climáticos, atávicos e raciais - nem sempre percebida como resultado da condição social de desenraizamento que poderia causar distúrbios psíquicos, em parte conhecidos hoje como depressão. Percebo como historiador que esta índia deixou com seu silêncio vibrante e na força de seu olhar a marca de um testemunho mais eloquente do que a maior parte dos textos que haviam sido escritos até então sobre essas tribos. Uma flecha que atravessa os tempos com docilidade, um vigor que incomoda, expressando algo que só aqueles que foram muito oprimidos (mas não se deixaram abater totalmente) sabem mostrar. Diante do naufrágio de sua vida e de sua coletivi24
lado.
Pode-se perceber isso também na foto D 80 1318, em que ela aparece de
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dade ela pareceu reunir toda o sofrimento, solidão e colocá-los, como oferenda, na expressão de seu rosto e de seus olhos que se eternizaram nessa 1magem. O rapaz de calças brancas parece ser ainda mais jovem, um adolescente. Magro, com os ossos do tórax aparecendo, ainda mantém um certo vigor físico, de quem era musculoso mas emagreceu. Embora esteja de frente, manteve as pálpebras semicerradas no momento da foto, o que lhe dá uma aparência fugidia, esquiva (Figura 34). 25
Figura 34
Figura 35
Figura 36 25
D 80 1315 e E 79 1396.
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Parece ter engolido todo sofrimento e não espera mais nada de ninguém. Ainda guarda certa altivez, quase apagada num rosto endurecido pela raiva muda e impotente. Sua face parece talhada em pedra numa desolação que não se desmanchará jamais. Como se não quisesse mais viver ou olhar em volta, embora sua personalidade, no fundo, pareça permanecer intacta. Diversos depoimentos em outras ocasiões falam de Botocudos que, quando aprisionados, deixam de comer ou falar, definham e acabam morrendo. Esse jovem pode ter sido um desses incontáveis casos de martírio anônimo. Ele ainda tem os botoques circulares nas duas orelhas e o cabelo cortado à moda de sua tribo. O rapaz aparece de "três quartos" com a mão esquerda estendida sobre o colo e a mão direita fechada (Figura 36). 26 As manchas na pele (face, braços e tórax) indicam que estava doente. Sua magreza é ainda mais acentuada: percebe-se os ossos do peito, da clavícula e costelas à mostra sob a pele. Pelo tamanho das mãos percebe-se que era (ou se tomaria) alto. Nas três fotos em que aparece seu rosto expressa raiva e revolta nítidas. De "três quartos", os olhos mortiços parecem ao mesmo tempo arregalados e fulminantes. Tentando reconstituir a partir dessas expressões sua recente trajetória de vida, já mencionada nos documentos textuais que dão conta de sua remessa para a França, vemos que ainda não teve tempo de se conformar com os revezes, nem pretende se aquietar. A imagem de perfll (Figura 35), com o pescoço virado bruscamente, dá a impressão que oferece a cara à tapa, como para evidenciar a violência que sofria. 27 O corte de cabelo e os botoques nas orelhas confirmam também que ele vivia na selva no meio de uma tribo antes de ser retirado do seu meio. Recentemente encontrei, entre os índios K.renak, rapazes cujos traços fisionômicos se parecem com o desse índio e tal observação também afetou-me, como se o personagem da foto tomasse de novo vida ou, mais simplesmente, como se os jovens deste grupo retomassem a vida de seus antepassados, num jogo universal de mudanças e permanências entre as gerações, que não é característico somente dos chamados grupos indígenas. Esses daguerreótipos foram, portanto, umas das primeiras fotos de índios. Mais do que um registro neutro ou "real", trazem em si uma carga civilizatória. Mesmo que a intenção inicial dos detentores das imagens fosse fazer estudos "raciais" ou "científicos", as expressões 26 27
D 80 1320 e E 79 1397. E 80 1317.
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de sentimentos e condições de vida destes índios registradas pelos daguerreótipos (e cotejadas com outras fontes documentais) são também significativas. Abandonando a condição de cobaias, estes índios se expressaram através do registro de suas aparências. Como se os objetos fotografados se apropriassem da imagem e subvertessem seu significado, criando outros discursos não verbalizados que transcendiam o movimento de fixação, conhecimento e controle contido no ato de fotografar. À sua maneira, os dois índios posaram, responderam, exprimiram com o corpo tudo aquilo que não aparecia nas suas vozes. Eles não foram apenas "descobertos", mas descobriram a fotografia e elaboraram seu discurso, contaram sua história, ainda que sem palavras. Muitos fatores convergiram para que essas fotografias fossem realizadas. Elas sinalizam uma evolução tecnológica da civilização ocidental e que foi possível levar tais recursos até esses índios. Indicam, portanto, que eles não tinham condições de responder pela guerra, pois estavam sendo derrotados neste campo: violência e imagem não deixam de estar interligadas. Depois do relâmpago dos fuzis e do corte dos facões, vieram as Luzes das ciências e logo era a composição química das câmaras escuras que agia diante dos índios. Os guerreiros Botocudos finalmente fotografados. Esfinges captadas pela tecnologia e decifradas pela racionalidade científica, suas imagens guardam intactas a opressão a que foram submetidos. Tão diferentes da imagem mítica ou romântica do "homem novo americano", tão distintos das alegorias patrióticas indianistas em voga nas Américas do século XIX - estes índios retratados não apresentam tampouco a expressão feroz de canibais devoradores, presente na maioria dos relatos escritos sobre eles até aquela época. De certa maneira, esse homem e essa mulher, ainda que classificados pelo membro da Academia de Paris no campo da Zoologia, parecem nos dizer que seus "espíritos" e seus corpos estavam irremediavelmente aprisionados ali, no momento em que se realizou diante deles a alquimia dos daguerreótipos. As diferentes imagens Com a "descoberta" dos Botocudos pelos artistas e cientistas europeus, no início do século XIX, surgiram variadas iconografias que nem sempre se pautavam pela semelhança entre si ou pela verossimilhança com os índios retratados. Os primeiros daguerreótipos, de
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1844, não foram impressos naquela época. Prevaleciam, pois, as técnicas de pintura e desenho para a difusão das imagens dos índios. Os ícones já existentes, apesar de pontos em comum, expressavam considerável diversidade na aparência física dos retratados: apesar de características etnográficas se assemelharem, havia certa distinção de aparência e do modo como eram percebidos os Botocudos fixados por Debret, Rugendas, Neuwied e Saint-Hilaire. Essa tendência de diversificação aparece ainda mais nítida na ilustração do livro History of the Brazil, de James Henderson, publicado em Londres, 1821 (Figura 37). Trata-se de um visível caso de desenho feito a partir de descrições textuais e incrementado pela "imaginação" do autor, que não parece ter tido contato direto com os referidos Botocudos. O casal desenhado aparece prestes a entrar numa rústica embarcação para atravessar o rio na província (sic) de Porto Seguro e tem corpo longilíneo, cabelos longos caindo nos ombros e botoques enormes apenas nas orelhas, lembrando vagamente algumas imagens de índios norte-americanos. Em 1822, aliás, há registro de que um grupo de Botocudos fora levado para Londres, onde ficaram em exposição. Talvez o ícone tenha alimentado a curiosidade e favorecido a remessa de tais índios à capital inglesa.
Figura 37
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Um típico viajante em cujo relato se cristalizavam em admirável síntese as imagens predominantes sobre os Botocudos no século XIX foi Alcides D'Orbigny, que esteve no Brasil em 1841. 28 Ele referia-se a tais índios como "os mais célebres do Brasil" e também como "mais ferozes que todos seus adversários", classificando como "hábito horrendo" o uso dos botoques. Entretanto, ao visitar o que chamou de "país dos Botocudos", isto é, a vasta região entre Porto Seguro e os rios Jequitinhonha e Doce, garantiu estar "dissipado o perigo" destes grupos indígenas, uma vez que, segundo sua percepção, havia grande contingente da população "meio portugueses, meio índios" e considerável porção de florestas virgens. D'Orbigny reafirmava o canibalismo dos Botocudos, embora remetendo-o para "tempos antigos", baseado, portanto, nos textos e tradições do período colonial. O mesmo viajante registrava a hostilidade existente dos Botocudos com outros grupos étnicos como Maxacalis, Malalis, Monochós e Mananis, qualificando-os de "inimigos encarniçados". Ao chegar ao Rio de Janeiro, o viajante europeu, num misto de decepção e surpresa, afirmou encontrar ali uma cidade europeia, diferente da "América primitiva" que ele buscava no seu périplo pelo continente. Até D. Pedro II teve seu quinhão na polissemia iconográfica dos Botocudos que proliferou no século XIX. O olhar imperial incidiu sobre cinco Botocudos do Espírito Santo em fevereiro de 1860, durante viagem do monarca pela província, quando aproveitou para exercitar sua veia etnográfica e de desenhista, ainda que de modo rudimentar.29 Cara a cara com os famosos Botocudos e contaminado pela curiosidade irresistivel em torno desses grupos, o imperador dedicou-lhes palavras e traços, escassos. Nos comentários escritos que ladeiam as imagens D. Pedro II reproduzia os conhecidos estereótipos sobre tais índios, embarcando nas novas percepções que não os apontavam mais como temíveis canibais, mas, sim, como figuras bizarras e esteticamente enquadradas nos padrões de beleza das sociedades ocidentais. Ao lado do terceiro e último rosto (Figura 40) o monarca fez sua apreciação: "Moço que não é feio". Já no desenho da "rapariga" 28
A. D'Orbigny. Voyage dans les deux Amériques. .. Diário de viagem do Imperador d. Pedro II ao Espírito Santo de 01-02 a 1102-1860- Maço 37- Doe. 1057- cad. 06, AHMIP. Agradeço a Neibe Machado da Costa, do AHMIP, a digitalização e remessa das imagens. 29
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(Figura 39), a palavra é lacônica, mas os seios semidesnudos, os lábios grossos, narinas dilatadas e olhar amendoado e incisivo sugerem certa sensualidade, embora seja difícil saber se o governante via tal aspecto com bons olhos ou como sinal de sensualização primitiva ... Mais explícito, poucos anos depois, foi o cientista norte-americano Charles Hartt, contratado pelo governo brasileiro e que, sem os impedimentos do monarca, registrou sua impressão diante de uma jovem Botocudo: Os Botocudos, como raça, são muito feios, mas algumas das moças adolescentes podiam, dando à palavra uma acepção mais liberal, ser chamadas de bonitas. 30 Neste mesmo tipo de registro, Teófilo Ottoni verificara ao acompanhar o contato entre Botocudos e brasileiros que, mesmo quando uma tribo inteira era dizimada de forma violenta, era comum guardar "alguma índia moça mais bonita".Jl Embora nem sempre se escrevesse claramente, aparece indicada com insistência a violência sexual sobre jovens índias. Já o "menino" (Figura 38) desenhado pelo imperador, de ar compenetrado, apresenta feições mais "embranquecidas". Transparecem as pernas proporcionalmente finas e o ventre proeminente, mas sem características de magreza acentuada no desenho, a indicar verminose e má alimentação do jovem que deve ter ficado alguns momentos em pé servindo de modelo vivo ao monarca, então com trinta e cinco anos de idade e vinte de reinado. Na Figura 40 D. Pedro II deu ênfase aos botoques no rosto do alto, da "mulher já com ftlho" (cujos olhos arredondados, além de fazerem par com os ornamentos da orelha e dos lábios, emprestam-lhe certo ar assustado), registrando por escrito características do corte de cabelo e do uso dos botoques. Para o rosto do meio (Figura 40), também com botoques nos lábios e orelhas, limita-se a dizer que é uma "velha". Pela estimativa da idade, com mais de sessenta anos, tratava-se de uma sobrevivente e testemunha da Guerra de 1808-1824. O avô do monarca, assim como seu pai, também se encontraram pessoalmente com índios Botocudos quando reinavam, mas não chegaram a
°C. Hartt, p. 619.
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T. Ottoni, cit., p. 47.
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desenhá-los ou descrevê-los. Mesmo sem maior expressão artística ou etnográfica, estes esboços feitos pela mão de D. Pedro II trazem a carga simbólica do encontro entre o topo e a base da hierarquia da sociedade imperial, entre aquele que se considerava na ponta do progresso com os que eram vistos como os mais primitivos, cujas imagens, agora, podiam ser facilmente capturadas, até mesmo pelo olhar diletante do imperador em viagem. Note-se que tal encontro se deu no apogeu da escalada do indianismo romântico apoiada pelo monarca que, entretanto, não associa os Botocudos a este movimento.
Figura 38
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As primeiras fotografias que se conhece de Botocudos tiradas em território brasileiro são do francês Marc Ferrez, em 1876, mantendo a aproximação entre fotografia e antropometriaY Trata-se de série de doze daguerreótipos tirada no sul da Bahia, na colônia Leopoldina, quando o fotógrafo estava contratado pela Comissão Geológica do Império do Brasil, iniciativa oficial chefiada pelo professor e pesquisador norte-americano Charles Hartt, da qual participava número considerável de integrantes. Foi o período das primeiras expedições a utilizarem a fotografia como instrumento de pesquisa no país. O parâmetro intelectual que predominava era o da Antropologia Física, para a qual a descrição e reprodução a mais exata possível das características físicas permitia uma classificação de tipo racial que, por sua vez, era determinante para o conhecimento dos chamados tipos humanos. Os próprios textos de Hartt, como se verá a seguir, embarcam de cheio nessa perspectiva. Em várias das fotos pode-se ver, ao lado ou abaixo das imagens dos corpos, uma escala de medidas que permitiria um trabalho científico nessa vertente. Nas fotografias em que os índios aparecem da cintura para baixo, encontra-se o mesmo pano para cobrir a nudez, mostrando que o realismo etnográfico tinha seus limites nos padrões morais vigentes. Havia, portanto, a intenção de divulgar tais fotos- e Marc Ferrez, em seu estúdio, tirava considerávellucro vendendo reproduções para o público urbano do Brasil e do exterior, quando as imagens consideradas exóticas tinham boa saída. Paisagens exuberantes, cidades nos Trópicos e povos selvagens. Note-se que Marc Ferrez acrescentou rápidos comentários escritos embaixo de cada foto, enriquecendo-as assim de detalhes que não foram realçados por Hartt. Desse modo, palavras e ícones aliavam-se nessas fotografias para compor determinadas imagens desses índios, as quais, por sua vez, podem ser interpretadas. Nas Figuras 41 e 46, apesar da evidente pose, buscava-se reconstituir o modo tradicional com que as índias carregavam os filhos durante as caminhadas- posição, aliás, já registrada nos primeiros relatos e desenhos etnográficos de Neuwied, Saint-Hilaire e Debret. Era assim que, geração após geração, esses índios nômades percorriam as matas, inicialmente como crianças nas costas da mãe; as mulheres, 32
Marc Ferrez. Souvenirs de Voyage, 1876. Trata- se de um álbum com tais imagens enviado pelo fotógrafo a um amigo na França e que se encontra guardado na Bibliothêque Nationale de France, Códices G 61310 até G 61321. Existem cópias feitas na época dessas fotos em acervos brasileiros.
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quando adultas, carregando os filhos. Observou-se até em outras ocasiões que, com o hábito de caminharem assim apoiadas nas costas maternas, as crianças, inicialmente amarradas com uma corda para não caírem, acabavam ficando soltas e até dormiam durante a caminhada, porém, agarradas, não escorregavam mais. Entretanto, para que a fotografia fosse realizada, criança e mãe estavam ali paradas, ftxadas, sem movimento. Embora, ainda que imobilizadas, expressavam um saber de seu próprio grupo. A observação escrita sob a foto da jovem índia de catorze anos (Figura 42) é expressiva: destacava-se que ela não usava mais botoque. Sugeria-se, assim, que tais índios estavam civilizando-se e que apenas os mais velhos ainda usavam o ornamento, hábito que estaria em vias de extinção. Realmente, em meados do século XX, tal grupo não usaria mais esse ornamento, mas pelo menos quatro décadas depois das fotos, isto é, nos anos 1910, ainda havia indígenas de outras tribos desse grupo usando o botoque, o que desmentia, ainda, o otimismo civilizador então em voga em fins do Oitocentos. A imagem dessa jovem remete para a dimensão da sexualidade, ou dos padrões estéticos de beleza. Como já visto, ainda que nos parâmetros predominantes na "boa sociedade", os velhos e sobretudo os que tinham orelhas ou lábios furados eram considerados horrendos, percebia-se latente uma certa atração pelas jovens, da qual nem o barbudo imperador parece ter ficado imune. Já foram citados acima relatos em que sugere-se a violência sexual sobre mulheres jovens dos Botocudos pelos brasileiros, num contexto em que havia escravidão mal disfarçada ou uso em trabalhos domésticos não remunerados. Esboça-se assim, para tais índias, em meados do século XIX, um quadro não muito diferente do traçado em Casa-grande e senzala por Gilberto Freyre para o período colonial: complexas relações envolvendo sexualidade, exploração do trabalho, miscigenação e violência, caracterizavam a chamada sociedade patriarcal brasileira. A mulher "muito idosa" (Figura 43), bem como as mulheres das Figuras 48 a 52, por sua vez, ainda usavam o botoque, indicando hábitos culturais que permaneciam. Embora as palavras não registrem, percebe-se a magreza de várias delas acentuada por doenças ou provavelmente, em simultâneo, más condições de vida, lembrando os constantes relatos de Botocudos que passavam fome e mendigavam pelas fazendas. Pela estimativa de idade, elas foram contemporâneas, ainda que jovens, da Guerra de 1808-1824 que, todavia, não foi tão cruenta na Bahia quanto em Minas Gerais ou no Espírito Santo.
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Sobreviveram a tantos reveses e, através de sua imagem, resistiam ainda na sua identidade étnica. Nessa série de fotos apenas as mulheres mais velhas tinham botoques nos lábios, ao passo que os homens usavam ornamentos somente nas orelhas, característica conjunta que poderia indicar alguma forma de organização cultural, mas que não mereceu maior atenção ou explicação dos pesquisadores na ocasião. A preocupação predominante, além de mensurar os corpos, era a de medir os tamanhos dos botoques de cada índio. Indica-se que o Botocudo retratado na Figura 45 era o chefe da tribo. E o da Figura 47 mantinha sempre seu facão amarrado ao cabelo, além de ter a orelha furada e deformada, mas sem o botoque. Sabe-se que o uso do facão entre os índios, além de ser um instrumento útil, era também exibição de poder e importância, símbolo da capacidade de barganha com os "brancos". Daí que trazê-lo assim à mostra e preso ao cabelo emprestava ao utensílio uma conotação de ornamento e signo demarcatório de aliança e força. Do ponto de vista do fotógrafo-cientista, essas imagens pretendiam servir a estudos acadêmicos, dentro dos parâmetros do determinismo físico que então se afirmava. Daí que, nesse sentido, as poses indicadas aos índios, bem como os comentários escritos, situavam-se nos limites da antropometria e da descrição etnográfica (todas as índias têm colares e todos os fotografados apresentam cortes de cabelos típicos do grupo). Isso poderia explicar o ar sério de todos os doze fotografados, já que eram objetos de estudo científico. As posições em que foram colocados pelo fotógrafo diante das lentes visavam realçar o uso dos ornamentos e as deformações nos lábios e orelhas daí decorrentes. Ao mesmo tempo, ficava implícito o exotismo de tais características físicas, que poderia servir de chamariz ao crescente público consumidor de fotografias e ávido por conhecer os notórios Botocudos. Ainda que emudecidos e bastante restringidos pelas intenções do autor das fotografias, esses índios, com seus corpos e expressões, emitiam outras poses, expressando tristeza nas fisionomias sisudas, ou mesmo indignadas (Figura 47), no brilho denso e intenso do olhar cravado direto nos olhos da câmara e emoldurado por olheiras (Figuras 44 e 50) e na expressão facial de indignação ou impaciência mal contida (Figura 48). Dificilmente seriam heróis literários oitocentistas, símbolos indianistas ou amigos do rei: a penúria, a persistência nos padrões culturais e a gravidade das expressões impediam. Ainda que instados pelo fotógrafo a serem objetos de determinados enfoques, esses
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doze índios não estavam brincando ou sorrindo. Eram testemunhas vivas de uma história trágica de matanças, espoliações, capturas, trabalhos forçados, preconceitos e outras violências. Compunham, com suas presenças, um desafio silencioso aos que os pretendiam totalmente enquadrados nos padrões da civilização ocidental ou mesmo invisíveis.
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A tarefa de fotografar os Botocudos no século XIX não era das mais simples e nem se dava na forma de uma relação unilateral. Curioso episódio ocorreu com a princesa Teresa Carlota, então herdeira do trono da Baviera, que em 1888 foi especialmente ao aldeamento Mutum, no rio Doce, para fotografar tais indígenas. A princesa encontrou dificuldades, pois eles se esquivavam e não queriam ser fotografados sozinhos, apenas consentido a fixação de suas imagens em grupo. 33 Havia, portanto, em fins do século XIX, um saber acumulado e criado por esses índios em relação ás fotografias, gerando determinadas atitudes e reações, ao não deixarem capturar suas imagens isoladas. Esqueletos, crânios e laços institucionais Um dos mais notórios cientistas a travar contato com os Botocudos no século XIX foi o norte-americano Charles F. Hartt, cuja obra e iniciativas representaram um decisivo impulso para o enfoque da Antropologia Física no Brasil, embora ele atuasse sob o rótulo interdisciplinar e abrangente da Geografia. Em seu livro sobre Geografia e Geologia Física no Brasil, resultado de suas primeiras expedições em 1865-1866, após desenvolver justamente os aspectos geográficos e geológicos pesquisados em várias regiões do país, dedica um último e destacado capítulo aos Botocudos, único grupo humano a receber tal tratamento nessa obra. Pode-se ler neste capítulo como que um duplo registro, contraditório. Inicialmente, Hartt dialoga com os trabalhos até então existentes: cita bastante, mas também critica, Wied-Neuwied, a quem acusa de "branquear" os Botocudos, numa típica restrição dos novos parâmetros científicos evolucionistas e raciais em torno da década de 1870 aos considerados tradicionais e inexatos viajantes da geração anterior, ligados às Ciências Naturais, às descrições literárias e ao Iluminismo do século XVIII. Ao mesmo tempo, Hartt tomava como referência e elogiava as análises descritivas e antropométricas de Friederic Blumenbach e Marcel de Serres, considerando-as como ponto de partida para os novos cânones da ciência e modelo de análise a serem seguidos quanto aos Botocudos. E o norte-americano dedicou várias páginas à análise comparativa de medidas de crânios desses índios. 33
Cf. L. Rocha. Viajantes estrangeiros no Espírito Santo . .. , 1971.
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Hartt esteve com Botocudos em diversas oportunidades e locais: rio Doce, São Mateus, colônia Leopoldina, Urucu e Filadélfia (Teófilo Ottoni). E desse contato no terreno parece ter brotado outra percepção, de certo modo contraditória com os paradigmas intelectuais que ele próprio apregoava. Depois de conhecê-los e manter algum convívio, o norte-americano se disse surpreendido por achar tais índios "muito dóceis", de "boa índole": riam e brincavam uns com os outros. Ainda que discretamente, era mais um que se encantava com a "cordialidade dos selvagens". Entretanto, Charles Hartt não estava dissociado dos preconceitos existentes em sua época. Afirmava que o uso de botoques resultava numa "horrível careta" dos índios, comparando seus lábios a aparência de um verme. E citava, sem contestar, o naturalista alemão von Tschudi, para quem os Botocudos, quando pintados de urucum e jenipapo, tinham aspecto demoníaco. A escravização de Botocudos ainda era relatada pelo cientista norte-americano: As crianças são frequentemente trocadas com os fazendeiros, que na realidade as conservam como escravas. Em sua preocupação de rigor científico, Hartt não camuflava a generalizada prática de escravizar índios ainda àquela altura do século XIX, mais particularmente os Botocudos. Ele chegou a constatar que muitos deles trabalhavam ao lado dos negros cativos. Hartt também anotou as resistências indígenas a este regime de trabalho forçado, embora não as compreendesse como tais. Mas avaliou que os Botocudos eram "muito preguiçosos" e que fugiam com frequência para a floresta, onde muitos eram "perseguidos e mortos". Trata-se de um relato insuspeito de um pesquisador que seria benquisto e financiado pelo governo imperial. A teia histórica e cultural que se tecia em torno dos índios Botocudos estava longe de acabar. Depois dos viajantes da primeira metade do século XIX, da publicação dos primeiros documentos históricos relativos a essas tribos e dos dilemas do Romantismo e da historiografia, foi a vez da Antropologia que se firmava como disciplina relacionar-se com tais grupos. Os estudos sobre os Botocudos adquirem na segunda parte do século XIX um lugar relevante no campo científico internacional,
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sobretudo nas investigações e indagações sobre as origens da espécie humana, dentro da perspectiva do evolucionismo e da Antropologia. As instituições científicas brasileiras, que buscavam afirmar-se no cenário internacional e se consolidarem nacionalmente, criaram laços e redes de contatos mediante coleta e intercâmbio desses restos mortais de indígenas, com destaque para os Botocudos. Pelo menos cinquenta crânios de Botocudos fazem parte das coleções de museus brasileiros e internacionais, material que foi objeto de intercâmbios, estudos e monografias que circulavam pela comunidade científica. No caso do Brasil, particularmente, esta referência aos Botocudos foi marcante - uma vez que apareciam como uma das principais "contribuições específicas" na constituição da Antropologia e nas indagações acerca das origens do "homem brasileiro" e mesmo do "homem americano". Os Botocudos, então, eram vistos como uma espécie de elo perdido ou de misteriosa permanência do homem pré-histórico nos tempos ascendentes do progresso e da civilização - e como tal eram considerados precioso manancial de pesquisa. 34 Estamos aí num outro domínio, não mais o dos viajantes naturalistas tocados pela Ilustração e pela visão europeizante da universalidade do gênero humano, mas de uma perspectiva que privilegiava o estudo biológico, isto é, a coleta de esqueletos e fósseis, o estudo de "espécimes" vivos, as medidas antropométricas e as comparações morfológicas com o objetivo de conhecer e qualificar as diversidades e buscar a unidade do gênero humano, reforçando assim uma classificação do tipo racial. Colocava-se a perspectiva evolucionista das origens das espécies e o papel do homem neste quadro -tratava-se, ainda aqui, de uma corrente intelectual de vanguarda. Em geral as conclusões dos estudos de caráter físico (crânios, esqueletos, etc.) é que determinavam e condicionavam a compreensão dos aspectos ditos "morais" ou "espirituais". Diante da diversidade das populações humanas o estudo da raça passa a ser privilegiado e também aí são as características físicas que servem para explicar as socioculturais. Ou seja, uma ótica racial, que nem sempre se distinguia do racismo e cuja prática não se dissociava do colonialismo europeu ou da ideia de progresso civilizador nos países americanos, sem esquecer a partilha 34 Sobre este tema ver J. M. Monteiro. As raças indígenas no pensamento brasileiro durante o Império . .. e L. Schwarcz. O espetáculo das raças. ..
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territorial da África pelas potências europeias sacramentada no Congresso de Berlim em 1885. Assim, estes estudos biológicos vinculavam-se ao contexto histórico e não apareciam como um ramo ou um dos domínios da Antropologia, mas como a disciplina em si - afirmação demarcada com a força das identidades nascentes que buscam conquistar seu espaço institucional. Os estudos de caso de Botocudos têm papel significativo nesta Antropologia que se firmava. No campo teórico, eram vistos como uma das "mais primitiva das raças" americanas - o que por si já evidencia sua relevância dentro de uma linha evolutiva da espécie humana. E, na prática, também foram usados no Brasil para a conquista de apoio e legitimidade por parte desta ciência do homem diante dos demais setores da sociedade. Fica difícil separar esta reformulação do conhecimento sobre esses grupos indígenas das próprias condições em que tais tribos viviam. A legenda de ferocidade e os clamores de extermínio que vigoraram até início do século XIX foram sucedidos pelos primeiros estudos tomando esses grupos como objeto e por intensa campanha civilizatória, mediante pacificações, colonizações e catequeses. Agora, da segunda metade do século XIX para o início do século XX, era um outro discurso que se formulava, caracterizado pelo rótulo primitivista que podia servir para a ciência, mas também para o senso comum, na tênue fronteira entre o extravagante e o rigoroso, entre o bárbaro e o grotesco, entre o saber e o preconceito, entre a raça e o racismo. O primeiro crânio de um índio Botocudo fora levado à Europa ainda pelo príncipe de Wied-Neuwied em 1817 (Figura 53). Foi um acontecimento na comunidade científica. Nomes como Friederic Blumenbach (o "pai" da Antropologia Física) e Norton debruçaram-se sobre ele e publicaram trabalhos minuciosos. Era uma amostra autêntica da "raça Botocuda", considerada então como verdadeira relíquia de um grupo pré-histórico vivendo em características acentuadamente primitivas. Foi o início de uma série de estudos e publicações em torno dos crânios de Botocudos, passando pelos já citados Serres (1843) e Hartt (1870), por R. Virchow (Sociedade de Antropologia de Berlim, 1873 e 1892), Retzius & Bernard Davis (1875), G. Canestrini & Moschen (Pádua, 1879), Lacerda Filho & Peixoto (Museu Nacional, 1876), Rey (Sociedade de Antropologia de Paris,1880), Peixoto (1885), P. Ehrenreich (1887), Jeffries Wyman (Universidade de Cambridge, 1884), G. Sergi (1891), von lhering
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(Museu Paulista, 1911) e Manizer (Sociedade Imperial Russa de Antropologia, 1915).
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Figura 53 Dessa maneira pode-se considerar que os primeiros estudos feitos por brasileiros (que se colocavam numa perspectiva científica ou de produção intelectual, sem ligação dircta com a adm inistração sobre os índios ou projetas de colonização c catequese) sobre os Botocudos surgiram a partir da Anthropologia, eminentemente física ou bio l,)gica cm fins do século XIX. E quem poderia considerar esqueletos como sujeitos históricos? Só no Museu Nacional no Rio de Jan eiro foram guardados 33 crânios de Botocudos. 35 Sem falar dos crânios guardados no Muséum d'Histoire Naturelle em Paris (seis c també:m diversos esqueletos doados por D. Pedro II), Sociedade de Antropologia (Paris, quatro crânios, sendo dois de mulheres, levados por P. Rey cm 1878), Museu de Estocolmo (entre eles um crânio de cria nça), no Museu de Berlim (crânio de um homem adulto enviado como presente por D. Pedro II cm 1876 e mais dois remetidos da Bahia) , Museu de Frciburg (remessa de 1878), Museu de Bonn (doado pelo 15
M. C. M. Alvim. Divenidade morfológica entre os índios "Hotowdo.r". .. , 1963.
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príncipe Wied-Neuwied) e Museu de Gôttingen (1880). Verifica-se uma significativa rede de sociabilidade científica alimentada pelos ossos dos Botocudos. Essas viagens de esqueletos podiam ser financiadas no âmbito oficial ou por iniciativa privada. A administração pública brasileira, a mesma que cuidava do controle direto dos grupos indígenas, era mobilizada em várias instâncias para a coleta de ossos durante o Segundo Reinado. Pode-se rastrear essa viagem dos restos humanos desde a selva até as instituições culturais brasileiras ou estrangeiras através do trâmite burocrático, como no caso de dois esqueletos masculino e feminino solicitados em 1875 pelo Museu Nacional, via 2.• Seção da Diretoria do Comércio do Ministério da Agricultura, ao diretor do Aldeamento Central do Rio Doce que, por sua vez, remetia o material (dois caixões com esqueletos) ao presidente da Província de Minas Gerais, cabendo a este a remessa ao Rio de Janeiro. 36 Havia também a coleta e comércio de esqueletos para exportação por particulares. Como no caso de um confronto armado entre Botocudos e fazendeiros em Minas Gerais em 1846, resultando vários indígenas mortos. Na ocasião, conforme relato da época: Dezesseis crânios foram então vendidos (triste mercadoria) a um francês que disse fazer essa aquisição por conta do Museu de Paris. 37 Além de eliminados pelos que cobiçavam suas terras, os índios, depois de mortos, poderiam servir como outra fonte de lucros. Havia, pois, uma teia com laços administrativos, econômicos, culturais, bélicos e científicos, a enredar as tribos indígenas. Em alguns momentos a ligação entre coleta para fins científicos e guerra de extermínio era feita sem maiores mediações. O que motivava esta avalanche craniológica (além da sociabilidade acadêmica embasada na administração pública ou em interesses privados) era uma ampla indagação de fundo hamletiano: diante dos crânios e esqueletos de Botocudos os cientistas procuravam indagar sobre a identidade e as origens da espécie humana- onde tais índios 36 Esqueletos remettidos pela Presidência de Minas Gerais para o Muséo Nacional, 26 de abril de 1875 (IE 7-77), AN . 37 T. Ottoni, cit., p. 51.
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eram considerados, entre os vivos, um dos mais antigos elos da cadeia evolutiva. Para entender essa associação entre Botocudos e primitivismo é preciso levar em conta duas explicações. Uma que aparece bem explícita na época e era tida então como absolutamente científica, vinculava tais índios ao Homem da Lagoa Santa e aos fósseis humanos pré-históricos, baseada em determinados critérios antropométricos; e outra, menos evidente, mas que hoje se sobressai, trazendo à tona atitudes baseadas em preceitos civilizatórios, estratégias institucionais, formas de sujeição destes grupos no presente e preconceitos raciais que geravam tal visão sobre esses índios. A antiga e íntima relação entre objetividade e subjetividade. A associação entre homem pré-histórico e Botocudo era tida como irrefutável e constava de manuais, como aquele que, editado na França em 1912, afirmava a existência de uma "raça da Lagoa Santa" como um "tipo marcado" e ainda presente em populações da América do Sul como os Botocudos no Brasil e os Patagônios e Fueguinos na Argentina. 38 Essa suposta proximidade entre os Botocudos e o Homem da Lagoa Santa, apresentada com tanta ênfase científica durante décadas, foi caindo em desuso ao longo do século XX, embora só tenha sido formalmente contestada no campo da Antropologia biológica na tese de Maria Alvim em 1963. 39 Neste trabalho a autora faz estudo comparativo das características morfológicas dos crânios de Botocudos e os da Lagoa Santa, concluindo: ''A antiga hipótese do estreito parentesco entre os índios «Botocudos» e o «Homem da Lagoa Santa» não pode ser comprovada pelo confronto das medidas e índices cranianos[ .. .]. Ao contrário, verificou-se que são as referidas séries morfologicamente diferentes". A autora no mesmo trabalho afirma que os Botocudos não existiriam mais como grupos tribais diferenciados da população brasileira, reiterando a noção de que estariam extintos, corrente no período. Estudar os Botocudos tornou-se um modismo intelectual contagiante no século XIX. Era como se o tempo do progresso, da evolução e da ciência necessitasse da referência a outro tempo remoto, das origens, do primitivo e do atraso, para servir de contraponto e reafirmar sua linha ascendente. Neste contato entre cientistas e os 38
H. Beuchat. Manuel d'Archéologie Américaine. .. , 1912, M. C. M. Alvim. Diversidade moifológica entre os {ndios "Botocudos" do leste brasileiro {século XIX) e o ''Homem de Lagoa Santa". .. , 1963. 39
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índios havia, por parte daqueles, a ênfase na coleta de restos humanos - esqueletos completos, crânios, túmulos, sem falar nas medidas antropométricas dos "exemplares" vivos. Verdade que desde os primeiros contatos, tal preocupação já existia. O príncipe Wied-Neuwied e Saint-Hilaire recolheram crânios, mas não deram a eles grande importância no panorama de suas observações e conclusões. Com os primeiros antropólogos - e a distância já nos permite falar disso sem rancores - havia um certo toque de necrofilia nesta busca e coleta de ossos humanos, em certa medida insensível aos indivíduos vivos ou ao modo como foram mortos. Em qualquer época é difícil falar de uma "ciência pura". A começar pela própria perspectiva teórica de pesquisar as provas materiais para chegar a conclusões culturais - os esqueletos seriam mais "eloquentes". Índio bom é índio morto? Ao contrário do personagem Hamlet, a maioria destes cientistas, quando tinham a caveira nas mãos para interrogá-la, não se preocupavam em saber a quem pertencera, em que condições o índio morrera (a não ser que o objeto estivesse danificado), o que outros de sua tribo poderiam falar sobre a vida, a morte e as tradições e muito menos se interessavam por saber que proporções poderia assumir um comércio de esqueletos. Um dos últimos crânios de Botocudos a ser recolhido foi o de Tomkhé, filho do "capitão" Krenak e que morrera por volta de 1910 ou 1911. Em 1915, o jovem cientista russo Henri Manizer, em missão da Sociedade Imperial Russa de Antropologia, de Petrogrado, foi à região do rio Doce com o objetivo de coletar materiais e fazer um relato sobre a vida das tribos de Botocudos no Posto Pancas (a cinquenta quilômetros de Colatina) e num aldeamento em abandono nos arredores de Lajão. Os Krenaks (que segundo Manizer se autodenominavam Boruns), que até 1910 eram considerados, no dizer do russo, "como os mais puros e conservados", estavam agora em estado lamentável. O grupo que se recusava a ir para o Posto Pancas, onde a caça era muito pobre, permanecia acampado num terreno à beira da estrada de ferro Vitória-Minas, vivendo de uma precária agricultura de subsistência, recebendo rala ajuda governamental e pedindo esmola aos passantes. Ao perguntar a estes índios onde poderia recolher algum esqueleto, Manizer não sabia que estava puxando a meada de um fio que o levaria a águas mais profundas do que poderia imaginar. O cientista russo chegara ao local impregnado do cientificismo
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craniológico. Mas os índios lhe ensinaram outras dimensõe s do conhecimento humano (antropológico) que ele ao menos teve a disponibilidade para incluir em seu relatório. O pedido causou in tensos debates entre os poucos que restavam da tribo. Ali estavam a velha Jarik, viúva de Krenak; Kapruk, viúva de Thomké; Knianik, bem idoso e irmão de Thomké; Kristino e mais três ho me ns jovens. Alguns eram fàvorávcis a permitir a colcta dos restos mortais . Outros não. Foi explicado então ao jovem russo (e ele traduziu a explica~·ão para seu idioma e seus códigos) CJUe Nanitiong era um ser fantástico no qual se metamorfoseavam os mortos. Para não encontrar um deve-se evitar ir ao local onde os mortos estão enterrados. O tcrw r da presença desses espíritos às vezes levava pânico ao acampamento. entre gritos, súplicas c correrias. As mulheres, que ainda andavam com pletamente nuas, aparecem como as defensoras da tradição c não querem que os ossos sejam levados pelo russo. Mas acaba prcvalcccnd" o ponto de vista dos que permitem que o material seja recolhido. ] 1or que eles concordaram com o que aparentemente seria uma probn ação? Por que os índios aceitaram se aproximar de Nanitiong? l\llani zer não entendeu, nem procurou entender imediatamente, mas foi reg-istrando as falas c gestos dos índios cm seus papéis. Apesar da pe núria em que viviam, as palavras c os atos desses índios eram vigorosos, como se ainda herdassem c guardassem as energias de outros tem pos, energias que integravam seu etho;- que ainda permanecia nos di fíce is tempos presentes. Os preparativos para recolher os restos m ortais foram demorados. Murmúrios, silêncios, tarefas intermin áveis, arestas aparadas no interior do grupo. Finalmente a pequena comiti va se põe a caminho conduzida por Knianik, que ainda usava botOt]U C. Chegam ao topo de uma colina coberta de cactos c algumas acícias. Dali, como numa síntese do tempo cm que viviam, avistava-se o rio Doce que continuava seu curso e a ferrovia que atravessava o território indígena. Manizcr vê ossos deitados sob coberta de palha, folhas c g-alhos, com os pés apoiados no solo. Em volta, garrafàs, arco e fle chas espalhados. A maioria dos ossos estava também espalhada. O crán io não tinha o maxilar inferior. Faltava também um fêmur. O "materialismo" rigoroso do cientista russo contrastava com o "espiritualismo" dos índios. Knianik explica que o corpo de Thomké tora colocado naquela posição, recostado, para ficar olhando para seu assass in o (as
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circunstâncias do assassinato não foram relatadas). Em seguida, de maneira reverente, Knianik fala (em voz alta) dirigindo-se ao morto: Nós viemos te buscar, Thomké! Não se aborreça, vem com a gente. Nós iremos com você até a margem. Você vai com karaí a ridianêre [Vai com homem branco para o Rio de Janeiro]. Você vai comer arroz e beber café. Não nos esqueça, Thomké. Lembre a Henrique [Manizer] de nos trazer arroz, farinha, feijão e milho. O recado estava dado. Mesmo em tensão com suas próprias estruturas culturais, mesmo revolvendo fortes laços afetivos, os índios haviam concordado com a coleta dos ossos que para eles tanto significavam (como também na cultura ocidental, basta ver a opulência dos cemitérios católicos) na expectativa de fazer uma barganha, de compor alianças que facilitassem a sobrevivência do grupo. Como se dissessem a este representante da civilização: leve os ossos que lhe interessam lá por seus motivos, mas colabore para que não sejamos extintos, traga alimentos, ajude a nossa sobrevivência. Neste ponto irrompe a outra vertente, apegada à tradição cultural pois, afinal, era a identidade étnica que os mantinha vivos como grupo. Kapruk se abraça com o crânio de seu marido e tem uma crise de choro. Era também uma manifestação afetiva, saudosa, emocionada. Irada, reclama com os índios que estão revolvendo os restos mortais. Knianik se abaixa e lentamente vai colocando os ossos num saco (não foi permitido ao homem branco recolhê-los, os índios quiseram ter a prerrogativa de fazer esse gesto com as próprias mãos). Ele também tem os olhos cheios de lágrimas. Vai recolhendo e falando, exaltando as virtudes do morto: bonito, grande, forte ... "Perto dele eu sou apenas uma criança", dizia Knianik, cujo rosto era coberto de rugas. Depois da cerimônia, Manizer podia dar como cumprida sua missão. Os ossos, junto com outros, seriam repartidos entre o Museu da Academia Imperial de Ciências de Petrogrado e o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Mas o russo ainda recebeu outra lição antropológica do velho Knianik, que passou a falar sobre o espírito civilizador de sua tradição, Maret-Khmaknian e de como ele estava zangado das ofensas que os brasileiros faziam aos Boruns. Maret- Khmaknian estava zangado com os brasileiros. Ele era um velho mais que humano. Mais alto que um homem comum e seu
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pênis colossal podia sufocar uma mulher até a garganta. Ele tinha cabeça branca, rosto coberto até os olhos de pelos vermelhos. Ele se encontra no céu, as estrelas são dele, tem muitos ftlhos. Anda nas nuvens e sobre as águas, mas os brasileiros não podem vê-lo. Ele não usa sapatos, mas nem espinhos nem galhos podem machucá-lo. Sua faca é longa como um arco e pode derrubar árvores, faz flechas muito bem. Se alguém o irrita, atinge no coração com flecha invisível. Ama os Boruns e se aborrece quando eles são ultrajados. Maret, o antigo, promete vingança contra os brasileiros que passarem pelas terras indígenas. Maret enviou o sol, como o governo enviou os trens. De noite o sol entra no céu e fica com Maret o antigo. Ele esconde ou mostra a lua, evoca chuva e tempestade. 40 O relato mitológico sobre o "espírito civilizador" destes Boruns mostra que a resistência do grupo indígena continuava. Não mais na prática guerreira, que se tornara impossível para eles nas condições em que viviam, mas em práticas simbólicas, que acompanhavam e estruturavam a identidade do grupo desde a época em que eram guerreiros, identidade que se transfigurava e permanecia - mesmo quando eles já não eram mais considerados "índios bravos". A bravura, aqui, era de outra ordem e a força de seus mitos era ainda maior que sua força física, que durante tantos séculos aterrara os agentes da civilização ocidental. Algum tempo depois, maio de 1916, Henri Manizer estaria apresentando os resultados de sua pesquisa na Sociedade Imperial Russa da Academia de Petrogrado (meses antes da Revolução Soviética). Manizer, homem de ciência e ligado às vanguardas culturais e poüticas de seu país, estava próximo a grupos revolucionários russos. Ele foi considerado, por alguns, como autor do primeiro trabalho antropológico moderno, na transição da Antropologia Física para a Cultural. Os cientistas paravam de desenterrar os ossos dos Botocudos e estes, mesmo acossados, iam contribuindo com suas falas e expressões para enterrar o cientificismo craniológico e racista. Um expressivo e desconcertante exemplo da relação dos Botocudos com as ciências do século XIX aparece na história de vida de um desses índios, cujo nome não foi registrado pelo viajante alemão Tschudi que recolheu o caso em fins dos anos 1850. Uma família da 40 Este relato foi traduzido e codificado por Manizer em russo, depois recebeu uma versão resumida em francês, da qual tiramos esta versão em português.
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Bahia recebera de "presente" um curuca Botocudo e criou-o como ftlho: o rapaz teve ótimo desempenho nos estudos de nível médio e entrou para a Faculdade de Medicina da Bahia, de onde saiu com o título de doutor e exerceu durante alguns meses a profissão. Entretanto, estava sempre tomado "por uma melancolia que não se dissipava jamais", o que foi atribuído, na época, a estigmas raciais, ou seja, "à marca doente de seu caráter". Certo dia ele desapareceu sem deixar vestígios, para perplexidade de seus pais adotivos que, somente anos mais tarde, descobriram seu paradeiro: voltara para sua tribo na floresta, onde retomou seus antigos padrões culturais, caçando com arco e flecha e vivendo sem roupa. O índio em questão, embora não se adaptasse plenamente aos padrões ocidentais, era capaz de adquiri-los e usá-los, segundo palavras da época, com "brilhantismo". Além da incompatibilidade existencial com o modo de vida imposto, que o índio conheceu bem e até aceitou durante anos, e da identidade de origem que não se perdera, apesar das experiências de contato vividas, ele conhecera e dominara as ciências biológicas, um dos principais esteios de opressão e de estigma sobre seu povo. Para os parâmetros civilizadores oitocentistas era praticamente impossível compreender essa recusa na opção feita pelo Botocudo que se tornara médico e, em seguida, preferiu voltar às suas origens culturais. As invisíveis presenças O engenheiro e explorador inglês William John Steains calculava em 1885 a presença de cerca de sete mil Botocudos em torno do rio Doce e seus afluentes ao Norte.41 Trabalhando na construção de ferrovias e, ao mesmo tempo, membro da Royal Geographic Society, ele se mostrava impressionado em como tais índios "têm resistido tenazmente a todas as tentativas de colonização". Steains constatou em suas andanças a dificuldade em encontrar os Botocudos, em geral percebidos por pegadas, rastros e vultos fugidios pela floresta. Ainda assim, no mês de novembro, pôde ver de perto dois grupos, um com cinquenta e quatro mulheres e crianças e outro com setenta pessoas. Dois anos depois os Botocudos seriam em torno de cinco mil, segundo estimativa de Paul Ehrenreich, 42 que em levantamento no 41 42
W. J. Steains. Uma exploração do rio Doce e seus afluentes no norte ... P. Ehrenreich. Contribuições para a etnologia do Brasil. ..
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terreno conheceu diversos índios e chefes, registrou dez grupos, [racionados em bandos pequenos e médios:
1. Nak-nenuk, entre os rios Mucuri, Doce, Suaçuí e na serra dos Aimorés; subdivididos em: Posesa, bando hostil do Mucuri; Poté, Pontora e Norek, no alto Mucuri; os Batum, "Menino", Pacho, Manuel Carneiro, Chique Unque, Filipe Giporok, Joaquim Giporok, Maranca, Sargento Branco, Patu e Amanpan, na região do Suaçuí, já fixados ao solo; Poding, Pruntrus, Jikagirum e Urucu; 2. Nak-eraha, alto e médio Guandu; 3. Etwet, rio Suaçuí Grande; 4. Takruk-krak, da serra dos Aimorés até Suaçuí Grande; 5. NepNep, a leste da serra dos Aimorés até próximo rio São Mateus; 6. N ack-poruk, margem esquerda do rio Doce, entre Figeuira e Guandu; 7. Arauan, médio Arauan, tributário do Urupuca; 8. Bakués, norte do Mucuri até afluentes meridionais do Jequitinhonha; 9. Panpan, rio do mesmo nome, afluente do Mucuri; 10. Nocg-nocg, rio Pardo. Ehrenreich, professor de Medicina e Filosofia, nascera na Prússia em 1855 e realizou uma típica e alentada expedição antropológica oitocentista no aldeamento do Mutum, onde obteve quinze medidas antropométricas de índios vivos, vinte e cinco "fotografias antropológicas", dois esqueletos, três crânios e material etnográfico diverso. Se estudiosos estrangeiros ainda anotavam a presença desses índios com suas identidades étnicas no apagar do Oitocentos, os Botocudos, ao mesmo tempo que consolidavam notoriedade no mundo da ciência, iam desaparecendo dos relatórios oficiais brasileiros. A já citada teia de invisibilidade favorecia a tomada de suas terras e a utilização de mão de obra, colocando-os na condição indistinta de escravos não declarados ou de brasileiros pobres. Entretanto, por algumas frestas oficiais, percebia-se a presença dos grupos indígenas ainda não plenamente enquadrados pela sociedade nacional. O presidente da província do Espírito Santo anotava em 1886 a verba para compra de vestuário e ferramentas para os índios do Aldeamento de
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Mutum "e mesmo para os que costumam aparecer vindo de outros lugares". 43 Entre o apagar do Oitocentos e o raiar elo século XX, experiência marcante no contato com os Botocudos ocorreu nos aldeamentos ele Ltambacuri, cm Minas Gerais, por iniciativa ele frades capuchinhos, na mesma região onde décadas antes Teófilo Ottoni intentara seu malogrado projeto capitalista utópico. A iniciativa missionária ele ltambacuri, detidamente estudada pela antropóloga 1. Misságia ele Mattos, começou cm 1873 e chegou a contar com mai s de mil Botocudos aldeaclos ao lado ele número equivalente ele brasileiros. 44 Foi inicialmente liderada e construída por dois capuchinhos também "mestiços", isto é, ele origem italiana e austríaca, c incorporou grande número ele índios à socicclaclc nacional, destacando-se os professores indígenas como intermediários. Durante duas décadas a ação missionária f1orcsccu, encravada no que até então se constituía como um dos últimos bolsões de grupos Botocu clos no território brasileiro. Entretanto, uma vigorosa rebelião dos índios contra a missão c os padres, cm 1893, causou surpresa, comoção e gerou violen ta repressão sobre os indígenas que muitos acreditavam devidamente cristianizados e pacificados. A partir daí, a presença indígena, ou seu reconhecimento, foi declinando no local, que ainda cm 1894 contabilizava cerca de mil índios entre "puros c mestiços'' e nos primeiros anos do século XX falava -se indistintamente em "habitantes", gerando um considerável crescimento populacional para as cidades que ali se ergueram, também com a vinda de famílias de imigrantes europeus. Em pouco mais de dez anos os índios desapareceram por com pleto dos registras demográficos de Itambacuri. Era a República nascente que, herdeira do Império, intensiftcava a consolidação da homoge nei;dade para a nação brasileira. '' Rdat01·ia aprnentado áAs.remhléa L egislativa Provincial do E.rpirito- Santo p ela presidmte da pw;.,incia, desembargador Antonio J oaquim R odrigue.r, em 5 de outubro de 1886.
" 1. l\1. de Mattos. Civilização e revolta . . . , cit.
Capítulo 9
ÍNDIOS NA VITRINE: A Exposição Anthropologica Brazileira
Abertura
Ü
leitor poderá visitar nas páginas a seguir a Exposição Anthropologica Brazileira inaugurada na cidade imperial do Rio de Janeiro em 29 de julho de 1882. As palavras impressas não têm a força visual dos ícones nem o poder de levar-nos ao passado, mas cabe lembrar que "exposição" tem vários significados e quer dizer, também, relato (e não retrato). Vamos, pois, à exposição da Exposição. O maior atrativo da Exposição Anthropologica Brazileira foi a presença de índios Botocudos vivos e ao vivo, expostos numa destas grandes feiras da modernidade que marcaram os séculos XIX e XX. Exposto, palavra polissêmica, indicava também as crianças enjeitadas, numa época em que os índios tinham a condição jurídica de órfãos. Tal mostra, organizada pelo Museu Nacional, causou sensação e foi resultado de convergências: o "imperador-filósofo" e chefe de Estado D. Pedro II, patrono das ciências nos Trópicos; a Antropologia que se afirmava como Disciplina; e a permanência, neste mesmo território nacional, de grupos indígenas que viviam dentro de seus padrões culturais e enfrentavam conflitos armados. Com tais ingredientes a mistura foi, pelo menos, original: poucos esforços de divulgação científica marcaram de maneira tão nítida a interseção entre violência, espetáculo e ciência neste apagar do século XIX, da monarquia e da escravidão no Brasil. Segundo seu principal organizador, a mostra 328
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foi uma "aplaudida festa scientifica" .1 Onde começa a separar-se o lazer da ciência? Como definir a fronteira entre o exótico e o exato? Hoje, passados mais de cento e vinte e quatro anos, podemos revisitar a Exposição Anthropologica colocando nas vitrines não apenas os índios, seus artefatos, imagens e ossos, mas igualmente a teia da organização, os cientistas, os colecionadores, enfim, a própria sociedade que assistiu e gerou tal exibição, com suas mudanças e permanências. Talvez não estejamos tão distantes. Estande 1. Teia administrativa na coleta dos artefatos nacionais Para preencher os pavilhões da Exposição armou-se longa e poderosa malha burocrática interligando diferentes setores da administração pública (inclusive o Museu Nacional, como parte mais visível) à população indígena. A organização desse evento mostra duas faces: de um lado rigoroso e definido projeto nacional-antropológico e, de outro, certa dose de improvisação, de correrias contra o tempo e súplicas de verbas aos detentores do orçamento (característica talvez permanente na atividade científica... ). O diretor do Museu, Ladislau Neto, estava à frente da iniciativa "para a qual dos mais longínquos pontos do Imperio preparão-se numerosas collecções ou interessantes objetos". 2 Desde novembro de 1881 o Ministério da Agricultura (ao qual estava subordinado o Museu) espalhara ofícios por todo o Brasil solicitando a coleta etnográfica. 3 E assim formou-se uma articulação para o envio de materiais vindos de diferentes regiões do país. Moviam-se tentáculos partindo de Ministérios, presidentes de Províncias, Câmaras Municipais, chefes de Comissões, diretores de colônias, de aldeamentos e serviços de catequese. Era como se fosse a busca também de uma forma de integração nacional pela via administrativa por meio dessa coleta que passava a ser denominada de antropológica. 1 Ladislao Netto, diretor do Museu Nacional. "Ao Leitor". Introdução a Mello Moraes Filho (di r.). Revista da Exposição . .. , p. VII. 2 Oficio do Diretor do Museu Nacional de 4-4-1882, Série Educação, IE7 -65, AN. 3 Ata da 19. • sessão ordindria da Câmara Municipal de Petrópolis, aos 30 dias de novembro de 1881, sob a presidência do sr. majorJosé Cândido Monteiro de Barros, AHMIP.
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Entre os integrantes das elites dirigentes que colecionavam artefatos etnográficos estava João Lustosa da Cunha, então visconde de Paranaguá que, providencialmente, ocupava o ministério da Fazenda em 1882 e mereceu especial agradecimento dos responsáveis pela Exposição. Além de sua colaboração, seu filho, José Paranaguá, presidente da província do Amazonas, foi uma das autoridades que mais se interessou em enviar artefatos para a mostra no Rio de Janeiro. 4 Assinale-se que essa família influente adotava sobrenome indígena, atitude que ocorreu entre parcela das elites brasileiras na segunda metade do século XIX. Até abril de 1882 (três meses antes da inauguração) os organizadores pareciam limitar a Exposição a objetos. Em maio, surge a ideia de confeccionar "várias figuras em tamanho natural de alguns typos de nossos indígenas" para colocá-las sobre canoas, ubás e outros utensílios que estavam a caminho. 5 Era uma tendência de vanguarda no campo da museografia: de exibir formas de representações humanas as mais naturais ou realistas possíveis. E os anthropologos organizadores perceberam que as instituições culturais do Novo Mundo poderiam contar com um trunfo ainda mais "naturalista" e "realista". Começava a delinear-se, ainda que simbolicamente, a exibição de índios. E bastaram algumas semanas para que o salto fosse dado em junho (pouco mais de um mês antes do evento) a ideia da presença corporal dos índios veio à tona: Sendo de facil e de prompta acquisição um certo numero de indios coroados do Paraná, e de Botocudos do Rio Doce no Espirito Santo com destino á Expoxição Anthropologica, rogo a V. Exa. se digne providenciar para que as presidencias das duas referidas provincias tomem a peito a remessa urgente a esta Côrte do maior numero possivel de selvagens, os quaes, devendo figurar na Exposição Anthropologica e servir aqui de base a estudos rigorosos de anthropologia, e em particular de craneologia comparada, poderão ser agazalhados nesta Côrte, na hospedaria dos immigrantes. 6
4
Documento I-DPP-28.06. [1883], Net. C, Livro 169, AHMIP. Oficio do Diretor do Museu Nacional de 2-5-1882, Série Educação, IE7-65, AN. 6 Ofício do Diretor do Museu Nacional de 6-6-1882, Série Educação, IE7 -65, AN. 5
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A citação tem aspectos interessantes. Em primeiro lugar situa os índios como elementos de aquisição fácil e rápida - e a escolha desses grupos não era ingênua ou feita ao acaso, pois eram associados à antiga legenda de ferocidade e invencibilidade. Facilidade e rapidez revelam os resultados das frentes de expansão e das atividades governamentais, de colonização e catequese que iam se sobrepondo à resistência indígena. Tanto os Coroados como os Botocudos (classificados entre os Macro-Jê, os antigos Tapuias) tinham fama de índios bravos, que opunham tenaz combate à sociedade desde os tempos coloniais, cuja presença na Corte causaria grande curiosidade. Não se tratava mais de guerreiros que formavam barreira contra o progresso nacional, mas de povos facilmente captados pelas malhas administrativas (que sete décadas antes eram mobilizadas na guerra ofensiva contra essas mesmas tribos). Em segundo lugar, no ofício do diretor do Museu, os índios são equiparados aos objetos, isto é, passíveis de aquisição - não tanto dentro da lógica escravista que transformava o escravo em mercadoria (embora a Abolição só ocorra seis anos depois), pois os cientistas em questão não se colocavam como mercadores de escravos. Mas, sobretudo, dentro da ideia de superioridade civilizatória e de uma objetividade científica que isolava do contexto o objeto, fosse este de cera, de carne e osso - ou apenas osso. Em terceiro lugar, talvez a característica mais marcante da petição esteja na dupla justificativa para a remessa dos índios: figurar na Exposição e servir de base para rigorosos estudos. Tanto que o parecer (contrário) do Ministério da Agricultura tocaria neste ponto ao questionar o pedido: não seria mais barato enviar um pesquisador aos aldeamentos para fazer um número muito maior de medidas antropométricas? Tais objeções eram claras e eliminavam praticamente a segunda alegação. Os índios deveriam vir, mas para brilhar na Exposição. E não deixa de ser sintomática a proposta de abrigar os índios entre os imigrantes: era o local dos estrangeiros, dos não brasileiros. Nos dias seguintes, diante da amplitude que ganhava a mostra, Ladislau Neto aproveita o momento e envia novo ofício, solicitando a criação da Seção de Antropologia do Museu Nacional, que seria destinada ao médico João Batista de Lacerda, então subdiretor da instituição. Tal pedido não foi então aceito, mas seu conteúdo revela pontos-chave para a compreensão deste novo olhar da ciência (e também da sociedade em geral) sobre os índios.
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Dentro em poucos annos bem diminuta tornar-se-ha o numero dos africanos actualmente restantes no Brasil, assim como reduzidos estarão nos recessos das mais longinquas florestas dos affiuentes do Amazonas e do Prata os incultos primitivos do solo brasileiro. O Museu Nacional ainda chegará a tempo agora de registrar os caracteres destes ultimos representantes da família aborígene no Brasil. 7 A argumentação era bem articulada e se baseava em dois pontos. Primeiro, na perspectiva de que tanto os escravos de origem africana (não incluídos na mostra, o que certamente seria problemático diante da crescente campanha abolicionista) quanto os índios tenderiam a desaparecer em face do progresso e da modernização da sociedade nacional. Ou seja, o que tais cientistas procuravam chamar a atenção é que estes grupos - negros escravos e índios selvagens não deveriam mais ser tratados como inimigos ou obstáculos da civilização, mas, uma vez que seriam como que espécies em extinção, passariam a ser objeto de estudo antropológico, de investigação sistemática, de folclorização ou de curiosidade pública. O segundo argumento era em torno da cidade imperial. A capital do país era vista como espaço adequado: "de facto o Rio de Janeiro é o cadinho anthropologico em que ha tres seculos vivem e fusionam-se as mais distintas raças humanas". 8 Ou seja, reafirmava-se o caráter nacional e "mestiço" da cidade-Corte, apontada aqui como local privilegiado de gestação da nação moderna, através da eliminação das diferenças não apenas regionais, mas étnicas. Claro que havia aí uma visão teleológica, pois três séculos antes, isto é, em fins do século XVI, seria difícil considerar a localidade do Rio de Janeiro como "cadinho de raças". Tal visão oitocentista, entretanto, era a pedra de toque para legitimar a escolha do Rio de Janeiro como a localidade mais indicada para abrigar um centro de estudos nesse sentido. As "raças" que deveriam desaparecer diante do progresso homogeneizador da sociedade nacional estavam ali ao alcance da mão, na cidade imperial brasileira, cujo papel centralizador ganhava mais esta relevância: um ambiente propício para o branquea7
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Oficio do Diretor do Museu Nacional de 16-6-1882, Série Educação, IE7-65, AN. Ibidem.
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mento. 9 A metrópole civilizada aparecia como contraponto e superação, na escala evolucionista, da selva com seus habitantes primitivos. Como arremate, Lacerda reforçava a necessidade do "estudo da antiguidade do homem e a filiação das raças humanas". Ou seja, uma forma de publicizar, buscar apoio e legitimidade para a institucionalização da Antropologia no Brasil. Era este um dos papeis reservados aos índios trazidos à cidade imperial e assim se concebia a "contribuição" indígena à formação nacional. Eram os primeiros passos da Antropologia no país, evidenciando a ligação de ambos os projetos, o nacional e o antropológico, 10 que se baseavam na suposta assimilação dos negros e índios: de ameaça à civilização e a ordem se tornariam objetos de estudo e tradição. E reafirmando o caráter do Rio de Janeiro não apenas como capital nacional, mas cidade imperial, capaz de espelhar e realizar em seu próprio espaço a configuração de uma identidade nacional através da elaboração, por assim dizer, de uma nova caracterização racial para o restante do país. Os combates contra os índios não eram levados por motivos estritamente econômicos: a partir das formulações destes cientistas percebemos ao mesmo tempo uma formulação de extermínio das diferenças étnicas no Brasil do século XIX. Se a criação da Seção de Antropologia foi negada naquele momento, os organizadores obtiveram a vinda dos índios Botocudos para exibição in loco. Estande 2. Uma ciência respingada de sangue Além da mobilização do aparelho administrativo como forma de dar vida ao referido projeto nacional-antropológico, havia outra preocupação central na realização da Exposição: a busca de superar o descompasso (em relação à Europa) no campo da esfera pública cultural no Brasil, surgindo daí iniciativas vanguardistas que acompanhavam as mais recentes tendências intelectuais, tecnológicas,
9 L. Schwarcz. O espetáculo das raças. . . Para uma abordagem distinta sobre esta Exposição Antropológica, v. o artigo de J. Andermann. Espetáculos da diferença . . . (2004). 10 M . M . C . da Cunha, 1986.
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institucionais e museográficas. 11 Dentro dessa linha geral pode ser entendido o verdadeiro mapeamento de coleções particulares (inclusive a de D. Pedro II) para integrar um acervo aberto ao público e a convocação da intelectualidade em torno destas bandeiras. O envolvimento destes setores da população eminentemente urbanos e numa dimensão cultural pode parecer desvinculado dos conflitos e extermínios que ainda se praticavam com os índios. Mas a própria documentação gerada pela mostra traz elementos que permitem driblar a aparente ingenuidade de coleções vistas apenas como exóticas, pitorescas ou cientificamente descompromissadas com o contexto: expunha-se nos Trópicos uma ciência politizada e respingada de sangue. Mantinha-se a multiplicidade de registros e atitudes paradoxais diante dos índios desde a época da Independência: a condição ambígua, onde indígenas e seus artefatos eram considerados ao mesmo tempo objetos científicos, alegorias culturais e políticas, adversários de guerra e potencial mão de obra. A Coroa imperial brasileira, também sob D. Pedro II, tolerava agressões aos indígenas em nome do triunfo da civilização nos territórios ainda não dominados, o que caracteriza uma linha de continuidade, neste aspecto, com os reinados anteriores de D. Maria I, D. João VI e D. Pedro I. Por exemplo: na Sala Vaz de Caminha da Exposição figuraram flechas com as quais os índios Jurú "assassinaram a 2 de setembro de 1869 no alto Purus o português Cesario Jozé de Mesquita e a brazileira Emelina de Freitas". Ou ainda as "flechas arrancadas do cadaver dissecado de Silverio da Costa Alecrim, morto pelos Botocudos na Lagoa Grande, perto de Philadelphia", em 17 de maio de 1882, doadas por João Ferreira de Andrade Leite. Sem falar das flechas "tomadas no Ribeirão da Prata aos selvagens que atacaram a expedição de 30 homens do major Jorge Lajes da Costa Moreira, diretor da colonia militar de São Lourenço, de Mato Grosso". Como tais flechas teriam sido tomadas? E na Sala Lund era possível ver o "craneo de um indígena Chavante, morto por occasião do assalto da Fazenda do Jaguareté, em 1876". E o senador Leitão da Cunha remetera setas com que índios Matauanes mataram e decapitaram cinco cearenses no rio Arapuana, Amazonas, em janeiro de 1882. Sem faltar um "fuzil dos 11 Sobre a esfera pública e cultural no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX, v. M . Morei (2005).
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Botocudos do Rio Doce", na Sala Gabriel Soares. Seria possível considerar um fuzil como peça etnográfica? O próprio Guia da Exposição Anthropologica explicitava a origem destes itens.U Está claro que tais artefatos e restos humanos eram apresentados como troféus de guerra com a intenção de aguçar a curiosidade do público e mostrar a atualidade de um embate que ocorria, embora distante dos principais centros urbanos. Note-se a persistência da diferença entre brasileiros, portugueses e índios. Ou seja, os índios, sobretudo os que resistiam, não eram considerados brasileiros. Além de nacional e antropológica, a mostra caracterizava-se como uma Exposição de Conquista. Havia aí um implícito mas vibrante apelo para que o público testemunhasse os últimos episódios de um conflito ainda em curso, cujo desenlace deveria anunciar a supremacia da ciência, do progresso, da civilização e da nação moderna - à custa destes visíveis (e escolhidos entre os mais recentes) objetos de uma guerra de longa duração. Em outras palavras: eles (os Outros) são os derrotados em exposição, Nós somos os triunfantes, expositores e observadores. Eles são os bárbaros primitivos e Nós os civilizados progressistas. Entretanto, o esforço teatral de modernização não eliminava os traços arcaicos: tratava-se de expor no centro do Império os artefatos, restos mortais e mesmo os corpos vivos dos povos conquistados, dentro da melhor tradição imperial romana. Os conflitos assim expostos e realçados não eram inventados pelos organizadores da mostra, mas ainda ocorriam em diversos pontos do território brasileiro. Mesmo fora das vitrines da Exposição, as situações de confronto envolvendo populações indígenas eram tema contemporâneo, inclusive nas províncias onde havia Botocudos. No Espírito Santo, o aldeamento de Mutum fora invadido em 12 de novembro de 1881 "por uma maloca de índios bravios em numero superior a cem, com intenções hostis".B Em Minas Gerais, o presidente da província lamentava em 1882:
12 No Arquivo Permanente do Museu Nacional, sobretudo nas pastas 20 e 21, há diversos documentos que também indicam como os artefatos da Exposição Anthropologica eram troféus de uma guerra atual, cf. a monografia de Oliveira (1994), pp. 15-6. 13 Re/atorio apresentado áAssembléa Legislativa da provincia do Espirita-Santo em sua sessão ordinaria de 8 de março de 1881 pelo presidente da prov{ncia . . .
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As correrias dos indígenas contra o homem civilisado mostram que em algumas regiões ainda não se extinguo o odio dos aborigenes contra os que occupam hoje as terras de seus antepassados. Repetem-se as depredaçõe e o morticínio dos viajores inermes e desprevenidos.14 E na Bahia, em 1881, registrava-se "a invasão dos índios selvagens da margem esquerda" do rio Pardo ao distrito de Boa Vista fazendo "sortidas, praticando o roubo e o assassinato", embora o presidente da província admitisse "que os maus tratos e abusos de confiança, infelizmente muito freqüentes da parte da população, concorrão em grande parte para incitar os índios nas suas depredações". 15 Nestas três províncias foram obtidos reforços militares para conter as resistências indígenas em 1882. Tal relação entre guerra de Conquista imperial e coleções museográficas já não era novidade. É bem conhecido o exemplo do Museu do Louvre enriquecido com as guerras napoleônicas, quando o próprio Bonaparte, no fragor das batalhas, propunha selecionar as obras de arte que deveriam ser conduzidas à França como presa de guerra. E as autoridades e artistas franceses forjaram então argumentos justificativos, do tipo: as verdadeiras obras de arte são patrimônio da humanidade e devem estar na pátria onde reina a liberdade e a civilização, em detrimento dos territórios onde predominam o fanatismo e a idolatria. A tal ponto que a captura de artefatos culturais passou a ser incluída nas atas de rendição dos países conquistados pelo expansionismo napoleônico. Sobre o campo de batalha repleto de cadáveres desfilavam os comboios das peças de arte, recebidas em delírio na França, como provas de afirmação do orgulho e superioridade nacionais. 16 No Brasil, não apenas esta ExposiçãoAnthropologica, mas as próprias coleções etnográficas do Museu Nacional foram, em parte, decorrentes das guerras de Conquista com as populações indígenas, refazendo aqui o elo entre guerra, ciência e afirmação de identidade nacional. Se não havia atas de rendição instituindo a captura dos 14 Falia que o exm. sr. dr. Theophilo Ottoni dirigia á Assembléa Provincial de M inas Geraes. . . , 1882. 15 Falia com que no dia 3 de abril de 1881 abriu a 2.• sessão da 23." legislatura da Assembléa Legislativa Provincial da Bahia. . . 16 Schaer, 1993.
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objetos etnográficos é porque não há este tipo de acordo nos conflitos bélicos entre povos de civilizações diferentes - que são, em geral, combates mais violentos, sem imposição de regras mútuas. Estande 3. Entre o público e o privado
A lista dos colaboradores da Exposição revela aspecto sugestivo para o Brasil imperial: a existência de colecionadores, do tipo antiquários, espalhados por diversas províncias, cujas coleções somadas suplantavam o acervo do Museu NacionalY E neste ponto, o Brasil estava num descompasso de pelo menos dois séculos em relação à Europa, como nos mostra uma breve história dos museus em seus traços gerais. A lista começa pelos objetos pertencentes ao próprio D. Pedro II - que era sem dúvida o detentor do maior acervo ali exposto. Depois dele, mereciam destaque as coleções de seu genro, o conde d'Eu e do barão de Tefé (Antônio Luís von Hoonholtz, comandante da Marinha, cartógrafo e herói da Guerra do Paraguai). Três colecionadores tiveram seus acervos particulares exibidos em separado no interior da Exposição: Tommaso G. Bezzi, o botânico e pesquisador João Barbosa Rodrigues e Joaquim Monteiro Caminhoá (do Paraná). Também contribuíram com peças etnográficas e arqueológicas o conselheiro Carlos Monso de Assis Figueiredo, Amélia C. de Albuquerque, P. Schutel (de Santa Catarina), Miranda de Azevedo (de São Paulo), Ambrósio Leitão da Cunha (barão de Mamoré e senador pelo Amazonas), além do próprio ministro da Fazenda, o visconde de Paranaguá. Este pequeno mas significativo conjunto de colecionadores de artefatos etnográficos em pleno Brasil imperial remete à análise de fundo histórico sobre a relação entre patrimônio cultural, acervos particulares e exibições públicas, isto é, às relações entre o Estado e a esfera privada mediadas pelas instituições culturais. 18 O hábito de juntar objetos antigos expandiu-se no século XVI, quando se formam os chamados Gabinetes de Curiosidades, modelo adotado por diversos monarcas humanistas, "reis filósofos" europeus 17 18
B. Ribeiro & Velthem, 1998. Schaer, 1993.
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do Renascimento e diversos nobres mecenas. Eram peças históricas, antiguidades, mas também resultados de coletas de raridades exóticas, fósseis, corais, vegetais de países longínquos, peças de ourivesaria, animais monstruosos, artefatos etnográficos recolhidos por viajantes. . . Os soberanos colecionadores como que reconstituíam, em seus próprios gabinetes, um microcosmo de maravilhas a serem contempladas, lugar de meditação, leitura e posse simbólica do mundo em sua diversidade. No século XVII o gosto pelas curiosidades amplia-se, no âmbito de coleções domésticas: médicos, advogados, juízes, altos funcionários - uma legião vai à cata de artefatos, incluindo também obras de arte. Estes amadores eram movidos por diferentes razões: seja pelo gosto do estudo, por passatempo de juntar preciosidades ou mesmo como forma de reconhecimento social e distinção diante de um meio considerado inculto, já que seus patrimônios podiam ser visitados por convidados especiais e chamar a atenção de autoridades e pesquisadores ilustres. E foi, como se sabe, a partir de fins do século XVII e sobretudo até fins do século XVIII que se desenvolveram os Museus abertos à visitação pública, oriundos de coleções dos monarcas ou mesmo de colecionadores particulares, época em que as curiosidades dos antiquários passam a ser criticadas em nome do princípio de difusão das Luzes: era preciso que o público olhasse para poder instruir-se, num movimento de vulgarização da ciência, surgindo daí as coleções especializadas e a valorização institucional dos museus. Para a montagem da ExposiçãoAnthropologica desponta o esboço de uma rede institucional de museus etnográficos, que contribuíram com o envio de peças: o Museu Paraense, Museu Paranaense, Lyceu do Ceará, Instituto Arqueológico e Histórico de Pernambuco e Instituto Arqueológico de Alagoas. 19 Ora, apesar do Museu Nacional no Rio de Janeiro, as demais instituições eram ainda pouco consistentes: o que se percebe na época da Exposição Anthropologica Brazileira, em fins do reinado de D. Pedro II, é um quadro típico da Europa renascentista, onde o monarca era o maior colecionador com seu próprio e reservado Gabinete de Curiosidades e os colecionadores domésticos espalhavam-se sem mostrar seus acervos de forma sistemática. E não havia uma política oficial a esse respeito, mas, sobretudo, iniciativas de ocupantes de cargos pú19
L. Schwarcz, 1995.
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blicos (como o próprio imperador e o então ministro da Fazenda) que demonstravam sensibilidade para a questão. E vale assinalar que se formara um considerável público urbano ávido desses conhecimentos nos anos 1880, sobretudo na cidade imperial. A própria postura do monarca diante da montagem da Exposição é significativa. Além de ser ao mesmo tempo o principal patrono e colecionador (o que estava explícito), ele manteria uma relação estreita com o evento, gerando ambiguidades nesta indefinição de fronteiras entre o público e o privado. Em determinado momento, os organizadores do evento solicitam ao imperador peças para exibição e apoio institucional. Em outra ocasião, ao contrário, os mesmos organizadores remetem ao soberano objetos que seriam de seu interesse, revelando mais do que intercâmbio, uma certa simbiose entre o Gabinete de Curiosidades pessoal de D. Pedro II e o acervo que, exibido em público, deveria servir para ilustrar a população. 20 A Exposição Anthropologica toca em todas essas questões e é através dela que seus organizadores tentarão, deliberadamente, encaminhar soluções. Tal mostra aparece como tentativa de captar, para o domínio público, coleções que estavam sob o poder pessoal do imperador ou de colecionadores particulares, reforçando assim o Museu como instituição pública. Elogiando os doadores e ressaltando-lhes os nomes e importância, dando realce ao monarca, os organizadores com habilidade buscavam tirar do domínio privado todas aquelas preciosidades etnográficas, arqueológicas, enfim, anthropologicas. Era uma iniciativa, portanto, modernizadora, mas que indicava a decalagem do Brasil na formação de um patrimônio cultural e público em relação ao parâmetro europeu, mesmo sob a fachada de um "rei fllósofo" que ainda fazia, no fundo, seguir um modelo renascentista de mecenato. Além da estratégia de mobilização de elites ao mesmo tempo políticas, econômicas e culturais para a formação de acervos públicos, os organizadores da Exposição manifestavam a intenção de formar e mobilizar um público específico, isto é, as novas gerações de cientistas "para a grande victoria do trabalho intelligente e aperfeiçoando do que ha tanto mister a industria nacional"Y 20 Veja-se por exemplo as correspondências do diretor do Museu Nacional, Ladislau Neto, a D . Pedro II, cf. maço 189, doe. 8608, AHMIP. 21 Discurso inaugural da Exposição Anthropologica. ln: Mello Moraes Filho (dir.). Revista da Exposição. .. , p. 77.
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O objetivo era superar um quadro onde até então os viajantes, sobretudo europeus, tinham hegemonia sobre a produção intelectual em torno da arqueologia e da etnografia das populações indígenas no Brasil, formando-se para isso mão de obra especializada em meio à intelectualidade nacional, com o apoio decisivo do Estado e de outros mecenas. Mais do que artefatos de palha e madeira, a Exposição Anthropologica põe à mostra esta perspectiva moderna e nacional em relação à atividade científica, entrelaçada não com uma Romântica valorização do indígena como antepassado heroico ou fonte de inspiração poética, mas com a tradição ainda viva de uma guerra de extermínio e Conquista que continuava a se praticar sob diferentes ritmos no Brasil em fins do século XIX. A atividade científica nos Trópicos, na prática, apoiava e legitimava esta unificação étnica em nome da evolucionista homogeneização nacional e buscava, para isso, formar um patrimônio público cultural baseado na superação dessas diversidades e, ao mesmo tempo, o aval de um público mais amplo para tal projeto Este seria um dos objetivos centrais desta Exposição Anthropologica Brazileira, sob a aura da festa e da ciência. Estande 4. Escada evolucionista: a modernidade exibe o primitivo A ExposiçãoAnthropologica constituiu-se num ponto de encontro entre a vertiginosa era das grandes Exposições e as populações indígenas. Era como se o apogeu do progresso (vivido como tal pelos contemporâneos), para se reafirmar, exibisse o que era considerado mais primitivo - visão coerente com o evolucionismo predominante, onde a busca da origem das espécies (inclusive a humana) ia de par com a insaciável descoberta das novas aquisições da ciência e da civilização. Os índios apareciam como contraponto, espelho invertido e degrau inferior de uma escada que conduziria aos céus do desenvolvimento tecnológico. O Brasil vivia à sua maneira este momento febril e aí não havia atraso, mas um vanguardismo que ia no encalço das iniciativas europeias. Atualizados quanto a exibição e tecnologia - mas nem sempre no mesmo compasso de transformações culturais ou sociais. Como se sabe, a primeira Exposição Universal ocorreu em Londres, 1851. Dez anos depois a monarquia escravocrata americana organizava sua Exposição Nacional, seguida de outras em 1868, 1873 e 1875. O Brasil não se descuidou também de participar de importantes mostras internacionais, como a de Paris (1867), Viena (1873)
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e Filadélfia (1876). A participação do Brasil nas chamadas Exposições Universais caracteriwu-se pelo aspecto do exótico. Apesar dos esforços de mostrar um país que buscava a sintonia com o progresso tecnológico, a atração ficava por conta de objetos "típicos": cerâmicas, arcos e flechas indígenas. E quadros e fotos de índios chegaram a ser exibidos. 22 E é oportuno lembrar que meses antes da Exposição Anthropologica Brazileira realizara-se a Exposição de História do Brasil (1881) na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. As duas exposições, a antropológica e a histórica, pertenciam ao mesmo contexto e indicavam sugestiva repartição de campos e saberes. Chama a atenção entre os itens exibidos na Exposição Anthropologica (Sala Lund) os certificados de participação dos cientistas brasileiros João Batista Lacerda e José Rodrigues Peixoto numa Exposição Antropológica de Paris de 1878. E na Sala Anchieta colocaram as medalhas de participação neste mesmo evento. Porque afinal os organizadores expuseram-se também nas vitrines? A resposta não é difícil de achar: para buscar a legitimidade da Cidade-Luz como precursora de evento semelhante. Entretanto, é preciso esclarecer que não houve propriamente uma Exposição Antropológica em Paris em 1878 mas, sim, uma Exposição Universal, com uma seção de Antropologia. E tal seção teve tamanha repercussão que o diretor do Laboratório de Antropologia do Muséum d'Histoire Naturelle, Ernst Hamy, obteve no mesmo ano a criação do Musée d'Etnographie du Trocadéro (posteriormente rebatizado de Musée de I'Homme), utilizando os locais do prédio e incorporando boa parte dos objetos expostos. 23 Percebe-se logo que aí estava a fonte onde Ladislau Neto e Lacerda foram beber e tentaram repetir o exemplo passo a passo: desde a criação de um laboratório de antropologia do Museu, passando por uma exposição de impacto que resultaria no reforço do Museu como instituição pública. Entretanto, a inspiração dos brasileiros não estava estritamente no campo da museologia. Sabe-se que no ]ardin d'Acclimatation, arredores de Paris, funcionou um verdadeiro "wo humano" entre 1877 e 1893, onde seres humanos classificados como primitivos eram exibidos para a curiosidade do público europeu. Foram centenas de pessoas, na maioria oriundas da África e do oceano Pacífico, que ficaram por detrás de cercados - numa área onde havia também exposição de 22 23
L. Schwarcz, 1999. N . Dias, 1991
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animais- com roupas típicas, em habitat original reconstruído, sendo alvo de curiosidade e riso da população europeia que até jogava alimentos e bijuterias para entretê-los. Centenas de milhares de visitantes por ano confirmaram o sucesso da iniciativa que reproduzia estereótipos e preconceitos que ajudaram a reforçar, no grande público, a ideia de superioridade racial e civilizatória. 24 De passagem por Paris em 1878 (ano de visitação recorde no ]ardin d'Acclimatation), os brasileiros Lacerda e Peixoto, porém, não exibiram o bilhete de entrada deste parque na Exposição Anthropologica Brazileira . .. Entretanto, a versão tropical do "zoo humano" estava também fadada ao sucesso. O verbo se faria carne e o público carioca, torpedeado nas últimas décadas de imagens, literatura e alegorias indianistas, poderia ver de perto os espécimes mais "atrasados" do planeta. Stand 5. Curiosidades fora dos gabinetes E no dia 29 de julho, um sábado, inaugura-se a Exposição Anthropologica Brazileira com grande afluência de público. Era como se todas as teias até então entrelaçadas (intelectuais, administrativas, econômicas ... ) se juntassem para formar a tela de exibição, repartida em Salas. O próprio D. Pedro II, além de patrono maior, foi o visitante número 1, percorrendo a mostra com grande curiosidade, postura, aliás, que não foi apenas do monarca. É conhecida a imagem didática onde aparecem, em fila indiana, as figuras representando as transformações evolutivas da espécie humana, começando pelos símios e chegando ao homo sapiens. No dia de inauguração do evento era como se um desses "elos" da fila ganhasse vida e aparecesse aos olhos dos visitantes da Exposição, que posicionava frente a frente os habitantes mais "selvagens" do território e o habitante mais elevado na hierarquia da sociedade imperial, isto é, o próprio imperador. Antes de conhecer a mostra, entretanto, os presentes tiveram de ouvir o discurso de abertura do diretor do Museu, Ladislau Neto. Além dos protocolares elogios e frases retumbantes, a fala do organizador foi precisa em seus objetivos. "Este é o certamen mais nacional que as sciencias e as letras poderiam, comgratuladas, imaginar e realizar no fito de soerguer o 24
Sobre os zoológicos humanos na França, Guyolat, 2000. Mello Moraes Filho (dir.). Revista da ExposiçãoAnthopologica Brazileira, . . . 1882. Org. Regina Horta Duarte. 25
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Imperio do Brazil ao nivel da intellectualidade universal", exclamaria o diretor em meio a aplausos. Sintetizava, assim, a preocupação de soerguimento nacional (leia-se: tirar o atraso) através da atividade científica e numa Exposição que, no apogeu das exposições universais, visava não só articular internamente identidade e tradição para a sociedade brasileira, mas atualizá-la no quadro internacional do progresso. Ou seja, o já velho sonho de tornar o Brasil uma nação civilizada à maneira europeia ou norte-americana. Em seguida, o cientista afirmaria diante das demais autoridades que o evento pretendia "ser o grande jubileu da anthropologia brazileira". E aqui reforçava em público o enunciado de que tal Exposição serviria para legitimar a Antropologia como disciplina no país. Depois de enunciados os princípios do almejado projeto nacional-antropológico, os visitantes estavam liberados para conhecer a mostra, dividida em oito Salas que expunham 780 objetos, no antigo prédio do Museu Nacional, no Campo de Santana. 26 A repartição das Salas buscava ao mesmo tempo ilustrar, saciar a curiosidade e prestar uma homenagem aos que seriam os paisfundadores da almejada Anthropologia no Brazil, inventando assim uma tradição para esta Disciplina. As Salas eram divididas em etnografia, arqueologia e antropologia - as duas primeiras seriam as fontes formadoras da terceira. Na Sala Vaz de Caminha, que homenageava o autor do primeiro texto escrito sobre o território brasileiro (e também, nesta perspectiva, o primeiro relato etnográfico), havia quarenta itens expostos, dentro da classificação justamente de etnografia. Eram arcos, flechas, lanças, zarabatanas, enfim, diversos instrumentos de caça e pesca, além dos já citados troféus de guerra contemporâneos. Passando para a Sala Alexandre Rodrigues Ferreira os visitantes entravam no espaço nobre do evento. Os cento e treze artefatos aí expostos compunham boa parte do próprio Gabinete de Curiosidades do imperador e englobavam dezenas de tribos das diversas regiões do Brasil, da Amazônia ao Sul. Havia ainda aquarelas feitas pela expedição Rodrigues Ferreira, que entre 1783 e 1792 percorrera as capitanias do GrãoPará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, a primeira iniciativa de envergadura nesse sentido promovida pela Coroa portuguesa na região amazônica. 26 Cf. a monografia de M . H . Cardoso de Oliveira, trabalho que usamos como referência em diversos partes deste texto. Consultar também, do Museu Nacional, Guia da Exposição. .. , 1882.
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Encontrava-se aí também uma figura de gesso representando um índio Xerente. A exibição de formas humanas em reproduções "realistas" era a última palavra em museologia etnográfica, como já demonstrara a Galeria do Muséum d'Histoire Naturelle formada nos anos 1850 em Paris - fosse pelo desenho-científico, pela confecção de modelos e manequins, como também pela fotografia. E a Exposição Anthropologica Brazileira incorporaria essas últimas novidades, como que para compensar ou mascarar a decalagem na formação de uma esfera pública cultural. Por exemplo: no começo de 1882 estivera no Rio de Janeiro um grupo de índios Xerente. O escultor Despres fez uma figura moldada em gesso a partir do modelo vivo (o indígena José) que seria destaque nesta Sala da mostra. Cabe lembrar que no mesmo ano era fundado em Paris um dos mais populares museus de cera, o Grévin. E na cidade imperial brasileira as figuras moldadas e exibidas eram de índios - que representavam uma tradicional e primitiva população ao mesmo tempo que eram, vivos, alvos de preconceito, vistos como obstáculo à civilização e ao progresso nacional. É interessante anotar que havia uma Sala Jean de Léry, o escritor francês do século XVI que seria considerado no século XX como um dos paradigmas da moderna antropologia por Claude Lévi-Strauss. Nesta parte o público poderia ver trinta e nove peças representando cerâmicas e ornamentos womorfos da região de Santarém. E duzentos e sete artefatos de cerâmica compunham a Sala Charles Harrt, pesquisador norte-americano que empreendera importantes expedições científicas pelo interior do Brasil (faleceu seis anos antes do evento). A maioria dos objetos neste espaço, entretanto, foi recolhida pelos próprios organizadores da Exposição nos meses que antecederam a mostra- que serviu, como se vê, também como pretexto para o empreendimento de mais uma expedição científica na Amazônia. A Sala Peter Lund estava repleta com cento e quinze restos humanos: crânios, ossos avulsos e esqueletos completos. (Lund fora justamente o pesquisador dinamarquês que descobrira os vestígios arqueológicos do famoso "Homem da Lagoa Santa" em Minas Gerais nos anos 1840, sendo considerado o primeiro arqueólogo do Brasil.) Os visitantes da Exposição poderiam contemplar o esqueleto do capitão Amaro, da tribo Turuará, cujas circunstâncias da morte não foram esclarecidas. Havia ossos de Xavantes, Botocudos, Tembés e ainda outros encontrados no Rio de Janeiro, no bairro da ilha do Governador e na cidade de Macaé. Dedicada à iconografia, a Sala Anchieta abrigava manuscritos do próprio jesuíta espanhol que no século XVI dera impulso a um
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amplo trabalho de catequese da Igreja católica com as populações indígenas, inclusive Aimorés. Mas esta era a seção que incorporava as mais novas tendências museográficas de expor imagens etnográficas: pinturas, estampas, aquarelas, gravações, desenhos a craiom, medalhas e fotografias. Três séculos depois dos Autos teatrais de Anchieta as representações simbólicas ainda envolviam diretamente os índios. A captura da imagem indígena deu-se através de uma nova tecnologia em expansão. Fotografias foram feitas especialmente para a Exposição Anthropologica. E não eram inocentes reproduções do "real", mas resultado do que podemos chamar de expedições fotográficas de "caça" ao índio e de curiosas composições de imagem. O engenheiro Castro Meneses e o fotógrafo Joaquim Ayres partiram para o rio Doce em princípios de 1882 a fim de obter fotos dos famosos Botocudos para a Exposição, resultando em pelo menos seis imagens em preto e branco, ampliadas em formato 21,5cm x 27cm, exibidas nesta Sala Anchieta. 27
Figura 54 27 Arquivo
Iconográfico do IHGB, códices IGlOO até IGlO e Museu Nacional,
Guia da Exposição . .. As referidas fotos encontram-se em precário estado de conservação.
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A primeira dessas fotos (Figura 54) tinha como legenda "Correria de Selvagens Botucudos", numa referência ao nomadismo e à tradição guerreira. Entretanto, a imagem mostra algo bem diverso: um grupo de índios parado, posando para a foto, alguns vestidos e todos com ar pacífico e resignado diante da câmara fotográfica. A composição imposta pelo autor da foto resultava uma atitude estática, onde os índios fotografados eram enquadrados pelas lentes e por toda carga civilizatória que elas continham. Mas as próprias expressões e poses forjadas pelos mesmos índios contrastam com a lenda de ferocidade e exibem a situação de opressão e penúria em que viviam, desmentindo a legenda escrita e desarticulando as intenções dos autores das fotos. O que parecia estar em jogo com a elaboração dessas fotografias, mais do que documentos científicos realistas, era a teatralização de uma guerra entre o progresso e a barbárie. Só que, neste caso das fotos (diferente dos utensílios de guerra e restos humanos apresentados na sala Vaz de Caminha), fantasiava-se um potencial guerreiro que não se desenvolvia mais entre os índios enfocados pelas lentes. Para realçar o contraste civilização/barbárie, a Exposição destacava o conflito com os índios, mas em bases diferentes: às vezes calcada em violências que ainda ocorriam, em outras inventando confrontos que já não cabiam de forma tão nítida entre índios cerceados. Tal tendência fica ainda mais nítida em outra fotografia da mesma séria com a legenda ''Artefactos de que o Engenheiro Castro Menezes e o photografpho Ayres fizerão acquizição no Aldeamento dos Botocudos no Mutum e destinados a Exposição Anthropologica" (IG103). Vê-se na imagem diversos artefatos indígenas como arcos, flechas, tacapes, cestos, artesanatos de palha e corda devidamente arrumados para a foto e chamam a atenção no conjunto quatro caveiras e esqueletos misturados aos objetos. Tais restos humanos que supostamente serviriam apenas para um sisudo exame antropométrico ganham ali, em meio às armas pontiagudas, uma extravagante dimensão de ferocidade, sugerindo combates, rituais macabros, canibalismo e sacrifícios humanos (os chamados Botocudos nunca fizeram, ao que se saiba, este gênero de ritual com corpos dos adversários), mais uma vez marcando, de forma espetacular, o contraste entre a jung/e e a cidade civilizada. Sugestivas são as legendas das fotos do mesmo conjunto, elaboradas pelos fotógrafos: "Casa à margem Sul onde se refugia o Diretor dos Botocudos" (IG102); e "O intérprete refugiando-se dos Botocudos
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para a margem sul" (IG105). Nestes ícones permanece o contraste entre as legendas e as imagens estampadas. Nas duas fotografias veem-se, respectivamente, uma tranquila casa em meio à vegetação e duas pessoas numa margem do rio olhando para um grupo (provavelmente de índios) na outra margem, fotografia esta tirada à distância. A pergunta é simples: se havia necessidade de tanto refúgio, como os índios puderam então ser pacificamente fotografados na mesma ocasião? Outras fotos da mesma série (IG101 e IG104) mostravam uma canoa dos Botocudos e uma visão geral do Aldeamento, com índios também posando para a câmara. Desse modo destaca-se, ainda no período imperial, esta forma de aproximação sensacionalista sobre os índios por meio de fotografia, isto é, que visava exacerbar sensações e chamar atenção para a condição exótica e atrair interesse do público urbano, distorcendo as tristes condições de vida dos índios enfocados. Um dos conjuntos mais heterogêneos da mostra estava na Sala Gabriel Soares de Sousa, nome do autor do século XVI que escreveu uma das mais antigas descrições sobre o território brasileiro. Eram cento e sessenta e dois itens, incluindo artes plumárias, adornos, tecidos, vestes e coleções arqueológicas. Finalmente a Sala Von Martius onde, em quatro armários, estavam objetos pré-colombianos oriundos do Peru e Bolívia (pertencentes ao acervo pessoal de D . Pedro II), com a intenção de permitir uma comparação com o Brasil. Expunham-se aí também artefatos de palha como balaios, esteiras, tipitis, muitos dos quais já incorporados pelas populações urbanas e rurais (não índias). Von Martius fora o cientista viajante que, além de propor receitas para a escrita da História do Brasil, criou o primeiro sistema de classificação linguística para as populações indígenas brasileiras, que serve de base às atuais classificações. Nesse sentido, os anthropologos brazileiros dos anos 1870-1880, apesar da marca do determinismo biológico em suas interpretações, aparecem como formadores de uma Disciplina que não era apenas extensão da atividade médica. Arqueologia, cerâmicas zoomorfas, imagens, estudos etnográficos, tudo ligado à uma visão de mundo evolucionista: a Antropologia que firmava-se no Brasil não se apresentava como exclusivamente "Física". Mas ainda faltava a atração principal da Exposição: os índios em carne e osso (vivos . . .).
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Stand 6. Vitrines: o lugar dos índios numa nação civilizada O grande público queria ver mesmo os índios ao vivo e a cores. Ainda mais tratando-se dos Botocudos, cuja fama de ferocidade e invencibilidade atravessava mais de três séculos. É o que transparece na visão irônica de uma testemunha, o jornalista italiano Angelo Agostini, que preferiu visitar a Exposição no domingo dia 30, a fim de evitar os discursos de inauguração: O Museu é tomado de assalto:[ ... ]. Tanto interesse pela sciencia espanta-me; mas eu acabo por verificar que toda essa curiosidade dos visitantes é apenas para ver os índios. Com effeito, apenas entrados, percorrem, olham, caçam. Nada de índio, além de alguns de papelão, que não satisfazem totalmente a cubiça publica.28 Agostini fez uma série de caricaturas (Figuras 55 e 56) onde satirizava D. Pedro II e seu envolvimento com o exotismo etnográfico e ao mesmo tempo era preconceituoso e debochado em relação aos índios, reproduzindo e realçando estereótipos de canibalismo, feiúra e inferioridade.
Figura 55
28
Figura 56
Revista !Ilustrada, Rio de Janeiro, n.0 310, 1882, p. 2. Também a Gazeta de Noticias e o Jornal do Commercio noticiaram a Exposição confirmando o interesse principal dos visitantes e da própria imprensa em torno dos índios aí exibidos.
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Tamanho foi o tumulto da visitação que os índios tiveram de ser retirados. Os organizadores sugeriram que os Botocudos fossem exibidos no ~artel do Corpo de Bombeiros, ideia descartada. E os índios acabaram expostos na própria ~inta de São Cristóvão, o que ocorreu no domingo 6 de agosto das llh às 15h - inaugurando, talvez, a visitação pública em torno da etnografia daquele lugar que era a morada do monarca. Ainda em São Cristóvão, no dia 20, os mesmos índios fariam uma sessão especial de cantos e danças para seleto grupo de estudiosos e cortesãos. Os Botocudos, então, eram vistos como uma espécie de elo perdido ou de misteriosa permanência do homem pré-histórico nos tempos ascendentes do progresso e da civilização - e como tal eram considerados precioso manancial de pesquisas. 29 Mais especificamente, construi-se um elo "cientificamente comprovado" que pretendia descrever estas tribos de Botocudos como últimos remanescentes do chamado "Homem da Lagoa Santa", isto é, dos até então mais antigos vestígios pré-históricos da presença humana no território brasileiro, tese bastante difundida e aceita pelas instituições nacionais e internacionais durante muito tempo. Os cientistas tiravam suas conclusões. Lacerda, em texto incluído na Revista da Exposição . .. , trata da morfologia craniana do homem dos sambaquis e conclui pela semelhança entre os Botocudos e os mais antigos habitantes do litoral brasileiro de que se tem notícia: Ora, o Botocudo é actualmente uma das raças indigenas mais brutalizadas do país. O homem dos sambaquis deveria, portanto, ser um dos mais infimos representantes da mesma especie nos tempos prehistoricos. Tais conclusões tinham outras bases, que seriam mais claramente enunciadas por outro homem de letras que debruçou-se sobre os Botocudos durante esta Exposição Antropológica de 1882. Alexandre Melo de Morais Filho foi um dos pioneiros nos estudos folclóricos no Brasil, deixando também significativa obra literária, de estudos históricos e destacada atividade jornalística. Baiano, formado em Medicina na Bélgica, Melo de Morais Filho fez sua descrição sobre os Botocudos que viu na Exposição: 29
Nesta perspectiva ver, entre outros, os trabalhos de Lacerda & Peixoto
(1876) e Rey (1880).
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[... ] o olhar é sem lume, os músculos da face sem mobilidade, o que mais accentua a ferocidade cruel dessas physionomias barbaras. Ou seja, era o olhar do pesquisador que via selvageria, barbaridade e crueldade, olhar preconceitual que acabava predominando e determinando as conclusões ditas científicas. Não ocorreu a esse estudioso a percepção de que esses índios, a centenas de quilômetros de suas terras, no meio de uma civilização estranha e hostil, exibidos como curiosidade wológica, dificilmente poderiam apresentar expressão cordial. Melo de Morais- cujas observações e registros folclóricos ainda hoje guardam interesse - fez um rápido estudo do "Dialecto ds Botocudos" e acreditava que eles falavam uma língua tupi. Caíra de pára-quedas na Anthropologia indígena e foi apenas mais um a se aproveitar da moda em torno dos Botocudos no afã da mostra. Por fim, formou-se uma comitiva de sábios, ao mesmo tempo junta médica, que cercou os Botocudos em exposição. Estavam lá o diretor do Museu Nacional, Ladislau Neto, o subdiretor Lacerda, Pizarro, Melo de Morais Filho e um certo major França Leite, chamado de "indianólogo" e que recolhera um vocabulário entre os Botocudos do aldeamento do Mutum. E "por um escrupulo todo scientifico", o grupo acercou-se dos índios e passou a conferir, diante das fontes originais, as palavras do vocabulário em questão. Esta cena - os Botocudos bestializados, em exposição e cercados por homens de letras, das ciências e das armas - era como uma alegoria da história do contato desses índios no Brasil do século XIX. Alegoria que, evidentemente, não levava em conta estratégias de sobrevivência e resistência desses índios. Os próprios organizadores admitiam que optaram, na maior parte da mostra, por não identificar de maneira precisa as identidades étnicas aí representadas através de artefatos, agrupando "de modo mui conciso, sem nomes indigenas e por grupo, os objetos que constituem a E. A [Exposição Antropológica]". 30 O que contribuiu para divulgar uma imagem homogeneizada dos índios, esmaecendo suas identidades e diferenças. Ao contrário, o nome dos colecionadores apareceu sempre bem-definido. Diante da incorporação à nacionalidade os índios iam perdendo, nos registros científicos de divulgação, suas especificidades culturais. 30
Museu Nacional. Guia da Exposição . . ., 1882, p. 5.
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Havia outras formas de presença indígena no espaço da Exposição Anthropologica Brazileira: um dos guardas do local era Anhorô, índio Cayapó, com vinte anos, que podia ser visto ao vivo exercendo suas funções e num quadro a óleo com seu busto, pintado por Décio Vilares e pendurado na Sala Anchieta. Outro guarda que servia aí era Chamocôco, também Cayapó, vinte anos, aprendiz de artilheiro da Fortaleza de São João, no Rio de Janeiro, fotografado e com quadro a óleo pintado por F. A. de Figueiredo. Eram dois índios presentes de modo virtual e corporal e que, mais uma vez, sinalizam a presença de numerosos índios destribalizados, mas ainda com identidade étnica, exercendo diferentes ofícios nas cidades do Brasil imperial. Estes eram os lugares reservados aos índios nesta Exposição chamada de brasileira: ao mesmo tempo objeto de curiosidade exótica, estética e científica, mão de obra e inimigos da civilização. Stand 7. Uma janela entre o passado e o futuro Teriam os objetivos pedagógicos da Exposição Anthropologica Brazileira se diluído diante da curiosidade exacerbada do grande público que queria ver acima de tudo os índios em exibição? Ao contrário, podemos afirmar que tais objetivos foram plenamente alcançados, uma vez que os índios foram expostos como espelho invertido da civilização, elos perdidos em via de extinção, legitimando assim seu desaparecimento como condição para se formar uma nação moderna. Em outros aspectos, as tentativas dos organizadores não foram tão bem-sucedidas. A pretensão de ampliar a iniciativa, realizando uma Exposição Antropológica Internacional Americana, no Rio de Janeiro, sob os auspícios do monarca e mecenas, não foi adiante, travada por intrigas e disputas de poder em torno da atividade intelectualY Ainda seguindo os passos dos colegas franceses, os cientistas brasileiros pretendiam, com esta nova e ainda mais grandiosa mostra, construir um prédio que depois ficaria sendo a própria sede do Museu Nacional. Mal poderiam imaginar que os aposentos onde o "rei filósofo" acalentava seu Gabinete de Curiosidades é que se transformariam no espaço do Museu - embora o Louvre tivesse passado por 31
Maço 187, Doe. 8508, POB, AHMIP.
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processo semelhante. Nem a ironia de um Agostini poderia prever que os Botocudos tomariam o lugar do imperador. Os Botocudos expostos foram levados de volta ao rio Doce em setembro de 1882, finda a exibição. Mas quem viu os Botocudos afinal e o que viram neles? O público urbano de uma sociedade complexa - de 1882 e ainda mais a de hoje - em geral procura nos índios, ávido de curiosidade, seu próprio espelho invertido, vê os índios revestidos de utopias naturalistas ou primitivismos exóticos ou mesmo de uma certa inferioridade animal. O desaparecimento dos índios, previsto com rigorosa cientificidade em fins do século XIX, não se verificou - ocorrendo recentemente, ao contrário, crescimento demográfico em populações que se transformam histórica e culturalmente. Convém assinalar que também os habitantes do Rio de Janeiro, por exemplo, da época da E xposiçãoAnthropologica se distinguem dos atuais. E há grupos e indivíduos indígenas que também mudaram e aprendem a desenvolver estratégias de comportamentos relativos à produção de sua imagem, atuando e interferindo diante dos meios de comunicação de massa, da indústria cultural e até dos próprios museus. 32 Mais de um século depois desse evento (que buscava exibir a demarcação entre o primitivo e o moderno) permanece a questão: estamos muito distantes? Lembramo-nos dos astronautas do ftlme 2001, uma odisseia no espaço que se mostraram tão perplexos quanto os homens pré-históricos diante da pedra indecifrável que liga as origens ao futuro. 32 J. Clifford. Muséologie et contre-histoire.. . e J. R. Bessa Freire. A descoberta do museu pelos índios . ..
III KRENAK, ALVORECER DO "POVO NOVO"
E agora, deu por fim, nós ganhou essas terra toda, graças a Deus, mas os meus povo véio antigo tá tudo morto, agora só tá os novo. [... ] E .. . nos toleremos isso tudo e agora nós ganhamos essa terra, é uma esperança muito boa. Esperança pra eles, pra eles trabaiá, manter, casar, possuir família ... -
TCHARN (MARIA SôNIA KRENAK),
em 1998.
Capítulo 10
DE BOTOCUDO A KRENAK: CAMINHOS, PONTES E MUROS
Em plena Bel/e Époque, raiar do século XX e crescente modernização urbana, grupos de Botocudos mantinham aspectos importantes de seus padrões culturais, continuavam a resistir e ocupar parcelas do território em Minas Gerais e Espírito Santo. O cerco apertava em torno de tais índios, que se encontravam praticamente encurralados. Confrontos entre colonos e índios sucediam-se, sangrentos por vezes, marcando mais uma entre as heranças da monarquia na alvorada da República no Brasil. Neste período de transformações históricas, temos as últimas fotografias mostrando os Botocudos com aparência "selvagem": daí por diante as fotos só os mostrariam com roupas, para destacar a pretendida incorporação à nacionalidade e à civilização ocidental. Esta mutação de imagem foi rápida: em cerca de dois anos, entre 1909 e 1911, os índios retratados nus passaram a figurar definitivamente vestidos. A série de fotos de Botocudos tiradas pelo então jovem Walter Garbe em julho de 1909 em Cachoeiro de Santa Leopoldina (atual município de Santa Leopoldina, na região serrana do Espírito Santo) é marcante por várias razões. 1 Pela nitidez, qualidade e quantidade das imagens, pelas poses dos retratados e por representar uma das últimas fotos de um grupo de Botocudos ao mesmo tempo ambientados
1
Na parte de baixo de cada foto, nas próprias imagens, consta em letra manuscrita da época a data (13 de julho de 1909), a localidade (Cachoeiro de Santa Leopoldina) e o nome do fotógrafo, Walter Garbe. Cópias de segunda geração dessas fotografias encontram-se na Divisão de Iconografia da FBN. 355
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em floresta, sem roupas e com botoques, algumas vezes em instantâneos, em outras em posições mais ensaiadas, mas em geral com descontração, conjunto de características que traz um ar de verossimilhança e originalidade a tais imagens. Walter Garbe atuou como fotógrafo de expedições científicas (etnográficas, zoológicas e botânicas) até meados da década de 1930 no Brasil. Era filho de Ernesto Garbe, morador de Piracicaba, interior de São Paulo, que coletava animais vivos para zoológicos europeus, até ser contratado em 1900 pelo diretor do Museu Paulista, o célebre von Ihering, como pesquisador viajante para aumentar as coleções da instituição. 2 Walter viajou inicialmente acompanhando seu pai: esteve na floresta amazônica em 1904 e apresentou fotos na Exposição Nacional de 1908. Em 1929 seria ele próprio contratado como fotógrafo pelo Museu Paulista. As fotos até então conhecidas dos Botocudos (entre as quais os daguerreótipos de 1844, a série de Marc Ferrez na Bahia e outros retratos na Exposição Antropológica Brasileira de 1882) estavam marcadas, em suas concepções, pela Antropologia Física e/ou pela exibição do exotismo. Eram composições onde os índios apareciam mais rigidamente enquadrados. Mas o jovem Walter Garbe (que embora acompanhasse seu pai não pertencia formalmente a instituição alguma em 1909) neste raiar do século XX se despojou, em suas lentes, do rigor descritivo e etnográfico característico do século XIX, não estava imbuído de nenhuma missão governamental e estabeleceu alguma empatia com os índios fotografados, trazendo para suas fotos um certo ar de familiaridade e informalidade tão ao gosto do intimismo e da privacidade modernos. Buscava, também, compor determinada imagem desses índios através do registro visual. Houve também interesse comercial: as fotografias foram transformadas em cartões postais, vendidos no mercado internacional. A série de fotos dos Botocudos feitas por Walter Garbe pode ser lida numa tripla dimensão, segundo o olhar que proponho aqui:
a) "cordialidade" dos índios; b) cultura e vida cotidiana; c) contatos com os não índios. 2 Informações biográficas sobre Ernesto e Walter Garbe nos endereços: e .
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Qyanto ao aspecto inicial, estas são possivelmente as primeiras fotografias onde tais índios aparecem com sorriso, ainda que discreto (Figuras 57, 60 e 61). Não olham para a câmara como se estivessem engessados, nem demonstram rancor ou desconforto. Os olhares dos fotografados são límpidos e diretos (Figura 58). Tal impressão é reforçada pelos instantâneos, provavelmente propiciados pela agilidade técnica da aparelhagem, que dispensava longas esperas e permitia colher flagrantes e poses informais de um grupo mais numeroso, como os que estavam sentados num tronco abatido (Figura 59). Aqui não importavam medidas antropométricas e aparecia até uma curiosidade descontraída mas intensa dos sujeitos fotografados, cujos olhares convergiam para as lentes, sem que seus corpos alterassem as posições de descanso em que se encontravam (Figura 59). Eram, pelo menos naquele instante fixado, donos de seus corpos e vontades. A afetividade aparece no gesto do índio afagando a cabeça de uma índia mais velha, numa espécie de cafuné, imagem mais nitidamente produzida a partir de pose ensaiada, mas à qual os índios parecem ter-se submetido de boa vontade e até com certa diversão, a julgar pelas expressões faciais da foto, na qual há discreto sorriso no jovem (Figura 60). Sob tal perspectiva, é interessante ver o mesmo sorriso aflorando nos rostos de pelo menos quatro das dez crianças agrupadas para foto (Figura 61), encostadas em duas árvores altas (das quais só se vê parte dos troncos) e rodeadas de folhas ao fundo e de vegetação rasteira no chão. Estaria o fotógrafo fazendo alguma brincadeira para que elas rissem? A imagem deixa entrever a penúria infantil, magreza e barrigas inchadas pela verminose. Mas o ar tranquilo desse grupo de crianças contrasta com os relatos trágicos de rapto, morte e escravização de curucas das décadas anteriores, violências que ainda ocorreriam nos anos seguintes. Naquele instante, eternizados na foto, os jovens compunham com suas presenças uma imagem de leveza, emoldurados pela floresta, testemunhas de duras condições, sementes incertas, toque de esperança para sobrevivência futura. Note-se que tais imagens foram colhidas num período de tensões e violências contra esses índios, para os quais contribuía, entre outros, o próprio diretor do Museu Paulista e patrocinador do pai do fotógrafo, que pregava naquele momento o extermínio dos índios que se opusessem ao progresso nacional, como se verá a seguir. Mas as fotos, em certa medida, contrariavam ou não se enquadravam totalmente nas
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intenções deste dirigente institucional que, entretanto, trataria de usá-las como referência. Aqui entramos na segunda dimensão proposta para tais ícones, ou seja, a de registro etnográfico, sob certas feições. Nesses casos aparecem as fotos mais nitidamente produzidas, buscando recriar cenas do cotidiano e dos costumes daquele grupo. Se no conjunto anterior os fotografados são mais senhores de suas poses, neste, eles aparecem mais conduzidos, embora referenciados em seus próprios comportamentos. A foto do casal com uma criança (Figura 62) mistura os dois registros: a intenção do fotógrafo parecia ser a de registrar a cena tradicional (presente nas pinturas de Debret e Wied-Neuwied) da marcha de uma família de Botocudos, mas a criança parece ter esperneado ou escorregado, a jovem mãe (com botoque nos lábios) tentando segurá-la se interpõe na frente do homem (com botoques nas orelhas) que portava ornamento na cabeça e armas na mão. De qualquer maneira, ainda é possível ver o modo como as mulheres carregavam seus fardos através de uma faixa presa à testa, anotado já pelos viajantes do século XIX. Talvez o jovem Walter Garbe não tenha sido tão bem-sucedido no rigor que até então vigorava nas fotos etnográficas, mas suas imagens, em compensação, trazem um certo ar de cordialidade, tão negado a este grupo indígena em outros registros. O uso de arco e flecha para atirar, tão antigo nesta e nas demais tribos, presente com ares de ferocidade desde os primeiros relatos do século XVI aos romances do século XIX, aparece num gesto vigoroso e igualmente posado, quando o mais velho aponta para um possível alvo no alto e, a seu lado, o mais jovem tenta enxergar, colocando a mão na vista, cercados por densa vegetação (Figura 63). Diferente da cena de caça composta por Rugendas um século antes, onde a mão do pintor interferia de modo mais acentuado no tom romântico e de denúncia, na tristeza dos corpos helênicos, temos nesta foto, ainda que também conduzida por seu autor, os movimentos corporais dos índios sem maiores idealizações. Igualmente sugestiva é a cena da família (um casal e duas crianças) sob um abrigo de folhas e tocando duas longas flautas de bambu, conhecidas como flautas de nariz, por serem tocadas com o ar das narinas também (Figura 64). Os atuais Krenak desconhecem tal instrumento e parecem ter sabido dele por essa foto, segundo pude constatar. Mas na vitrine dedicada aos Botocudos no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, ainda há um exemplar desse tipo de flauta em
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exibição. Uma das crianças está com o rosto virado para o lado direito, de perfil para a lente, a outra olha para o lado esquerdo, a cara do bebê no colo da mulher não aparece, e esta não encara a câmara, gestos que quebram a rigidez artificial das poses e reforçam o ar de realismo da cena que foi, evidentemente, preparada, pelo menos no que se refere ao uso da flauta. Estes olhares díspares dos fotografados dão a eles uma certa expressão de autonomia diante da captura de suas imagens. Uma das fotos mais propícia a usos diversos para os discursos civilizatórios e depreciativos a tais índios é aquela em que eles aparecem, em trio, acendendo uma fogueira mediante o tradicional recurso de fricção das madeiras (Figura 65). Os três jovens estão acocorados e parecem familiarizados com a tarefa (o da esquerda está sorrindo). Deste conjunto, esta talvez fosse a imagem que mais servisse para reforçar, na mentalidade daquele contexto, o contraste entre o progresso tecnológico e as características "primitivas" de tais índios e sugerir a incapacidade destes em acompanhar as novas conquistas da civilização, tão arraigados estariam em seus padrões tradicionais. Ainda vigorava nos meios de difusão, científica ou não, a ligação evolucionista entre os Botocudos e os homens pré-históricos. A associação entre esses índios e a natureza, presente em várias das fotos, é realçada na imagem em que cinco índios aparecem junto das raízes gigantescas de uma árvore, seus corpos confundidos com elas pela cor, forma e postura curva e retesada, de quem está atento à caça (Figura 66). A terceira percepção, isto é, o contato com os não índios, aparece de modo menos ostensivo nesta série de fotos. A imagem predominante, composta em estilo realista, é a de índios "selvagens", isto é, vivendo na selva, nus e aparentemente felizes, com seus ornamentos e utensílios, mantendo seus costumes tradicionais. Mas tais tribos, como se sabe, tinham já uma experiência antiga e dolorosa de contato. No flagrante em que os índios aparecem sob uma tenda de lona ou pano (Figura 67), sem estarem posando, percebe-se um aspecto da consequência desta convivência, nas próprias moradias e mesmo no caráter provisório delas, acentuado pela perda de territórios. Mas o contato com os não índios vem retratado de forma acentuada (Figura 68) quando eles se aglomeram em torno de um homem branco que distribuía brindes. A maior parte dos índios está de costas para a câmara e o epicentro da figura, ao alto, é o homem de chapéu que estende a mão ofertando os pequenos presentes, cercado pelos
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índios que parecem ávidos de recebê-los. No canto esquerdo um garotinho, magro, enorme barriga de verme, olha a cena com interesse, mas alijado, pois com sua pequena estatura não poderia entrar na disputa pelas ofertas. E no centro do grupo, de costas para o fotógrafo, vê-se uma mulher de extrema magreza, esquelética, indicando fome e possíveis doenças. Esta mulher não aparece nas demais imagens da série, mas inftltrou-se entre os que disputavam os brindes e assim seu corpo maltratado e famélico, embora não destacado pelo fotógrafo (que focava o distribuidor dos presentes), inftltra-se também na fotografia. Essas fotos de Walter Garbe dos Botocudos, portanto, podem ser vistas em dimensões variadas: múltiplas e até contraditórias. Por um lado, representam humanização desses índios, retirando-lhes o ar de sanguinários ou tolos com que foram predominantemente vistos no século XIX. Os próprios fotografados se encarregam de criar tais frestas nas imagens, com seus gestos e expressões, transformando-se em sujeitos com suas poses, ensaiadas ou não. Por outro lado, as mesmas fotografias compõem uma certa visão idealizada de "selvagens" intactos em seu habitat. De qualquer modo, tais ícones propiciam um exercício de imaginação e transposição cronológica, como se fossem imagens dos séculos anteriores, registrando reações, comportamentos e feições de índios que até então não tinham sido enfocados deste modo pela fotografia. São fotos que representam o fim de uma era de produção de imagens e das condições de vida desses povos. Pode-se dizer que são as últimas fotos dos Botocudos, que antecederam as primeiras imagens dos Krenak. Existem três versões para identificar os índios retratados nessas fotografias de Garbe. Uma, gerada pela tradição oral e depois registrada por escrito, indica que eles são elos de memória visual ainda presente entre os Krenak, que afirmam reconhecer neles alguns de seus parentes, como os chefes Muim e Krembá, do subgrupo Gutkrak, dos quais narram suas trágicas histórias de vida e identificam seus atuais descendentes (Figura 69). 3 Cabe indagar: seria uma apropriação simbólica, pelos atuais Krenak, que atribuem a esses índios fotografados nomes e identidades de seus próprios antepassados? Ou eles teriam identificado esta geração de seus avôs a partir do testemunho 3 Essa identificação, assumida por alguns Krenak mais velhos, foi registrada no livro de G. Soares (1992).
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da geração intermediária de seus pais? Já o cientista von Ihering, financiador da viagem de Garbe, afirma que são Botocudos das proximidades do rio Pancas, o que é incompatível com a versão dos índios, pois se tratavam de dois grupos distantes e rivais. 4 Mas legenda manuscrita nas fotos aponta para uma terceira opção, como já foi indicado acima, com locais e datas diferentes das apresentadas por Ihering. Curiosamente, ao relacionar os grupos de Botocudos então existentes, este não cita nenhum em Cachoeiro de Santa Leopoldina, onde teriam sido feitas as fotos de Garbe, localidade que fica a centenas de quilômetros dos pontos onde o cientista registra a existência de grupos de Botocudos. Ao mesmo tempo, Ihering situa a viagem etnográfica dos Garbe entre março e maio de 1909, embora as fotos apareçam datadas de julho do mesmo ano. A legenda manuscrita que acompanha tais retratos é bem precisa (traz até o dia em que foram feitas, 13 de julho de 1909) e não parece inventada aleatoriamente. O grupo de Botocudos fotografado em 1909 aparentemente era, a crer em registros como os de Ihering, distinto do grupo de Botocudo descrito por Manizer, dos quais descendem os Krenak contemporâneos. Embora, para estes, seja significativo atribuir rostos visíveis a seus ancestrais, que assim emolduram os significantes de fotografias tão marcantes. Os registros escritos e os orais são contraditórios a esse respeito e parece-me equivocado, a priori, proclamar a supremacia de um sobre outro - até mesmo porque as informações escritas são conflitantes entre si. São aspectos ainda por elucidar e que permitiriam a identificação precisa dos índios fotografados. Como síntese dessa série de fotos, temos uma curiosa cena de caçada (Figura 70). Três índios agachados são enfocados de frente, com seus instrumentos, em atitude de tocaia, emoldurados pela floresta. Cabe indagar- o que eles estariam caçando? Numa primeira resposta, caso seguíssemos a intenção do fotógrafo e dos fotografados que aceitaram posar, poderíamos dizer que se tratava da imagem de um grupo de Botocudos nas matas e flagrados em plena caçada a algum animal. Mas poderíamos alegar que a presença mesma do fotógrafo no local seria um empecilho a tal atividade, pois espantaria os bichos. Uma segunda resposta, mais literal ou realista, indicaria que eles só poderiam estar caçando ... o próprio fotógrafo, que se encontrava postado à frente deles. Mas tal certamente não ocorreu, pois Walter Garbe 4
H . v. Ihering. Os Botocudos do rio Doce . . ., 1911.
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parece ter saído ileso do contato com os Botocudos. Restaria então uma terceira reposta, transpondo para o nível simbólico a pose realizada de comum acordo entre autor e personagens: os índios estariam naquele momento e com aquela postura, em busca de estratégias de sobrevivência e da construção de suas próprias imagens e identidades.
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Figura 70
Nos tempos do SPI, a cabeça bate no chão O debate em torno das identidades e sobrevivências das populações indígenas ganhou contorno intenso no Brasil republicano. Relegado a relativo ostracismo nos vinte primeiros anos do novo regime, tomou em seguida proporções consideráveis e envolveu setores ampliados da sociedade. Três grandes tendências e grupos de interesse formaram-se em torno da questão no Brasil daquele momento. 5 Uma, de caráter mais crítico, leigo e humanista, embebida ao mesmo tempo nas concepções positivistas e no ideário nacionalista e liberal, reclamava uma intervenção do Estado no sentido de dar certa valorização ou proteção aos grupos indígenas e, ao mesmo tempo, incorporar parte considerável de suas terras às atividades produtivas e de seus braços à força de trabalho nacional. Essa tendência, como se sabe, teve no então coronel Cândido Mariano da Silva Rondon seu principal expoente. Outra vertente defendia as tradicionais prerrogativas de grupos religiosos de monopolizarem a catequese indígena, baseada nos interesses consolidados de ordens missionárias e seus aliados, 5 ].
M. Gagliardi (1989)
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valorizando a vasta experiência, os métodos pedagógicos e culturais das Igrejas envolvidas com tais práticas. Essa linha teve entre seus casos mais notórios o martírio do monsenhor Claro Monteiro em 1901, missionário que atuara junto de diversos grupos indígenas, entre eles Botocudos. E, como terceira linha, caracterizava-se o discurso institucional científico baseado no evolucionismo e nas teorias raciais oitocentistas e que pretendia que o Estado brasileiro adotasse a atitude de enquadrar de forma definitiva e violenta os índios, uma vez que eles seriam comprovadamente infensos e incapazes de se incorporar à civilização ocidental. Expoente dessa tendência foi o diretor do Museu Paulista, Herman von Ihering, último grande representante da Antropologia Física oitocentista e da truculência racial que em geral a acompanhava. A primeira tendência, como se sabe, saiu vitoriosa do embate, pelo menos no que se refere a apoio de grupos urbanos e na definição oficial e de mobilização do aparelho governamental nesse sentido, embora os grupos missionários tenham continuado a atuar junto dos índios, e a violência explícita e crua não deixaria de se manifestar. No âmbito da catequese religiosa, a campanha também foi intensa, gerando vastas publicações, entre as quais, exemplar é o folheto A catechese dos índios. Ineficácia e perigo das Missões leigas. Necessidade da catechese religiosa.6 Nesta publicação, como em outras, desenvolvia-se a argumentação favorável a tal ponto de vista. Um dos defensores mais ativos dessa linha foi o padre Claro Monteiro do Amaral, que nascera em São Paulo, 1860, no âmbito de uma tradicional família aristocrática (era sobrinho do barão Homem de Melo). Deslocado para a recém-criada diocese do Espírito Santo e promovido a monsenhor, este clérigo, dotado de considerável erudição e também de veia de polemista, conviveu entre 1898 e 1900 com os Botocudos em torno dos rios Doce e Pancas, passando vários meses seguidos nas selvas em contatos e tentativas de encontros com esses índios, aos quais pretendia catequizar. Desse convívio resultou um Vocabulário Português-Botocudo, um dos mais completos e detalhados, só publicado em 1948.7 O religioso conviveu com o grupo Nak-Sapmã, entre os L. C . de Castro, impresso na Typographia da Pátria Brasileira, Rio de Janeiro, 1910. 7 C. Monteiro. Vocabulário Português-Botocudo. .. org. e informações biográficas de M . L. P. Martins. 6
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rios Mutum e Pancas, embora tentasse alcançar, aparentemente sem êxito, os Gutkrak8 e Minhanjiru, que estavam fora da experiência missionária de Itambacuri. Em 1901, monsenhor Claro Monteiro, que parecia atuar em sintonia com os pontos nevrálgicas dos conflitos pelas terras indígenas na região Sudeste, partiu para tentar contatar outros grupos nomeados de Botocudos, em São Paulo, os Kaingangs, ocasião em que foi assassinado quando navegava de canoa, possivelmente por tais índios, tendo seu corpo desaparecido. Por seu turno, o cientista von Ihering publicou detalhado estudo etnográfico sobre "Os Botocudos do rio Doce", baseado nos relatos e fotografias de Ernesto e Walter Garbe e também em estudos anteriores. Ele fez uma leitura estritamente etnográfica e descritiva de tais fotos (contabilizando homens, mulheres e crianças, anotando o número e uso dos botoques, a flauta de taquara, a formação das famílias e casais, etc.) acompanhada de discretos juízos de valor. O diretor do Museu Paulista não deixou de anotar que recolheu o crânio de uma mulher de vinte e dois anos que, depois de fotografada, morreu afogada. No mesmo número da revista do Museu Paulista em que saiu o artigo sobre os Botocudos, von Ihering publica outro texto, "A questão dos índios do Brasil", onde, entre outras afirmações, defendia o extermínio dos índios refratários que não quisessem se adaptar à civilização nacional e pregava a adoção pelo governo de uma solução para o "problema" indígena, "humanitária ou não". 9 Inseria-se, assim, na linha dos "colonizadores bravos", com argumentos semelhantes, por exemplo, aos do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, meio século antes. Dois dos principais focos de conflitos indígenas no país ocorriam em regiões centrais para as atividades produtivas e com poder político: com os Kaingang (Paraná e São Paulo) e com os Botocudos (Espírito Santo e Minas), ambos em geral classificados no grupo linguístico Macro-Jê. A situação tornava-se mais tensa porque estas duas áreas estavam encravadas em regiões onde o desenvolvimento econômico se dava de modo vertiginoso, inclusive com a construção 8 Este nome genérico, Gutkrak, que servia para nomear determinados subgrupos de Botocudos aparentados entre si, aparece grafado na documentação da época de diferentes maneiras: Guterecks, Guturacks, Butucrak, Buturak, etc. Optamos aqui pela padronização ortográfica de Gutkrak. 9 Cf. von Ihering. A questão dos índios no Brazil . .. , 1911. Para uma crítica a tais posições, ver D. Ribeiro (1996, pp. 149-51).
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de ferrovias para escoar produções (os corredores de exportação) e a ampliação dos centros urbanos. Para resolver esse conflito com os índios ainda "bravos", não apenas na região Sudeste, os governantes federais tomaram posição diante do debate que se formara: foi criado em 1910 o Serviço de Proteção aos Índios e de Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), fins do governo Nilo Peçanha. O próprio nome desse novo órgão público já era significativo de seus propósitos: a proteção aos índios (leia-se, sua incorporação à sociedade nacional, sem usar recursos bélicos) e a localização dos trabalhadores nacionais estavam juntas, deixando claro qual o objetivo diante das terras e mesmo da possível mão de obra indígena. Tratava-se de permitir a ocupação (seria anacrônico chamar de Conquista ... ?), por empresas e proprietários, de áreas tão valorizadas economicamente no território nacional. A direção geral do Serviço ficou a cargo do tenente-coronel Cândido Mariano da Silva Rondon, cujo desempenho no desbravamento de matas, implantação de telégrafos e habilidade de estabelecer relação com os grupos indígenas o credenciavam para a tarefa. 10 Se com tal medida o governo republicano mantinha a tradição de militarização no contato com os índios, por outro lado, a própria postura de Rondon, a partir de uma leitura do positivismo e da imersão na consciência crítica da época, inauguraria uma nova fase das relações entre os grupos indígenas e a sociedade nacional. E, mais uma vez, os Botocudos (que passariam a perder este nome, que eles nunca assumiram como deles) estariam na ponta dessas transformações, destacando-se pelo vigor de suas atitudes e integrando, a contragosto, mais este laboratório do progresso. Porque, como se sabe, a criação do Serviço- em 1918 nomeado apenas de Proteção aos Índios (SPI) - foi precedida de rumorosa polêmica sobre o tema tão antigo e renovado: os caminhos e possibilidades de incorporar os índios à civilização e à nação. Dessa forma, o novo órgão governamental SPILTN e depois SPI, tinha a incumbência de funcionar como intermediário entre as populações indígenas e a sociedade nacional. Visava evitar violências bélicas e massacres contra os índios, mas ao mesmo tempo buscava meios mais eficazes e insistentes de incorporá-los à sociedade nacional, 10 Para diferentes interpretações sobre a criação do SPI em âmbito nacional ver as obras de D. Ribeiro (1962 e 1996), A. C. S. Lima (1998) e Gagliardi (1989).
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reservando-lhes algumas parcelas de terra e estimulando entre eles o trabalho produtivo, o uso de roupas e o aprendizado de português, ao mesmo tempo que aceitava dialogar com as tradições culturais indígenas e acenava com a possibilidade de preservar algumas delas. O SPI pretendia monopolizar o ordenamento do espaço territorial por meio da tutela dos índios, controlando de alguma maneira as terras que estes perdiam ou mantinham, além da tarefa de negociação com as partes envolvidas, como frentes de expansão, proprietários rurais, outras instâncias governamentais e, claro, os próprios índios. Para implantar mais esta frente de contato (que pretendia abrir caminho para as frentes de expansão) no Espírito Santo e Minas Gerais foi enviado o tenente Antônio Martins Viana Estigarribia, colaborador próximo de Rondon e, como ele, positivista, republicano e nacionalista. Em fins de 1910 Estigarribia encontrou um terreno minado, onde "recíprocas violências" têm "ensanguentado aquella parte do Estado" .11 Os próprios agentes do SPI reconheciam estar sendo pressionados para realizar o contato a toque de caixa: as estradas de ferro Bahia-Minas e Vitória-Minas estavam em construção e seu traçado rasgaria os últimos territórios dos Botocudos. Era preciso pois, antes de tudo, um trabalho de pacificação - mas dos grupos econômicos que espreitavam a região. 12 Foi nesse sentido que agiram Estigarribia e seus companheiros (entre os quais o inspetor Cândido de Freitas Chaves). Além disso, uma empresa norte-americana de corte de madeira assinara contrato com o governo do Espírito Santo e já estava atuando na região, uma das últimas áreas de floresta nativa do estado. Temiam-se novos e graves conflitos com os índios. Mais uma vez as duas destruições andavam juntas: a da Mata Atlântica e a dos grupos indígenas que a habitavam. O diretor da madeireira, Lichenfelds, já formara considerável contingente de trabalhadores, entre brasileiros e índios sedentarizados: procurado pelos inspetores indigenistas, comprometeu-se a não atacar os Botocudos arredios.
11 Brasil. Ministério da Agricultura, Indústria e Commercio. Relatorio apresentado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912, vol. I, pp. 131-37 e A. Estigarribia, 1934. 12 Sobre a relação do SPI e os Botocudos no Espírito Santo, tomamos como referência o trabalho de M. E. Brêa Monteiro (2004) . Para o caso de Minas Gerais, v. I. M. Mattos (1996). Para ambas as regiões, M . H . B. Paraíso (1998b).
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Em seguida Estigarribia procurou o "cidadão Governador" Jerônimo Monteiro que, numa conversa franca, expôs a situação do Espírito Santo: um estado pobre, de poucos recursos, que procurava dar ênfase às atividades de exportação, sobretudo do café e madeira. E que umas das últimas terras férteis da Mata Atlântica ainda continuavam em poder dos índios ao longo do rio Doce. Entretanto, o "cidadão governador" mostrou-se solidário com o trabalho do SPI e viu com bons olhos a perspectiva de preservar uma área - ainda que não muito grande - para que os índios não fossem inteiramente dizimados ou expulsos de suas terras. Estigarribia lamentou, pois considerava os índios como "legítimos possuidores" de todo território, mas considerou importante o apoio do governador e tratou de buscar a negociação nestas bases para a preservação de uma parcela da área indígena. A intenção dos representantes do SPI era conseguir convencer o governo capixaba a negociar com o Syndicate norte-americano uma fatia da terra para os índios. Havia ainda outros elementos a pacificar. O engenheiro Antônio dos Santos Neves, proprietário da Fazenda Neblina, na altura de Pipnuc, estava em guerra com os índios há pelo menos doze anos. Em 1898 e 1904 registraram-se conflitos graves onde morreram índios e parentes do fazendeiro. 13 Havia em diversos pontos de rio Doce colônias de italianos - também queixosos de que os índios constantemente invadiam suas roças e levavam parte das plantações. Para todos, os representantes do governo federal pediam uma espécie de trégua, dando como garantia de que seria possível obter a maior parte das terras dos índios sem violências. Concluída então esta primeira fase da pacificação - Estigarribia não a chamava assim - foi dado o passo seguinte: fazer um levantamento in loco da situação dos grupos indígenas. Nesse momento Estigarribia sentiu-se como que imbuído da importância da missão que tinha pela frente e começou por escrever um breve histórico do contato entre estes grupos e a sociedade luso-brasileira. Considerou-os acertadamente como descendentes dos Aimorés - e esta consideração não seria gratuita, pois Rondon e seus seguidores, nos anos seguintes, passariam a referir-se a esses índios sob esta denominação, na tentativa (bem-sucedida) de lhes 13 Re/at6rio apresentado pelo Inspector Estigarribia em exercfcio no Estado do Espfrito Santo, IR4, 1910, flime 166, Funai, Museu do Índio (RJ), p. 104.
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retirar o nome e o estigma de Botocudo - associado ao mesmo tempo a selvageria e imbecilidade. Estigarribia reportou-se sobretudo aos trabalhos de catequese dos jesuítas na região- o que é significativo em se tratando de uma proposta eminentemente laica; enquanto militar ele procurava distanciar-se da violenta tradição militarista, buscando exemplo na "colonização mansa" da Companhia de Jesus. Ele citaria também José Bonifácio, os decretos de 1824 e o índio Guido Pokrane. Além desse pequeno histórico, Estigarribia registraria aspectos relevantes da vida cotidiana e dos costumes dessas tribos, ainda que de forma não sistemática, pois não pretendia ser antropólogo ou etnólogo. E tiraria fotos desses grupos. Desse modo, além de agente indigenista, ele colocou-se também como intelectual escrevendo e captando imagens dos Botocudos. Percebe-se pela leitura das anotações de Estigarribia que ele ainda guardava parâmetros do século XIX em relação aos Botocudos. Indagava sobre a antropofagia desses índios para responder que ainda não tinha "opinião assentada" sobre sua veracidade, embora verificasse que os grupos rivais se acusassem reciprocamente desta prática.14 Em outra resposta às indagações, o chefe Tetchuc, Gutkrak, percebendo a insistência e interesses dos agentes do SPI sobre o tema, afirmou que gostava de comer "especialmente perna de crianças". No que foi logo desmentido pelo índio José, afirmando que "isso é troça do Tetchuc". 15 Isto revela, na verdade, uma manipulação dos códigos dos não índios pelos próprios índios, que buscavam assim desqualificar seus adversários tribais ou impressionarem seus interlocutores não índios, talvez ironizando-os, e se fortalecerem nas alianças com a sociedade nacional, tentando reverter, em seu próprio benefício, as antigas acusações de canibalismo. E como contraponto a esta ainda impregnada legenda de ferocidade, o mesmo inspetor do SPI se mostrava encantado com a descoberta da cordialidade dos indígenas e com a capacidade deles em demonstrar afeto: E quanta festa, quanto carinho, quanta alegria ao me encontrarem!l6
14 Relatório apresentado pelo Inspector Estigarribia em exercfcio no Estado do Espírito Santo, IR4, 1910, fUme 166, Funai, Museu do Índio (RJ), p. 20. 15 Ibidem. 16 Ibidem, p. 22.
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O mapeamento inicial da situação dos Botocudos (narrado em relatório ao "Cidadão Tenente Coronel" Rondon) em 1910 mostra um quadro diversificado. Havia grupos sedentários, muitos nômades, outros em contato intermitente ainda pelas florestas e alguns que recusavam qualquer contato e não falavam o português. O trabalho dos agentes da lnspetoria Regional4 (IR4) do SPI seria dirigido sobretudo a estes dois últimos. Nas margens do rio Doce, arredores de Colatina, havia dois aldeamentos. Um, em fase inicial, mantido pelo padre Gruber, do Verbo Divino, contava apenas com dois irmãos do grupo Minhageruns. Légua e meia adiante estava o outro aldeamento, de Lage, onde encontraram cerca de dezesseis índios (haveria mais uns quinze ou vinte, ausentes), dos quais cinco minhageruns e o restante nacknenucks. Os homens vestiam apenas uma pequena tanga e as mulheres às vezes tinham peças de roupa, como blusas ou vestidos. Segundo o observador, moravam aí dois chefes, os "capitães" Nazaré e Lucas, mas quem chefiava na prática a aldeia era a índia Benedita, que tinha grande influência sobre os demais e cuidava das roças de milho e da criação de galinhas. Era a predominância feminina no interior do grupo. Diante desses índios, como dos demais que encontraria, o inspetor usaria com insistência a palavra simpatia e seus derivados (simpáticos, simpáticas, etc.). São termos que ressaltam de seu relatório. Ou seja, também ele deparou-se com a cordialidade dos índios. Ao expor para o primeiro grupo acima descrito sua missão de pacificação, a reação deles foi imediata: "Ficaram muito satisfeitos com a boa nova e os brindes que lhes eu levava e, em regozijo, dançaram e cantaram" Y Além de guerreiros - ou por isso mesmo - os Aimorés ou Botocudos sempre foram grandes estrategistas. Mesmo havendo significativas discordâncias internas entre os grupos nesse sentido, não se pode negar a eles um senso de ação política bem nítido, que resultou na potencialidade das resistências e na sobrevivência como grupo étnico, mesmo diante de avalanches de violências. A resposta que deram a Estigarribia foi significativa: de um lado aceitavam a proposta de convivência pacífica com a sociedade brasileira como estratégia de sobrevivência e, de outro, dançaram e cantaram para comemorar, mostrando que, ao celebrar dessa maneira, mantinham identidade cultural. Ou seja, aceitavam transformar (mas não eliminar) sua identidade 17
Ibidem, p. 95.
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étnica para não desaparecerem. Colocavam-se dentro da linha chamada de transfiguração étnica, aceitando em parte mudar para sobreviverem como etnia. A tribo seguinte encontrada foi a dos Giporocas, ou Gyporoks, mesmo nome do grupo que havia mantido contato estreito com Teóftlo Ottoni seis décadas antes. Os membros desta tribo, lembrava Estigarribia, eram conhecidos por sua "extrema ferocidade". Preocupado, ele procurou intermediários que facilitassem o diálogo e foi informado que a pessoa indicada era um velho africano, Ladislau, que na época da escravidão fugira da fazenda e fora acolhido por uma tribo de Botocudos, por onde morou durante muito tempo, possivelmente até a época da Lei Áurea. Ladislau dominava perfeitamente a língua e conhecia os costumes dos índios e pode-se supor que tenha tido filhos entre eles, gerando alguns com aparência de mulatos, como ainda hoje se verifica. Mesmo assim, os Giporocas, habitantes do norte do rio Doce, mostraram-se extremamente desconfiados com a chegada de Estigarribia: eles tinham a experiência de séculos de violência da parte dos "brancos", violência que ainda não desaparecera. Um dos "principais" ficou inquieto de estar conversando com o representante oficial da República afastado de seu arco e flechas. Percebendo a situação, Estigarribia pediu-lhe que pegasse à vontade suas armas, o que fez o índio descontrair-se. O inspetor explicou-lhe longamente o intuito de sua missão em nome do governo e o resultado não se fez por esperar: os demais índios finalmente aproximaram-se tratando-o "com a maior delicadeza e carinho", chamando-o de "crenton hêrêhê", que ele traduziu por "chefe bom", mas que ao pé da letra quer dizer "homem de cabelo feio, tudo bem". E Estigarribia arrematava: "foime fácil obter desses índios a promessa de que não depredariam mais roças dos colonos, nem se apossariam de suas ferramentas". Entre esses Giporocas o inspetor encontrou ainda um índio Botocudo de uma tribo que fora extinta num confronto interétnico. Chamado, numa triste ironia, de Pery, este índio de cerca de quarenta anos contou que seu grupo, outrora numeroso, fora destroçado num combate com os Giporocas, todos os homens foram mortos e as mulheres incorporadas aos vencedores. 18 Este Pery do século XX não se sentia incorporado ao novo grupo e considerava-se o último sobrevi18 Relatório apresentado pelo Impector Estigarribia em exercício no Estado do Espfrito Santo, IR4, 1910, filme 166, Funai, Museu do Índio (RJ), p. 103
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vente de sua tribo, cujo nome Estigarribia não registrou. As lutas interétnicas entre os Botocudos eram ainda constantes na região, sobretudo à medida que o cerco das frentes de expansão apertava as garras sobre os índios, reduzindo seus territórios e acirrando assim os conflitos e a facciosidade, que sempre foi uma das características marcantes desses grupos. Os mesmos Giporocas estavam na ocasião em guerra com os Coroados chamados por eles de Angrêtes (homens maus). Foi registrada ainda a presença de Pojichás, grupo cujo nome era conhecido já em meados do século XIX, mas cuja localização era ainda incerta para os que viviam fora da floresta. Um dos encontros mais marcantes foi em Natividade do Manhuaçú, na fronteira de Minas e Espírito Santo, com o grupo de Tetchuc, dos Gutkrak que "têm mantido os usos dos antigos botocudos", como andar nus, usar botoques, não falar português, manter a poligamia, etc. Na conversa com Estigarribia, por intermédio de intérpretes, Tetchuc relatou a insatisfação em que viviam: fome, dificuldade de encontrar alimentos e acossados pelos conflitos com as tribos vizinhas (afirmou que muitos dos seus morreram nos últimos meses) e com as frentes de expansão. Ao saber das intenções do governo Tetchuc afirmou que seu grupo aceitaria sedentarizar-se, desde que ficassem protegidos dos diversos inimigos e obtivessem ferramentas para cultivar suas roças. Havia ainda entre os Gutkrak o grupo do "capitão" Krenak e de seu filho Muim, que recusava aliança com os não índios ("não querem saber de relações", reconhecia Estigarribia). Com a aproximação do grupo do Tetchuc, Krenak separar-se-ia e formaria outra tribo, mantendo a resistência contra a proposta do SPI. Registra- se ainda outra tribo de Botocudos (classificados no relatório de "mansos") estabelecida no Etueth (Itueta), sul do rio Doce, onde todos falavam português. Ao saberem da presença de Estigarribia procuram-no, tomando assim a iniciativa do contato. Mas eles não receberam maior atenção do inspetor na ocasião. 19 Certamente porque não estavam entre os "bravos" a pacificar: paradoxo que levava os índios que rejeitavam o contato a serem mais valorizados por um agente governamental. Percebe-se, portanto, a partir da leitura atenta deste primeiro relatório, que a ação do SPI em 1910 não representou uma ruptura profunda no comportamento dos Botocudos, como se num passe de 19
Ibidem, p. 97.
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mágica o contato "pacificador" transformasse selvagens guerreiros em dóceis membros da sociedade nacional. Pode-se dizer que havia já um quadro complexo, no qual as situações e reações dos grupos indígenas eram diferenciadas. Além disso, todos estes grupos já tinham efetivado em algum momento contatos com a sociedade nacional. Os próprios dirigentes do Serviço de Proteção aos Índios reconhecem qual a tarefa primordial na área: Qyanto aos índios bravios, a acção do Serviço inicia-se pela adopção de medidas conducentes à total supressão das arremetidas a mão armada, todas igualmente facinorosas e crudelíssimas, contra elles organizadas, sob os nomes de batidas [... ).20 Ou seja, fica patente que a questão de pacificar os chamados índios bravios deslocava-se para outro eixo: pacificar os não índios, os colonos, os grupos paramilitares, as frentes de expansão, isto é, pacificar os colonizadores bravos. Embora esses conceitos não tenham sido usados de maneira clara na época, o sentido era nitidamente este. O que estava em jogo com a criação do SPI era estabelecer certos limites da sociedade nacional e de seus representantes locais nas suas relações com os grupos indígenas. Desse modo, destaca-se que a pacificação do SPI não era voltada exclusivamente para os grupos indígenas, como muitas vezes transparece, mas para a tentativa de resolução de conflitos envolvendo diversos agentes históricos, inclusive (mas não apenas) os grupos indígenas. Depois de mapeada a situação dos Botocudos em Minas Gerais e no Espírito Santo, os agentes governamentais traçaram o passo seguinte da estratégia no tocante aos índios: criar dois postos de "acção, de attração e de pacificação" nos dois pontos onde a população indígena não sedentária era maior: na margem do rio Pancas, entre os rios Doce e São José; e no braço sul do rio São Mateus, na serra dos Aimorés. Foram também solicitados dois contos de réis para a compra de brindes, ferramentas, medicamentos e mantimentos e para a contratação de trabalhadores e intérpretes. A partir daí seriam não mais encontros esporádicos ou promessas, mas o estabelecimento de contatos sistemáticos visando a alteração e ordenação da vida dos grupos indígenas. 20
Relação das tribos. .. , [1911], Museu do Índio (RJ).
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Articulações feitas, os resultados, nos meses seguintes, foram nítidos. O inspetor Chaves conseguiu aproximar-se de alguns Botocudos que mantinham contato intermitente com a sociedade brasileira. O primeiro Posto de atração foi criado na confluência do rio Muniz Freire com o braço sul do rio São Mateus, distante cerca de vinte quilômetros do último morador da colônia de Pipnuc. Trataram de fazer grandes roças e uma estrada para transporte de carga. Serviços que eram executados com o apoio dos índios já contatados, que assim iam aprendendo a trabalhar sistematicamente. Logo conclui- se uma estrada ligando o vale do rio Doce a São Mateus e outro Posto de atração foi instalado nas selvas, tidas ainda como impenetráveis e desconhecidas. No raiar do século XX ainda se falava em "Descobertas" numa região não muito distante do local onde aportara a esquadra de Cabral em 1500. O objetivo, pois, era o desenvolvimento econômico da região, a exploração predatória das florestas e a incorporação dos índios como mão de obra subalterna. O primeiro grupo contatado foi o Gutkrak que, diante do desafio, cindiu-se em dois, conforme já foi dito. Um, mantendo o nome de Gutkrak e chefiado por Tetchuc, aceitou o contato e, mais adiante, veio a dividir-se também, desaparecendo como tribo. O outro grupo, do "capitão" Krenak, derrotou os primeiros em conflitos e recusava o contato sistemático com os brasileiros. Munhangiruns e Nacknenucks, até então hostis, juntaram-se e instalaram-se às margens do rio Pancas, quarenta e oito quilômetros para dentro do rio Doce. Eles incluíam remanescentes de grupos contatados nos anos 1820 (portanto quase um século antes), como os Pokrane. Era a dissolução de tribos que por muitos anos serviram de referência, como os grupos do capitão Cuido Pokrane e seus descendentes e também dos Nacknenucks, que, em poucas décadas, passaram da ausência de contato com a sociedade nacional a objetos de estudos culturais e científicos, em Paris ou no Rio de Janeiro. Formavam-se assim dois Postos do SPI, o Pancas e o Aimorés, onde os índios passam a construir casas, engenhos de farinha, paióis, etc. Analisando o intenso contato efetivado pelo SPI com as tribos de Botocudos entre 1910 e 1912 verifica-se que os grupos indígenas que tiveram maior sobrevida foram justamente os que resistiram ou não aderiram facilmente à "pacificação". No caso, os Pojichás e Krenaks, além dos membros de outras tribos que se juntaram a eles, como os Nakrehés.
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Em fevereiro 1911, rio das Contas, sul da Bahia, uma expedição do SPI dirigiu-se ao vale do rio Gongogy, domínio dos Pojichás. Ainda eram nômades mas, diante da crescente onda de colonização, pararam de atacar, mas continuavam sofrendo ataques. Seja como fosse, os Pojichás se mantinham "temidos pelos agricultores das terras adjacentes às que elles percorrem [... ] evitam contatos com o civilizado"Y Recusavam-se a princípio a retirar os presentes deixados pelos agentes do SPI. No mês seguinte, nova expedição, e os Pojichás, acuados e sem meios de tirar sua sobrevivência da floresta a contento, começam a retirar presentes. Um dos últimos grupos de Botocudos a resistir à proposta de pacificação oficial, rejeitando a sedentarização e o contato permanente com a sociedade nacional, internando-se nas matas que ainda restavam, foi o do chefe Krenak. Somente após sua morte seu filho e sucessor, Muim, aceitou o convívio constante com a sociedade nacional, incontornável naquele momento em razão do cerco e ocupação dos territórios indígenas. Entretanto, como se verá a seguir, Muim não se acomodou nem submeteu-se passivamente, mas ainda apresentaria vigorosa tentativa de interferência nos destinos de seu povo, ou seja, pelejava no interior mesmo das relações estabelecidas pela sociedade nacional. Mas a figura de Krenak, por ser um chefe a resistir ao contato permanente, tornou-se mítica desde aquela época. Como foi a tribo do chefe Krenak que influiu na instalação definitiva em torno do rio Eme, afluente do rio Doce na altura de Resplendor (o Posto Indígena seria oficialmente rebatizado de Krenak), e para lá foram agrupados índios de outros grupos de Botocudos, retomou- se a tradicional prática de nomear a tribo com o nome do chefe e da localidade, que passou a se chamar Krenak, gerando nova denominação externa aos Botocudos.22 Alguns Krenak, hoje, têm um mito de origem para a criação do seu nome tribal. E, nesse sentido, o nome não seria uma homenagem ao chefe Krenak, mas expressão simbólica de um momento de passa-
21
Carta do Sr. Antonio E stigarribia ao Sr. Miranda, Datada de 1991. Mês: abril,
Museu do Índio, RJ. 22 Esta associação entre o nome do chefe Krenak e a nova denominação genérica do grupo, por parte dos atuais índios, aparece indicada, embora sem citar fontes, no trabalho de G. Soares (1992) .
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gem. Um índio, ao nascer, caiu e bateu com a cabeça no chão, daí sua mãe exclamou: kren-nak! (kren, cabeça; nak, chão).
É por isso que fala K.renak. Eles falam que uma vez uma índia que tava quase ganhando menino, aí ela ganhou o menino e o menino caiu com a cabeça na terra. Ai ela não sabia conversar direito, ela falava assim K.ren Nakl K.ren Nak! Porque o menino bateu com a cabeça na terra. Aí botaram o nome de K.renak, porque o menino bateu com a cabeça na terra e ela falava K.renak. 23 A descrição do nascimento resultando de um choque na cabeça aparece também na mitologia grega. A guerreira Atenas, filha de Zeus e de sua primeira esposa, Métis, se tornou a filha favorita do pai. Qyando Métis estava grávida, Zeus a engoliu, a conselho de Gaia, pois o ftlho seguinte poderia nascer mais forte que ele. Depois de certo tempo, Zeus foi atacado por uma terrível dor de cabeça e, para melhorá-la, pediu a Hefesto que lhe fendesse a cabeça com o machado. Filho obediente, Hefesto não vacilou, e logo depois do golpe Atena emergiu já crescida, completamente armada e lançando terrível grito de guerra. 24 A narrativa dos K.renak, diga-se de passagem, foi feita por Him, que descende dos Nakrehés, rivais do grupo de K.renak, e poderia haver aí o prolongamento de um disputa identitária. De qualquer modo esta representação de uma queda dolorida no instante do nascimento expressa simbolicamente e de maneira aguda um momento dolorido de passagem e de (re)nascimento: o atrito entre a cabeça e o chão, entre o que se desejava e a dura realidade, choque do qual o índio sobreviveu e ganhou dele seu novo nome. 25
23 Depoimento de José Alfredo de Oliveira Krenak (Him) ao autor em 10-91998. A cartilha elaborada pelos jovens professores Krenak em 1997 traz também essa narrativa (do menino batendo com a cabeça no chão) mais detalhada em Borum e em português. 24 Cf. referência em . Agradeço a Maria Regina Ramos de Assis por ter me alertado dessa semelhança entre os dois mitos de origem, o grego e o indígena. 25 "O que é que deu, o que é que não deu", assim resumiria a história do seu povo outra índia Krenak, Maria Sônia (Tcharn) em depoimento ao autor em 11-91998 .
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A supressão do nome de Botocudo se apresenta como forma de apagar o estigma que pesava sobre tal apelido, associado aos atributos de ferocidade e tolice ao mesmo tempo. Os pioneiros do SPI estavam entre os que trabalharam nesse sentido, usando inicialmente para esses grupos a denominação de Aimorés e, depois, adotando a de Krenak. Desse modo, a alteração do nome genérico e hostil apontava para outra forma de relação e de percepção da sociedade nacional sobre esses índios, resultado da ação conjunta de diversos protagonistas históricos- também e, sobretudo, dos próprios índios. Tanto a referência à figura do chefe que resistiu quanto a lenda do menino batendo a cabeça no chão têm sentido semelhante. A nova identidade teve este duplo sentido: a aceitação forçada da pacificação indigenista da Primeira República, a sedentarização, o uso de roupas, o abandono do botoque e de algumas de suas tradições foram nomeadas com o signo da resistência guerreira e da altivez daquele chefe que, até o último momento, tomou posição pela preservação de seus modos de vida na floresta. Sob essa dupla invocação, à maneira de Atenas na Grécia antiga, florescia o "povo novo" Krenak, que ainda enfrentaria situações das mais difíceis. Por um lado, homogeneizavam-se os subgrupos rivais de Botocudos sob esta designação, que servia de etiqueta diante da sociedade nacional, embora o fracionamento e a rivalidade interna não tenham desaparecido, apesar da redução demográfica de seus integrantes. Por outro lado, se as estratégias de negociação e contato permanente predominaram como única saída possível, elas se referenciavam, ainda que simbolicamente, a uma prática de resistência guerreira e ao choque do contato, que gerou transformações e durante tanto tempo marcou a vida desses índios. De qualquer modo a nova designação externa, Krenak, passa a ser assumida positivamente pelos índios, ao contrário das duas anteriores, Aimorés e Botocudos. A única foto que se conhece do chefe chamado Krenak, tirada em 1910, mostra sugestivamente este índio vestido (assinalado à esquerda na Figura 71). 26 Estava de calça e blusão compridos, com um pano (lenço ou gravata) em torno do pescoço, descalço e com botoques nas orelhas. Tinha uma pistola na mão esquerda. E seu olhar e ex26
Esta foto e sua identificação constam do acervo particular da família de José Vieira da Fonseca, participante da expedição do padre André Colli em 1910, d . I . M. de Mattos (2004, p. 397).
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pressão facial eram altivos, duros, diretos, de tom desafiante e firme. Em torno dele, um mosaico humano bem representativo daquele momento: as índias de seu grupo apareciam com panos visivelmente improvisados para cobrir a nudez; à esquerda da imagem um jovem índio portava apenas a tanga tradicional enquanto, no canto oposto da foto, havia outro índio vestido com blusa e calça, mas de botoque. Entre os índios, por trás e pelos lados, cercando-os, trabalhadores nacionais. Essa fotografia revela que o chefe K.renak não recusava o contato com a sociedade nacional (e dificilmente poderia fazê-lo naquelas circunstâncias), mas rejeitava a proposta de submissão ou pacrncação intermediada pelo governo federal, que implicava perda de importantes parcelas do território, de alterações substanciais nos modos de vida, ou seja, resistia ao contato permanente e à incorporação indiscriminada ou subalterna. A própria fotografia é resultado de uma negociação, pois seu grupo, que se recusava a usar roupas e mantinha os botoques, aparece coberto com panos. Ele próprio, K.renak, era o mais vestido entre os índios e talvez a pistola que portava na mão seja a chave para entender a aceitação (pelo menos naquele momento da foto) do uso da roupa. As armas de fogo eram temidas pelos índios que, justificadamente, atribuíam a elas muito de suas mortes e derrotas. O SPI proibiria, daí por diante, o uso de armas de fogo pelos índios. Qyem sabe a negociação daquele instante com o guerreiro chefe K.renak não tenha passado pelo recebimento da arma de fogo em troca do uso da roupa? Tal foto foi tirada pelo grupo do padre André Colli, que tentava realizar trabalhos missionários com estes índios às vésperas da fimdação do SPILTN e que em 1910 fez uma expedição buscando contatá-los ao longo do rio Doce, ocasião em que foram feitas várias imagensY Esse religioso foi o primeiro chefe do Posto Indígena Guido Marliere, designado para atuar entre os K.renak, mas não teve longa permanência, sendo logo destituído por Rondon no Rio de Janeiro, apesar de ter recebido carta de nomeação do próprio presidente da República, Wenceslau Brás. Rondon alegou que o governo não deveria financiar "padres-nossos e ave-marias" entre os indígenas. Ocorria, em torno do rio Doce, a mesma disputa travada em âmbito nacional entre os grupos e propostas que pretendiam ter predomínio sobre o governo direto dos índios. 27
I. M. de Mattos (2004, pp. 395-7).
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Figura 71 Ao mesmo tempo, os agentes indigenistas tentavam pacificar o outro lado. Propunham que o território indígena fosse demarcado em extensão abrangente, incluindo todas as áreas que as tribos percorriam como nômades. Isso causou reações como a do senador capixaba}osé Luís Alves, representando os interesses dos proprietários, enquanto a Igreja também pressionava contra a intromissão do novo órgão governamental na seara do contato com os índios. 28 Diante das pressões o SPI recuou e reduziu a amplitude das terras. Neste vaivém, conflitos e negociações, entraram também os próprios índios, a exemplo do grupo do chefe Muim (fllho de Krenak) que, após ter aceitado a proposta de pacificação indigenista oficial, investiu de maneira ostensiva contra os que pretendiam ocupar suas terras em 1918. Como resultado desses embates, em 1920, o governo de Minas Gerais, então comandado por Artur Bernardes, aceitou destinar oficialmente quatro mil hectares aos Botocudos, com a mediação do SPI. Mas a definição da área escolhida mudou, em boa medida, graças à determinação do grupo de Muim, que indicou preferência pelas terras em torno do rio Eme, no município de Resplendor, onde então existia o Posto Guido Marliere, em detrimento da área do rio Pancas,
28
Carta do Sr. Jerónimo Monteiro ao Sr. Antonio Estigarribia, março de 1911,
Museu do Índio, RJ.
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inicialmente prevista pelo SPI.2 Os índios do grupo de Muim insistiram e inventaram as mais diferentes estratégias para ali permanecerem. O SPI providenciou então, com verba do governo estadual, a construção de casas de alvenaria no local e a primeira residência a ficar pronta foi ocupada pelo próprio Muim, que assim atuava neste jogo de barganhas e conquistas. 30 A área do rio Eme ainda hoje é ocupada pelos Krenak. É uma parcela ínfima, se comparada à área que os Botocudos ocupavam um século antes do SPI, na época da Guerra de 1808-1824. Mas mesmo esta proposta ainda encontraria oposição forte, fazendo que, na prática, a localização dos trabalhadores (e proprietários) nacionais e estrangeiros fosse ganhando terreno contra a proteção aos índios. Para consolidar o acordo de 1920 o general Cândido Rondon esteve neste ano no Congresso de Geografia, em Belo Horizonte, onde pronunciou expressiva palestra referindo-se aos "valorosos filhos deste glorioso Estado, nascidos nas florestas do rio Doce, os dizimados Aimorés que durante séculos, e talvez ainda carreguem, o terrívellabéu de ferozes". Após elogiar o trabalho de Estigarribia e realçar "a fé viva na identidade da natureza humana do índio com a nossa", Rondon afirmava, em relação aos Krenak, que tinham abandonado "o arco vingador" e reconhecia: "estamos em dívida para com eles". O chefe do SPI defendia para estes índios "a propriedade da terra em que assentam as suas malocas e as suas lavouras, e onde procedem a suas caçadas". E cobrava mais uma vez do governo de Minas a promessa, que seria inicialmente cumprida: [... ] reservar, na margem esquerda do rio Doce, subindo o Eme, terras bastante para nelas viverem os atuais e futuros filhos da tribo dos Crenaque, última relíquia da outrora pujante nação dos Aimoré. 31 O pronunciamento de Rondon era marcante por vários motivos. Atacava diretamente a legenda de ferocidade (que durante muito
29
Cf. M. H. Paraíso (1998a). Relatório dos trabalhos efetuados na Inspectoria deste serviço do Espfrito Santo durante o ano próximo passado. SPI. Museu do Índio, RJ, 1920, p. 26. 31 Discurso de Rondon citado em A. B. de Magalhães, Índios do Brasil. .. (1947, p. 60). 30
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tempo serviu de justificativa para violências contra tais índios) e contrapunha-se ao estigma racial de inferioridade e desumanidade que ainda vigorava em boa parte do mundo científico. E, em que pesem os paradoxos de seu protecionismo indigenista, não só defendia a posse da terra para esses grupos indígenas como incluía nela seus terrenos de caça, isto é, as áreas que percorriam. E pela primeira vez um representante do Estado nacional reconhecia formalmente a dívida histórica para com esses mesmos índios, buscando alguma solução prática e imediata que se contrapunha às violências bélicas oficiais e das frentes de expansão. Em seu discurso Rondon deixava entrever, ainda, as diversas faces da política do SPI: ao mesmo tempo que propunha a sedentarização e trabalho agrícola a índios tradicionalmente nômades e caçadores, deixava aberta a possibilidade de continuarem a viver em malocas e a caçarem. Todavia, o decreto de 1920 do governo estadual que legalizava as terras dos índios previa a construção de casas e a repartição de lotes entre eles. Nota-se, portanto, diferenças entre os agentes da sociedade nacional: as disputas entre o SPI e o governo estadual sobre este ponto permaneceriam. O SPI e seus agentes, em que pesem esforços e tentativas de intermediação, não impediam ou controlavam completamente o impulso dos interesses econômicos nem o peso da coerção governamental. Como resultado dessa tensão ocorreu em 30 de janeiro de 1923 um massacre no Posto Guido Marliere onde morreram nove índios Krenak (três homens, duas mulheres e quatro crianças) e sete ficaram gravemente feridos. 32 A violência foi iniciativa de grupo de trabalhadores e pequenos proprietários instalados como colonos nas proximidades e realizou-se à maneira de "matar uma aldeia" típica do século XIX. Tal episódio atingiu os grupos familiares descendentes diretos do chefe Krenak e dos N akrehés. Cinco dos assassinos de 1923 foram absolvidos posteriormente pelo júri, formado por outros colonos e moradores locais, ao passo que os cinco outros que participaram do crime nem sequer foram julgados. Outros desses matadores e seus cúmplices teriam sido mortos por soldados e pelos próprios índios em vingança, conforme se verá no Capítulo 12. O evento de 1923 trouxe grande trauma aos demais índios Krenak e ocasionou uma momentânea fuga de alguns da área do rio Eme 32 M. E . Brêa Monteiro (2004, p. 60); M . H . Paraíso (1998a), I. M. Mattos (2004) e G. Soares (1992).
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para o posto do rio Pancas (ES), além de ter causado instabilidade à política indigenista na região. Note-se que esse episódio ocorreu no mesmo ano de outras situações de violência contra índios no país: os Kaingang no Paraná sofreram investidas que resultaram em vários mortos e choupanas incendiadas; além de ameaças e tomadas de terras pela força de Pataxós na Bahia e escravização de índios no Amazonas.33 Verificava-se assim uma reação contra a política protecionista do SPI que, apesar dos limites, buscava resguardar algumas terras para determinados grupos indígenas. Uma das crianças que sobreviveu ao massacre de 1923 ao se esconder nas matas em torno do rio Eme, Pac (filho de Muim), veio a ser pai de Djanira (Indjambré), que guarda viva lembrança do episódio e o narra a seus descendentes em detalhes, ainda com emoção, como pude presenciar. 34 Embora muitos índios Krenak tenham morrido posteriormente por violências diversas, este foi o último massacre coletivo de maiores proporções e que passou a simbolizar (por estar presente na memória dos atuais índios que dele souberam por testemunhas oculares) todos os massacres anteriores. Pela narrativa oral desse episódio conhecido por eles como "Massacre do Kuparak", e de outros mais recentes, os índios Krenak tecem a memória e contam a história de violência que seu povo enfrentou durante cinco séculos de contato. Entre as consequências práticas do triste episódio, governo estadual e SPI aumentaram a área destinada aos índios, buscando evitar novas wnas de atrito. Para contornar o trauma e rearticular a política do SPI na região, o próprio general Rondon visitou os vinte e dois índios Krenak que ainda persistiam no Posto Guido Marliere (rio Eme) em 1926, acompanhado de participantes do 8.° Congresso Brasileiro de Geografia, que se realizava em Vitória. 35 Na ocasião o chefe do grupo indígena era Juquinhot, que substituíra Muirn, já falecido. Entretanto, entre a chefia de Muim e a de Juquinhot, houve outro chefe, Krembá, que teria sido morto em conflito interno pelos índios, segundo relatos orais. 36 Um pesquisador observou então que Juquinhot...
33
Boletim do SPI, 1923, f. 5, Museu do Índio, RJ.
34
V. o depoimento de Djanira (lndjambré) no Capítulo 12. 35 S. F. Abreu. Os índios Crenaques (Botocudos do rio Doce) em 1926 ... , p. 13. 36
I. M . de Mattos (1996).
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[... ] tem um caderno de notas, onde procura registrar fatos notáveis e os dias em que os índios trabalham nas roças. 37 O mesmo observador constatava que tais anotações do chefe indígena não obedeciam a "sinais convencionais", embora fossem ordenadas por rigorosa lógica, que possivelmente foi explicada oralmente pelo índio. Cada linha correspondia a um dia de trabalho com o nome de cada índio. Os signos eram de dois tipos: "pequenos círculos malfeitos, uma espécie de C" e outros que "dão a impressão de um cicloide mal desenhado". Havia também, como verificou o pesquisador, o desenho de um revólver no caderno de Juquinhot. O dia da visita do general Rondon à localidade, por exemplo, estava assinalado com uma seta, que o diferenciava dos demais dias. "Djimirá Rondão patchiá quijém borum" ("O general Rondon visitou a casa dos índios"), explicava Juquinhot. A iniciativa de escrita do chefe Juquinhot é sugestiva. Ele expressava uma tentativa de apropriação e reelaboração do uso de códigos escritos que, durante os séculos anteriores, tiveram peso decisivo na conformação dos códigos sobre tais índios, através de legislação e também de relatos que compunham a imagem e a história do grupo. Desse modo, colocava-se uma ortografia calcada em símbolos arbitrados por seu próprio autor que, assim, se diferenciava das convenções ortográficas estabelecidas pela sociedade nacional. Tais significantes tinham valor evocativo e compunham elementos descritivos ou narrativos referenciados na realidade por ele vivida, criando, por meio de elementos gráficos, uma forma de controle, pela escrita, de seus trabalhos e de suas vidas. Desse modo, os Krenak ensaiavam formas de contar e registrar sua própria história, diferenciadas das que até então serviam predominantemente para submetê-los, e buscavam extrapolar o limite da transmissão oral. Os significantes em forma de círculos pareciam aproximar-se das idas e vindas, avanços e recuos, expressando por meio de movimentos circulares suas experiências e cosmogonia. Além disso, agregava-se a tais símbolos um ícone, isto é, o desenho do revólver, quando é sabido que as armas de fogo foram (e eram) um dos principais instrumentos de sujeição dessas tribos. Essas iniciativas de formar registras ou acervos com os instrumentos e meios da civilização ocidental, mas dentro de seus próprios 37
I. M . de Mattos (1996).
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recursos, persistem entre os Krenak atuais, como pude constatar pelo considerável acervo de fotos e recortes de publicações guardado pelo chefe Him, como se verá no Capítulo 12. Nesse sentido, o destaque da visita de Rondon ao território indígena em 1926 parece ter sido reapropriado e entendido pelos índios não como gesto unilateral de um grande personagem, como fazem os relatos oficiais do SPI, mas como um momento de quebra do cotidiano do trabalho na roça e, ao mesmo tempo, articulava-se tal personagem de reconhecida projeção nacional à trajetória de vida dos Krenak. Era alguém que tinha visitado o kijame (maloca ou residência), isto é, o espaço próprio dos índios. Outras personalidades que visitaram a tribo no mesmo período não parecem ter sido destacadas nos registros de Juquinhot. Este sinalizava, assim, as proximidades e alianças possíveis desse dirigente do SPI cuja ação foi decisiva nos destinos e caminhos dos Krenak. Um dos atuais índios Krenak, descendente do grupo de Muim e Juquinhot, filho de Laurita, chama-se Rondon em seu nome brasileiro - o que evidencia a formação entre estes índios de um determinado conjunto de narrativas históricas referenciadas no contato com a sociedade nacional. E, mais particularmente, aponta a importância por eles atribuída em sua memória coletiva à presença do fundador do SPI, assim homenageado e de algum modo incorporado ao conjunto de tradições dessa etnia. "Os tempos do SPI" são vistos como uma das mais antigas referências históricas pelos atuais Krenak, que atribuem assim àquele contexto um caráter fundador das mudanças mais drásticas e perceptíveis em suas vidas. 38 O mesmo chefe Juquinhot foi, segundo relato de Krenaks atuais, quem batizou o totem que servia como agrupamento para reza, canto e dança e que foi levado da aldeia (cf. Capítulo 12).39 O nome dessa madeira de pau, ou Deus dos Índios, Deus dos Botocudos, como a ele se referem hoje os índios, era também]uquinhot. Vemos assim que este chefe Juquinhot aparece como elaborador privilegiado de símbolos e um dos artesãos das tradições do grupo. Além de escrever numa grafia "inventada" e destacar como personagem a figura de Rondon, Juquinhot erguia outras figuras, como essa madeira sagrada, cuja perda ainda hoje é sentida pelos índios, servindo-lhes de referência 38
Cf. depoimento de Djanira (lndjambré) ao autor, no Capítulo 12. Depoimentos de Maria Sônia Krenak (Tcharn) ao autor em 10-9- 1998 e 12-9-2000. 39
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como marco identitário entre o que se construiu e o que se perdeu em suas vidas. Apesar das condições desfavoráveis, os Krenak teimavam e teimam em ser detentores, agentes e narradores de sua própria história.
Entre visibilidade e invisibilidade Após a implantação da presença mediadora do SPI entre os índios Krenak, estes passaram a viver na complexa e tênue fronteira entre preservarem a condição indígena, ainda que transformada, e a integração indiscriminada à população nacional. Desde seu primeiro relatório, dirigido ao tenente-coronel Rondon, a quem considerava como "irmão mais velho", o tenente Estigarribia afirmava estar trabalhando pela "redempção dos indígenas, contingente precioso na formação do typo brasileiro". 40 Retomava-se, pois, o conhecido mote de incorporar e dissolver na argamassa nacional as culturas indígenas, dentro da concepção moderna de nação vigente desde o século XIX que pregava a homogeneidade política e cultural. Alguns agentes do órgão, como Genésio Pimentel Barbosa, encarregado no Posto Pancas que atuava diretamente em conta to com os Krenak, assumiam claramente uma postura hostil em relação às tradições culturais indígenas, pregando a necessidade de um "saneamento moral" para "corrigir os defeituosos hábitos" e, mais ainda, a "regeneração dos hábitos e costumes indígenas, destituídos que são de rudimentares princípios". 41 Por outro lado, verifica-se nos mesmos índios (que os discursos e documentos oficiais apontavam como já civilizados e pacificados) atitudes que revelavam resistências aos padrões de vida impostos, criando brechas e resguardando traços de suas identidades e padrões culturais, mediante sofridas negociações e estratégias. Ainda em 1920 anotava-se que o grupo chefiado pelo "capitão" Xembruc permanecia nas matas, evitando o Posto do SPI, cujos relatórios qualificavam tais índios como "grupo arredio e tribo vagabunda"Y Ou o caso dos Nakrehés 40 Relatório apresentado pelo Inspector Estigar;ribia em exercício no Estado do Espírito Santo, IR4, 1910, fume 166, Funai, Museu do Indio (RJ), p. 108. 41 Relatório apresentado pelo Sr. Genésio Pimentel Barbosa, encarregado do assentamento de máquinas do Posto de Pancas, ao Sr. Inspetor do Serviço de Proteção aos Índios no Estado do Espírito Santo, dezembro de 1916, Museu do Índio, RJ. 42 Relatório apresentado pelo Inspector Estiga>;ribia em exercício no Estado do Espírito Santo, IR4, 1910, fUme 166, Funai, Museu do Indio (RJ), p. 13.
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que em 1926 saíram em bando do Posto do rio Eme porque, segundo o inspetor Samuel Henrique da Silveira Lobo, ainda "guardam o instincto nômade peculiar aos habitantes do interior" e alegaram que iam visitar parentes em Itueto, e que só regressariam quando as casas prometidas a eles estivessem construídas. 43 Havia, como é sabido, antigas divergências tribais entre estes Nakrehés (que haviam sido deslocados para a área do rio Eme) e os Krenak, que aí se encontravam anteriormente, ambos pertencentes ao mesmo grupo etnolinguístico. Os primeiros tempos do SPI, que acarretaram um contato intenso e permanente desses índios com a sociedade nacional, trouxeram novos surtos de doenças, em alguns casos epidêmicas. Assim verificaram-se entre 1920 e 1926 epidemias de varíola, sarampo, malária, bouba, gripe, e constantes manifestações de diarreias e outras infecções. Muitos índios morreram, outros ficaram incapacitados para o trabalho produtivo que se esperava deles, alguns preferiam fugir isoladamente para o mato ou para as cidades. Tais doenças causaram considerável baixa demográfica entre os índios sob o governo do SPI. No raiar do século XX as doenças dizimavam mais do que os massacres armados. Ao mesmo tempo, o órgão indigenista passa a permitir e até incentivar a presença de colonos brasileiros e estrangeiros no interior das terras indígenas, mesmo no Posto do rio Eme, cuja área havia sido cedida oficialmente pelo governo de Minas para os índios, como já foi visto. Estes novos moradores, embora reconhecidos oficialmente como invasores, eram devidamente acolhidos e tinham direito a se estabelecerem e até de plantarem no interior do território indígena, recebendo faixas de terras próprias para isso. O argumento dos encarregados do SPI: "assim se vão colonizando, gratuitamente para os cofres públicos, aquelas paragens". 44 Instalaram-se então, além dos agricultores brasileiros, três famílias alemãs e austríacas em 1921. O resultado de tal política foi que, oito anos depois, em fins da Primeira República, os índios estavam em minoria na área do rio Eme, ainda chamada de Posto Cuido Marliere. Havia cento e noventa brasileiros, dezessete estrangeiros e quarenta e sete índios. 45 A tendência parecia
43
Relat6rio dos servifOS eftctuados durante o ano de 1926, SPI, Museu do Índio, RJ. Relat6rio dos trabalhos efttuados na Inspectoria deste servifO do Espfrito Santo durante o ano pr6ximo passado. SPI. Museu do Índio, RJ, 1920, p. 31. 45 ExposifáO da atuafáo dos trabalhos a cargo desta Inspectoria durante o ano de 1929 findo, SPI- BA e MG, 1930, p. 376, Museu do Índio, RJ. 44
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ser a de reforçar a invisibilidade destes últimos como índios, tornando-os, em suas próprias terras, minoritários. Os trabalhos do SPI, assim como os da Comissão Rondon que implantava fios telegráficos, foram marcados pela produção de registros visuais: fotografias e até filmes. 46 Estes materiais compunham, portanto, uma certa imagem dos índios, ou apontavam para o modo como deveriam ser vistos, ou ocultados. No tocante aos Krenak, houve também esta profusão de fotos que acompanhou e sucedeu os primeiros momentos do contato com os agentes indigenistas republicanos. Nessas fotografias, há uma característica marcante: os índios estavam sempre vestidos- quando apareciam, pois nem sempre figuravam nas fotos. Segundo o trabalho de Maria Elizabeth Brêa Monteiro, somente no Posto Pancas (ES) foram tiradas em torno de cem fotografias entre fins dos anos 1910 e início da década seguinte. 47 E, como analisou a mesma autora, os índios quase não apareciam na maioria dessas fotos institucionais, que mostravam florestas desmatadas, casas em construção, criação de animais domésticos, estradas sendo abertas e até símbolos nacionais, como a bandeira do Brasil. Os índios fotografados, nestes casos, além de não terem seus nomes identificados, estavam sempre em atitude de trabalho, na lavoura, na construção de casas ou na abertura de estradas (Figura 72).
Figura 72 46 Sobre as imagens da Comissão Rondon, v. L. A. Maciel, A nação por um fio ... e F. Tacca, Ofeitiço abstrato... 47 M. E. Brêa Monteiro (2004).
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Era o avanço do progresso e civilização ocidental incorporando à nação brasileira estas parcelas dos territórios e seus respectivos habitantes. Não se buscava mais o exotismo ou primitivismo dos "selvagens". Pode-se acrescentar então: o enfoque que dirigia as lentes mudara e os reduzidos grupos indígenas ainda arredios ao contato nessa região não eram fotografados. A fotografia passa a ter, nesse contexto, um caráter nitidamente civilizador, como se o ato de fotografar estivesse vinculado ao de vestir. O enquadramento das lentes correspondia ao enquadre nas regras do trabalho produtivo e ao abandono dos padrões culturais como nomadismo, uso de ornamentos e nudez. Sob tal ângulo, a Figura 73 é sugestiva uma vez que expressa essa situação de passagem e as mutações que ocorriam na vida dessas populações. Neste ícone podemos perceber as relações complexas de um momento híbrido e os diferentes níveis de negociação, resistência e sujeição: a iniciativa do Estado nacional por meio do órgão indigenista e as condições de vida dos índios, que não estavam plenamente enquadrados. A foto pode ser lida em pelo menos dois níveis: o das intenções de seus autores e o das expressões de seus personagens. Os objetivos do fotógrafo institucional podem ser captados pelas palavras da legenda que acompanha a foto e pela própria composição do ícone. A legenda, manuscrita com caligrafia da época, no verso da imagem, diz o seguinte: Serviço de Localização de Trabalhadores Nacionais. Inspetoria no Espírito Santo. Índios Aimorés que tomaram parte na turma de exploração entre o rio Doce e S. Mateus, para a construção da estrada e que, depois, estiveram na capital do Estado, em visita às autoridades. Fotógrafo: Alberto Lucacelli. Vitória, ES. 11,3 X 16,7. 28/9/1911. 48 Logo de cara, um sintomático esquecimento: o de colocar a "Proteção aos Índios" no título do órgão. Em seguida, definia-se a nomeação de Aimorés, escolhida inicialmente pelos responsáveis do SPILTN para estes índios, que só nos anos seguintes seriam denominados Krenak. Coloca-se também que tais indígenas só tiveram importância para serem fotografados porque participaram dos trabalhos 48
Cf. Lata 33, n. 33, I e II, Arquivo IHGB.
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para construção da estrada. Certamente era a rota que ligaria Colatina a São Mateus, uma das prioridades do SPILTN na região, cuja construção era comandada diretamente pelo engenheiro e inspetor Antônio Estigarribia, chefe regional do órgão. Em seguida, finaliza-se com a visita às autoridades na capital, gesto que, pelo menos desde o governo de D. João VI um século antes, foi característico das tentativas de subordinação ou de negociações desses índios. A legenda no verso identifica também algumas pessoas desta foto, apenas quatro, do numeroso grupo, por numeração manuscrita inserida na própria fotografia, acima de cada personagem considerado importante de ser nomeado. O número 1 é Delfina Chaves, uma mulher branca de cabelos claros, identificada como "Esposa do Escrevente e Professora". O número 2 era Cândido Chaves, "Escrevente". O terceiro, Antônio Francisco, "Intérprete". E, por último, "Texxú, Capitão Índio". Ou seja, identificava-se os dois principais agentes da civilização e da ordem nacional e os dois agentes intermediários com o grupo indígena. Está claro que tais identificações estabelecem uma hierarquia de importância e de poder. Hierarquia que pode ser vista na própria posição ou pose dos respectivos fotografados: o escrevente (isto é, escriturário da Justiça) aparece empertigado com seu paletó e chapéu de coco pretos, além de se destacar pela altura entre as crianças que o cercavam. Cândido Chaves, como já foi visto, era funcionário e auxiliar direto de Estigarribia e um dos encarregados das frentes de contato do SPILTN com os Botocudos. Ele e a esposa emergiam como espécies proeminentes de representantes da civilização em meio aos "bugres". A presença destacada de Delfina na foto, esposa de Chaves, indica como o poder público, ao ser exercido pelos agentes indigenistas em relação aos índios, continha traços patrimoniais e de clientela familiar, mesclando o público e o privado nas relações estabelecidas. O intérprete quase não sai na foto e seu corpo e rosto aparecem cortados pela metade no canto direito da imagem. E o chefe indígena também quase não se vê: está na última ftleira, só aparece da boca para cima e com chapéu na cabeça, embora ainda tente erguer o rosto para aparecer melhor na foto. Tex-xú ou Tetchuc, variando a grafia, era o mesmo chefe dos Gutkrak que, meses antes, fora contatado pelos pioneiros do SPI, conforme foi dito acima. Ele e seu grupo estavam então entre os que mantinham os "costumes antigos dos Botocudos", andavam nus e não
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falavam português. Tetchuc até afirmara ser canibal, diante das perguntas que lhe eram dirigidas, possivelmente por ironia ou para impressionar seu interlocutor. Entretanto, acossados pelas frentes de expansão, pelas guerras tribais e por doenças, passavam fome e viram muitos dos seus morrerem em situação desesperadora. Daí, Tetchuc aceitou o acordo de pacificação, desde que ganhassem terras e ferramentas para cultivá-las. Foi por causa desse movimento de negociação e aliança que ocorreu um racha entre os Gutkrak, quando Krenak saiu e criou seu próprio grupo, arredio ao acordo. Trágica ironia do destino: Tetchuc via agora seu grupo ser utilizado como mão de obra pelo governo no qual buscava apoio e, apesar de ter escolhido a estratégia de aliança para sobrevivência, foi o nome de Krenak que sobreviveu para a memória do grupo étnico e da sociedade nacional. A mudança na vida desse grupo chefiado porTetchuc foi intensa e rápida, como se vê pela foto, onde todos aparecem vestidos. Prosseguimos então nesta outra dimensão da leitura da imagem, isto é, das poses, expressões e condições de vida estampadas nos corpos dos fotografados. O que praticamente salta aos olhos nesta fotografia é a "comissão de frente" das índias jovens e dos meninos de barriga estufada. Se não fossem os garotos, poderíamos até imaginar por uma fração de segundos que estariam todas grávidas. Mas o que germinava em seus ventres era a miséria e doenças. Antes mesmo de cuidar das condições sanitárias, o governo através do SPILTN colocava-os para trabalhar, aplacando a sede das frentes de expansão. A penúria desta tribo consta dos relatos oficiais escritos, mas tal condição pode ser captada também nesta foto, onde a verminose, as pernas finas e os rostos endurecidos não se disfarçam pelas roupas padronizadas e mal-arranjadas que vestiam. O laço na cabeça de algumas lhes dá um certo ar patético, de anjos decaídos ou bonecas mal-arrumadas. E estavam descalços. O não uso dos sapatos (que aparece também nas imagens de escravos de origem africana do século XIX) era uma espécie de divisor de fronteiras sociais, demarcando os que, apesar de vestidos, não pertenciam plenamente aos padrões sociais vigentes, ou não tinham dinheiro para adquirir calçados. No caso dos índios, evidencia também a condição híbrida em que se encontravam. Oliatro índias, entre as mais velhas, usavam batoque nos lábios. O grupo registrado nesta fotografia pisava, com seus pés descalços, uma estrada que posteriormente seria pavimentada, apagando assim definitivamente quaisquer marcas de pegada que tivessem ficado. A foto cristalizou
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não apenas a presença de seus corpos, mas o momento e as condições em que viviam, as relações que estabeleciam e o caminho que trilhavam. Esta tribo desapareceria em pouco tempo, ela sim, devorada pela sociedade nacional.
Figura 73 Outra imagem sugestiva produzida pelo SPI foi a do "capitão" Nazaré, com a seguinte legenda: "Grupo de Índios Aimorés. Posto do Pancas, Estado doES, 12 x 17", sem data indicada. Colada no alto da foto, outra legenda datilografada: "Inspetoria do Espírito Santo". E, em grafia manuscrita, no verso, lê-se o nome de Nazaré (acompanhado de seu nome indígena, Oropa [duas letras finais ilegíveis] e, em escrita bastante apagada dificultando a compreensão, os nomes indígenas dos três jovens que o acompanhavam (Figura 74). 49 A data e circunstância desta foto podem ser situadas no relatório do SPI de 1920 que se refere à viagem de Colatina ao Posto Pancas do "nosso capitão Nazareth e mais três índios [que] quiseram acompanhá-lo". 50 O objetivo da viagem foi levar esse chefe indígena, cujo grupo habi49
Cf. Lata 33, n. 0 33, I e II, Arquivo IHGB . Relatório dos trabalhos efetuados na Inspectoria deste servifO do Espfrito Santo durante o ano próximo passado. SPI. Museu do Índio, RJ, 1920, p. 1. 50
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tava nas proximidades de Colatina na fronteira de Minas com Espírito Santo, até o Posto Pancas (ES), para tentar convencê-lo a se transferir para lá. A viagem foi toda feita debaixo de chuvas torrenciais. Mesmo tendo concordado com a ida até lá acompanhando a equipe do SPI, entretanto, o chefe índio não aceitou ficar definitivamente, alegando cansaço e distância. Os mais jovens que foram com ele, todavia, "gostaram muito e querem ir", segundo o mesmo relato oficial. A fotografia, portanto, foi tirada neste momento de negociação, tornando o ícone um dos elementos desse "diálogo". Os índios em questão ganhavam visibilidade nos registros escritos e iconográficos uma vez que eram considerados como possíveis aliados do órgão governamental. O "capitão" Nazaré parece ter tido, inicialmente, esta habilidade de sobrevivência e foi outro dentre os Botocudos que dialogou naquele momento com a proposta de "pacificação". Ao ser contatado nos idos de 1911 pelo SPILTN, os homens de seu grupo usavam apenas uma pequena tanga, como já foi citado acima. Mas a imagem que temos dele é sem sinal de uso de botoque e enfatiotado numa roupa padronizada: sem olhar agressivo, encarava diretamente a câmara, num misto de firmeza e tranquilidade. Estava em pé e recostado num móvel de madeira trabalhada, segurando um pano que, alegoricamente, pode ser compreendido como um lenço da paz, bandeira branca. Os quatro estão vestidos e calçados, o que indica a importância a eles atribuída naquele momento ou o esforço para agradá-los e trazê-los ao Posto, embora o rapaz sentado à direita da imagem apresente um certo ar de desconforto- quem sabe pelos sapatos apertados? O mesmo relatório do órgão indigenista refere-se a Nazaré de forma elogiosa como "um índio ativo e bom diretor de sua gente" e que possuía, na ocasião, "boas roças e algum gado". Entretanto, como a se precaver de possíveis reclamações, vinha narrado logo a seguir que certo dia, no povoado de Resplendor, Nazaré "embriagou-se, praticando muitos desatinos". Sugeria-se, portanto, que ele não estava plenamente enquadrado - o que contrariava os mesmos registros escritos e iconográficos que pretendiam atribuir-lhe a imagem de um "bom índio". Tal desconfiança de ambiguidade coincide com o testemunho do engenheiro Ceciliano Abel de Almeida que, em viagem pelo rio Doce, referiu-se aos "bugres do capitão Nazaré" que, segundo ouviu de alguns moradores da região, eram "mansos sim, quando lhes dão roupas e eles vestem-nas, mas quando entram, de novo, na
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mata, e despem-nas, tornam-se bravos como dantes". 51 Vestidos para ou pela fotografia, ganhando visibilidade por sua capacidade de aproximação e contato, Nazaré e os índios de seu grupo, que mantinham ao mesmo tempo nomes tribais e nomes em português, criavam brechas neste enquadre, com negociadas estratégias de resistência.
Figura 74
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Havia, pois, esta mistura de visibilidade e ocultação das identidades indígenas, seja através de estratégias de resistência e sobrevivência, quanto de tentativas de subordinação e eliminação dos padrões culturais, gerando situações híbridas e mutações étnicas, entre perdas e ganhos. Curioso paradoxo: ao mesmo tempo que os Krenak eram induzidos a se confundirem com a população nacional, ainda se mantinha em torno deles uma parcela da curiosidade e da fama dos "temíveis Botocudos". As visitas de personalidades e pesquisadores nacionais e estrangeiros eram frequentes. Nas três primeiras décadas do século XX, mantendo acesos os holofotes em torno de tais índios, estiveram presentes nos Postos Indígenas dos Krenak diversas personalidades do mundo da política e da cultura. Visitaram-nos, acolhidos formalmente pelo SPI: Henri Borel e Charles Montzé (da Embaixada da Bélgica) em 1921, que exaltaram por escrito a "missão civilizadora" feita com os índios; Elizabeth (Bessie) Steen, conhecida antropóloga norte-americana especialista em artes indígenas, considerada a primeira pesquisadora "branca" a viajar pela floresta amazônica e diretora da Universidade de Artes e Ofícios da Califórnia, bem como o governador do Espírito Santo, Florentino Ávidos, possivelmente ávido (o trocadilho é irresistível) para tratar de assuntos pragmáticos, além do general Rondon, todos em 1926.52 Em 1929, foi a vez de representantes da Embaixada e do Consulado da França encontrarem os mesmos índios, acompanhados do professor Maurice Caullery, importante biólogo e zoólogo, autor de vários livros e membro de diversas instituições científicas internacionais, entre as quais o Institut de France. 53 Além desta espécie de "turismo étnico", outros pesquisadores estiveram entre os Krenak no mesmo período, produzindo e publicando trabalhos, como os casos já citados do russo Henri Manizer (1915) e Sylvio Fróis de Abreu (1926), além de Antônio Carlos Simoens da Silva (1924) e Curt Nimuendajú (1939). O moderno pensamento etnológico e antropológico produziu, assim, suas primeiras reflexões sobre os Krenak por intermédio de Manizer, de Nimuendajú e de Alfred Métraux (1930) que, mesmo sem 51
Citado em I. M . Mattos (2004, p. 192). Relatório dos serviços eftctuados durante o ano de 1926, SPI, Museu do Índio, RJ. 53 Exposição da atuação dos trabalhos a cargo desta Inspectoria durante o ano de 1929 findo, SPI- BA e MG, 1930, p. 376, Museu do Índio, RJ. 52
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estar em contato direto com tais índios, elaborou um importante texto sobre eles. As análises de Métraux & Ploetz foram as primeiras que, de modo mais consistente e direto, dialogaram, criticaram e desconstruíram o arcabouço teórico-científico da antropologia física e evolucionista no tocante aos Botocudos. 54 Baseado na releitura crítica dos numerosos trabalhos anteriores, desde os primeiros estudos até os então recentes antropólogos oitocentistas, Métraux punha em evidência os "viajantes repletos de preconceitos" e o determinismo físico que gerava concepções e imagens de inferioridade sobre tais índios. Reflexão desenvolvida com mais clareza no capítulo 25 do trabalho, sugestivamente chamado ''As capacidades intelectuais dos Botocudos", no qual destacava a capacidade de adaptação e conhecimento do meio ambiente desses indivíduos e associava os discursos depreciativos aos interesses sobre as terras dos índios. Métraux também discutiu de modo pioneiro a noção de Direito entre os Botocudos, bem como aspectos essenciais de suas cosmologias, crenças, rituais e organização social. Alfred Métraux (1902-1963), suíço de formação norte-americana e francesa, foi um dos mais fecundos antropólogos do século XX, publicando cerca de duzentos e cinquenta títulos (com ênfase nos estudos americanistas), renovando o conhecimento de diversos temas que abordou, e foi o principal organizador do Handobook of South American Indians (1946-1950), além de militante em favor dos direitos políticos e culturais das populações indígenas através da Unesco e de outros órgãos. Destacam-se também as pesquisas do alemão naturalizado brasileiro Curt Nimuendajú (1883-1945) que esteve no Posto Indígena do rio Eme nos anos 1930 onde recolheu mitos, vocábulos e costumes que ajudam a conhecer em mais profundidade a cultura desse povo. 55 Nimuendajú, sobrenome guarani adotado por Curt Unkel, vinculou-se ao SPI e durante quatro décadas percorreu o Brasil convivendo com os mais diversos grupos indígenas, morando entre eles, aprendendo suas línguas. Dessas atividades resultaram cerca de seis dezenas de trabalhos consistentes sobre religião, mitos e morfologia social, além da elaboração do conhecido Mapa etno- histórico do Brasil, 54 A. Métraux & H. Ploetz. La civilisation matérielle et la vie sociale et religieuse des indiens Zê du Brésil méridional et oriental . . ., 1930. 55 C . Nimuendaju. Social organization and beliefs ofthe Botocudo ofEastern Brazil . .. , 1946.
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onde indicava, aliás, os diversos subgrupos de Botocudos que conheceu ou soube da existência, ressaltando os nomes específicos de cada um deles e não a denominação genérica. 56 Foi Nimuendajú quem parece ter se apropriado do único totem existente entre os l::>n!OA'1V ')IVN3:1DI
OL.v
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA
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Figura 93
lndjambré e uma aula de história A população dos Krenak na terra Reconquistada na época de minhas visitas girava em torno de cento e cinquenta indivíduos e continua aumentando progressivamente, não só com os nascimentos, mas com a chegada de parentes dispersos pelos exílios e repressões dos anos anteriores. Encontro alguns índios descendentes do grupo dos Gutkrak, ao qual pertenciam os chefes Krenak e Muim. No terreiro da casa de Laurita (Tacrukinic) ouvimos algumas frases em Borum bastante fluente, bem como rápidas lembranças do tempo de sua infância e do presídio (Figura 94). Cercada de netos, ela explica que tem trabalhado para ensinar a língua e as tradições Borum aos mais jovens: Muitos tá aprendendo, porque eu to ensinando, né? Muito tá aprendendo, cantar, aprender as coisas. Eles estão sabendo já. Mas têm muitos que não interessa, tem muitos que aprendeu mais negócio de branco, então não interessa... Antigamente os índios não gostava de ficar ensinando a ler por causa disso, porque aí aprendia mais negócio de branco.
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Mesmo reconhecendo as dificuldades e o desinteresse, Laurita assegura assim a transmissão da língua materna e paterna, que volta, ao que parece, a ser usada no âmbito doméstico. 9
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Figura 94
9 Nas três vezes em que fui à reserva indígena dos Krenak tentei entrevistar Laurita, mas infelizmente ela não se mostrou disposta a falar. Apenas na última vez aceitou gravar um depoimento, mas interrompeu a conversa em poucos minutos, nos quais, entretanto, forneceu informações preciosas.
SEMENTES NA TERRA RECONQUISTADA
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A alguns passos da casa desta bisneta do chefe Krenak corre o rio Eme, do qual tanto ouvira falar nos documentos antigos: ali os animais domésticos e aves selvagens bebem, as mulheres lavam roupas e as crianças brincam e mergulham com familiaridade. Um grupo de curucas fica curioso com minha pequena ftlmadora e passo a eles por uns instantes o aparelho, quando se divertem em captar imagens (Figura 95).
Figura 95 Andando pela área sou apresentado a Waldemar Krenak (fllho de Jacó e, portanto, bisneto do chefe Krenak) que era na ocasião, logo após a retomada legal das terras em 1997 pelos Krenak, chefe do Posto Indígena. Recebeu-me com simpatia e disse para que eu ficasse à vontade no território, desejando sucesso na pesquisa. Posteriormente Waldemar ocuparia o cargo de administrador regional da Funai em Governador Valadares (estado de Minas Gerais). Mostrei também os daguerreótipos a Djanira de Sousa, quarenta e sete anos, tratada pelo apelido de Deja, na língua Krenak chama-se lndjambré. Vivaz, ela é chefe de um grupo familiar no
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interior da aldeia composto de muitos filhos e netos: conhecida como contadora de histórias, tem fluência verbal e é uma das depositárias da tradição oral das lendas e narrativas antigas e da própria língua Borum. Orgulha-se de ser bisneta do "capitão" Krenak. Deja recebeu-me no terreiro de sua casa e logo formou-se à volta um grupo de familiares para escutar a conversa, jovens e crianças. Todos sentaram no chão ou em troncos de árvore, só havia duas cadeiras e ela, sentando-se numa, designou-me a outra, tratando-me de maneira cortês por kraí (branco ou não índio em Borum). Embora Deja fale português fluente e com sotaque do interior mineiro, percebi nela um sotaque Borum mais acentuado e fiquei com a impressão de que este é o idioma em que ela se expressa com mais sentimento e à vontade. Filmei a conversa. Passei-lhe as reproduções dos daguerreótipos de 1844 e repeti minha breve explicação. A reação de Deja foi imediata: passou a mostrar o retrato da mulher aos filhos e netos ao redor, fazendo a seguir comentários sobre cada uma das imagens em Borum. Como não compreendo esta língua, aguardei. Mostrando agora o retrato do rapaz posando de frente, ela passa a falar em português, ou seja, para mim também: -Olha aqui, os parentes da gente!. .. Com essa simples frase Indjambré estabeleceu o parentesco e a descendência, pouco importando se genética (consanguínea), cultural (do mesmo grupo etnolinguístico) ou simbólica (identificando-se e a seu grupo) com os dois índios fotografados. As imagens feitas em Paris em 1844 estavam sendo repatriadas. Ainda brandindo o retrato do rapaz, ela afirma: -Esse aí já morreu há muitos anos, né? ... Ave Maria! Nós somos os restantes, né? ... Deixando de lado termos como remanescentes ou sobreviventes, ela usa o sugestivo termo restante, isto é, os que não foram assassinados, como ela situará no decorrer de sua fala. E Dejanira volta a falar em Borum com seus próprios descendentes, fazendo, entre outras coisas, comentários sobre o batoque nas orelhas do rapaz e no furo dos lábios da moça, como me traduziria rapidamente depois . Ela estava ali dando uma aula não só de um episódio da história de seu povo, mas de sua cultura e na sua língua a partir do elemento externo (as fotos) que eu trouxera. E me fazia presenciar a transmissão oral. Falando em sua língua original, ela estava como que estabelecendo o vínculo entre os antigos e os novos e cumprindo o papel criativo de
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intelectual. Indjambré ensinava também aos seus descendentes a língua, as tradições e a história na perspectiva de sua própria cultura. Naquele momento dei-me conta que meu papel de historiador em fase de pesquisa junto desses índios poderia ser este: como que um agente transmissor entre determinados arquivos (aos quais eles não costumam ter acesso) e o patrimônio de sua cultura, que não é estática e pode reelaborar-se, inclusive, neste contato com o passado do grupo, desde que tal transformação seja, digamos, filtrada por seus próprios valores e concepções, que se expressam sobretudo por meio da identidade linguística. Talvez por isso, no momento crucial de transmitir aos seus descendentes a imagem de antepassados, simbólicos ou não, ela fez questão de expressar-se em Borum. Enquanto falava no seu idioma ela deu uma gargalhada, no que foi acompanhada dos parentes e eu mesmo acabei rindo também. Ela regozijou-se em português: - Ah, uma risada .. .P 0 Em seguida, Deja pergunta-me, sempre mostrando as fotos erguidas, se elas foram tiradas nos tempos do SPI. Vacilei um pouco para pronunciar-me e ela não aguardou minha resposta, deu o silêncio como assentimento e passou a falar dos tempos antigos, isto é, aqueles alcançados por sua memória pessoal ou transmitidos a ela por seus antepassados imediatos. -Isso aqui tudo era mata... Depois que o branco andou matando índio ... Em duas frases ela coloca a ligação entre a destruição do meio ambiente com a perseguição aos grupos indígenas, trazendo também a associação entre guerra e imagem. Sua narrativa passa a ser acompanhada de gestos constantes: a linguagem corporal expressiva. A gesticulação traça arabescos no ar, sua cabeça vira constantemente de um lado para outro, de maneira pausada e segura, como querendo mostrar o lugar onde se passa a história que conta. Os dedos apontando e os braços esticados pareciam querer tocar ou trazer de volta o tempo passado, revivido de maneira intensa por meio de suas palavras. Mais uma vez a linearidade do tempo rompia-se, enquanto construíam-se os nexos entre aqueles daguerreótipos e o tempo presente. Os dedos e mãos de Indjambré enquanto mexiam-se no ar como que teciam esta teia. 10 Posteriormente recordei do texto de Frank Lestringant, "Léry ou !e rire de I'Indien", prefácio a Jean de Léry. Histoire d'un voyage enterre de Brésil (1578}. Paris: Le Livre de Poche, Bibliotheque Classique, 1994, pp. 15-40.
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Ao falar da ligação entre fotografia e morte, Barthes lembrou o exemplo da Comuna de Paris, quando os revoltosos que se deixaram fotografar foram depois perseguidos pela polícia de Thiers e assassinadosY Agora vejo Indjambré narrar-me, sempre empunhando as reproduções dos daguerreótipos (apropriara-se deles) e às vezes esgrimando-as no ar, uma história contada por seu pai, Pac, e por seu tio Jacó, que eram crianças quando o episódio ocorreu. A princípio não identifiquei do que se tratava. Mas logo me dei conta de que eu estava presenciando uma narrativa bilíngue (Borum e português) do Massacre do Kuparak de 1923 (cf. Capítulo 10), a última tentativa de matança coletiva de uma aldeia registrada contra estes índios, prática constante nos séculos anteriores. Apesar de longa, transcrevo a instigante fala de Indjambré, que se constitui numa complexa palestra sobre a história de seu povo, entremeada de diálogos dos personagens citados: A gente não existia não. Aqui tudo era mata ... ! Até lá [gesto largo] pro lado do Garrafão, lá no Kuparack. Depois que o branco andou matando índio ... O índio morava lá [aponta] e o chefe morava ali do outro lado do rio [aponta para outro lado]. Mas o branco acabou com os pobrezinhos dos índios lá, matou ... matou índio ... Aí saíram ali por debaixo do ... tinha só trilha, não passava carro, não passava nada, só animal, cavalo. Aí passaram por debaixo dali das matas até sair lá pra acudir o índio. Aí quando começou a matar o índio, saiu um parente da gente, que sabia conversar na língua da gente. Aí eles conversaram. Nosso parente conversava com eles na língua, e eles não sabiam. "O que cês ta falando?" "Nós tamo falando é isso" e iam mostrando. Aí eles foram aprendendo. Ele era irmão do tio Cristino. Morava tudo aqui. Então os meus parente saiu de lá, quando tava acabando com os parente da gente lá, aí saiu meu pai, meus tio e veio por dentro, debaixo da mata escondido, saiu cá na beira do rio, aí travessou e avisou o chefe que os branco tava acabando com o índio, tava matando. Eles matava a mãe, o pai, pegava o nenenzinho e botava no meio da estrada. O nenenzinho chorava, eles com facão armado pra poder bater. Assim que o nenenzinho chorava, na estrada, quando o pai vi11
R. Barthes, op. cit., p. 25.
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nha pegar, ou mãe, eles pegava [faz gesto com a mão imitando o facão] e cortava com facão. Se não aparecia ninguém, aí eles cortava o neném. Cortava tudo. Ai deixava. Ai os parentes da gente disse que fugiu pros mato e avisou, pra chamar o chefe. Ai o chefe vinha e ... [ela continua um trecho da narrativa falando em Borum, depois retoma em português] .... e tudo .. . aí ... tá arrasando, tudo derrubado. Ai . .. inté ... mode que .. . Aí o chefe falou: "O que é que a nós pode fazer?" "O que é que nós pode fazer? Pode ir lá pegar o 'tomóvel, naquele tempo se falava assim, o branco tem 'tomóvel, vai lá buscar polícia pra poder levar lá". Ai o chefe falou: "é, tem que fazer isso mesmo". Aí foi lá pegou o 'tomóvel, avisou a polícia, aí atendeu o chefe. "Como é que nós faz pra ir lá? Nós não temos carro. "Não tem carro, então pega cavalo." Ai arrumou uns animal pros policial. Ai o índio foi na frente, o chefe e o companheiro do chefe. [Narra a seguir o diálogo entre os policiais e os índios.] - Vocês conhecem os brancos, aqueles que matou os índios? -Sei . .. -Vocês sabem mesmo? - Sei ... Qyando chegar lá a pé eu vou avisar vocês. Ai chegaram na casona deles lá, aquela maloca grande . . . Aí tio Cristino: [Ela fala o diálogo em Borum.]. Ai falou com eles: - É aqui que tá os homens. Mas é verdade mesmo?, tornou a perguntar. [Fala a resposta em Borum.] - Então nós vamos rodear, vamos cercar ela. Aí tornou a perguntar: [Fala em Borum.]. Faltava uma hora pro almoço deles lá. Ai disse que o chefe chegou e bateu palma. Aí a polícia cercou tudo, os homens. Aí saiu um homem. Ai o chefe perguntou na língua [Fala em Borum e depois traduz para o português.]: "É esse aí que matou nós! É esse aí. .. ! É esse aí mesmo que matou nossos tonton .. .".Ai foi e falou com a polícia. Aí a polícia foi e falou assim: "Vamos abrir essa porta!" Acho que eles abriram a porta pra poder olhar. Ai chegou lá e os homens viram que eram os soldados e disse "Nossa senhora, agora nós deve tá perdido!" [riso divertido] Ai cadê jeito pra correr? Ai disse que a polícia foi lá e entrou dentro de casa: "vocês estão presos!" Ai um querendo abrir a janela pra correr! Ai o outro escapuliu ... Ai eles disseram: do jeito que vocês fizeram com índio a gente vai fazer com vocês [Repete
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com a mão o gesto imitando o facão.] Aí diz que foi matando. Do jeito que vocês fizeram com neném novo nós vamos fazer também. Aí foram cortando com facão. Aí eles disseram: "não faz isso não! Não me mata não! Eu sou pai de filho!" "Mas vocês não mataram pai de filho? Então nós vamos matar vocês também." Aí bateu, eles caíram, aí foi lá e cortou eles com facão [sorriso]. ''Agora, vocês nunca mais vai fazer isso com índio! Vocês não sabem que índio são de menor? Não pode fazer isso! Então nós vai fazer do mesmo jeito ... " Aí eles foi lá, pegou 'mendoim, rapadura, banana, jogou tudo no chão pros índios . .. "tome aí!" Aí os parente da gente foi, assobiou, chamando os parente da gente, pelo 'sobio [assobio]. Aí os meninos de lá respondeu tudo. [Fala em Borum e traduz em seguida para português.]. Vem cá pra nós comer 'mendoim! 'mendoim com rapadura! [risada divertida]. Aí os parente da gente chegou, diz que tava tudo alegre, os indiozinho. Tava tudo escondido, com fome no meio do mato, com medo de morrer. "Pode comer tudo aí à vontade! Tudo aí no chão! Pode comer tudo" Aí jogou um bocado... matou ... deixou pra lá ... ''Ainda tem mais? Tem mais!" Ah, foi juntando o pessoal, foi juntando. O chefe disse: ''Agora vocês vão morar tudo aí dentro. Agora não dá pra vocês diminuírem senão o resto dos kraí vai acabar com vocês. Então vamos botar tudo aqui pra dentro". E tá tudo aí até hoje. Mode de que eles sofreram. Aí eles pegaram e acabaram de experimentar aqueles legumes ... Aí a polícia falou: "}em mais?" E o chefe falou: "tem mais ... " "Então vamos lá." E mas os índios lá foi sabido, porque tinha escondido, só ficava a cozinheira lá. Assim que eles chegaram falaram assim: os homens podem ver você com os índios, e vigiem a estrada. Se vier alguém você avisa nós. Você leva comida e vai até cm cima... mostrando o lugar, né?. Aí o chefe nosso chegou lá e nós. Aí chegou lá foram quebrando cana, a polícia foi deixando, prá eles chupar... Aí chegou lá assim um monte de canavial... Aí falou assim: "Cuidado ... ! com os pessoal, cê fica quieto, senão se eles conversar, eles vai correr." [Narra diálogos em Borum.] Não, cê fica quieto. Aí aqueles policial quebrou cana. Aí chegou numa casona. Aí lá a mulher saía e entrava pra dentro. Saía e entrava pra dentro. [Imita com o corpo o movimento.] Aí falaram assim: "Tá vendo aquela mulher lá? É companheira
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também. Ela é matadora de gente, de índio. Ela que leva comida pros kinham no mato." Aí os homens tava escondido. Aí os policial falou: "Ela tá querendo levar almoço, tá na hora de almoço mesmo. Vamos ficar escondido." E eles só olhando ela. Ela saía, entrava pra casa. Tornava a sair.. . E eles lá abaixado olhando. Depois de muito tempo ela saiu com uma baciona... com uma gamela, cheia de comida. Aí foi pro picadão ... e eles tão olhando, pra onde que ela ia. E a polícia disse: "cês vão ficar aqui e eu que vou 'companhar. E eu vou cercar eles". E o chefe falou assim: [Fala em Borum e depois traduz em português.] "Vocês fica aí quietinho, meus filhos, que eu vou lá pegar os brancos. Vou levar tcholdát." Tcholdát é polícia, né? Aí disse que foram 'companhando a mulher, né? 'companhando, 'companhando, até chegou no mato, a mulher parava, olhava pra trás, eles abaixava [Imita com o corpo o movimento.]. Aí chegou lá no final da mata e ela: "já chegou o almoço, tá pronto!" Aí a polícia escutou: "é ali! Deixa ela chegar, deixa chegar pra almoçar!" E a polícia pertinho, 'suntando. Aí quando a polícia chegou e disse: "tá tudo quietinho, deve de tá comendo". Aí a polícia falou: "um vai pro lado, outro vai pro outro". Aí chegou devagarzinho: "Vocês tá preso!" Aí disse que eles ficou assustado. Aí ficou: "não, não corre não". Estava tudo cercado. Aí as polícia deram tiro e algemaram eles. Eles correram, foram atrás, deram tiro, machucando eles, né? Aí cataram eles e matou um bocado dos homens, lá mesmo no mato. Tadinhos, nem deram pra eles sumir... [sorriso]. A mulher dizia: "Não faça isso não!" Aí 'cabou com os homens, matou, machucou ... deixou pra lá ... um bocado fugiu. Aí pegou a mulher pra dar uma coça. E ela dizia: "não foi eu não, não tenho nada com isso!" "Não, mas você tem sim, você tava dando cobertura pra eles, carregando comida. Por que você não avisou nós?." Vixe, mas bateu, bateu, bateu ... E ela: "não me mate não!" E ele: "eu vou matar também". Aí a mulher disse: "O meu Deus, não me mate não!" "Mato sim!" E diz que bateu, bateu, até matar! Mataram essa mulher! Eu não era nascida, meu pai era criança ainda. Meu pai, minha tia, meu tio Jacó. Eles vieram fugindo pelas matas, quase não se podia passar com medo dos homens, e eles é que vieram na frente. Meu tio Krembá era chefe. O chefe dos índios, o cacique, era
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meu bisavô que era o capitão Krenak. Aí ele morreu ficou o filho que era o capitão, Muim . Aí esse Muim morreu c tlcou Krembá. Meu pai chamava Pac c o nome dele mesmo era Jnsé Manuel. Meu nome é Dcjanira, na língua é lndjambré, é mulher de idade ... Aí eles trouxeram os índios tudo pra cá. Coitado de nós. Nós sofremos c tamos sofrendo inté agora. "E como é que eles não matou vocês?" Não matou nós porque nos fugimo s, ué! Corre ram pra beira do rio, por isso que não matou eles. Aí o chefe protegeu. :Foi uma matança de quase toda uma aldeia por "brancos" (kraí). Numa primeira investida, os agressores mataram alguns adultos c levaram as crianças. Em seguida, colocaram as crianças (que choravam alto) na beira da estrada e esconderam-se nas proximidades. Qlando os pais ouvindo o choro apareciam para resgatar os fi lhos eram mortos a golpes de facão. - Se não aparecia ninguém eles cortavam os nenenzinho:; de facão também, mataram tudo . Ela contou então, sem esconder satisfação, como sobreviventes do massacre, entre os quais seu pai Pac c seus tios Jacó c Sebastiana, guiaram alguns policiais e depois de muitas artimanhas e esfor~~os conseguiram vingar-se, matando também de facão alguns colonos que haviam cometido a a~ressão. E arremata: -Nós sofremos c tamos sofrendo inté agora. Não matou n