A religião no início do milênio 8515025671

Anunciou-se a morte da religião, mas ela teima em renascer das cinzas, já não sob a forma institucional, mas na pluralid

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Portuguese Pages 283 [284] Year 2002

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Table of contents :
Sumário
Introdução
1. O fato do ressurgimento religioso
2. Compreensão do fenômeno religioso
3. Delimitação dos campos semânticos
4. Religião corno instituição: desafios e respostas
5. A religiosidade e a fé cristã
Conclusão
Bibliografia
Índice de nomes
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A religião no início do milênio
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JOAO BATISTA

LIBANIO

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'A -GiA l>ISTI:-.:ÇÃO: R.\ZAO METOIXlLÚGICA. ...................................

III.

ÜEFl!',;1, a água da leitura do evangelho se converterá em vinho." 49 47. H. de Lubac, La postérité spirituelle de }oachim de Flore, t. 1: De Joachim à Schellling ; t. 2: De Saint-Simon à nos jours, Paris-Namur, Lethielleux, 1979-1981. 48. H. de Lubac, Exégése mediévale. Les quatre sens de l'écriture, II• parte, I, Paris, Aubier, 1961, pp. 437-558. 49. Textos traduzidos por mim do latim ou do francês, tirados do livro de H. de Lubac, La postérité ...

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O fenômeno de J. de Fiore e outros surtos espiritualistas à margem da instituição revelaram o déficit carismático que atravessa toda a história da I greja Católica. As primeiras explosões dessa natureza já acon­ teceram na Igreja de Corinto e na virada do século II, com o movimento montanista. No primeiro caso, Paulo precisou intervir com firmeza e deixou­ nos preciosos capítulos de discernimento dos carismas na Primeira Epístola aos Coríntios (caps. 12-14 ). O surto montanista sig nificou ponto decisivo de retração diante do carismatismo na I greja. O clima carismático existia nos parâmetros traçados por Paulo. lreneu de Lião, que será o grande adversário dos mon­ tanistas, reconhece a pluralidade de carismas, recebidos por Deus, no seio da Igreja. São os espirituais'º. Tal clima carismático transborda com Montano que associa ao carismatismo e messianismo dose de espiritualis­ mo antiinstitucional e de desprezo da matéria. Ele encontrou na Frígia campo fértil para tais manifestações, já que lá existiam cultos violentos, emoções religiosas intensas. Assim Montano com duas profetisas, que logo o acompanharam, conseguiu imitadores. Formou-se verdadeira seita. Agi­ tou toda a região. Multiplicaram-se as manifestações extáticas. Associou­ se o anúncio da descida iminente da Jerusalém celeste. Forma extrema­ mente religiosa e fanática que abalou a hierarquia da lgreja 51 . A Igreja re­ age vigorosamente na pessoa de lreneu de Lião, na França. Cria-se dora­ vante uma atitude de suspeita na Igreja que ficou traumatizada com a ex­ periência montanista. Inicia-se um enorme déficit carismático, que a onda atual ensaia cobrir. J. Comblin fez uma reflexão mais ampla e geral, em que contrapõe numa dialética os pólos do judeu e do pagão 52. Tanto mais interessante é esta reflexão quanto mais trabalhamos com a presunção de estar diante de um recrudescimento de formas neopagãs até mesmo no seio da Igreja Católica. O judeu simboliza a lei, a observância rí gida. Prolongando o pensa­ mento de J. Comblin, tal pólo se radicaliza ainda mais com a cultura romana jurídica. O pagão representa a idolatria, a permissividade, o relaxa­ mento. O cristianismo apresenta-se como superação dialética, assu­ mindo do judeu a lei na liberdade e do pagão a liberdade com a lei. No centro da superação está a liberdade. 50. lreneu de Liào, Adv. Haer. II, XXXII, 4. 51. G. Bardy, Montanisme, in Dictionnaire de Théologie Catholique, Paris, Letouzey & Ané, 1929, X/2. col. 2355-2370. 52. J. Comblin. O Esp írito Santo e a libertação, Petrópolis, Vozes, 1987, pp. 81-83.

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A dlal6tlca dos pagãos e dos judeus • A dialética dos pagãos e dos judeus tem um alcance mais amplo que o antagonismo de dois povos sociologicamente definidos. Pois judeu e pa­ gão são categorias universais ... Na sociedade pretensamente cristã, ainda subsiste o judeu e subsiste o pagão. Ainda subsiste o antagonismo entre eles. O cristão tem em si um pagão e um judeu. " 53

Acontece que nenhuma superação dialética tem o equilíbrio da perfeição. Termina por carregar mais a positividade de um dos pólos para dentro de sua novidade. Assim a liberdade cristã na Igreja tem mais da tradição ju­ deu-romana do que pagã. Trazendo tal reflexão para o contexto de nosso tema, a tradição católica manteve, sem dúvida, algo da liberdade cristã. No entanto, o peso caiu sobre a lei. O déficit maior ficou do lado pagão da permissividade e menor do lado judeu da lei. E esse déficit foi crescendo depois do século XI até chegar no pontificado de Pio XII a um volume de dívida externa brasileira. A reviravolta carismática, que se inicia na década de 1960 e se radi­ caliza nos nossos dias, inverte o movimento. Ao terminar a era piana com a morte de Pio XII em 1958, caracterizada pelo auge do centralismo e poder pontifício, desponta um "novo pentecostes", "uma nova primavera" na lin­ guagem do papa João XXIII. Esse movimento renovador não assumiu a forma do atual fenômeno religioso. Pareceu, pelo contrário, ter criado um "novo Espírito" que se manifestou em atitudes críticas, secularizantes e transforma­ doras de estruturas, de busca de experiências novas nos diversos campos da liturgia, da vida religiosa, da participação do leigo, do compromisso social. O jogo de causalidades, que conduziu ao momento atual de explo­ são religiosa, passou pela renovação do Concílio de modo paradoxal. Esse clima inovador gerou, em partes da Igreja Católica, dois movimentos que vieram aumentar o clima religioso. Ao modernizar a Igreja, o Concílio, a contragosto, provocou as ondas fundamentalistas, conservadoras, tradicio­ nais que fizeram subir a temperatura religiosa. E também produziu reativamente um recrudescimento institucional sob a forma de neoconser­ vadorismo clerical. Em face do clima neoconservador, a onda espiritual faz o duplo jogo de beneficiar-se dele até onde o ajuda e de tomar distância no restante, quando ele lhe cerceia ou limita a liberdade carismática. Por conse­ guinte, no interior do próprio movimento eclesial há razões para en­ tender o atual fluxo espiritualizante. 53.

J. Comblin, op. cit.,

p. 112.

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A partir de outra perspectiva, R. Stark e W. Bainbridge levaram a cabo uma pesquisa empírica sobre o futuro da religião, analisando a relação entre a secularização e a formação da revivescência do culto 54 • Defendem a tese de que a secularização é um processo que acontece em todas as economias religiosas, em todas as sociedades. Ao crescer a secularização numa parte da sociedade, por reação acontece uma intensificação religiosa em outra; quando cresce, num lado, o ritmo da secularização, noutro explode a religiosidade. As organizações religiosas dominantes tendem a "mundanizar-se", a se­ cularizar-se. Mas o resultado não é o fim da religião, mas o deslocamento de chances entre as religiões como crenças de modo que as mais "seculares" são suplantadas pelas religiões mais vigorosas e menos seculares. A secularização é um dos três processos fundamentais e inter-rela­ cionados que afeta constante e estruturalmente todas as economias religiosas. O processo de secularização é autolimitante e gera dois processos contrabalançadores. Um deles é o "reviva!", reavivamento. As organizações religiosas, que sofrem erosão pela secularização, deixam uma parte substan­ cial de seu mercado para a demanda de uma religião menos secularizada. Essa demanda provoca surtos de seitas. A secularização estimula a inovação religiosa, provoca a formação de novas tradições religiosas. Sempre estão aparecendo novas religiões nas sociedades.

Ciclo de cisma, secularização, cisma "Entre os acontecimentos mais comuns na história das religiões, temos o cisma - um grupo de membros insatisfeitos rompe com a organização religiosa para fundar uma nova organização ... " "Por sua verdadeira natureza, a religião é uma força dinâmica, sempre em mudança e em renovação. A esperança por ajuda sobrenatural surge das necessidades insatisfeitas que atormentam os seres humanos e estes se distinguem grandemente nessas necessidades. Portanto, o livre supermercado religioso será uma confusão de crenças em competição diferindo na sua tensão das instituições seculares dominantes e no grau em que oferecem poder mágico ... Os cismas religio­ sos são inevitáveis. Porque a desigualdade é fundamental para a vida humana organizada. Sempre existem fortes demandas por crenças terrestres e supraterrestres... A formação das seitas é um traço inevitável da religião organizada, um ciclo interminável de cisma, secularização, cisma. " 55 54. R. Stark W. Bainbridge, The Future of Religion. Secularization, Revival and Cult Formation. Berkeley Los Angeles - London. University of California Press. 1985. 55. R. Stark W. Bainbridge, op. cit., pp. 99. 124s.

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Os cientistas sociais falharam, seja por causa de seu desejo de que as religiões desaparecessem, seja por não reconheceram o caráter dinâmico das economias religiosas. A secularização é parte de um fenômeno religio­ so, num momento tanto de ocaso como de aurora. As fontes da religião estão deslocando-se, mas a grandeza religiosa permanece relativamente cons­ tante. Os autores trabalham com o conceito de religião dos estudiosos do século XIX, segundo o qual as religiões envolvem alguma concepção de se­ res, mundo e força sobrenaturais, O sobrenatural atua de modo que os even­ tos e as condições na terra são influenciados por ele. Entende a religião como organizações humanas comprometidas primariamente em prover compensa­ ções e retribuições gerais, baseadas em crenças sobrenaturais. As formas primárias de desvio dos movimentos religiosos são as seitas e os cultos, distintos das instituições religiosas ou igrejas. Entre os cultos, há os que são movimentos religiosos plenamente desenvolvidos e outros são grupos ou atividades que representam magia e não religião. As org anizações religiosas tendem a entrar em baixa tensão com seu ambiente e assim são incapazes de prover compensações eficazes para a penúria como os " grupos em alta tensão" oferecem. Assim se entendem as circunstâncias em que os cismas religiosos se desenvolvem as seitas são grupos cismáticos que deixam um grupo de tensão baixa para formar um de mais alta tensão. As seitas constituem ameaça crônica para as igrejas monopolistas. O surto de crenças e movimentos ocultos se deve menos a uma nova espécie de "consciência" do que à fraqueza nas religiões conven­ cionais. Nenhum sistema secular de sentido provê explicações gerais sobre a vida como a religião fornece. A partir de informações dos freqüentadores de cultos, conclui-se que nas atuais conjunturas os cultos têm grande êxito no recrutamento de pessoas que são totalmente normais. A secularização, i.e., o enfraquecimento das organizações de muitas igre­ jas maiores, propicia inovação religiosa. O futuro não será um tempo sem religião, mas de novas religiões. Seitas e cultos surgem no vácuo criado pelas igrejas enfraquecidas. Os autores mostram como crenças naturalistas são incapazes de substi­ tuir crenças sobrenaturais mesmo em contextos de movimentos políticos radicais, de estados oficialmente ateus. Movimentos políticos transforma­ ram-se freqüentemente em movimentos religiosos bem desenvolvidos. Os Estados totalitários e oficialmente ateus fracassaram nos esforços de erradicar a religião. O impulso tecnológico destruidor do cosmos inverte a percepção da natureza. "Martelar numa religião é martelar um prego. Quanto mais forte, tanto mais ele penetra." 76

Decepçlo polftlca e llumlnaçlo rellgloea "Esta era nova caracteriza-se por uma relação nova, feita de continuidade e de comunhão com o cosmos, em oposição da relação de exterioridade e de exploração estabelecida pela civilização tecnocientífica com a nature­ za. Marca o fim da história e conseqüentemente o fim da política definida pela realização de um projeto na história: vale somente o instante e no instante, a iluminação da consciência. " 56

Resumindo: Diante da decepção com as instituições religiosas, é de estranhar-se que surja uma "nebulosa religiosa" que envolve a todos os desprotegidos das religiões institucionais?

Completa o quadro das causas um olhar sobre a psicologia das pessoas. Esta sofre forte influência do ambiente circundante, mas tem certa autono­ mia que merece sua consideração. V. CAUSAS PSICOLÓGICAS

Os fatores sociais influenciam diretamente a psicologia das pes­ soas, levando-as a práticas religiosas. Permanecem no ser humano "zonas arcaicas" religiosas que se manifestam em demandas de expressões religio­ sas. Suas teclas interiores são tocadas por elementos culturais que despertam reminiscências religiosas. Não nos referimos à estrutura antropológica de que se falará abaixo, mas de elementos da psicologia individual de pessoas que foram marcadas, nalgum dia, pelos traços religiosos. Em relatos de conversão, aparecem alusões a esse passado religioso que permanece, qual brasa sob cinzas, no coração humano. E certas festas reli­ giosas, como a Semana Santa e Natal, em nossos países de cultura cristã, têm o condão de despertar essa saudade religiosa que, às vezes, se transforma em sede de novas experiências religiosas 57 • 56. D. Hervicu-Léger. Vers un nouioeau christianisme ? lntroduction à la sociologie du christianisme occidental. Paris, f:ditions Éditions du Cerf, 1986, p.163. 57. Para uma análise profunda e detalhada do processo de conversão: L. Rambo, Psicosociologia de la cont-ersicin religiosa: coni•encimiento o seducción, Barcelona, Herder, 1996.

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Saudade do religioso "Tenho um profundo desejo interior de retomar à Igreja, necessidade que creio poder satisfazer participando do culto quando estou no estrangeiro. Aí não consigo entender nada da mensagem, mas posso recordar-me, pelo ambiente circundante e pelas atitudes de profunda reverência dos fiéis, além de que pela música maravilhosa e pelos quadros de tema religioso, da intenção que está por trás do ritual e das profundas experiências reli­ giosas que usava experimentar quando jovem. Assim me encontro fre­ qüentemente desejando nunca ter crescido" CT. S. Elliot)58•

A psicologia profunda conhece a emergência de arquétipos religiosos nos momentos de crise. Pessoas afastadas de práticas religiosas, em dado mo­ mento, ameaçadas por alguma doença, ou pela proximidade da morte, ou por alguma angústia maior, vêem brotar dentro de si reminiscências religiosas antigas. A sociedade atual gera sentimento de abandono profundo, de soli­ dão insuportável, de silêncio angustiante de sentido. Está posto um clima para o surto de busca religiosa, sobretudo por parte das pessoas em que as camadas religiosas jazem fundo, embora encobertas pelas cinzas da secu­ laridade.

Resumindo: Diante da presença nas pessoas da tradições religiosas profundas, é de estranhar-se que elas emerjam numa situação de desesperança?

Todas as causas estudadas referiram-se ao contexto sociocultural ou ao movimento interno da religião ou a realidades psicológicas. Fi­ cou ainda de fora uma questão de relevância filosófica e teológica. Não ha­ verá uma causa ainda mais profunda que se encontra no próprio coração do ser humano, enquanto ser humano? Ou o fenômeno religioso não passa de uma onda passageira e fugaz em momento de exacerbação psicossociológica? Essa terrível teimosia das expressões religiosas sempre existiu. Esse fato decorre de o ser humano ser criador de símbolos religiosos? Ou nasce de circunstâncias de angústia e de crises provisórias? E se há nas pessoas uma dimensão religiosa ontológica, como explicá-la? 58. Citado por S. Acquaviva, Religione e irreligione nell'età postindustriale, in S. S. Acquaviva G. Guizzardi, Religione e irreligione nell'età postindustriale, Roma, AVE, 1 1171, p. 1.1.

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VI. CAUSAS ESTRUTURAIS FILOSÓFICO-TEOLOGAIS Duas correntes divergem radicalmente na resposta, mas ambas coincidem no ponto que nos interessa: o ser humano é um criador de religião. A primeira vertente filosófico-teológica de corte cristão vê nessa sede religiosa e na capacidade de o ser humano criar sinais e símbolos para unir­ se a uma realidade transcendente o fato de ter sido criado por Deus e chamado a uma comunhão de intimidade com Ele. Outra vertente, que encontra em L. Feuerbach sua paternidade maior, vê nessa fábrica de símbolos religiosos um processo de compensação do ser humano que projeta para fora de si, dando-lhe consistência de realidade, o que no fundo ele deseja ser, é e teme reconhecê-lo. A primeira vertente encontrou na filosofia e na teologia transcen­ dental reflexões suficientemente claras, precisas e profundas. Basta reto­ mar-lhes as teses centrais. Inspirados em Tomás de Aquino, dois nomes marcaram esse cenário filosófico-teológico: M. Blondel e K. Rahner. M. Blondel propôs uma apologética da imanência, na intenção de encon­ trar no ser humano sinais de abertura à Transcendência, de modo que a revelação lhe viria, não como algo extrínseco e intervencionista, mas como resposta quase "conatural". Esses sinais revelariam "pontos de identidade" ou "pontos de inserção" da realidade transcendente dentro do próprio dina­ mismo espiritual do ser humano 59 • K. Rahner desenvolve amplamente essa temática em várias de suas obras 611 • Elabora um discurso teológico que se funda no "existencial sobrenatural", marca ontológica no ser humano do ato de um Deus que cria e chama a sua criatura a uma comunhão de intimidade, de graça. Mais recentemente, J. A. Mac Dowell retoma considerações semelhan­ tes61 . Analisa a experiência transcendental do espírito humano, na sua dupla valência reveladora, tanto do seu caráter finito quanto de sua tendência ili­ mitada para a totalidade do ser. Passa em revista três posições explicativas que não satisfazem. A realidade no seu conjunto não tem sentido, sendo, portanto, essa tendência pura ilusão ou absurdo. Também aquelas posições que estabelecem desde a razão um fundamento absoluto ou o término de tal tendência não dão conta satisfatória porque encerram a Deus nos limites da 59. Tratei desse assunto em Teologia da Revelação a partir da modernidade, São Paulo, Loyola, '2000, pp. 54-58. 60. Ver a mesma obra, capítulo sexto: pp. 163-193. 61. J. A. Mac Dowell, A experiência à luz da experiência transcendental do espírito humano, in Síntese. Revista de filosofia, 29(2002), pp. 5-34.

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razão. MacDowell aponta o caminho de uma compreensão do dinamismo peculiar do espírito como resposta à atração do espírito divino, atematicamente captado no mistério de nossa experiência existencial.

Abertura do ser humano à Transcendência "A esperança e o desejo de viver podem abrir-nos à fé religiosa. Em âmbitos teológicos costuma-se destacar que a fé nos abre à esperança, e esquece­ se que também a esperança nos abre à fé. Dito de outra maneira: a espe­ rança de viver, o impulso da vida abrem-nos ao religioso de modo que se não a fé em Deus, ao menos a pergunta por sua possível existência surge dos anelos e esperanças mais profundos do ser humano: 'Não é que espe­ ramos porque cremos; antes, cremos porque esperamos'CM. Unamuno). A esperança, a busca de futuro e de sentido bem poderiam desencadear o movimento que leva à fé. Sem essa busca prévia dificilmente poderá o homem colocar-se a questão de Deus e abrir-se a ele. " 62 Essa posição serve mais para justificar a razoabilidade da Revelação como resposta a um ser humano apto para acolhê-la. No coração humano já existe o ponto de engate preparado à espera de que lhe venha engrenar ajustadamente uma mensagem, uma solicitação de Deus. Esse ponto de inserção permite também entender que outras ofertas re­ ligiosas encontrem aí sua entrada. Essa realidade antropológica ilumina o fato de que tantas expressões religiosas ressoem no coração humano, feito radicalmente para acolher mensagens da transcendência. E nessa sede ele também cria novas formas religiosas. Estabelece-se um círculo difícil de determinar a causa e o efeito. São realidades religiosas que têm sua última origem em Deus e que respondem aos anseios humanos ou são projeções religiosas desse ser aberto para a transcendência. A segunda tendência opta sem mais para a segunda parte da alter­ nativa. Não há revelações, não há manifestações da transcendência. O ser humano é, por natureza, um ser simbólico e religioso. Ele mesmo cria os sinais religiosos para ele mesmo consumi-los. Evidentemente essa posição parece explicar melhor o fenômeno religio­ so, já que a abundância de expressões religiosas, algumas aberrantes, é tal que só muita criatividade humana dá conta dela. Não se podem atribuir a revelações de Deus formas religiosas tão abstrusas. 62. M. Gelabert, La apertura dei hombre a Dios (y a su posible manifestaci1ín), in C. lzquierdo, org., Teologia fundamental. Temas y propuestas para el nuevo milenio, Bilbao, I>I>B, 1999, p. 115.

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As experiência, religiosas dão sentido à vida. Tornam-na mais palatável. Sem elas, tudo fica pesado. Daí o ser humano, para consolo seu, produzir deuses, religiões, ritos, a fim de viver melhor. No fundo, tudo são criaturas suas. Está aí a origem de ateísmos antigos de natureza projetiva, aos quais L. Feuerbach deu maior consistência teórica. Na esteira feuerbachiana, a psica­ nálise de corte freudiano trabalha o discurso religioso como patologia. A sociologia marxista vê nele alienação. São explicações do fato. Mas o fato religioso continua persistente e desafiando essas teorias.

Deus e a essência humana "A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo, o conhecimento de Deus, o conhecimento que o homem tem de si mes­ mo. Pelo Deus conheces o homem e pelo homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa. O que é Deus para o homem é o seu espírito, a sua alma e o que é para o homem seu espírito, sua alma, seu coração, isto é também o seu Deus: Deus é a intimidade revelada, o pronunciamen­ to do Eu do homem: a religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segredos de amor"... "A essência divina não é nada mais do que a essência humana, ou melhor, a essência do homem abstraída das limitações do homem individual, i. é, real, corporal, objetivada, contemplada e adorada como uma outra essência própria, di­ versa da dele - por isso todas as qualidades da essência divina são qualidades da essência humana."63

Psicanalistas e militantes teístas e cristãos desafiam tais interpreta­ ções. Não temem reconhecer a possibilidade de manter-se a sanidade psí­ quica em aliança com a religião. E o compromisso social não refuga necessa­ riamente a religiosidade. Há uma consideração filosófica que trabalha a dimensão do homem como ser de linguagem, criador de símbolos 64 • E entre os símbolos que cria estão os religiosos. Todo saber, experiência, ação, vida humanos adqui­ rem sentido para ele e para seus semelhantes mediante a linguagem. Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, vai mais longe e afirma que sem Deus a vida não tem sentido. E esse sentido se exprime na linguagem religiosa 63. L. feuerbach, A essência do cristianismo, Campinas, Papirus, 1988, pp. 55-Si. 64. X. Herrero, O homem como ser de linguagem, in C. Palacio, org., Cristianismo e história, São Paulo, Loyola, 1982, pp. i3-95. 81

que ele cria, por meio de palavras, símbolos, gestos, ritos. Pela linguagem, o homem e a mulher se expressam a si mesmos em sua universalidade de ser humano. Só se consegue existir humanamente enquanto criador de lingua­ gem. O corpo se alimenta de comida, o espírito de símbolos. Toda realidade natural tocada pelo ser humano se converte em simbólica. Essa sua gigantesca e infinita capacidade de criar símbolos manifesta-se gran­ demente no espaço religioso. Aí tudo funciona no ritmo do símbolo. Estamos vivendo uma abundância estonteante de linguagens religiosas que circulam pela mídia, nos megaeventos, nas celebrações, nos ritos comu­ nitários ou alimentam experiências individuais. A linguagem religiosa trans­ forma-se no imenso terreno em que as pessoas comunicam suas experiências espirituais.

Deus "Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível. o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus. há­ de a gente perdidos no vai-vem. e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar - é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas. se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada - erra rumo, dá em aleijões como esses. dos meninos sem pernas e braços ... O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. " 65 As duas tendências indicadas revelam os extremos de uma posi­ ção. A verdade dos fatos aproxima-se antes de uma posição intermé­ dia. De fato, há expressões religiosas que remetem à dialética da Palavra de Deus expressa em palavras humanas, a Transcendência na imanência. Ou­ tras, porém, não passam de criações arbitrárias do ser humano e até mesmo produzidas pelo seu lado escuro de pecado. Talvez mais exatamente as for­ mas religiosas participem, em graus diversos, de nossa orientação fun­ damental transcendente para Deus e de nossa capacidade de simula­ ção, de engano, de pecado. O discernimento consiste em distingui-las, purificá-las na medida do possível para que nossa religião seja pura e agra­ dável a Deus (Tt 1,27). 65. J. G. Rosa, Grande Sertão: Veredas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 101984, p. 56.

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E quanto mais a modernidade insistiu na imanência tanto mais forte é a explosão em busca da Transcendência num ser feito por ela e para ela. Talvez seja possível falar de uma terceira posição intermediária. Não se aceita que o ser humano seja aberto para uma Transcendência no sentido de uma realidade absoluta, "quam omnes dicunt Deum" (Tomás de Aquino). Nem tampouco que essa Transcendência seja pura projeção do ser humano (L. Feuerbach). L. Ferry refere-se a uma Transcendência na imanência que não chega a ser a Transcendência divina mas que também supera a imanência do sujeito. A transcendência imanente esconde a significação última das expe­ riências vividas. Julga possível descrever a transcendência sem sair da esfera da imanência. Há um "excesso" caracterizando as formas transcendentes situadas "em nós" que podem pertencer a todos os domínios do espírito, da estética à ciência passando pela ética e pela religião. O rosto humano é imediatamente antes de todo raciocínio, fora de toda demonstração, portador de um sentido que me supera e me chama. Desse apelo que comanda uma resposta, uma responsabilidade, surge a ética. E por que não a religião? Ele afirma o desaparecimento das transcendências verticais por obra da secularização humanista, mas admite a possibilidade de pensar no coração da imanência algo que a supera em direção a transcendências horizontais. "Esta sacralização do humano como tal supõe a passagem do que se poderia cha­ mar de uma 'transcendência vertical' (das entidades exteriores e superiores aos indivíduos, situadas por acima dizer acima dele) a uma 'transcendência horizontal' (a dos outros homens em relação a mim): o ser humano como tal constitui um apelo imediato à minha responsabilidade." 66

Resumindo: Num ser humano feito para a transcendência, é de estranhar-se que o excesso de imanência provoque uma reação de sua busca?

CONCLUSÃO

O mundo das causas ilumina nossa realidade. Mas é só o início. A tra­ jetória da religião na sociedade de hoje pede muitas outras explicações para que nos situemos mais serena e lucidamente nesse cenário. Estão em jogo realidades distintas, mas muito semelhantes, que facilmente provocam con66. L. Ferry, L'homme-Dieu ou le sens de la vie, Essa, Paris, Grasset, 1996, pp. 51, 124. 83

fusão: religião, fé e religiosidade. Então como esses campos se distinguem e se relacionam? Eis o que nos espera no próximo capítulo.

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Dinimica Análise critica do fen6meno religioso 1 . O coordenador divida o grupo em quatro subgrupos. 2. Atribua a cada um deles um dos pontos indicados: a. Causas contextuais econômicas e políticas: b. Causas contextuais cultural-filosóficas: c. Causas contextuais religiosas: d. Causas psicológicas: e. Causas estruturais filosófico-teologais. 3. Cada participante individualmente anote numa folha os pontos principais de seu tema. 4. Os participantes se reúnam nos quatro grupos diferentes e confrontem suas anotações buscando um consenso sobre os pontos. 5. No Plenário: a. Cada grupo apresente a síntese-consenso do grupo: b. O coordenador e os participantes façam seus comentários: pedindo explicação, discordando, completando as exposições.

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CAPITULO III

Delimitação dos campos semânticos Estamos sempre inscritos numa certa tradição de linguagem que nos precede CL. GEFFRÉ

Seria interessante revisar a saga da religião como uma luta constante e mais ou menos bem-sucedida para a mani­ festação e expressão adequadas da experiência religiosa. J. WACH

Um primeiro olhar sobre a carga significativa dos termos principais de nossa reflexão permite esclarecer já o campo de estudo. A semântica, en­ quanto estudo do significado das palavras, faz-se-nos mais necessária nos dias de hoje. A mídia submete as palavras a rápido desgaste significativo. E a língua portuguesa no Brasil tem-se mostrado de agilidade e criatividade tão estonteantes que deixa os organizadores de dicionários perplexos. Não sabem freqüentemente que vocábulos ou que significados incorporar à espera do tem­ po que os purificará. Muitas significações desgastam-se rapidamente. Interes­ sa-nos fixar os significados já garantidos pelo tempo e pelo uso. 1. TRÊS CAMPOS SEMÂNTICOS: MICROCULTURA

Na clássica distinção da sociedade em três níveis - econômico, político e cultural -, a religião situa-se na esfera cultural. Ela é seu coração, sua alma, seu íntimo, sua fonte vital. Tem no interior da cultura certa autonomia, regras próprias de exprimir-se. Verdadeira microcultura com diversos cam­ pos semânticos que configuram essa realidade religiosa. Um primeiro conjunto semântico refere-se ao mundo objetivo dos ritos, dos sinais, dos símbolos, das doutrinas, das pertenças visibilizadas, das celebrações. É a religião enquanto sistema, organização, corpo social. 87

Um segundo grupo semântico abrange mais elementos. É a face sub­ jetiva. Fala-se de religiosidade, de experiência religiosa, de mística, de espi­ ritualidade, de sentimento religioso. E finalmente um terceiro complexo semântico deixa o campo da re­ ligião estritamente dita e situa-se diante de uma Palavra de Deus, profética ou escrita, que pede adesão. Trata-se propriamente da fé. O fundamento da pluralidade de campos e da sua distinção é a natureza do ser humano como homo religiosus e a possibilidade de Deus interpelá-lo com sua Palavra. Mais recentemente as pesquisas no campo da antropologia religiosa vêm reforçando a tese da unidade espiritual do gênero humano.

Homo religiosus "As descobertas feitas nos últimos vinte anos na África deslocaram os ho­ rizontes da paleoantropologia. Essa aceleração súbita no conhecimento do passado antigo da humanidade permite-nos melhor compreender a emergên­ cia do ser humano, sua evolução, sua história e sua especificidade. Esclarece também de modo novo e inesperado a antropologia religiosa. A evidência da unidade de origem e da semelhança de comportamentos dos seres humanos mostra-nos que desde seu aparecimento o ser humano assumiu um modo de existência específico. Com efeito, o homo religiosus é reconhecível em cada etapa de seu percurso .... Na perspectiva das descobertas recentes, a his­ tória das religiões obtém, confirma e explicita os resultados da paleoantropo­ logia a respeito da unidade do gênero humano e não hesita em falar de uma unidade espiritual. De fato, constatamos que, nas culturas muito variadas em que se desenrolou sua vida, o homo religiosus fez uma experiência semelhan­ te ... " "o homo religiosus tem o sentimento da presença de um poder invi­ sível e eficaz que se manifesta por meio de um objeto, de um ser, de uma pessoa, revestidos de uma dimensão nova, a sacralidade." 1

II. NECESSIDADE DA DISTINÇÃO: RAZÃO METODOLÓGICA A distinção faz-se tanto mais necessária quanto mais os campos se pare­ cem e se confundem na linguagem comum. Os clássicos diziam: "in distinc­ tione salus" - na distinção está a salvação. Ela antecede logicamente as 1. J. Ries, Conclusion. Les perspectives d'une anthropologie du sacré, in J. Rie■, org., TTaité d'anthropologie du sacré. Vol. 1: Les origines et /e pmbleme de l'homo religiosus, Paris, IJaclée, 1992, pp. 333s.

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possíveis articulaçõe■, poi■ fazê-las antes de ter claros os elementos envolvi­ dos incorre-se facilmente em equívocos. O primeiro pUIO da distinção funda-se na autonomia dos campo■ de significado. Religião, religiosidade e fé guardam originalidade e singu­ laridade tão próprias que não se identificam. Uma não é a outra. Distinção de nível teórico que é fundamental para entender o real momento religioso. No nível real e concreto, há uma imbricação íntima entre essas três realidades. Cada uma influencia a outra e é por ela influenciada. Permitem­ se várias figuras de relação. Nesse trabalho, o enfoque principal vem da teologia com apoio das ciên­ cias da religião. E a teologia esclarece tanto a compreensão da fé cristã nesse contexto como permite uma ação pastoral mais clarividente. Nossa reflexão persegue esse duplo objetivo. Portanto, teoló gica e pastoral. ill. DEFINIÇÃO DOS CAMPOS SEMÂNTICOS E SUAS RELAÇÕES Religião como instituição e ação na sociedade Os lingüistas permitem uma primeira aproximação do sentido de um termo, vasculhando a etimolo gia. O termo religião permite duas etimo­ lo gias diferentes. Uma aproxima-se mais do termo do que chamamos real­ mente de "religião" e a outra denota antes a dimensão de "religiosidade".

Etimologia Religio - religião - vem de re+ligare que significa "religação do ser humano com Deus" (Lactâncio, Oiv. lnst., IV, 28, 2: Rouêt de Joumel. Enchiridion Patristicum, n. 635). • Hoc vinculo pietatis obstricti Deo et re­

ligati sumus, unde ipsa religio nomen accepit, non, ut Cicero interpretatus est, a relegendo." "Com este vínculo de piedade estamos unidos e re­ ligados a Deus: de onde a própria religião recebe o nome e não como Cícero interpretou, isto é, de re-lendo." Aqui aparece mais a dimensão ' religiosa do ser humano que se liga com Deus. Cícero aponta outra versão interpretativa, como Lactâncio mencionou. Reli­ gião em de re+legere, para indicar uma ·cuidadosa veneração dos deuses" 2. Nesse caso, considera-se a dimensão objetiva, institucional da religião que 2. Cícero, De natura deorum, II 72.

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seleciona ritos, cultos. Eis o texto de Cícero: "qui autem omnia quae ad cultum deorum pertinerent diligenter retractarent et tanquam relegerent. aunt dicti religiosi ex relegendo, ut elegantes ex eligendo. ex diligencio diligen­ tes. ex intellegendo intelligentes; his enim in verbis omnibus inest vis legendi eadem quae in religioso" 3: • Aqueles que tudo o que pertencia ao culto dos deuses consideravam cuidadosamente e como que re-liam (tudo isso) são chamados religiosos, de re-ler, como os elegantes de e-le(ge)r, os que amam de escolher, os inteligentes de 'ler dentro' (o entendido); em todos esses verbos está a força de 'ler' que aparece no termo religioso". Agostinho faz remontar ora a "religentes", isto é, re-escolhendo (De Civ. Dei, X, 3), ora a "religantes", isto é, re-ligando (De vera religione, e. 55, PL 34, 172). Tomás de Aquino une as duas versões de Cícero - et sic religio videtur dieta a religendo ea quae sunt divini cultus ( e assim a religião parece vir de re-ligendo o que pertence ao culto divino) - e a de Agostinho - sicut Augustinus dicit potest intelligi religio a religando dieta - ( como Agostinho se pode dizer que religião vem de re-ligando): S. Th. II II q. 81, a. lc. A religião indica o caminho da razão, da experiência humana para li gar-se com o divino. Institui um sistema de ritos, práticas, doutrinas, constituições, organizações, tradições, mitos, artes que possibilitam essa re­ ligação com o mundo divino. Configura um sistema de representação, de orientação, de norma­ tividade. Traduz uma realidade objetiva, uma tradição acumulada e vivida por uma comunidade. Mostra o lado visível da relação com o Sagrado. D. Hervieu-Léger aponta dois traços fundamentais da religião: tradição e comunidade. A espinha dorsal da religião é o laço particular de continui­ dade que ela estabelece sempre entre os crentes de gerações sucessivas: cria­ se uma comunidade na e pela tradição4 • Não importa muito na religião a natureza da crença, nem sua relação com o poder sobrenatural, mas o fato de ela encontrar a legitimidade de uma tradição. A religião é, pois, um disposi­ tivo ideológico, prático, simbólico, pelo qual se constitui, se alimenta e se desenvolve o sentido individual e coletivo de pertença a uma linha particular de crença. Por meio da tradição de crença, estabelece-se a identificação que opera internamente no grupo e externamente o distingue dos outros. Cria-se uma cadeia de memória de crenças, que se organiza, se preserva e se repro3. Id., ibid. 23s.

4. D. Hervieu-Léger, La religion en mouvement: /e pelerin et /e ccmveTti, Paris, Flamarion,1999, pp.

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duz. O refrão fundamental soa: "Como nossos pais creram, nós também cremos". M. Barros de Souza, muito pertinentemente, intitula sua obra so­ bre a tradição religiosa de Israel: Nossos pais nos contaram\ Para que se institua uma religião, torna-se essencial a invocação formal da continuidade da tradição. É-se membro de uma comunidade espiritual que agrupa fiéis passados, presentes e futuros. A linhagem dos que crêem funciona como referência legitimadora da crença, cumprindo a dupla função ad intra - incorpora os fiéis a uma comunidade - e ad extra separa-os dos que não são6 • O sentido-base mínimo da religião vincula-se a experiências, expres­ sões vinculadas a uma tradição e comunidade espiritual. Levada ao extremo, não se precisa de fé nem de nenhuma revelação nem de nenhuma transcen­ dência para pertencer a uma religião. Basta o rito, o comportamento simbó­ lico que se herda de uma tradição e se cumpre no interior de uma com uni­ dade. Mas, nesse caso, a religião se anularia a si mesma, porque o último sentido do rito é religar com o divino e o divino desapareceria. Religião "Religião é a realização socioindividual Cem doutrina, costume, freqüente­ mente ritos) de uma relação do homem com algo que o transcende e a seu mundo, ou que abrange todo o mundo, que se desdobra dentro de uma tradição e de uma comunidade. É a realização de uma relação do homem com uma realidade verdadeira e suprema, seja ela compreendida da ma­ neira que for (Deus, o Absoluto, Nirvana, Shünyatâ, Tao). Tradição e comunidade são dimensões básicas para todas as grandes religiões: doutrina, costumes e ritos são suas funções básicas; transcendência (para cima ou para dentro, no espaço e/ou no tempo, como salvação, iluminação ou libertação) é sua preocupação básica. " 7

Religiosidade, espiritualidade, mística

Freqüentamos outro departamento. A religiosidade aproxima-se de um vago sentimento religioso. Corresponde à necessidade afetiva pessoal 5. M. de Barros Souza, Nossos pais nos contaram. Nova leitura da história sagrada, Petrópolis, Vozes, 1984. 6. D. Hervieu-Léger, op. cit., p. 24 i. H. Küng, Introdução: o debate sobre o conceito de religião, in Concilium 1986/1, n. 203. pp. 510; aqui p. 8.

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de estar ligado com algo distinto de si mesmo. Vem ao encontro de aspiração confusa para estar em simpatia harmônica com todas as coisas. Revela um afà de penetrar todos os segredos. Traduz um desejo de comunicar-se com as forças sensíveis presentes e atuantes no universo. Casa-se com a inclinação para o mistério. Prolonga uma afetividade sem objeto preciso, satisfaz-se com vagas efusões, busca sensações e emoções que lhe dão a ilusão do amor universal. A religiosidade bate bem com uma comunhão panteísta, sem pre­ cisar de doutrinas exatas. A religiosidade não se vincula necessariamente a uma religião e, quando o faz, assume da religião os elementos que a satisfa­ zem e não enquanto são tradição e comunidade8 • A experiência religiosa compõe esse cenário religioso. Ela define-se como uma percepção da presença do sagrado por parte do sujeito que a faz. Esse sagrado caracteriza-se, segundo a clássica descrição fenomenológica de R. Otto, como fascinosum et tremendum9 • Ora mostra sua face de sedução aliciante (fala-se hoje muito da sedução do sagrado10), ora espaventa por seu temor misterioso. O fascinante e o horripilante provocam a experiência reli­ giosa, ao arrancar-nos do ordinário, do comum, da rotina, transportando-nos para uma cena extraordinária, diferente. Eles a pontam para outra caracterís­ tica ainda mais profunda, fundamental. É "o totalmente outro" - das ganz Andere, o diferente, o singular, o insólito, o extraordinário, o novo, o perfeito, o estranho, o monstruoso, o misterioso-, que ultrapassa a experiência hu­ mana comum, que pertence a outro tipo de realidade, que vem carregado de força e de poder etc. A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, são-no justamente porque são hierofanias, por­ que "mostram" qualquer coisa que já não é pedra nem árvore, mas o sagra­ do, o ganz Andere11 • Essa experiência religiosa liga-se a certo tipo de hierofania, · · manifestação do sagrado. O sagrado, ao descentrar o ser humano, provoca a experiência antagô­ nica de presença e distância, de manifestação e ocultamento, que se funda­ menta na própria natureza da experiência transcendental de Deus feita na existência humana 12 • 8. A. Samuel, As religiões hoje, São Paulo, Paulus, 1997, pp. 16s. 9. R. Otto, Le sacré. L'élément non-rationnel dans l'idée du divin et sa relation awc le rationnel,

Paris, Payot, 1969, pp. 27ss., 57ss. 1O. CI. Caliman, A sedução do sagrado. O fenômeno religioso na virada do milênio, Petrópolis, Vozes, 1998. Em especial: M. CI. L. Bingemer, A Sedução do Sagrado, pp. 79-11 S; M. CI. L. Bingemer, Alteridade e vulnerabilidade. Experiência de Deus e pluralismo religioso no moderno ,m cris,, São Paulo, Loyola, 1993, especialmente pp. 77-91 dedicadas à sedução do sagrado. 11. M. Eliade, O sagrado e o profano. A essência das religiões, Lisboa, Livro■ do Bruil, 1.d., p. 21. 12. J. A. Mac Dowell, A experiência de Deus à luz da experiência transcendental do espírito humano, in Perspectiva teológica 29 (2002), n. 93, p. 21. 92

Quando o ••grado •• manlfeet■ "O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo de absolutamente diferente do profano. A fim de in­ dicar o ato da manifestação do sagrado propusemos o termo hierofania. Esse termo é cômodo, porque não implica qualquer definição suplemen­ tar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos mostra. Poderíamos dizer que a história das religiões - desde as mais primitivas às mais elaboradas é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifes­ tações das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore - e até a hierofania suprema que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuida­ de. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo de 'ordem diferente' - de uma realidade que não pertence a nosso mundo - em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo 'na­ tural'. 'profano·." 13

O sagrado guarda certa ambivalência que permite comportamen­ tos e reflexões antagônicas. Ele, na sua força e riqueza, valoriza nossas realidades. Isso pede contato com ele. Veja-se o desejo que as pessoas têm de tocar as coisas sagradas, sobretudo aquelas que estão cercadas de maior po­ der. Haja vista a concorrência dos fiéis aos santuários de Aparecida, de Fá­ tima, de Lourdes etc. O sagrado é perigoso e pode destruir o ser humano. Isso leva ao efeito contrário. Não se toca o sagrado, afasta-se dele, guarda-se respeitosa distância. Entre o sagrado e o ser humano, estendem-se véus, cortinas, que defendam o sagrado dos olhos humanos. Antepõem-se, entre os fiéis e o sagrado, cordas, bancos, escadas, para que o sagrado reine soberano e distan te. O Antigo Testamento relata-nos o caso extremo de Oza: "Quando che­ garam à eira de Nacon, Oza estendeu a mão para a arca de Deus, porque os animais iriam derrubá-la. Então o Senhor se inflamou de cólera contra Oza e o prostrou ali mesmo por causa da irreverência, de modo que ele morreu junto à arca de Deus. Davi ficou irritado pelo fato de o Senhor se ter lançado contra Oza; por isso aquele lugar recebeu o nome de 'Investida de Oza', nome que leva até hoje" (2Sm 6,6-8). 13. M. Eliade, O sagrado ... , p. 21. 93

Sem a tragicidade desse relato do Antigo Testamento até as renovações litúrgicas do Concílio Vaticano II, os fiéis não tocavam a hóstia consagrada nem o cálice com vinho consagrado. A relevância do sagrado é de tal ordem nessa maneira do pensar reli­ gioso e teológico que ele consegue criar a partir de sua própria realidade uma globalidade em que o ser humano, os outros homens, o mundo estão envol­ vidos. O sagrado é matriz paradoxalmente totalizante e unificante, ao criar radical separação do profano. A força integradora do sagrado permite que todas as realidades criadas adquiram a partir dele seu sentido, seu valor, sua consistência. Afastar-se do sagrado é submeter-se à anomia, à perda de sentido, ao caos. As realidades fora do sagrado nada são. O profano nele mesmo não tem consistência. As realida­ des do mundo adquirem valor, ao serem banhadas pelo sagrado. Subjaz cons­ ciência muito forte da fraqueza e pequenez das realidades humanas em con­ traste com o sagrado, com o mistério, percebido, de certo modo, como algo pertencente ao mundo "fora das nossas experiências cotidianas". Nesse ambiente de sagrado e com essa concepção, a experiência religiosa se manifesta como um absoluto, energia, fonte de valores reconhecidos, com um ser-mais. Permite entender melhor a experiência religiosa, explicitar a própria natureza da experiência. H. Vaz define-a como "a face do pensamento que se volta para a presença do objeto" 14. Profundidade da presença do objeto e sua penetração pelo ato de pensar qualificam seu grau de riqueza e irradiação. A própria etimologia de experiência do grego - empeiria - e do latim experientia - reflete a natureza de um conhecimento imediato e o objetivo de intelectualmente provar, tentar e obter determinado conhecimento. Há na experiência uma intencionalidade de obter um saber que não está implicado na mera natureza do espírito enquanto puro sujeito cognoscente.

Experiência religiosa "A experiência religiosa é uma experiência do sagrado" . . . "Na experiência do sagrado o pólo da presença define-se pela particularidade de um fenô­ meno cujas características provocam. no pólo da consci�ncia, essas for­ mas de sentimento e emoção que formam como que um halo em tomo do núcleo cognoscitivo da experiência e que análises clássicas como as de Rudolf Otto procuram descrever." " ... o religioso ou o sagrado resultam da função simbolizante do homem nesse terreno que se estende entre o 14. H. CI. Lima Vaz, A linguagem da experiência de Deus, in id., f:st·riloJ ,Ú filosofia. I. Problemas de fronteira, São Paulo, Loyola, :1998, p. 243. 94

fasclnlo e o temor do que é Incompreensível ou misterioso. Todas as zonas de interrogaçlo e espanto Co thámbos dos gregos) do homem e do mundo são matéria de experiências religiosas ou sacralizantes. " 15

A experiência reli giosa não diz por si se é cristã ou não. Ambas as possibilidades se dão. A experiência religiosa cristã se faz quando o sagra­ do pertence ao universo simbólico cristão e enquanto as outras acontecem em outros mundos religiosos. Essa análise restringe-se ao nível fenomenoló­ gico. A experiência religiosa cristã não implica necessariamente a fé e distin­ gue-se de uma experiência cristã de Deus, teologal, como se verá abaixo. Não se discute sua autenticidade cristã. Aceita-se simplesmente o apelativo cris­ tão por suceder num campo referencial simbólico nomeadamente cristão, mesmo que lhe faltem densidade e consistência verdadeiramente cristãs. Essa distinção goza de relevância na interpretação do fenômeno religioso atual em um país de imaginário predominantemente cristão. O termo espiritualidade circula lépido pelos mais diversos espaços teóri­ cos e práticos. Inflacionou a literatura religiosa com abundante produção. Ad­ quiriu tal polissemia que apenas se consegue definir o que se entende por ela. J. Sudbrack mapeia de maneira bastante ampla essa gama de ofertas es­ pirituais e capta seu significado religioso 16 • A nova religiosidade, que ele estuda, coloca-se no pólo oposto a uma religião monoteísta. Reli giosidade sem Deus. Sua palavra predileta é espiritualidade 17 • Nela a doutrina perde autoridade e o conhecimento substitui a fé. Pende para o lado da gnose. Embora seja de raiz profundamente cristã, o termo espiritualidade afasta-se cada vez mais dessa origem. Coloriu-se de uma conotação antiinstitucional, com um significado imponderável para uma religiosidade esfumada. E fre­ qüentemente espiritualidade é vista como simples dimensão antropológica.

Espiritualidade "A espiritualidade, encarada dentro de perspectiva antropológica, é a prer­ rogativa das pessoas autênticas que, em face do ideal e da história, cons­ tataram uma escolha axiológica decisiva, fundamental e unificante, capaz de dar sentido definitivo à existência." 18 15. H. CI. Lima Vaz, op. cit., pp. 249s. 16. J. Sudbrack, Neue Religiositãt. Herausforderung für die Christen, Mainz, Mathias-Grünewald­ Verlag, 1987, pp. 19-49. 17. Id., ibid., p. 75. 18. S. de Fiares, Espiritualidade contemporânea, in S. de Fiares - T. Goffi, Dicionário de espiri­ tualidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 347.

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Fechando o mesmo quadro semântico, o termo mística fez sua entrada solene na vulgarização espiritual. Enquanto a espiritualidade significa antes o movimento, "a aspiração da alma na sua parte superior (spiritus, vouc;) em direção ao divino", a mística "designa, ao menos, no cristianismo, a entrada do crente no mistério (µ'UO'n:pLov) da Trindade supra-essencial". "Em ou­ tras palavras, a aspiração pelo espiritual é radicalmente inversa à irradiação do mistério. A espiritualidade é busca do divino por parte do sujeito huma­ no, a mística é colocar-se, expor-se diretamente ao objeto divino, evidente­ mente revelado ao ser humano." 19 Não há identificação de ambas para o cristão. O termo mística é reservado para setores seletos. H. Vaz lastima que a "incultura" de nossa época deteriore alguns termos de significação venerá­ vel, ao lançá-los no jargão da mídia, fazendo-os perder a consistência semân­ tica. Entre eles está o termo "mística", que "acabou por designar uma espé­ cie de fanatismo, com forte conteúdo passional e larga dose de irracionalidade"2º.

Mística "Diz respeito a uma forma superior de experiência, de natureza religiosa, ou religioso-filosófica ." "Transversalidade tomou-se uma das metáforas para não-lineari­ dade." "Tipo contemporâneo de razão que não se organiza segundo es­ quemas hierárquicos, mas de forma transversal." "[A razão transversal] mostra que a racionalidade não é algo que se organiza hierarquicamente, mas lateralmente L. .1" • um modo de pensar e agir segundo uma raciona­ lidade-em-trânsito" ... "somente quando a razão consegue penetrar e en­ tregar-se produtivamente aos entrelaçamentos inconscientes da racionali­ dade, ela passa a ter condições de enfrentar adequadamente a solução de problemas da atualidade." "A pedagogia deveria resgatar a sintonia com uma racionalidade não-linear que está subjacente à própria etimologia das palavras im-plicar, ex-plicar, com-plicar, multi-plicar. Supõem-se en-dobra­ mentos e des-dobramentos, e, portanto, multipolaridades, multirreferen­ cialidades." "A palavra latina para dobra é 'plica.·�

III. MOMENTO DO TRADICIONAL SINCRÉTICO Este momento caracteriza-se pelo fato de a religião, entenda-se quase sempre no Brasil o catolicismo, ocupar uma função de totalidade, de porosidade em relação a elementos religiosos de outra valência e de certo animismo mágico. Mais que um momento histórico determinado, trata-se de uma forma religiosa que perdura até hoje, mas que foi predominante antes do processo de romanização. 4. H. Assmann, Reencantar a educação. Rumo à sociedade aprendente, Petrópolis, Vozes, 1998, pp. 18:�. 94-104.

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A religião assume função totalizante, em que indivíduo e socieda­ de estão plenamente inseridos numa ordem em que a matriz natureza predomina. O sagrado arvora-se em categoria englobante a partir da qual tudo se entende. Marca sua distância do "pro+fano" (diante do sagrado, portanto profano se define a partir do sagrado). Sacraliza-se urna série de cultos, tabus, ritos, mitos, gestas, danças, jogos, objetos, carrancas, fetiches, amuletos, despachos, rnandingas, símbolos, cosrnogonias, teologúrnenos, pes­ soas, animais, plantas, lugares, superstições, magias etc. 5 O catolicismo criou urna quantidade enorme de tais formas religiosas. À medida que a influência das religiões afrobrasileiras cresce, o sincretismo religioso tradicional aumenta. Vale aqui a reflexão feita sobre a experiência religiosa em capítulo anterior. Essa forma religiosa vê o sagrado carregado de força e poder. Provoca reação ambivalente de busca de contato (receber flui­ do) e afastamento (tabu). Uma primeira reflexão de fé leva-nos a distinguir o Sagrado de Deus. Ele não é Deus. É algo mais, um Outro neutro diverso de Alguém. Ora vela, ora desvela, revela e aponta para o Transcendente, Deus. Perma­ nece urna tensão entre Sagrado e Transcendência. Os riscos correm por conta de sua banalização na forma de magia, simo­ nia, superstição, idolatria, comércio. O papel da fé consiste em desmascarar tais vulgarizações sagradas e apontar para o Mistério divino trino: Alguém e não Algo. É a batalha difícil que o cristianismo sempre travou e está a travar com formas religiosas pagãs. O religioso penetra todas as esferas da existên­ cia. As forças divinas em questão, no fundo, não são transcendentes, mas imanentes. Misturam-se à vida dos homens e da natureza. Associa-se, por isso, a religião a tudo. Ser religioso significa cumprir ritos. Cria-se urna iden­ tidade entre religião e cultura. Não há espaço para a dualidade entre aquele que crê e aquele que não crê, corno acontecerá na modernidade. A vivência religiosa carece da dimensão pessoal, consciente e livre, para desvincular-se da natureza. O religioso penetra tudo "Primeira característica do politeísmo: o religioso penetra todas as esferas da existência. Em certo sentido, isso se aplica a toda religião autentica­ mente vivida. É isso igualmente a que visa Jesus Cristo ao dizer: rezai sempre." "Na Grécia antiga, o divino se distribui numa disparatada multi­ plicidade de divindades. Estas [. . .1 não são pessoas singulares, mas potên5. M. Eliade, Traité d'histoire des religions, Paris, Payot, 1949, pp. 15-16.

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cias mala ou menos personificadas que compõem o cosmo e a natureza e ai se distribuem como forças em interação.· "O divino não é realmente o Outro. As dMndades não são verdadeiramente transcendentes com relação ao mundo dos seres humanos: elas também não são simplesmen­ te imanentes ao mundo. Os deuses são imortais, como o é a natureza: não são entretanto infinitos, nem criadores, nem todo-poderosos. Assim como as potências que personificam, os deuses estão de alguma maneira mis­ turados a toda vida dos homens e da natureza. ·s

Al guns sociólogos da religião estudaram corno se fez no catolicismo brasi leiro a transposição de tal horizonte religioso para formas católicas populares. São estudos já muito conhecidos 7. Pedro A. Ribeiro de Oliveira classificou as formas religiosas do catolicismo popular em quatro constelações: da devo­ ção, da promessa, da palavra e do sacramento8 • No catolicismo popular, predominam as duas primeiras, que traduzem essa relação prirnigênia com o sagrado. Os próprios sacramentos facilmente são contaminados com o toque mágico, corno já se viu acima. A palavra perde freqüentemente seu caráter de veículo nocional para transformar-se em força operativa. Está-se assim com as quatro constelações dentro do mesmo universo religioso tradicional. Facilitava o caráter sincrético e mítico-mágico o fato de ser um cato­ licismo fortemente leigo, popular, transmitido sobretudo por via oral e expe­ riencial (familiar ou iniciação), com acento no aspecto visual, rico em gestos e ações, e menos expresso em palavras. Era recheado de histórias bíblicas oralmente recitadas, de comunicações fantasiosas com o sagrado, de milagres e da atuação do maligno até possessões diabólicas 9 • Essa forma católica goza de relativa homogeneidade religiosa. É um universo religioso fundamentalmente ritual (mágico-religioso, corno se diz), em conseqüência dominado pela obrigação, e imperfeitamente ético para nosso olhar conternporâneo 10 • Tem corte religioso tradicional de cunho animista. Estamos diante de um catolicismo de estrutura virtualmente 6. A. Vergote, Modernidade e cristianismo. Interrogações e criticas reciprocas, São Paulo, Loyola, 2002, pp.18s. 7. J. Comblin, Situação histórica do Catolicismo no Brasil. in REB 26 (1966), pp. 574-601; J. Comblin, Para uma tipo logia do Catolicismo Brasileiro, in REB 28 (1968), pp. 46-73; P. A. Ribeiro de Oliveira, Religiosidade na América Latina, in REB 32 (19i2), pp. 354-364; R. Azzi, Elementos para a história do catolicismo popular, in REB 36 (1976), pp. 95-130; E. Hoomaert, Formação do catolicismo brasileiro. 1500-1X0O, Petrópo lis, Vozes, 1974. 8. Ver texto citado acima. 9. R. Azzi, Elementos para a história do catolicismo popular, in REB 36 (1976), pp. 95-130. 10. P. Sanchis, O cam po religioso contem po râneo no Brasil, in A. P. Oro - C. A. Steil, orgs., Globalização e religião, Petrópo lis, Vozes, 1997, p. 104. 117

sincrética11 • O catolicismo português, que aqui chegou, já carregava um sin­ cretismo. Era o catolicismo medieval popular que, segundo J. Comblin, baseando-se na análise de A. Mirgeler 12 , fundira o catolicismo dos milagres de origem germânica com o catolicismo penitencial irlandês 1 ·1• E. Hoornaert descobre traços de um catolicismo guerreiro 1 4. No Brasil. essa matriz sincrética, desenraizada de Portugal, aumenta sua porosidade ao encontrar-se com duas outras identidades, também elas desenraizadas, indígena e africana. Processa ativamente essas diferenças não igualmente, dependendo das regiões. Na região Norte, a presença da paje­ lança se faz sentir. Mas, em geral, predomina a influência negra. Não se criaram religiões paralelas, elas antes se influenciaram mutuamente em suas cosmovisões e práticas 1 5. Não é de estranhar que surja no Norte, com in­ fluência sobre a classe ilustrada, especialmente artística, a religião do Santo Daime com forte sincretismo indígena, esotérico, umbandista e católico 1b . Atribui poder iluminativo e curativo ao chá sagrado.

Santo Daime "O Daime fundiu a 'planta com o poder' à crença no poder da planta, o chá à doutrina. Doutrina plástica. no duplo sentido da palavra: flexível. frouxa. pouco integrada internamente e aberta a sincretismos vários ou a reapropriações criativas relativamente livres; visualmente traduzida ou. ao contrário, produzida como fluxo de imagens, revelada e misticamente in­ vestigada pela e como visão." 17

A capacidade sincrética do catolicismo popular permitiu que outras matrizes - esotéricas, orientais, japonesas, evangelismo americano - ainda se lhe ajuntassem, haja vista, a espírita. Há um fundo espírita muito forte no universo religioso do país, que, aliás, diversas novelas têm explorado. Esse pano de fundo religioso pré-moderno permanece até hoje e faz suas simbioses na pós-modernidade atual. Antes, porém, sofreu e ainda está a sofrer o embate de várias modernidades. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17.

ld. ibid., p. 1 OS. A. Mirgeler, Cristianismo e ocidente, São Paulo, Herder, 1967. J. Comblin, Para uma tipologia do catolicismo brasileiro, in REB 28 (1968), pp. 46-73. E. Hoornaert, Formação do catolicismo brasileiro. 1500-1800, Petrópolis, Vozes, 1974. P. Sanchis, op. cit., pp. 105s. ld., ibid. L. E. Soares, O Santo Daime no contexto da nova consciência religiosa in L. Landim, org., Sinais dos tempos. Diversidade reli!{iosa no Hrasil, Cadernos do ISER n. 23, Rio de Janeiro, !SER. 1990, p. 268; ver também: R. Abreu, A doutrina do Santo Daime in L. Landim, op. cit., pp. 253-263; 118

Resumindo: A tradição religiosa brasileira é de identidades porosas, de verdades sim­ bólicas (intencionalidade de sentido e não definição conceituai> e de ambivalências éticas.

IV. MOMENTO DA MODERNIDADE ECLESIÁSTICA: PURIF1CAÇÃO DA IDENTIDADE POPULAR PELA TRIDENTINIZAÇÃO

O termo modernidade significa aqui chamado ao juízo da raciona­ lidade dos elementos religiosos que remontam principalmente ao universo mítico, mágico, tradicional. Apresenta-se sob a forma de purificação, sem destruir a tradição anterior e reforçando-lhe a unidade. É paradoxal chamar essa tridentinização do catolicismo brasileiro de modernidade, já que o fenômeno semelhante de criação de uma forte identidade católica tridentina na Europa tinha assumido o caráter de oposi · ção à Reforma, já moderna em muitos aspectos, e à crescente modernidade racionalista. J. Delumeau estudou detalhadamente esses dois séculos seguin­ tes à Reforma e ao Concílio de Trento, como uma sobrenaturalização da religião em oposição àquela que saía da Idade Média, fortemente animista IH. Por mais que tenha sido uma reação à modernidade, a tridentinização lhe assumia a necessidade de passar pelo crivo da razão o que antes se assumia pela via da simples tradição e de uma concepção mítica do universo. Semelhantemente no Brasil, a tridentinização do catolicismo popular, chamado por vários autores de "romanização" 19, significou um processo de dessincretização, de racionalidade sob a orientação da hierarquia. É uma espécie de "modernidade eclesiástica". Essa entrada da razão de­ pura o catolicismo dos elementos que não coincidem com a sua lógica, desmitifica muitos traços religiosos, considerados como herança de uma cultura pré-científica. Na análise de P. Ribeiro de Oliveira, tal fato deveu-se sobremaneira ao implantar-se no Brasil o catolicismo romano, modificando-se o equilíbrio do poder, que passou das mãos dos leigos para um clero adestrado. 18. Expus, baseado nas obras de J. Delumeau, parte desse fenômeno, quando tratei da formação da identidade tridentina. em meu livro A volta à grande disciplina, São Paulo, Loyola, 21984, pp. 25ii. Aí cito as obras de J. Delumeau. 19. Pedro R. de ( )liveira. Catolicismo popular e romanização do catolicismo brasileiro, in REB 3h (19i6). pp. 131- 1-11: id., Catolicismo popular no Brasil, Rio de Janeiro, CERIS, 19i0; id., Religiosidade popular na América Latina, in REB 32 (19i2), pp. 354-364; R. Azzi, Elementos para a história do catolicismo popular. in REB 36 (19i6), pp. 95-130.

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Catolicismo romanizado "Enfim, o catolicismo romano seria aquele conjunto de práticas e represen­ tações religiosas marcadas pela ênfase nos sacramentos, que, introduzido no Brasil por agentes especializados da instituição religiosa, configura-se um catolicismo onde a figura central é o padre, ministro dos sacramentos e detentor do poder de falar em nome de Deus para toda a comunidade religiosa. " 20

Aqui consideramos mais o papel de um tipo de racionalidade - o clero - que desmitifica um catolicismo, considerado por ele, carregado de superstição. É precisamente o que J. Delumeau analisa no processo de tridentinização do catolicismo europeu nos séculos seguintes ao Concílio de Trento. Essa mesma racionalidade tocou as religiões afro-brasileiras, nas quais alguns pais-de-santo da Bahia estão a expurgar a própria religião. Esse fenô­ meno é intrigantemente paradoxal. Ao mesmo tempo que se dessincretizam várias realidades culturais do país, na busca de maior pureza, de mais clara identidade, vive-se forte onda sincrética. Daí que qualquer análise demasia­ do rígida não dá conta da complexidade e contraditoriedade da realidade 21• Essa primeira vaga de modernidade punha a exigência de definição conscientemente identitária. Já mesmo nos inícios da evangelização os jesuítas mostravam tal preocupação, aliás recorrente nos processos evangeli­ zadores. Os nomes variam: volta às fontes, redescoberta do carisma, fideli­ dade inicial, recepção da tradição, retorno aos inícios. Enfim, está a idéia de que uma ganga impura ao longo da história adere à pureza inicial que precisa sempre ser recuperada. Esse processo se faz por meio de uma reflexão crítica da razão. No caso do catolicismo, a racionalização passou por sua maior centrali­ zação clerical, valorização dos sacramentos e doutrina, orientação explicita­ mente para uma salvação sobrenatural. R. Azzi refere-se diretamente ao papel dos religiosos nesse processo de romanização em três momentos 22• Entre os anos 1840 e 1889, eles participam 20. Pedro R. de Oliveira, Catolicismo popular e romanização do catolicismo brasileiro, in REB 36 (1976), p. 141. 21. J. B. Libanio, Itinerário da fé hoje - A propósito da teologia da fé, in Geraldo Hackmann, org., Sub umbris jideliter. Festschrift em homenagem a Frei Boaventura Kloppenburg, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1999, pp. 203ss. 22. R. Azzi, A vida religiosa no Brasil. Enfoques históricos, São Paulo, Paulinas, 1983, pp. 15-20. 120

da reforma da l1rej1, Um dos grandes bispos da romanização, D. Antônio Ferreira Viçoso, de Mariana, pertencia à Congregação da Missão (lazarista). Os capuchinhos assumem a direção do seminário de São Paulo sob o bispo reformador D. Antônio Joaquim de Melo. Desenvolvem os religiosos papel importante na pregação de missões populares entre o povo. Religiosas, como as vicentinas e dorotéias, expandem as atividades por amplas regiões do país com hospitais, colégios e obras assistenciais. Uma segunda etapa se define a partir da proclamação da República ( 1889 ). Esta trouxe a separação da Igreja e do Estado. Produziu uma maior vincu­ lação da Igreja Católica com Roma. Tai separação abriu as portas para a entrada de muitas congregações religiosas, incrementando a vida religiosa em nosso país. Multiplicam-se as escolas católicas sob a direção de religiosos e religiosas para contrapor-se ao ensino leigo oficial e ao crescimento das escolas protestantes. Atuam também no campo da imprensa com publica­ ções doutrinais e catequéticas. O processo de "purificação" do catolicismo avança ainda mais com as novas devoções que os religiosos traziam da Eu­ ropa. De natureza mais clerical e sacramental, substituem as antigas devo­ ções populares. Organizam-se associações religiosas leigas em detrimento das antigas confrarias e irmandades. Uma terceira etapa data do início da crise da velha República (1922) até a convocação do Concílio Vaticano II. A presença dos religiosos fortifica-se no campo do ensino com a fundação da AEC (Associação de Educação Católica) em clara oposição aos propósitos da escola nova, protagonizada pelo Prof. Anísio Teixeira. Nesse momento, processa-se outra tentativa mais intelectualizada de romanizar as elites. Isso se faz por meio da criação de universidades católicas, nas décadas de 1920 e 1930, no modelo das de Louvaina, Milão, com o auxílio do clero formado sobretudo na Universida­ de Gregor�ana 23 • A romanização deixa-nos a herança da experiência de que na Igreja Católica as transformações profundas passam pela formação do clero e de estruturas de apoio para os leigos.

Elite intelectual "A hipótese que fomos verificar, portanto, é a de que a Igreja privilegiou, como estratégia para sua restauração e posterior desenvolvimento, a for­ mação de lideranças intelectuais católicas, voltada preferencialmente para as camadas médias urbanas em formação e ascensão." "Constatamos que tal projeto consistiu na tentativa de formação de uma · elite intelectual 23. A. Casali, Elite intelectual e restauração da Igreja, Petrópolis, Vozes, 1995. 121

católica'" ... "a formação dessas elites intelectuais, na fase de implantação das universidades católicas no Brasil. correspondeu mais aos interesses corporativos imediatos da Igreja, em seu movimento restaurador." • A Igre­ ja empregou seus melhores recursos, na época. para essa produção e mobilização de intelectuais católicos leigos. • 2 • Travou-se nessa onda romanizante plural um embate entre uma tradição brasileira de identidades porosas, de pouco rigor dogmático na formulação das verdades, ambivalências éticas e as tentativas de purificação de qualquer aderência sincrética, permissiva, tolerante.

V. MOMENTO DA MODERNIDADE PÓS-CRISTÃ: PRIVATIZAÇÃO DA RELIGIÃO A primeira modernidade foi intraeclesial. Por isso chamei-a de "modernidade eclesiástica". A religião vai sofrer a investida da "moder­ nidade moderna" na expressão de H. Vaz 25 • Mais tarde, revendo a expres­ são, ele fala de "modernidade pós-cristã" 26 . Essa modernidade trouxe em seu bojo exigências da razão iJuminista, autônoma, já não mais preocupada em purificar nenhuma religião de seu sincretismo, mas em destituí-la de qualquer domínio sobre a sociedade, de expulsá-la simplesmente do mundo da razão para reduzi-la ao âmbito da intimidade afetiva das pessoas. Em nome da razão científica, restringe-se o âmbito da fé a realidades míticas, pré-científicas, sem consistência teórica. Além do mais, promoveu-se uma valorização crescente do indivíduo, de sua subjetividade, de sua intimidade. Os setores da religião e da conduta moral especialmente sexual tornaram-se cada vez mais uma opção pessoal e não institucional. Se a primeira modernidade foi eclesiástica, a modernidade pós-cristã é antieclesiástica, anti-religiosa. Produziu vários efeitos sobre a religião. Privatizou-a, secularizou-a, racionalizou-a (deísmo), reduziu-a a um produ­ to do ser humano (L. Feuerbach), destituiu-a de valor científico (cientismo), infamou-a (estádio teórico perempto: Comte), (alienação: Marx), (fraqueza: Nietzsche), (infantilismo: Freud), (demissão da liberdade: Sartre). 24. 25. 26. filorofia,

A. Casali, op. cit., pp. 10, 219. H. Vaz. Religião e modernidade filosófica, in Síntese N= Fase 18 (1991), p. 149. H. C. de Lima Vaz. Transcendência e Religião: o desafio das modernidades in Escritos de Ili. Filosofia •cultura.São Paulo. Loyola, 199i, p. 231. 122

As modernidades, sob a batuta da razão clássica, levaram as religiões a refletir sobre si mesmas. Teologizaram-se, ao buscar a inteligência de si mesmas. A modernidade pós-cristã, pelo contrário, levará a teologia a uma crise sem precedentes.

Modernidades e religião "É permitido. pois. afirmar que o influxo maior das modernidades que se sucedem sob o signo da razão clássica sobre a religião traduz-se na cons­ tituição de teologias. que chegam a formar a frente intelectual mais avan­ çada dessas modernidades... Apenas com o advento de uma modernidade pós-cristã - a nossa - a partir do século XVIII. a teologia. como compo­ nente do sistema filosófico. conhecerá uma crise que levará ao desapare­ cimento de sua forma tradicional, sendo então substituída pela chamada filosofia da religião. " 27

A modernidade privatizante destronou a religião do seu papel social de referência fundamental para a sociedade nas suas diversas atividades econô­ micas, políticas e culturais.

A modernidade social destrona a religião

A religião era a força integradora das sociedades humanas. O homem, como ser simbólico, tem necessidade de dar um sentido à vida em todas as dimensões. Constrói sistemas simbólicos religiosos como marco último e integrador das sociedades em que vive. A modernidade atinge precisamente esses sistemas simbólicos religio­ sos, criando outros sistemas de significado de natureza secular. Fenômeno muito conhecido e estudado pelos clássicos da sociologia. W. Pannenberg atribui muita importância à guerra das religiões do final do século XVI e inícios de XVII para a perda de credibilidade do cristianismo na sua função de fundamento da unidade do Estado. Se o cristianismo se revelara fonte de discórdia, de conflito, de guerra, destruindo a paz social por meio da paixão religiosa, se ele se dividira em facções que se combatiam, como podia cum­ prir sua missão de referente único? Não há outra solução que buscar um princípio "neutro" acima das divergências religiosas: a razão. O Estado !.i. lJ, ihid. 123

seculariza-se e desloca a religião - no caso o cristianismo - para a esfera do privado28. Noutra perspectiva, K. Gabriel refere-se a um consenso de fazer recuar não à Reforma ou à Ilustração as origens da modernidade que introduziu o corte entre religião e sociedade. Na Alta Idade Média, já se instala um pluralismo estrutural religioso. As guerras das investiduras do século XII desempenham papel importante. O papa defende a autonomia da esfera espiritual e assim se constitui necessariamente uma esfera mundana separa­ da, embora haja entre elas relação de domínio ou submissão. Superam-se os dois caminhos do cesaropapismo ou do hierocratismo. Ao lado desse plura­ lismo, desenvolvem-se as cidades medievais e o comércio entre maiores dis­ tâncias, que permitem nascer os centros de comércio com sua racionalidade própria e prolongam as cadeias de comércio 2Y . X. Herrero, em claro e didático artigo, desenvolve o itinerário da socia­ lização da religião até a explosão religiosa atuaPo. Ele percorre os autores K. Marx, E. Durkheim e C. Castoriadis, desembocando na imanentização do significado da religião com a completa autonomia do social. Num primeiro momento, K. Marx desvenda a falsidade da religião e a verdade do ser humano. A reconciliação do ser humano consigo e com o mundo fará que ele já não produza a religião. O mundo reconciliado é ateu. A verdade da religião é incompatível com a verdade do social. Estabelecendo-se esta, a outra desaparece. E. Durkheim leva adiante o processo da redução da religião ao social, ao identificá-la com o fator de unidade e coesão do grupo social. Isso aparece claro no totemismo. "Para Durkheim, a sociedade é a fonte dessa 'ação dinamogênica que caracteriza a religião"', conclui X. Herrero citando o pró­ prio sociólogo31 • C. Castoriadis leva a grau ainda maior tal socialização da religião. A religião cumpria até então uma função imaginária ou simbólica no processo instituidor das sociedades. Ocultava o verdadeiro caráter da auto­ instituição da sociedade, exigido pela razão moderna. A religião deve ser supri28. W. Pannenberg, Christentum in einer siikularisierten Welt, Freiburg, Herder, 1988. Segundo este autor, por causa do impacto das guerras de religião dos sécs. XVI e XVII foi crescendo a dúvida de que a unidade da religião fosse indispensável e fosse também um fundamento eficaz da paz social. Isso levou pensadores como Hugo Grotius e Herbert von Cherbury a buscarem a base da ordem social e da paz entre os Estados no direito natural e na religião natural, comum a todos os seres humanos e em conexão com tal direito. Assim no lugar da religião revelada devia tornar-se base da ordem pública e da paz social a natureza do ser humano, elemento comum a todos eles. Este é o ponto de partida para o desenvolvimento de uma cultura secularizada na Europa (pp. 23s.). 29. K. Gabriel, Christentum zwischen Tradition und Postmoderne, Freiburg im Breisgau, Herder, 1992, pp. 69s. 30. X. Herrero, Filosofia da religião e crise da fé, in Síntese Nova Fase 13 (1985), p. 13-39. 31. ld., ibid., p. 16. 124

mida pela sociedade moderna que se auto-institui, dando-se autonomamente suas próprias leis e reconhecendo explicitamente essa sua natureza auto­ instituinte. A religião era o segredo do imaginário social da sociedade heterônoma32 • Conclui-se assim o processo de "imanentização do signifi­ cado implícita na corrente de sociologização da religião que acompanha o advento e o curso da razão política moderna. O projeto imanente de emanci­ pação da sociedade contemporânea, que implica a completa autonomia do social, recebe aqui a sua mais nítida transcrição teórica" -1\ A onda recente de secularização

Nas décadas de 1960 e 1970, o processo de privatização da religião, já anunciado e analisado anteriormente, recrudesceu e ampliou vastamente o campo de influência. O eclipse do sagrado no âmbito social o conduziu para a intimidade das pessoas. A religião muda sua função social. Em vez de manter a unidade da sociedade, ela responde às necessidades das pessoas. Ao desinstitucionalizar-se, não desapareceu, mas privatizou-se, individualizou­ se, tornou-se "invisível" na sociedade e muito visível na vida privada-14. Carac­ terizou-se tal processo como secularização 35 . Em torno dela, circulam muitos sentidos diferentes e elaboram-se diver­ sas teorias. Fala-se do eclipse do sagrado. Outros referem-se ao declínio da religião e das práticas religiosas. Para alguns, acontece a perda de plausibi­ lidade da religião, com sua conseqüente marginalização em sociedades cada vez mais racionalizadas. Não se trata do fim da religião, mas de sua função social. Processa-se uma subjetivação das crenças, acontece uma maior con­ formidade com este mundo num movimento de horizontalização e naturali­ zação das realidades sobrenaturais. Constata-se a prescindência da influên­ cia pública da religião por parte da sociedade. Faz-se uma transposição das crenças e instituições religiosas para a responsabilidade e a razão humanas. Verifica-se uma dessacralização do mundo com respeito aos encantamentos e magias. Segue-se uma perda de significação de figuras e gestos sagrados 32. Id.. ibid., p. 17. 33. Id., ibid. 34. Th. Luckmann, La religión invisible. El problema de la religión en la sociedad nwderna, Sala­ manca, Sígueme, 1973. 35. A secularização pode ser um fato constatado, uma teoria interpretativa ou um projeto a ser implantado. Distingue-se de "secularismo", que si gnifica antes uma ideologia que aponta para o térmi­ no do processo de secularização, uma realidade absolutamente imanente em que se negam qualquer transcendência e dimensão religiosa.

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tradicionais. Estabelece-se uma auto-referencialidade sistêmica da religião. Significa que ela se refere unicamente a si mesma e aos próprios imperativos funcionais (fechamento ao exterior), atuando seletivamente em relação aos outros subsistemas e do mundo em geral. Ela enfrenta uma emancipação e uma autonomia do mundo profano - ciência, política, estética, ética - em face dela. Observa-se uma laicização das diversas instituições sociais, ao do­ tarem-se de ideologias, referências e regras de funcionamento próprias. O cristianismo liberta-se e purifica-se de ouropéis sagrados tornando-se adul­ to. Secularização significa também a transferência dos bens da Igreja para a propriedade civil, a laicização de um religioso ou clérigo etc. ·10

Secularização "Qual seria, se houvesse, o futuro da religião na época da secularização, foi o cerne do debate que se desenvolveu entre os anos 60 e 70. Para alguns, a crise da religião era irreversível: a secularização era uma conse­ qüência do processo de racionalização que transformara o Ocidente, assi­ nalando o triunfo da racionalidade instrumental e, por isso, era um fenôme­ no que não podia ser detido, que comportava ao mesmo tempo a margi­ nalização social da religião e a dessacralização, isto é, o eclipse ou, até mesmo, o desaparecimento do sagrado. Outros, de maneira menos pes­ simista, procuravam descobrir os aspectos positivos do processo, mos­ trando que a secularização era, na realidade, apenas uma dessacralização, isto é, um momento de purificação dos aspectos sacrais do cristianismo e, portanto, preliminar ao afirmar-se de uma experiência religiosa mais autêntica. Outros ainda, como Greeley, sustentavam não apenas a possi­ bilidade de uma religião purificada na sociedade secular, mas até negavam que a necessidade do sagrado tivesse realmente desaparecido. " 37

K. Gabriel considera a identificação entre modernização e secula­ rização como inadequada. Segue a tradição que vê a modernização como diferenciação progressiva e racionalização das estruturas funcionais do siste36. S. Martelli, A religião na sociedade pós-moderna, São Paulo, Paulinas, 1995, pp. 271-321; L. Shiner, The Concept of Secularization in Empirical Research, }oumScStRel 6 (1967), pp. 207-220 re­ tomado por A. Álvarez Bolado, Dei pluralismo de modelos sacio-teoréticos a una consideración metasociológica de la secularización, in Instituto Fe y Secularidad, Fe y nueva sensibilidad histórica, Salamanca, Sígueme, 1972, pp. 103-152; D. Hervieu-Léger, Vers un nouveau christianisme? lntroduction à la sociologie du christianisme occidental, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 1986, pp. 191-194; S. S. Acquaviva, Religione e irreligione nell 'età postindustriale, in S. S. Acquaviva - G. Guizzardi, Reli­ gione e irreligione nell'età postindustriale, Roma, AVE, 1971, pp. 13-53. 37. S. Martelli, A religião na sociedade pós-moderna, São Paulo, Paulinas, 1995, pp. 271s.

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ma no campo do poder, religião, economia e ciência. A modernização produziu um pluralismo cultural e maior reflexividade dos conteúdos tradicionais culturais. O modelo tradicional, relativamente unitário, dá lugar à pluralidade de perspectivas culturalmente interpretadas. Facilitam-se as­ sim o acesso e a escolha do indivíduo diante dessa pluralidade. E a religião, no coração da cultura, sofre impacto semelhante, ficando entregue a um processo de individualização. A própria modernização é a forma do processo de individualização, estruturalmente provocado e culturalmente apoiado. Os indivíduos libertam-se de ligações de origem, de ordem (Stand), de religião e experimentam-se como centros de ação auto-responsáveis. Substituem-se as regras tradicionais de inserção na sociedade por um jogo conjunto de mecanismos formalizados: direito, dinheiro, organização. Amplia-se o cam­ po de ação 38 . P. Berger relaciona a privatização religiosa com o surgimento de minorias que se mantêm fiéis em uma instituição religiosa de maneira mais ardorosa para suportar a perda de plausibilidade social do conjunto da ins­ tituição. A análise sociológica não oferece explicação cabal da privatização da religião. Há raízes mais profundas que se encontram na história das idéias.

Emancipação da sociedade diante da religião "A sociedade moderna. nascida num longo processo de dissolução da imagem antiga do mundo, liberta-se da religião e da hierarquia de ordem do cosmos e da sociedade, considerada como imutável. e elabora seu projeto imanente de emancipação. Ela visa ao advento de uma sociedade e de uma história construídas pelos homens e em cujas obras eles se reconhecem. A crítica da religião deixa de ser uma refutação propriamente dita da instância religiosa considerada alienante, para voltar-se a seus ·ver­ dadeiros' pressupostos. " 39

A modernidade científica e tecnológica desqualifica a religião As ciências empiricas e a tecnologia atuam diferenciadamente sobre a cosmovisão religiosa. Os avanços tecnológicos comportaram-se contradi38. K. Gabriel. Christentum zwischen Tradition und Postmodeme, freiburg im Breisgau, Herder, 1992. Mais adiante voltaremos a esse autor, ampliando a exposição sobre sua posição da destradicio­ nalização .l9. X. Herrero, Filosofia da religião e crise de fé, in Síntese Nova Fase 13 (1985), p. 15.

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toriarnente em relação à religião. Alguns ajudaram-na, não interferindo em sua concepção de mundo. Um pontífice doutrinariamente conservador, como Pio IX, introduziu nos territórios pontifícios o telégrafo e o trem de ferro, sem que esses progressos tecnológicos afetassem seu modo de pensar 40 • Outros desen­ volvimentos científicos e tecnológicos obrigaram a uma revisão religiosa pro­ funda da instituição porque exigiam resposta a seus questionamentos. Afetou mais diretamente a religião o fato de a modernidade apresen­ tar a ciência como único sistema de representação criticamente fun­ dado. Ela desestrutura os universos simbólicos tradicionais, dissolve a ima­ gem do mundo antigo, dificultando ao homem moderno o acesso à fé, à religião, à revelação. Ao criar-se a ideologia cientista, radicaliza-se ainda mais o império das ciências exatas. Embora muitos grandes cientistas fossem pes­ soas de crença, foi-se elaborando uma visão da realidade marcada pela obje­ tividade das ciências empíricas. As ciências naturais ocupavam-se do certo e do errado, enquanto as religiões, do bom e do valor; as ciências consideravam o lado objetivo da realidade, enquanto a religião se interessava pela decisão subjetiva por valores orientadores da vida. O manifesto do Círculo de Viena de 1929 exprimiu em forma crista­ lina essa ideologia cientista. Era uma nova reação contra o pensamento metafísico e religioso. Defendia um empirismo por métodos lógicos. Anali­ sando o significado dos conceitos e proposições, constatava-se que, em últi­ ma análise, ele era empírico. As proposições que não são claramente empí­ ricas em sua referência ou são redutíveis a proposições empíricas ou são um sem-sentido41 • A metafísica e a religião são imprecisas porque não trabalham com conteúdos e métodos das ciências da natureza. Estes são os únicos ca­ pazes de oferecer uma cosmovisão rigorosa, exata, científica. A religião está do lado da arte, da poesia, do mito. Neopositivismo vienense Vão aqui algumas idéias retiradas do Manifesto do Círculo de Viena, 1929, redigido por H. Hahn. O. Neurath e R. Camap. "Propugna uma 'ciência libertada da metafísica·, a saber, de todo produto intelectual que não se ajuste à experiência empírica." "Há superfície e por detrás dela não há nada." "O todo é apenas superfície." "Não há misté­ rios: há problemas. E os problemas podem ser claramente formulados, 40. Sobre o impacto ambíguo da tecnologia sobre a religião, sobretudo na França, ver a excelente obra de M. Lagrée, La bénédiction de Prométhée. Religion et technologie, com prefácio de Jean Delumeau, Paris, Fayard, 1999. 41. J. Weinberg, Examen dei positivismo lógico, Madrid, A gu ilar, 1959, p. 47.

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investigados e resolvidos. 'É real tudo [e somente] o que pode ser integra­ do no conjunto do edifício da experiência.' 'A concepção científica do mundo não admite como conhecimento incondicionalmente válido a não ser o que tenha sua fonte na razão pura... · Só existe o conhecimento experimental que se apóia sobre o imediatamente dado. " 42

Outro fator importante desse empirismo é a redução do real aos enun­ ciados da experiência, de maneira que só têm sentido as proposições emiti­ das pelas ciências da natureza, empiricamente confrontadas com a realidade. A conclusão ló g ica é um monismo ló g ico e ontoló g ico. Só é racional, só pertence ao mundo da verdade, do aceitável, da linguagem significativa o que pertence à ciência, à comprovação empírica, regida pela evidência. E, portanto, a única realidade genuína existente é aquela sobre a qual as ciências naturais trabalham 43 • Com isto a religião, a teologia, a fé, a mística são excluí­ das do mundo da realidade verdadeira. Toca-lhes o mundo do silêncio.

O silêncio do indizível "O que se pode em geral dizer pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar deve-se calar. " 44

A modernidade filosófica abala os alicerces da Transcendência

O último golpe contra a autonomia e o senhorio da religião veio natural­ mente da filosofia no sentido estrito do termo e por várias fontes. No fundo, a filosofia neg a à relig ião a racionalidade, remetendo-a para o mundo do irracional, do infantil, do sentimento, do mito, da intuição, do coração, do gosto. Tira-lhe a solidez do chão, deixando-a flutuar no mundo etéreo. Os próprios teólogos liberais humanizam-na tanto que perde sua trans­ cendência. A. Harnack afirma que "Jesus não introduziu no mundo nenhu­ ma doutrina nova [ ... ] mas carregou na sua pessoa a mensagem de uma vida santa com Deus e diante de Deus, em força da qual deu a si mesmo para o bem dos seus irmãos" 45• 42. J. Ruiz De La Peiia, Crisis y apología de lafe. Evangelio y nuevo milenio, Santander, Sal Terrae, 1996, pp. 30-32. 43. Ver a clara exposição que nos orientou: J. Ruiz De La Peiia, op. cit., pp. 29-40. 44. L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, São Paulo, EDUSP, 1994, p. 130. 45. A. von Harnack, Manuale della storia dei dogmi, I, Edizioni Cultura Moderna, Mendrisio, 1912, p. 53, in B. Forte, Dio nel novecento: trafilosofia e teologia, Brescia, Morcelliana, 1998, p. 18. 129

F. Schleiermacher (1768-1834) encarna a teologia no espírito da mo­ dernidade, colaborando para a interiorização, individualização e privatização da religião46 • Desenvolve uma religião romântica do sentimento, dirigida às classes educadas. Reconcilia cultura moderna e convicção religiosa, evitando o choque. Mas o faz à custa da acomodação da religião à subjetividade mo­ derna. A religião é pensada para a pessoa religiosa. Não é assunto de siste­ matização nem de teoria - isto é para o filósofo-, nem matéria de fórmula de fé e provas. A vida tem a prioridade na religião e não a doutrina. A feição peculiar da religião é a experiência do mistério, é ser movido pelo mundo do eterno. Ela é como faíscas celestes que saltam quando uma alma santa é tocada pelo infinito. Procura experimentar o universo, a totalidade do que existe e do que acontece, mediadamente no ver e sentir imediato.

Religião é sentimento "Não é nem pensar nem agir, mas intuição e sentimento. Pretende olhar o universo como ele é. É uma atenção e submissão reverente, em passi­ vidade como criança, a ser açulada e enchida pelas influências imediatas do Universo. " 47

A religião é do coração, "sentido e gosto pelo infinito" 4 x. Habita o mundo da intimidade, do sentimento, da piedade, algo existencial. Não se entenda o sentimento como puramente psicológico. É mais. É um modo compreen­ sivo, existencial, um sentido de estar encontrado no centro, uma autocons­ ciência imediata religiosa. A fé cristã de religião é sentimento de dependência última. Opõe-se veementemente à religião estatal, fonte de corrupção. Re­ força-se a privatização e a interiorização da religião. Outra corrente filosófica, que destitui a religião de sua força transcen­ dente e profética, reduzindo-a a uma pura antropologia, alimenta-se do corifeu L. Feuerbach. Já nos referimos a ele em outro momento. Para o objetivo da reflexão sobre a privatização da religião, basta recordar a sua tese fundamen­ tal. O Absoluto é simplesmente uma projeção, uma objetivação da humani­ dade. A religião engana, mascarando com toques transcendentes o conteúdo essencialmente humano da filosofia. Ela não passa de reflexo de uma realida·H1. Seguimos a brilhante e dara exposição de H. Küng do papel de Schleiermacher na conciliação com a modernidade in H. Küng. Christianity: The l�eligious Situation of Our Time, London, SCM Press Ldt, 1995, pp. 694ss. 4 7. F. D. i-:. Schlcicrmacher, On Religion. Speeches to its Cultured Despisers (1799), l\'ew York. 1958, p. 277, cit por H. Küng, op. cit., p. 698. 48. ld .. ibid .. p. 101. 130

de puramente humana. Por ela a espécie humana chega ao conhecimento da própria natureza essencial. O ser humano hipostasia nos atributos teológicos as projeções dos atributos próprios. A religião, a teologia não é nada mais do que uma antropologia esotérica. Em vez de Deus criar o homem a sua ima­ gem e semelhança, é a humanidade que criou Deus a sua imagem. A religião dissolver-se-á na humanidade 49 • Estamos diante de uma concepção de reli­ gião que lhe subtrai toda realidade objetiva, pública para transformá-la em pura antropologia. R. Bastide retoma, em sentido um pouco diferente, a última frase do livro de Bergson, que considera "a função essencial do universo" como "uma máquina de fazer deuses'"' 11, ao chamar "o ser humano, essa máquina de fabricar deuses" 51•

Deus como projeção do ser humano "A partir de seu Deus, tu conheces o homem, e inversamente a partir do homem seu Deus: os dois não fazem senão um. O que Deus é para o homem: seu espírito, sua alma, e o que é o próprio espírito humano, sua alma, seu coração: isto é seu Deus; Deus é a interioridade manifesta, o si (Selbst/Sem expresso do homem; a religião é o desvelamento solene dos tesouros escondidos do homem, a confissão de seus pensamentos mais íntimos. a confissão pública de seus secretos de amor. " 52

A modernidade filosófica pós-cristã tem, portanto, um componente ateu. Substitui a abertura à Transcendência por um imanentismo que encerra o sujeito em si mesmo. Ela dissolveu o sistema de expressões da religião num horizonte utópico de seu próprio processo histórico. Substituiu o mais além celestial por um mais além terreno em que se satisfariam ilimitadamente todas as necessidades dos indivíduos. Ela exclui a religião da esfera pública e a produz mais vigorosa ainda na esfera individual. Abole a religião enquanto sistema de significações e motor dos esforços humanos, mas cria espaço-tempo de uma utopia, que, em sua estrutura, é afim a uma problemática religiosa de consuma­ ção e salvação. Traveste em utopias humanas seus conteúdos religiosos 51 . En­ fim, anuncia-se o fim da religião como instituição e proliferação de expressões. ➔'J. I'. /\vis. Faith in lhe Fires of Criticism: Christianity in .\1odern Thought, London. I>arton, Longman and Todd. 1995, pp. 17ss: o/\. apresenta excelente síntese do pensamento teológico de L Fcucrbach sob o aspecto da humanização da religião, de Deus. 50. H. Bergson, .-\s duas fontes da moral e da reli}{iào, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p. 262. 51. R. Bastide. Le sacré saut"age el aulres essais, Paris, Stock/Payot, 1975/1997, p. 75. 52. L. Fcuerbach. /. 'Essence du christianisme, Paris, Maspero, 1968, p. 130. 5.l. !\. Castineira, .-\ experiência de Deus na pás-modernidade, Petrópolis, Vozes, 1997, p. 160. 131

Entende-se nesse contexto a afirmação cortante de M. Gauchet, repe­ tida nos mais diversos contextos: "O cristianismo terá sido a religião da saída da religiào" 54• Ele é fim do papel social da religião. Papel que definiu desde o início o conteúdo do fato religioso. Não significa fim da crença religiosa que não é prevista no horizonte da história. Indica a existência de crentes num mundo do além da religião. "Os deuses sobrevivem, mas seu poder morre. Os crentes não levam a organização religiosa da cidade. Há crentes, mas a sociedade permanece atéia nos princípios e mecanismos." 55 M. Gauchet atribui ao cristianismo função importante no fim da reli­ gião. Ele ofereceu suporte para a autonomia terrestre. É a mesma tese fun­ damental de F. Gogarten para quem a secularização era conseqüência legíti­ ma do impacto da fé bíblica sobre a história. Autonomia do mundo não significa sua absolutização, como explicita M. Gauchet.

Autonomia "Autonomia quer dizer não uma sociedade que esteja de uma vez por todas em posse de seu sentido, mas uma sociedade articulada em tomo da deliberação sobre si mesma. Autonomia do mundo humano não quer dizer absolutização do mundo humano, mas conflito a respeito do absoluto no interior do mundo humano a propósito do qual os que crêem não aparecem, no fundo, menos divididos do que os não-crentes. " 56 "O cristianismo gerou um mundo que o contesta e pode prescindir dele, mas permanece em conivência matricial com ele. Tem chance de ficar-lhe associado por meio de evolução e adaptação. Ele é a única religião com­ patível até o extremo com a modernidade. A Igreja é instituição típica que a modernidade está fadada a contestar. No entanto, está insuperavelmente enraizada na história que a contesta. " 57

Fim da religião "Não recomecemos a profetizar a morte e os funerais de velhos que passam." "Se há um sentido em falar de algo como um 'fim' ou como uma 'saída' da religião, não é tanto do ponto de vista da consciência dos atores 54. M. Ciauchet, Le désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion, Paris, Gallimard, 1985, p. II e pp. 1.l.hs. 55. Jd., ibid. 56. Entrevista com M. Gauchet, Un credo démocratique? in P. Colin - O Mongin, dir., Un monde désenchanté. Débat avec Marcel Gauchet, Paris, Éditions Éditions du Cerf, 1988, pp. 98s. 57. Entrevista com M. Gauchet, La religion de la sortie de la religion, in op. cit., pp. 95-100. 132

quanto do ponto de vista da articulação de sua prática." "Pois a religião foi antes uma economia geral do fato humano, estruturando indissolu­ velmente a vida material, a vida social e a vida mental. Hoje não sobram mais que experiências singulares e sistemas de convicções, enquanto a ação sobre as coisas, o laço entre os seres e as categorias do intelecto funcionam de fato e em todos os casos no antípoda da lógica da depen­ dência que foi sua regra constitutiva desde o começo. É propriamente aí que saltamos fora da idade das religiões. " 58 Em profunda análise da trajetória da relação filosofia e religião, Pe. Vaz

atribui fundamental importância à virada cartesiana. Ele observa que a categoria weberiana de "desencantamento", recentemente utilizada por M. Gauchet, não toca as raízes metafísicas do problema, por permanecer num plano sociocultural. Vê a razão do choque da modernidade filosófica com a religião no seu próprio conceito. No fundo, está a concepção e a relação com o tempo e seu fundamento. O fundamento do tempo da religião é um Prin­ cípio transtemporal ou transcendente ao tempo. A modernidade estabelece o ser humano como seu princípio fundamental. Princípio imanente que se faz absoluto. Em uma página densa e difícil, o Pe. Vaz resume sua tese central. Vale a pena conferi-la.

Choque da modernidade pós-cristã com a religião "Nesse enjeu metafísico em torno da idéia de Deus deve ser situado, portanto, o lugar conceptual e ideológico no qual se produz, no seu plano mais profundo, o choque da modernidade pós-cristã sobre a religião... Se, considerada do ponto de vista da filosofia, modernidade implica, no seu conceito, uma avaliação pelo homem do seu tempo histórico, avaliação que se traduz no privilégio reconhecido ao modo ou à atualidade do seg­ mento desse tempo no qual se exerce o pensamento próprio da moder­ nidade, então o problema fundamental desse pensamento é o problema do fundamento do privilégio que advém ao tempo pelo exercício. nele, do ato de filosofar omcnach, op. cit.. pp. 80s. 31. J. \"ernettc, :'\éo-paganisme. in P. l'oupard, org., Dictionnaire des Religions, Paris, PUF, '199. l , li. pp. 1420- 1423.

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contrar aí fundamento religioso para a União Européia, rejeitando a proposta de João Paulo II de fundá-la na fé cristã. Há formas sincréticas que dificul­ tam distinguir se se trata de um cristianismo paganizado ou de um paganis­ mo com elementos cristãos. Outras expressões situam-se na linha-limite entre o religioso e o desenvolvimento do potencial humano por meio de práticas paracientíficas, parapsicológicas, para-religiosas, alargamento de consciên­ cia, técnicas de meditação e de respiração, culto do corpo.

O neopaganismo confessa, em outros momentos, menos anti­

cristão e mais pós-cristão. Retoma a linha pagã subjacente ao longo da história antiga, medieval e mais evidente na Idade Moderna no humanis­ mo, em Montaigne, em Hume e nos tratadistas de moral. Até então era mais um paganismo cristianizado e atualmente no final da cristandade surge o neopaganismo explícito. O adversário maior do neopaganismo é a cris­ tandade e não o cristianismo, entendendo a primeira como a fase em que o cristianismo se apresentava detentor da verdade absoluta e em força dela julgava com o direito e o dever de impô-lo ao mundo. Nesse sentido, o neopaganismo oferece uma sabedoria de vida e de felicidade, alternativa ao cristianismo 32•

Filosofia de vida neopagã "Com efeito, o neopaganismo pode ser entendido diversamente [de anticristianismo), a saber, como uma re-proposta de uma ética do finito.. . Ele mantém tudo o que existe de transitório, certamente, mas suficiente em si mesmo enquanto existe ... O neopaganismo explícito pôde emergir somen­ te agora que estamos no fim da cristandade... Se é possível uma sabe­ doria de viver não cristã, então o cristianismo não é tudo... O neopaganis­ mo não é niilista, precisamente porque não nutre esperanças absolutas e, no entanto. não defende que tudo seja possível. Acima de tudo, ele enten­ de altamente improvável que a dor e a morte desapareçam do mundo. Vive-se bem, se elas são enfrentadas, se as pessoas se comportam à altura da própria morte. Para o neopagão a caducidade não é motivo de objeção nos confrontos da vida, a dor é natural como a alegria e é a mesma natureza que gera e abate. " 33 Estas considerações valem mais para um mundo realmente pós-cristão, cujo imaginário social já se despojou em profundidade dos significantes cris32. S. :-.Jatoli, Dizionario dei vizi e delle virtú, Milano, Feltrinelli, 1996, pp. 94-97. 33. S. Natoli, op. cit. pp. 94-96.

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tãos. Já citei no capitulo segundo o exemplo do filósofo francês M. Conchc. Ele é lidimo exemplar da secularidade moderna européia que se vangloria de ter-se despojado de todo elemento cristão para encontrar-se com a raiz pagã, simbolizada na figura de Heitor por ser "apenas humano" numa atitude ti­ picamente estóica 34 • Volta-se ao mundo pagão. No Brasil, torna-se mais difícil diagnosticar tal processo. Há formas nitidamente pagãs que emergem hoje vindas das religiões afro-brasileira11 e introduzem-se no imaginário religioso do povo e da elite. Ritos, letras r ritmos de música, cultos, terminologia de caráter religioso afro-brasileiro adquirem cada vez mais cidadania na cultura brasileira. E, em muitos casos, com toda a sua pureza pagã. Com menos freqüência isso acontece com ritos e símbolos das religiões indí genas. Eles atravessam algumas expressões religiosas ou a título indivi­ dual ou em religiões institucionalizadas, como o Santo Daime. A novidade, porém, e mais questionadora teológica e pastoralmen­ te, é uma forma aparentemente cristã e até católica de uma atitude neopa gã em alta na visibilidade midiática. O povo brasileiro teve e tem ainda uma ampla socialização católica. Impregnam-lhe o imaginário social religioso os ritos católicos. Aí estão dis­ poníveis significantes religiosos de Cristo, cruzes, ostensórios, hóstia, Maria, os santos, que podem ser resgatados a qualquer momento. Os significantes, a parte sensível do signo, sua "imagem acústica" (F. de Saussure) ou visual, trazem sempre um significado. Sem ele, seriam simplesmente objetos, que existem, mas não significam nada. E a significação se percebe pela relação que os significantes e significados entretecem. O significado não existe nem antes, nem depois, nem fora do significante35 •

Signo, significante e significado "Definir-se-á, pois, com prudência, o signo como uma entidade que 1) pode tomar-se sensível, e 2) para um grupo determinado de usuários assinala uma ausência nessa entidade. A parte do signo que pode tomar­ se sensível chama-se, para Saussurre, significante; a parte ausente, sig­ nificado, e a relação que eles entretêm, significação. " 36 34. M. Conche, A análise do amor, São Paulo, Martins Fontes, 1998, de modo especial o capítulo: Tornar-se grego, pp. 103-129. 3j. O. Ducrot - T. Todorov, Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage, Paris, Seuil, 1972, pp. 131s. 36. ld., ibid. 241

As pregações e celebrações religiosas articulam os significantes e significados, sem que um não possa ser pensado sem o outro. No seio desse sistema religioso de sinais se entendem os significados dos significan­ tes. Os usuários, inseridos nesse sistema, percebem-nos. Para esclarecer melhor a relação entre significante e significado, analise­ mos o exemplo da eucaristia. Numa celebração eucarística, quando o sa­ cerdote apresenta a hóstia, o católico catequizado entende que se trata da presença real de Jesus sob as espécies do pão. E quanto mais longa e profun­ da for a catequese, mais o significado do significante hóstia é amplo e teoló­ gico. É fundamental para a intelecção dos significantes o meio social e cul­ tural em que ele aparece. Acontece com freqüência um fenômeno de transignificação de um significante por obra das mudanças culturais e sociais. O mesmo signi­ ficante - hóstia - levantado numa celebração de massa, num contexto social já menos católico, embora religioso, continua significando um mistério do mundo divino. Distancia-se, porém, do significado da eucaristia, como en­ tende a catequese católica, de celebração da memória do Jesus ressuscitado por uma comunidade de fé. A hóstia é significante, juntamente com outros signos, de uma realidade sacramental que constrói a Igreja, compromete os fiéis com a prática de Jesus. Pode suceder que o conjunto dos significantes duma celebração eucarís­ tica continue idêntico na sua materialidade. Contudo por razões culturais de compreensão, os significados podem variar e algum significante esvaziar-se do seu sentido originário. Um significante não passa de um objeto quando perde seu significado originário. O sentido não é uma substância que mar­ que um significante independentemente da relação do usuário com ele. Por­ tanto, o sentido eucarístico só existe pelas relações de compreensão dos que participam da celebração. O católico médio tem dificuldade de entender o significado teológico mais profundo do significante da hóstia. Por uma doutrinação tradicional da presença real de Jesus na eucaristia "ex ope operato", isto é, pela força das palavras consecratórias independentemente da fé do sacerdote e dos fiéis, ele é tentado a considerar a hóstia como uma "coisa" sagrada de onde pode emanar força divina. Uma correta intelecção da presença real considera a questão a partir de dois lados. Da parte de Deus, a oferta eucarística é independente de nós. Não somos nós que damos o sentido eucarístico. Recebemo-lo pela promessa e realização de Jesus. Aí se entende o "opus operatum" do sacramento. De nossa parte, este "opus operatum" só adquire sentido quando reconhecido, 242

como ceia, comunhão, memória da vida de Jesus, compromisso com Ele. Í� disso que se trata.

Sentido da liturgia "Não faz muito tempo, a televisão mostrou cenas de um popular padre 'pop-star' carregando o ostensório com a hóstia consagrada no meio da multidão de seus fiéis que se aglomeravam e erguiam as mãos para tocar na custódia ou aproximar dela suas carteiras de trabalho (ou as de seus filhos ou maridos). Espetáculo de fé na eucaristia ou incompreensão gro­ tesca do sentido do sacramento? O Santíssimo Sacramento é um 'santo milagreiro', quem sabe mais poderoso que os outros?" "A eucaristia não nos traz para o recinto da Igreja para simplesmente congregar-nos por uma hora; ela nos remete à missão, ao mundo que é entregue ao cristão como tarefa. Não se trata de unir-nos ao 'doce hóspede das almas' para consolo e sossego íntimo, mas de celebrar a memória de seu mistério pascal para, entrando nele e dele participando, realizá-la na vida de cada dia, unindo-nos aos que sofrem como Cristo e descobrindo e ajudando-os a descobrir a ressurreição e o Ressuscitado em seu meio. " 37 Mas alguém perguntará: que tem a ver todo esse arrazoado com o tema do neopaganismo? E como evangelizar celebrações que se neopaganizaram? Num país sociologicamente católico, é normal que os significantes cató­ licos sejam os que mais facilmente ocupam o espaço da publicidade. Talvez esteja aí a razão por que a sociedade continua pedindo celebrações sacramen­ tais para uma série enorme de cerimônias sociais e políticas como: formatu ras, comemorações de datas cívicas, matrimônios sociais etc. Para muitos elas exprimem a compreensão e vivência da fé de maneira verdadeira e au­ têntica. Em seu juízo prudencial, a Igreja acredita que por causa dos que as entendem e pelo resquício religioso de muitos participantes, compensa o ris­ co de uma interpretação errônea e distante das intenções de Jesus. À medida que a sociedade se torna indiferente à religião católica, com outras preferências religiosas, ou mesmo se seculariza - a secularização prossegue nas camadas letradas-, cresce o questionamento a respeito das celebrações sacramentais em muitas cerimônias. Para complicar a questão surge outro fenômeno. Fazem-se celebrações nitidamente católicas diante de massas enormes de pessoas. Às vezes se lhes 37. Editorial: Eucaristia- voltemos à Sacrossanctum Concilium in Perspectiva teológica 32 (2000), pp. 149s.154s. 243

juntam, a modo de acréscimo, outras finalidades. Têm caráter carismático, festivo e até de marketing publicitário. Será que elas não refletem a seu modo essa onda neopagã? De início, fica dito que certamente para muitos se trata realmente de uma celebração católica com os significados corretos da catequese. A questão se levanta quando os significantes católicos são percebidos por pessoas que vivem fora desse contexto religioso ou que estão em busca de outras realidades espirituais. Nesse caso, os significantes católicos, como a hóstia, adquirem um significado bem diverso. Transformam-se para muitos numa força quase física do mundo divino interferindo em nossa realidade terrestre: J. Delumeau nos seus estudos sobre a religiosidade popular nos anos do pós-concílio Tridentino observava o esforço da catequese católica de transfe­ rir para uma fé sobrenatural as devoções que visavam diretamente à solução de problemas materiais imediatos. Consideravam-se resquícios do paganis­ mo ainda não evangelizado nem tridentinizado.

Fogueira de S. João "Enquanto o fogo está aceso, um encarregado leigo atice a brasa para que arda e se consuma mais rapidamente, e um clérigo fique junto ao fogo para conter o povo no seu papel e para impedir as pessoas de pegarem e levarem brasa ou carvão, por pouco que seja, para usá-los como supers­ tição e assim todo outro tipo de desordem. Enfim, tendo tudo terminado, jogue-se um balde de água para apagar o que sobrou de fogo, e retirem­ se as cinzas imediatamente, limpe-se o lugar, guardem-se o estandarte e o quadro de S. João, tudo a cuidado de quem se encarrega do fogo. " 38

Precisamente é essa busca de solução de problemas materiais ime­ diatos que des perta a suspeita de que se trata de relí q uias pagãs anti­ gas - não esquecer a forte camada sincrética do catolicismo brasileiro - ou do ressurgir dessas formas. Em certas celebrações, o sacerdote cir­ cula com a hóstia no meio do povo. Este procura tocá-la para haurir um poder divino que solucione seu problema. Haja vista os gestos de encostar na hóstia ou noutro símbolo sagrado a carteira de trabalho, a chave do automó­ vel, ou outros objetos. Relaciona-se a espera de solução imediata de proble­ mas reais e concretos com a força divina da hóstia. A busca de uma solução imediata de problema concreto afeta rinci p p almente duas classes de p essoas. Os pobres e os que se encon38.

J.

Delumeau, Le catholicisme entre Luther et Voltaire, Paris, PUF, 1971, p. 260.

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tram nalpma ■ituação angustiante inesperada -doença grave, desem­ prego, falência etc. Na celebração religiosa ou no contato com um objeto sagrado procura-se o milagre. Esta palavra explica muito da religiosidade atual. Continua tão atual como outrora. Há aí um toque pagão? Os milaRres não acompanharam o desenrolar da história do povo de Israel e da vida de Jesus? Por que essa onda sôfrega pelo milagre reflete, a meu ver, não uma verdadeira fé cristã, mas sim relíquias do paganismo e emersões neopagàH? Porque, em última análise, se atribui a uma "coisa" um poder mágico