A Psicologia soviética: meu olhar

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MARTA SHUARE

A PSICOLOGIA SOVIÉTICA meu olhar

D igitalizado c om C am S canner

MARTA SHUARE

A P S I C O L O G I A S O V IÉ T IC A

meu olhar

Io Reimpressão

T erracota São Paulo 2017

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copyright & 2017 Marta Simare

Os direitos autorais deste livro estão reservados ã autora e foram cedidos para uso da Terracota Editora.. exclusivamente para esta publicação, cujo conteúdo c de inteira responsabilidade da autora. G hv Geraldo Freitas Martins DtagTlWiaçàO Ricardo Silva í Г|п«!^*иР

Laura Marisa Camielo Calcjon Editor rcsporsãvcl Claudio Prîtes Censei/to Editorial Celia Regina da Silva Rocha - Universidade C ruzeiro d o Sul —S ão P au lo - Brasil Lèlia Marilia dos Reis - Universidade Federal d o E stado dc S ão P au lo - Brasil Simone Ferreira da Silva Domingues - U niversidade C ru zeiro d o Sul —São Paulo - Brasil Déracina Aparecida C. de Araújo - U niversidade de M ato G r o sso d o Sul — U E M S - Brasil Gloria Farinas Leon - Cátedra Yigotski - U niversidade d e H avan a - C u b a Guillermo Arias Beatón - Cátedra Vigotski - U n iversid ad e d c H a van a - C uba lassonia Lima V. Paccini - U niversidade Federal d e M a to G r o s s o d o S u l — U P M S - Brasil Laura Marisa Carnielo Calcjon - U niversidade C ru zeiro d o Sul —S ão P aulo - Brasil Maria SiMa Rosa Santana - Universidade Estadual de M a io G r o sso d o Sul — U EM S - Brasil Marilene Proença Rcbello de Souza - U niversidade dc São P aulo - U SP Dados Internacionais dc C atalogação na P u b lica çã o —C IP ___________________ Roberta Amaral Scrtório G raving, C K B -8 /9 1 6 7 ______________________ S565p

A Psicologia soviética: m eu o lh a r / M a rta S h u a r c; tr a d u ç ã o d c L a u r a M a r is a C a r n ie lo Calcjon - São Paulo: T erracota líd ilo r a , 2 0 1 7 . 312 p. ISBN: 9 7 8 -8 5 -6 2 3 7 0 -3 9 -7 . I. Psicologia s o v iétic a 2. P s ic o lo g ia c o m p a r a d a 3. Sistem as c e sc o la s d c P s ic o lo g ia I. T ít u l o C D D 156 C D U 1 5 9 .9 2 (4 7 * 5 7 )

Todos os direitos desta edição reservados a T erracota E d ito ra . Avenida Lins dc Vasconcelos, 1886 - CEP 0 1 5 3 8 -0 0 1 - S ao P a u lo - S P - T el. ( I I ) 2 6 4 5 -0 5 4 9 www.tcrracotaedilora.com.br

D ig ita liz a d o c o m C a m S canner

SUMARIO 7

A presentação

15

Prefácio da Prim eira Edição

19

A o Leitor

P arte I 21

C apítulo 1 - A s fontes filosóficas da Psicologia Soviética

31

C apítulo II - A P sicologia Soviética com eça com a Revolução

59

C apítulo III - A C on cep çã o H istórico-C ultural de Vigotski

SI

C apítulo IV - As d iscu ssõ es do final da década de 1920. C o m e ç o da década de 1930. O ano de 1936 e a Paidología

97

C apítulo V - O s anos 1930-1940: teorias e escolas

125

C ap ítu lo VI - A Psicologia nos anos 1940-1950: A guerra e a paz

145

C ap ítu lo VII - A P sicologia n o s anos 1950-1970

163

C ap ítu lo VIII - O s anos 19S0: a P sicologia e as exigên cias de um a sociedade em reestruturação

257

C o n sid era çõ es Finais

P a rte 11 - N o v a s E n trev ista s 259

E ntrevista - L. V. Shibáeva

271

Entrevista - B. D. E lkonin

2S1

E ntrevista - V. P. Z in ch en k o

2S9

Entrevista - A. 1. P odolski

295

Entrevista - A. F. K opiov

301

E ntrevista - V. K. S habélnikov

307

R eferências

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A PR ESEN TA Ç Ã O

f£ u m a h on ra e u m a gran d e alegria para m im a p u b lica çã o d e P sicologia so v ié tic a ta l c o m o y o la veo em p o rtu g u és c q u e isto o co rra n o Brasil, graças aos esfo rço s d e C arlos A u g u sto B aptista d e A n d r a d e e sua e q u ip e ed ito ria l. M eu a g ra d e c im e n to esp ecia l à Dr.a Laura M . C. C a lejon q u e a ssu m iu a tarefa, nada fácil, d e traduzir o texto c a to d o s o s a m ig o s, p ro fesso res d e P sico lo g ia nas d istin ta s u n iv ersid a d es brasileiras que ap oiaram este e m p r e e n d im e n to . Creio, sem falsa m odéstia, que se trata de um a co n tecim en to na vida cultural, e sp e c ific a m e n te n a q u ilo q u e se relaciona co m a literatura em P sic o lo g ia , e as razões d esta ap reciação n ão estã o n em na m in h a p e sso a , n e m na m in h a obra, m as n o in teresse e n o r m e que a h istória desta C iên cia e o d e s e n v o lv im e n to q ue teve na U n iã o S o v iética d esp erta entre os p sic ó lo g o s p ro fissio n a is — p e lo m e n o s em u m a b oa parle d eles. N ã o se trata, ta m p o u co , d e um a q u estão e s lr ila m e n te p essoal: resulta e v id e n te q u e na A m érica Latina - em particular n o Brasil, m as ta m b ém em o u tro s p aíses da região - , até p o u c o tem p o, as teorias e o s a p o rtes q u e o s p si­ c ó lo g o s s o v ié tic o s realizaram eram d e sc o n h e c id o s. Isto se c o n stitu i na m in h a o p in iã o , em m a is um a d em o n stra çã o d o c o lo n ia lism o a que n o s s o c o n tin e n te estev e su b m e tid o - c q u e se g u e su p o rta n d o - , su p era d o p a rcia lm en te p e la s m u d a n ça s c p r o c e sso s d e e m a n cip a çã o q u e tem o c o rrid o n o p la n o p o lític o e pela a tiv id a d e cien tífica , cm particular, dc n o sso s co leg a s cu b a n o s. Sua p re­ sen ça m ilita n te foi p reced id a p elo s trabalhos d c a lg u n s p sic ó lo g o s a r g e n tin o s im p o rta n tes, a q u eles q u e nas d écad as dc 1 9 5 0 -1 9 7 0 assu m ira m a d ifícil tarefa dc d ifu n d ir as co n q u ista s da P sico lo g ia so v iética , tarefa na qual celeb raram êx ito s, co m e te ra m erros c ex p erim en ta ra m fracassos. La P sicología so v ié tic a ta l com o y o foi e E ditorial P ro g resso em 1990 c, c o m o se co stu m a dizer, m u ita água correu p o r b aixo das p o n te s d a q u ele m o m e n to até a atu alid ad e. A s m u d a n ça s d ram áticas que ocorreram na ex -U n iã o S oviética d esd e a P e­ restroika até o p resen te m o m e n to in clu em , entre o s m ais im portantes, a d e sin te ­ gração d o b lo c o d o s p aíses com u n istas; o d esap a recim en to da U n ião Soviética; as m o d ific a ç õ e s su b sta n cia is na eco n o m ia , na vid a política e cultural da R ússia e na id eo lo g ia q u e as sustenta; cm u m a palavra, na “c o n cep çã o do m u n d o ” q u e orienta a c o n d u ç ã o d o país e seu papel na organização in ternacional.

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Ainda, sc todos esses acontecimentos não tivessem ocorrido, seria necessário atualizar o texto, não desde o ponto de vista do exposto na edição original - posto que não nego nenhuma das afirmações, nem valorizações que ali figuram - , mas no sentido de atualizar a informação referente á Psicologia naquele país. Esta tarefa é consideravelmente mais difícil c com plexa do que ter estudado o desenvolvimento de tal Ciência, desde o início do sécu lo XX ate o final dos anos 19S0, porém im prescindível para avaliar as inovações e para apresentar o panorama das tendências principais que a caracterizam na atualidade. A C iência p sico ló g ica na Rússia: o q u e o correu n o s ú ltim o s 25 anos? Na atualidade é praticamente impossível falar de escolas ou concepções au­ tóctones, enibasadas nas tradições filosóficas c m etodológicas russas do final do século XIX e começo do XX, que haviam sido assim iladas - criativa ou formal­ mente - pela Filosofia marxista. Tampouco é possível referir-se “à Psicologia” como Ciência: antes disso, o panorama atual é extrem am ente heterogêneo, pois se pode constatar que os psicólogos russos aderem a um leque am plo de corren­ tes, teorias e práticas, muitas das quais foram tom adas da Psicologia ocidental. Tal situação, devida em grande parte às m udanças acim a sinalizadas, está também determinada pelas m odificações ocorridas no sistem a de en sin o da Psicologia, tema que m erece um breve resum o. A formação de psicólogos no século XXI é um tem a de grande atualidade e importância. As enorm es transform ações que tiveram lugar d esd e m eados do século XX e em diante, em todos os aspectos da vida e da atividade humana propuseram, indubitavelmente, tal questão com agudeza particular. É por isso que nos parece im prescindível enquadrar o problem a do Ensino Universitário da Psicologia na Federação da Rússia, no contexto histórico das mudanças e transformações que se produziram no país a partir dos anos 1980 e relatar a situação existente na Rússia antes do in ício da “Perestroika”1. Em 1966, por disposição do então m inistro da educação, criaram -se facul­ dades de Psicologia na Universidade L om onósov de M oscou e na Universidade de Leningrado. Antes só existiam departam entos e Cátedras de Psicologia. A partir desse m om ento organizaram -se departam entos e cátedras de Psicologia em cidades onde já existiam tradições e escolas de investigação: Járkov, Yaros] Esta breve excursão histórica foi escrita em colaboração co m o D r A ndró! 1. P odolsk! c a D r* Irina Yu Shurânova.

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lav, Tbilisi, Kiev, Tartu ele. Tais departam entos c cátedras funcionaram nas Facilidades de Filosofia, de Ciências Biológicas, de Ciências Sociais. Ainda que se ensinasse Psicologia com o matéria de estudo, em quase todos os cursos c cm todas as universidades, desde 1980, existiam na Rússia só uns 4.000 psicólogos. Esses profissionais trabalhavam, fundam entalmente, na esfera acadêmica, para as agências espaciais, para as Forças Armadas e de Segurança. Quando se iniciaram as enormes transformações na esfera política, econôm ica e social, começaram também —com o em todos os casos de m odificações essenciais na vida da sociedade - as mudanças no âmbito educativo, desde o Ensino Pré-Escolar até o Universitário. Isto teve influência direta no status c no trabalho dos psicólogos.

N o final dos anos 1980 e inícios dos 1990, com eçou-se a pensar com o preparar psicólogos, para que fins, para que m ercados de trabalho. N essa d i­ reção, a Psicologia aplicada à escola desem penhou um papel im portante no desenvolvim ento da Psicologia prática, pois tornou-se evidente que a esco ­ la, tal com o existia, não estava em condições de educar os novos cidadãos, cujos conhecim entos, aptidões e atitudes deviam corresponder à nova id eo ­ logia. Porém, resultou também evidente que as tarefas da reforma escolar não podiam ser resolvidas sem psicólogos. A quantidade relativamente escassa de profissionais não permitia resolver o problema. D e onde tirá-los? Nessa época, criou-se o serviço psicológico escolar que resultou o principal “consum idor” de psicólogos. O psicólogo escolar cumpre uma tarefa de responsabilidade extraordinária por suas dimensões, já que abarca desde a Psicologia aplicada aos alunos dos pri­ meiros graus até a problemática que se relaciona com os jovens que finalizam a Escola Média - desenvolvimento da personalidade nesta idade, problemas de elei­ ção de uma profissão etc. - , quer dizer, trabalhos e temas completamente diversos. Tomou-se evidente que era necessário mudar a preparação dos psicólogos nas instituições de Ensino Superior, o que representa uma tarefa muito complexa. A incorporação dos psicólogos nas instituições de Ensino Primário e Se­ cundário gerou, junto com a emergência de outras áreas de trabalho - tra­ tamentos terapêuticos, assessorias empresariais, seleção de pessoal etc — um enorm e mercado laboral que trouxe consigo o surgim ento não regulam enta­ do, espontâneo, de centros de ensino superior nos quais se preparavam p sicó ­ logos de todas as especialidades. Isto provocou um aum ento exponencial da quantidade de profissionais: antes da Perestroika c das transform ações Sociais 9 Digitalizado com CamScanner

posteriores havia p o u c o m a is d e 'l.ООО p ro fissio n a is cm Ioda a R ússia, e n q u a n ­ to que. atualm en te, ca lc u la m -se p o r volta d e 7 0 .0 0 0 . Outro aspecto a destacar é que se passou d o en sin o estatal gratuito —cm todos os níveis desde o jardim da infancia até a universidade - que existia na Rússia, a um sistem a m isto o n d e coexistiam as in stituições estatais c as privadas. A s pri­ meiras, por sua vez, m antém um a cola d e alunos que estudam de form a gratuita c um a cota para aqueles que p o d em pagar por seus estu d os. N o que se refere ao Ensino M édio, as escolas tradicionais coexistem co m gin ásios c liceus privados. Tudo isso estratificou n o ta v elm en te a c o m p o s iç ã o so cia l d o s a lu n o s, as­ sim c o m o d iversificou o status c o p restíg io d o s e sta b e le c im e n to s ed u ca tiv o s. Cabe assinalar que o sistem a anterior preparava p sic ó lo g o s cuja atividade estava destinada, quase exclusivam ente, ao e n sin o a ca d êm ico . E xcetu an d o as atividades nas agências espaciais, o s serv iço s d e segu rança c as Forças A rm adas, os psicólogos não eram solicitados na vida da so cied a d e. A s reform as econ ôm icas c a instauração de u m a id eo lo g ia capitalista lib e ­ ral geraram um a en orm e d em anda de p sicó lo g o s q u e agora p o d e m dedicar-se não só ao aperfeiçoam ento do sistem a educativo, m as tam b ém à Psicoterapia, à seleção de pessoal, aos problem as de co m u n icação, d e form ação d e im agem etc. V oltando ao tem a do estad o atual da C iên cia p sic o ló g ic a na R ússia, nada m elh or que citar parágrafos da In trod u ção ao A n u á rio C ien tífico Psicologia en Rusia: estado l, escrita por seu s editores: Yuri P. Z in c h e n k actu n o atual da Faculdade de P sicologia da U n iv ersid a d e estatal L o m o n ó so v de M oscou; Presidente de tal S o cied a d e e ed itor ch efe d o B oletín d e la U niver­ s id a d de M oscú, Serie 14:Psicología —c V íctor F. P etren k corresponsável da A cad em ia R ussa de C iên cia s, p ro fesso r da F acu ld ad e de P sicología da U niversidade Estatal L o m o n ó so v de M o sc o u , cd ito r-ch cfc da revista M etodología c H istoria de la Psicología. Em tal In tro d u çã o sin a liza -se, em prim eiro lugar, que o p rop ósito principal da e d içã o é “[...] in tro d u cir la Psicología con tem porán ea rusa en la c o m u n id a d psico lógica in te rn a c io n a l [...]” (destaque n o sso ) e se faz um a apreciação da situ a çã o atual: Enquanto que a Ciência soviética (como toda a vida na União Soviética) estava construída segundo um princípio hierárquico c era fácil identificar os centros da Ciência psicológica c seus líderes, na Rússia contemporânea isto é muito mais difícil c, às vezes, resulta duvidoso identificar autoridades indiscutíveis. Podem-se encontrar investigadores brilhantes e profissionais práticos não só cm Moscou c São Pctcrsburgo, mas também cm Yaroslavl c Samara, Tomsk c Perm, Novosibirsk c Kémcrovo, Rostov c Smolensk, Vladivostok e Uián-Udé: 10

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а geografía dos ceñiros cm que se pratica a Psicologia с muito vasta [...] M uítos psicólogos jovens terminaram seus estudos de Pós-Graduação nos PUA. GrãHretanhat Alemanha e aplicam com exilo os enfoques norte-americano e europeu. Uma parte considerável dos cientistas permanece* constante em sua devoção [sic) pela Psicologia hisU'irico-cultural e o enfoque da atividade, fundam enta­ dos nos trabalhos de L. S. Vigotski. S. L. Rubinstein. A. N. Leontiev, Л. R. Luria, P. Ya. Galperin e outros (grifos nossos).

O s ed itores sin alizam Lambem que se torna im p o ssív el, n os lim ites de um Anuário, m ostrar to d o o esp ectro das in v estig a çõ es p sico ló g ica s na Rússia.

C onsideram que [...] 1 seções: geral (m etodológica), pedagógica, psicotécnica, de Psiconeurologia patológica. Foram apresentados mais de 170 trabalhos das orientações e tendências mais diversas. No Congresso assinalou-se o valor do estudo do sistema nervoso cen­ tral mediante o método dos rellexos condicionados, porém, dcstacou-se que o estudo do comportamento não pode .ser reduzido às leis fisiológicas; que o psíquico é produto do desenvolvimento da matéria, uma forma de desenvol­ vimento da atividade vital, uma nova propriedade da matéria viva. Tratou-se de encontrar a “unidade na diversidade”, em oposição aos idealistas que sepa­ ravam o psíquico do biológico e aos mecanicistas que os identificavam. Como vimos, as controvérsias sobre o tema continuavam. Em tal Con­ gresso, porém, tentou-se lutar contra o reducionismo, ainda que não se tenha conseguido resolver o problema. Toma-se necessário indicar que nestes m om entos a literatura relacionada à dialética como método e como enfoque científico, era escassa: som ente em 1925 editou-se em russo Ladialéctica de la naturaleza, dialéctica, de Lenin. Os Cuadernos filosóficos do último apareceram em 1930. A. V. Petrovski (1988, p. 130) assinala que este congresso não provocou avan­ ços essenciais e não abarcou todos os problemas do desenvolvimento da Psico­ logia. Ao lado das críticas justas ao reducionismo, não se manifestou a devida oposição à “síntese do objetivo e do subjetivo” proclamada com o solução “dialéti­ ca" para a Psicologia pelos organizadores do evento, em particular, Kornilov. As discussões continuaram, porém já tomaram um giro peculiar, evidente na chamada Discussion reactológica, que ocorreu em 1931. N o núm ero 1, do tomo IV, da revista Psicologia daquele ano foram publicados os resultados da discussão sobre a Psicologia reatológica de Kornilov, ou seja, as resoluções da reunião da célula do Partido Comunista - bolchevique - da União Soviética do Instituto de Psicología que se realizou cm 6 de junho de 1931. Em 12 e 13 de junho de 1931, realizou-se, em Járkov, uma discussão sobre o relatório de A. Talankin referente à situação na frente ideológica, organiza­ da pelo Instituto de Marxismo-Leninismo, Associação de Ciências Naturais - que formava parte de tal Instituto - , a Sociedade de Psiconeurólogos Mar­ xistas e a Sociedade de Pedagogos Marxistas. Para entender porque o tema foi discutido nestes termos, é necessário assinalar que nos núm eros 2 e 3, de 1931, 84 Digitalizado com CamScanner

Psiconcurologia Soviética- denominação no Contemporânea - , o artigo da redação - cujo rcdator-chcfc era S. I. Kantorovi­ ch - afirma que na carta de Stalin à La Revolución tia revista

o guia elo n osso partido, camarad.i Stalin, indica a necessidade de aumentar a vigilância partidária na frente ideológica, de resistir resolutamente a propaganda trotskista contrarrevolucionaria e ao oeultam ento de todos os desvios oportunistas da teoria m arxisla-leninista de lutar implacavelmente contra qualquer manifes­ tação d o liberalism o podre (PSICONEUROLOCilA SOVIÉTICA. 1931, p. 5).

Л redação diz que tal carta convoca a luta pelo partidarismo na Ciência e c um programa combativo de luta na frente ideológica (PSICONEUROLOGIA SOVIETICA, 1931, p. 5). Em realidade, como o demonstra V. P. Filatov, nessa carta anunciavam-sc os novos princípios da historiografia proletária [...] cuja essên cia reduzia-se a que todas as tendências nn m ovim ento operário e socialista que se desviaram d o bolchevism o (isto. desde os anos 1920 significava desviar-se das p o siçõ es stalinistas) constituíam focos de traição (CUESTIONES DE FILOSOFIA. 1988. p. 7).

Como exemplo, a redação da Revista começou a autocriticar-se nesse espírito, dizendo que no número 1, o artigo A los lectores foi apolítico, não respondeu às exigências do partidarismo bolchevique e não refletiu a luta irrcconciliavcl contra o mecanicismo e o idealismo. Além disso, assinala, por exemplo, que a seguinte opinião não deveria ter sido publicada: “A coletivização da economia rural e a industrialização dão bons resultados, porém pro­ duzem também uma grande quantidade de neuroses Assinala ainda que tal afirmação devia ter sido estigmatizada pela redação como calúnia e que sua essência contrarrevolucionaria deveria ter sido desmascarada [...]” (PSICONEUROLOGIA SOVIÉTICA, 1931. p. 6). Existe, entretanto, outro acontecimento anterior que marca o início das per­ seguições c repressões massivas no âmbito da cultura, da Ciência e da Filosofia. Não c por acaso que se iniciou pelo ataque à Filosofia e às Ciências Hu­ manistas no Decreto do CC do PC (b) da União Soviética, em 25 de janeiro de 1931, referido à revista Bajo la bandera del marxismo, o grupo liderado por A. M. Deborin (Yufle) foi severamente criticado porque tinha deslizado ñas “[...] questões mais importantes, às posições do idealismo menchevique [...]” (EN­ CICLOPÉDIA FILOSÓFICA, I960, p. 439). Deborin foi substituído, como rcdator-chele de tal revista, por M. B. Mitin. Segundo V. P. Filatov (1988), o re­ sultado dessa lula na “frente filosófica” que terminou cm 1930, foi o domínio total da Filosofia da época stalinista: o marxismo sem Marx, extremamente 85 Digitalizado com CamScanner

idcologizado e vulgarizado que representava, cssencialm cntc, a simplificação e a revisão da teoria marxista-lcninista em suas questões fundamentais. A “discussão na frente filosófica” foi precedida pela discussão econômica (1928-1929) que deu início à luta cm “duas frentes”: contra “a revisão mccanicista do marxismo” e contra “o idealismo" - posteriormente, o “menchcvismo”. Segundo Filatov (19S8), o que ocorreu, de fato, é que se detiveram as inves­ tigações econômicas sobre o período de transição e a econom ia socialista em geral. Em síntese, o mesmo panorama observa-se em todas as C iências Hu­ manísticas, cujas características acentuam-se à medida que o tem po passa: em lugar de uma discussão qualificada e argumentada ocorreu a colocação de eti­ quetas e qualificativos; a ideologização extrema —antimarxista —da Ciência; a repetição de citações como demonstração da veracidade da posição ocupada; a simplificação do marxismo e a afirmação da interpretação stalinista do ma­ terialismo dialético: tudo o demais é m ecanicism o ou idealism o e, em ambos os casos, deve ser combatido e erradicado. A “discussão reatológica” desenvolveu-se neste contexto geral; seus resul­ tados, expressados nas resoluções da célula do PC (b) do Instituto de Psicolo­ gia, de 6 de junho de 1931, foram as seguintes: • Deve-se terminar com os resquícios das teorias burguesas idealistas na Psicologia, destruí-las e aniquilá-las, pois são o reflexo dos elemen­ tos contrarrevolucionarios - Chelpánov, Necháev, Lósev, Shpet etc.;

• • •



Deve-se lutar contra o mecanicismo sem diminuir, sem reduzir a luta contra o idealismo menchevique; Todas as correntes burguesas se encontram em um beco sem saída; a crise da Psicologia burguesa c conseqüência da crise do capitalismo; Os pontos de vista mecanicistas, mesclados com teorias idealistas são as influências mais importantes da classe inimiga, sobreLudo porque se fazem passar pelo verdadeiro materialismo dialético; A tendência que Kornilov liderava em Psicologia parte das teorias de Spencer-Bogdánov-Bujarin por uma parte e do menchevismo-idealista por outra. A direção do Instituto não criticou à reflexologia bejleriana, que é grosseiramente biologicista, ao pseudomarxismo da reatologia de Kornilov, ao fisicalismo idealista da Gestalt, ao comportamentalismo norte-americano. Tentou-se apresentar como teorias

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marxislas o mecanicismo grosseiro de Kornilov, o sternismo idealista de Shpiûrcin, a Psicologia “culluralisla de VigoLski c Luria” etc. • Л direção anterior, seguindo o idealismo menchevique do grupo de Deborin, ao criticar a Psicologia, ignorou Lenin c se apoiou em Plejánov (PSICOLOGIA, 1931a, p. 1-12). As respostas dadas por Kornilov às críticas foram inúteis: foi substituído na direção do Instituto de Psicologia - V. N. Kolbanoviski o substituiu - e como redator-chefe da Revista; Não só Kornilov foi criticado. No artigo de A. Talankin Sobre la “Psico­ logia soviética" del profesor Kornilov (PSICOLOGIA, 1931a, p. 24-43), o autor afirma que o ponto de vista histórico em Psicologia não pode ser substituído por concepções não marxistas no espírito psicológico-cultural ou biológico -evolutivo e afirma que no chamado ponto de vista “psicológico-cultural” em sua versão soviética - Vigotski- Luria - existe muito de eclético: algo de Spen­ cer - ao tratar a história do comportamento como história da adaptação das condições internas às externas -, em seguida, agrega-se o instrumentalismo dos estímulos, instrumentos e signos externos. Está claro, afirma Talankin, triunfante, seguro de ter analisado profundamente a teoria de Vigotski, que tal compreensão “cosificada” da cultura não é marxista. A discussão sobre a situação na frente psicológica baseada no relatório de Talankin, denominado El viraje en el frente ideológico (PSICONEUROLOGIA SOVIÉTICA, 1931, p. 8-23) foi publicada em 1931, na revista Psiconcurologia soviética. Algumas passagens mostram com extrema clareza o espírito da discussão: por exemplo, Kornilov é acusado de mecanicismo grosseiro; de representar historicamente a continuação do método das reações de Wundt, próprio da Psicologia filosófica; de ser um agnóstico kantiano; finalmente, se­ guindo a resolução da direção da Academia de Educação Comunista sobre a situação na frente das Ciências Naturais, declara-se ao bejtcrismo e ao kornivolismo reflexos da ideologia inimiga de classe do proletariado. Outro momento importante do relatório de Talankin é o renovado ataque ao “grupo de Vigotski e Luria” (PSICONEUROLOGIA SOVIÉTICA, 1931, p. 15) que merece destaque. O autor considera “o grupo indubitavelmente talen­ toso” que representa o perigo do positivismo, da transferência de diferentes teorias européias ocidentais, especialmente as muito influentes: o freudismo, a Gestalt, a Psicologia cultural etc. 87 Digitalizado com CamScanner

Talankin assinala que aínda que eles Icnhain proposto o problema cio de­ senvolvimento na Psicologia soviética, a solução não satisfaz a metodologia do marxismo. Vigoiski e l.uria pensam, como afirma Talankin, que o pro. blema do desenvolvimento stS pode ser compreendido examinando como o homem aprende a dominar os instrumentos, a tomá-los do m eio externo e, cm seguida, acomodar seu comportamento à esta organização inlrumcntal do meio externo. Os instrumentos, afirma Talankin, não são para Vigoiski as ferramentas como as compreende o marxismo, mas apenas “pedaços de pa­ pel, uma cadeira, cubos” etc. Indica que os autores criticados compreendem a cultura “[...] na forma grosseiramente mecanicisla, com o soma dc coisas, ins­ trumentos e símbolos (...]” (PS1CONEUROLOGIA SOVIÉTICA, 1931, p. 15) e que é necessário lutar seriamente contra a concepção psicológica-cullural, pois a solução marxista do desenvolvimento dos processos psíquicos sobre a base histórico-laboral diferencia-se radicalmente das colocações que Vigoiski e Luria fazem do problema do desenvolvimento. O lamentável, acrescentaría­ mos agora ironicamente, é que Talankin não assumiu o trabalho de dizer qual é a concepção marxista verdadeira do problema. Finalmente, Talankin destaca que a Psicologia marxista-lcninista só pode ser criada fundamentando-se em um partidarismo claro e preciso e, a respeito do objeto da Psicologia rejeita que seja o comportamento, na medida cm que desta maneira amplia-se indevidamente o campo da Psicologia e sugere-se a ideia equivocada de que o comportamento humano pode ser compreendido a partir das leis psicológicas. Assinala que não se deve menosprezar a consciên­ cia; segundo Talankin, este problema é importante, porque sem a consciência é impossível compreender а competição socialista e o “m ovim ento de choque" (PSICONEUROLOG1A SOVIÉTICA, 1931, p. 11). Os comentários são des­ necessários, ainda que a análise profunda da terminologia “crítica” usada e do conteúdo dos conceitos utilizados ainda está para ser feita. Na mesma Revista, apareceu, um tempo depois, um artigo de B. G. Anámiev, denominado Sobre algunas cuestiones de la reconstrucción marxista-lcninista dc la Psicologia, cm que o autor renega publicamente a Reficxologia dc Béjterev e, cm se­ guida, dedica-se a atacar a Vigoiski e Luria, acusando-os de manter uma concepção de “liistoricismo vulgar”, ecletismo, falta do enfoque dassisla c partidario... Entretan­ to, reconhece que as investigações desses científicos são uma das mais interessantes na Psicologia soviética (PSICOLOGIA, 1931b, p. 325-344). 88 Digitalizado com CamScanner

ft evidente que não se pode falar de uma verdadeira crítica científica das concepções c teorias cm questão. Evidentemente, surpreende ao leitor con­ temporâneo que a crítica se reduziu, nessa época, a qualificações valorativas, sem argumentação c, o mais grave, à clara deformação das idéias que os criti­ cados sustentam ou, cm todo caso, a ignorância absoluta das mesmas. Sc nos detivermos com tanto detalhe cm alguns dos materiais das dis­ cussões dos anos 1930 c 1931 cm Psicologia é porque caracterizam com propriedade a virada da época, Entre outras coisas, pode-se destacar que: • Constituem, na Psicologia, o prolongamento daquelas que tiveram lu­ gar na Economia, Filosofia, História, processos que iniciam a destrui­ ção intencional da cultura humanística; • Conformam o prelúdio do ataque frontal à Ciência psicológica, aque­ le que significou a paralisação, por muito tempo, e suas tendências c aplicações práticas de maiores perspectivas; • Tornam evidente o “método" das confrontações da época: em lugar da Ciência, ideologia c partidarismo; cm lugar de argumentos, acu­ sações; cm lugar de crítica construtiva, eliminação; ausência total de cultura metodológica c filosófica. • Aplicam c fortalece a imagem do inimigo como conceito já introdu­ zido na terminologia da época c que perdurará muito tempo na cons­ ciência social; • Afiançam um léxico que reflete diretamente a atmosfera intelectual do período: liquidar, eliminar, perseguir implacavelmente; inimigos de classe; ideologia inimiga de classe operária; a Ciência é socialista ou burguesa e a mesma encontra-se a serviço do inimigo feroz, ten­ ta permanentemente infiltrar-se e necessita-se aumentar a vigilância, denunciar, desmascarar. A conversão da Ciência em um apêndice da ideologia, a simplificação do marxismo c sua substituição pelo materialismo dialético “à moda de Stalin”, a elevada intransigência a critério do serviço leal à causa da Revolução; a reitera­ ção e as citações com o princípio metodológico; a dogmatização e a esquematização como critérios de cientificidadc, a apelação à luta de classes, aos inimigos de classe, aos interesses de classes, últimos termos que servem, ao mesmo tempo, como explicação, critério de verdade c arma terrível para reprimira variabilidade, a diversidade de teorias e tendências: todos estes critérios ofuscaram por muito 89

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tempo os mecanismos intracicnlifieos capazes de determinar n veracidade с а criatividade de teorias e correntes, enfoques e explicações. Esta “destruição frontal da cultura e do pensamento socio-humanístico” que ocorre no limite entre os anos 1920 e 1930, segundo as palavras de V. p Eilatov (CUESTIONES DE E1LOSOE1A, 198S, p. 7), acentua-sc Л medida que o sistema se fortalece e os mecanismos se aperfeiçoam. Seria uní erro pensar que os psicólogos soviéticos se ocupavam somente de discutir problemas teóricos, realizar seminarios c reuniões para discutir o objeto de estudo da Psicologia, defender-sc do “desmasca rain en lo” c justi­ ficar suas posições. Muito ao contrário, isto ocorreu porque, desde meados dos anos 1920 e durante os primeiros anos da década dos 1930, psicólogos, fisiólogos, pedagogos realizam um trabalho prático enorme na Psicologia e a Fisiología do trabalho, a orientação profissional, a instrução pública, a saúde, demonstrando, assim, a importância aplicada da investigação científica. Os profissionais soviéticos estavam bem informados sobre as investigações realizadas no exterior - existiam traduções dos trabalhos de Watson, Krestchmer. Ingenieros, Kofilca, Kohler, Stern, Piaget e outros. Muitos desses investiga­ dores viajaram para a URSS e mantinham contato com seus colegas soviéticos. Editavam-se л-árias revistas em que eram publicados artigos de Psicologia: Psicologia,Paidología, Psicofisiologia del Trabajo y Psicotécnica, Cuestiones de Estu­ dio y Educación de la Personalidad, Revista de Paidología, Revista de Estudio de Ia Infancia, Rexista de Psicologia, Neurologia y Psiquiatria, Psiconeurologia Contem­ poráneo, Cuestiones de Psicofisiologia, Rcflexologia e Higiene del Trabajo etc. No final dos anos 1920, preparavam-se psicólogos no Instituto de Psicolo­ gia de Moscou, no Instituto de Estudo do Cérebro e da atividade psíquica em Leningrado, na Seção Psiconeurológica da Academia Comunista em Moscou, no Laboratório Psicológico da Academia de Educação Comunista, no Institu­ to Ucraniano de Psiconeurologia em Járkov, na Cátedra de Psicologia da Se­ gunda Universidade de Moscou - posteriormente, chamada Instituto Estatal Pedagógico Lenin de Moscou - , no Instituto Pedagógico de Leningrado. Os seguintes dados falam sobre a aplicação da Psicologia a diversas esferas da atividade, de sua inserção na vida da sociedade: em 1923, criou-se o Con­ selho para a Organização Científica do Trabalho, órgão da consulta e coorde­ nação de toda a atividade desenvolvida no País, nesse plano. Desde 1923 jA existiam mais de 13 institutos científicos ocupados no estudo de problemas 90 Digitalizado com CamScanner

laborais c a produção - entre eles, o Instituto de Estudo do Cérebro c da Ati­ vidade Psíquica, o Instituto Central do Trabalho, o Instituto de Organização Científica do Trabalho, o Instituto do Trabalho da Ucrânia etc. Existiam mui­ tos laboratórios psicotécnicos, preparava-se pessoal especializado, editava-se я revista LaPsicotécnica ,S oviétca realizavam-se conferênciasc congress Iïm 1931, realizou-se cm Moscou а VII Conferência Internacional Psicotéc­ nica, com a participação de 960 pessoas. Em 1932, nos Urais, na indústria metalúrgica, mineira c química funcionam aproximadamente 30 laboratórios psicotécnicos (BUDÍLOVA, 1972, p. 20). Em relação à Paidología difundida na Rússia, antes da Revolução de Ou­ tubro, a mesma desenvolveu-se com muita intensidade depois do ano 1917. Criaram-se muitas instituições pedológicas que se encontravam, fundamen­ talmente, sob a égide do Comissariado do Povo de Instrução e Saúde Pública. Como assinala A. V. Pctrovski (REVISTA DE PSICOLOGIA, 1988, p. 125-138), nessa época, quem estudava a criança - psicólogos, fisiólogos, médicos, pedago­ gos etc. - era considerado pedólogo. Ainda que a Paidologia pretendia ser uma Ciência integral que reunisse e sintetizasse congruentemente os conhecimentos sobre o desenvolvim ento da criança, nela foram estruturando-se tendências an­ tipsicológicas, biologizantes c de um sociologismo vulgar que deu lugar a críti­ cas justificadas relacionadas, cm particular, ao papel que se atribuía à herança e a um certo m eio externo invariável. Como assinala A. V. Petrovski, no artigo citado, estes sérios erros haviam sido criticados pelos próprios especialistas e co­ meçavam a ser superados no final dos anos 1920 e começo dos 1930. Entretanto, aqueles que trabalhavam na esfera da prática pedológica continuaram aplican­ do, muitas vezes c de maneira indiscriminada e sem bases científicas suficientes, testes e provas sem validação; em alguns casos chegava-se a conclusões pouco fundamentadas sobre o desenvolvimento mental dos escolares e se tomavam decisões, nem sempre justificadas, sobre o ensino nas escolas especiais. Em resumo, a Psicologia e outras Ciências estavam firmemente enraiza­ das na vida social, propunham -se resolver - ou pelo m enos contribuir para resolver - os problem as que surgiram na construção de uma nova sociedade, a enfrentá-los criativamente. Os científicos alcançavam êxitos, equivocavam-se, corrigiam-se, estavam a par da literatura mundial sobre cada um dos temas em discussão, esforçavam-se para assimilar e aplicar o mais avançado da Ciência. Porém, cada vez com m aior frequência, apareciam sintomas de que este desen91 Digitalizado com CamScanner

volvimcnlo livre das idcias, esta compenetração com a Ciencia mundial, esta “aventura do pensamento” não era convenientes, de nenhum modo, ao sistema no qual as características mais evidentes eram: poder unipcssoal e a arbitra­ riedade na intequetas'ào das leis da natureza e da sociedade, o caráter inapelável dos juízos daquele que se declarou - ou se tez declarar - “pai dos povos" a implantação do culto a utna personalidade enquanto todas as outras pessoas são “peças" da maquinaria estatal, em que o terror dislarçou-se cm vigilância revolucionária, a denúncia apresentou-se como o deve cidadão mais alto, a au­ sência de um Estado de Direito se fez passar pela conquista mais importante da R evolução, eram as características mais evidentes. Ainda, em 1933, A. R. Luria escreveu o artigo caminos la Psicologia soviéticaen 15 años (PS1CONEUROLOG1A SOVIÉTICA, 1933, p. 25-35), em que faz uma análise fundamentada de correntes, escolas e propõe de modo construtivo a tareta da Psicologia marxista: compreender os processos psíqui­ cos superiores como produtos do desenvolvimento histórico, com o produto da história do trabalho e das relações sociais. Faz referência à expedição à Ásia Central, realizada em 1931 e 19321 e sinaliza uma série de esferas cm que os psicólogos realizam importantes trabalhos: a Psicologia da criança rural, do camponês adulto, dos novos quadros operários,; a percepção da literatura por semianalfabetos; a compreensão do cinema e da propaganda; estudos sobre o livro infantil; a linguagem dos soldados do Exército Vermelho; do jogo e dos materiais didáticos; do pensamento prático da criança; do desenvolvimento c da psicotécnica e a reconstrução da Psiconeurologia etc. Ainda em 1934, discute-se fundamentalmente, sem epítetos terríficos, о problema do reflexo na Psicologia e um trabalho de Ivanov-Smolenski (PSI­ CONEUROLOGIA SOVIÉTICA, 1934a, p. 5-11, 1934b, p. 145-146). Porém, não era isso que o regime de Stalin necessitava. A própria lógica do seu desenvolvimento interno exigia a repressão cada vez mais impiedosa e refinada de todas as formas de livre pensamento, de diversidade, dc variabilidade. Necessitava a simplificação, o controle, a esquematização, a unifi­ cação, a falta de informação, uma verdade única e indiscutível e um único trans­ missor desta verdade. Necessitava inimigos fora e dentro do País, inimigos de lodo tipo e em todas as partes: na produção agrária, na arte, na Ciência, na indústria, no aparelho estatal, nas estruturas do partido, por onde fosse... A revista Pedagogia 1 O livro cm que os materiais recolhidos cm tal expedição estão analisados foi pu blicado niais de •№ anos depois: LURIA» A. R. H istoria d el desarrolllo d c los procesos cogn oscitivos. M oscú: Nnúkn» 1974.

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Soviética, por exemplo, cm seu número l.d c 1937, imprime como epígrafe ao arti­ go da redação chamado í m s tarcas de la Revista, o seguinte fragmento do discurso de Stalin ao plenário do CC do PC (b), de 3 de março de 1937: Recordare não esquecer nunca que enquanto exista o vizinho imperialista exist­ irão sabotadores, espiões, terroristas etc., enviados à retaguarda da União Soviéti­ ca por órgãos de espionagem dos Estados estrangeiros

Podemos nos perguntar qual o objetivo de semelhante citação cm uma revista de Pedagogia... Demonstra que também na Psicologia existe um m on­ te de inimigos... A destruição frontal da cultura e do pensamento sócio-humaníslico “ganhou impulso”: cm 1934, na revista El Libro y Revolución Proletaria, Razmislov dedica-se a “desmascarar” a teoria histórico-cultural de Vigotski por causa, entre outras coisas, da mencionada expedição à Asia Cen­ tral (RAZMISLOV, 1934). Sem outros argumentos além de suas próprias afirmações, Razmislov acu­ sa Vigotski e Luria de historicismo burguês, ele que ignora o desenvolvimento das forças produtivas, os processos de trabalho e, claro, a luta de classes. Em seguida, acusa-os de idealismo e de tirar conclusões inimigas do marxismo, de essência reacionária; umas linhas mais abaixo, de ecletismo e de, sem de­ nunciar a Ciência burguesa, tomar dela as teorias mais reacionárias. Depois, Razmislov passa a deformar essas teorias burguesas e a posição que os autores criticados assumem a esse respeito; por último, sem o menor pudor, deforma, até ao irreconhecível, a teoria criticada. O artigo apresenta frases que devem ser citadas, para que o leitor tenha uma ideia aproximada do tom: Km lugar dc evidenciar a superação das formas de pensamento egocêntrico na criança, nas condições da ditadura do proletariado e da construção do socialismo, Vigotski c Luria [_J não deduzem este egocentrismo do meio social classista que rodeia a criança, mas de sua natureza biológica (RAZMISLOV, 193-1, p. 82).

Outro exemplo precioso que mostra o nível de pensamento científico do “critico”: Luria trata de demonstrar que os integrantes das fazendas coletivas dc Uzbequistão não pensam partidariamente, senão em complexas [...]. lista teoria pseudocientífica, reacionária, antimarxista e inimiga de classe leva. na prática, à conclusão antissoviética de que na União Soviética la/em política as classes e pessoas que pensant primiti­ vamente, incapazes de pensamento abstrato (...) (RAZMISLOV. 193-1, p. 83-84).

Porém, dc qualquer modo, a teoria histórico-cultural rcsultnva cm um osso duro de roer": seu nível científico m etodológico era demasiado elcvado para personagens com os recursos como os de Razmislov e foi necessário encontrar outra alternativa para eliminá-la do curso das ideias da época. Tal 93 Digitalizado com CamScanner

coisa eslava facilitada e, além disso, havia mostrado muitas fraquezas: a Pai­ dología converteu-se no último alvo das criticas que deviam levar ao esvazia­ mento do pensamento e da cultura humanista.

Assim, chega-se à disposição do CC do PC (b), de 4 de julho de 1936, So­ bre lasdeformaciones paidologicas enclsistema de los del pueblo de instrucción blica, na qual qualificava-se aos paidólogos —e quem n pu era? - de pseudocientíficos e a Paidología era abolida. Seus resultados ime­ diatos: foram nos 6 meses seguintes, segundo A. V. Pclrovski (REVISTA DlPSICOLOGIA, 19SS, p. 125-13S), apareceram mais dc 100 folhetos e artigos que “desmascaravam” essa “pseudociência” e acusavam aos científicos - quent não havia trabalhado em alguma instituição “paidológiva”, não havia realizado alguma investigação do desenvolvimento infantil, não havia utilizado algunt termo “paidólogo”? O folheto vergonhoso de E. I. Rudneva - que até a sua morte foi professora da Faculdade de Psicologia na Universidade de Moscou e que será recordada na Ciência apenas como autora deste triste “trabalho crítico” - , denom inado Las de­ formaciones paidologicas de Wgotski, não é mais do que a falsificação descarada e deliberada da concepção histórico-cultural. Uma citação é suficiente: A compreensão da herança tomada por Vigotski dos cientistas burgueses traz consigo a ideia do desenvolvimento e da educação do hom em co m o processo passivo. Tal compreensão do desenvolvimento leva inevitavelm ente à negação do papel, do ensino e da educação. (RUDNEVA, 1937, p. 30).

As acusações monstruosas levaram à negação total de Ludo o que os cri­ ticados haviam realizado e praticamenle quase toda a produção científica na Psicologia infantil e Pedagógica, na Defectologia, na higiene escolar etc., foi declarada simplesmente reacionária e antimarxista. Isto significou, na realidade, a destruição de ramos inteiros da Psicologia, pois a Psicotécnica, a orientação profissional, a Psicologia do trabalho e da Engenharia tiveram a mesma sorte. A. V. Petrovski, no artigo citado, diz que, em 1934,1. N. Shpilrein, que era diretor de La Psicotécnica Soviética, e presidente da Associação de Psicotécnica c Psicofisiologia Aplicada da União Soviética sofreu represálias. A Revista, órgão da Associação, deixou de existir. O ensino da Psicotécnica nos institutos superiores foi interrompido e, desde 1936, todos os laboratórios de Psicotécnica industriale Psicofisiologia do trabalho foram fechados. (RUDNEVA, 1937, p. 136-137) As acusações contra Vigotski e Luria eslenderam -se a outros psicólogos 94 Digitalizado com CamScanner

que comparlilhavam, ou melhor dizendo, criavam a concepção histórico-cullural: Л. N. Lcónticv, L. V. Zánkov, D. B. lilkonin. Também se criticou a S. L. Rubinstein por seu livro, Princípios fie editado cm 1935. Tudo isto foi feito de modo absolutamente irresponsável, atribuindo a teorias e cientis­ tas, características c afirmações que deformavam a essência das mesmas e a personalidade de seus autores. Existiram lambem opositores a semelhantes métodos, mas foram mui­ to poucos c sua resistência também não durou muito; por exemplo, V. N. Kolbanovski, nesta época, diretor do Instituto de Psicologia de Moscou, na reunião de chefes de Cátedra de Pedagogia c professores de Psicologia, diz, referindo-se à intervenção de Rudncva contra o conceito vigotskiano de zona de desenvolvim ento próximo. Afirma que Vigotski morreu e não pode defender-se. Por acaso é responsável por todas as bobagens que atribuem a ele? Não se deve lutar assim contra o oponente: adjudicar-lhe loucuras e, em seguida, refuta-lo facilmente. Sem dúvida, essa foi a forma crítica imposta e, ainda o mais grave, as ca­ racterizações deformadas feitas nesta época - no que se refere a Vigotski: como compreendia o papel do signo, seu suposto intelectualismo na interpretação da constituição da consciência etc. - mantiveram-se durante muito tempo, como estereótipos valorativos, o que não é surpreendente se, ao queja foi dito, agregase que algumas obras de Vigotski foram editadas somente 20 anos depois de sua morte - por exemplo, Investigaciones psicológicas escogidas apareceu em 1956; El desarrollo de las funciones psíquicas superiores foi publicado em 1960. Petrovski, no artigo citado, assinala que a destruição da Paidología, da Psi­ cotécnica, da Psicologia do trabalho etc., ocorrida em meados dos anos 1930 - e a atitude em relação a essas foi, durante mais de 20 anos, a mesma: pseudocicncias. Ciências reacionárias burguesas - , significou nada mais e nada menos que o atraso no desenvolvimento da Ciência psicológica soviética, sua alienação dos problemas e necessidades vitais da sociedade, sua condenação a converter-se cm uma “Ciência de vitrine”, resultados amargos com os quais os psicólogos soviéticos hoje devem contar. Entretanto, apesar dos mecanismos que detiveram o desenvolvimento das Ciências Sociais em geral,2 a potencialidade criadora de algumas idéias e 2 Л acadêmica T. N. Zaslavskaya, diretora do Centro Nacional de Estudo c Opinião Pública, assim os caracteriza: “Os m ecanism os de frenagem das Ciências Sociais, formados nos anos do stalinismo c do lirczlincvcrismo são conhecidos. Trata-se do controle ideológico estrito sobre lodo o conteúdo das investigações, a subordinação incondicional da Ciência à política, a perseguição de tudo o novo e

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teorias não puderam ser destruídas e, apesar d e to d o s o s a ta q u es a q u e Гогащ subm etidos, m antiveram -se na m em ória e na c o n s c iê n c ia m oral d e m uitos cientistas soviéticos co m o testem un has de q ue as fogu eiras d e q u a lq u er Inqui­ sição são im potentes frente ao g ên io criador do h o m e m , p o rq u e, c o m o afirma Bulgakov, “os m anuscritos não q u eim am ”, m ais tarde ou m a is c e d o , voltam a ser patrim ônio e fonte da cultura.

criador, a proibição de discussões livres. É a estimulação aberta do conformismo científico e a falta tlc princípios [...] a eliminação massiva de quadros criativos (...] o ‘fechamento’ da possibilidade de discutir na imprensa os novos problemas sociais, o aumento sistemático da censura [...] a burocratização do sistema de planificação da Ciência e do controle sobre seus resultados, a separação da Ciência Social soviética em relação ao progresso cientifico mundial [...] (Revista OGONIOK, 1988, p. 7). 96

D ig ita liz a d o c o m C a m S c a n n e r

CAPÍTULO V OS ANOS 1930-1940: TEORIAS E ESCOLAS Como podemos perceber, a Psicología soviética, desde seu início, não se caracteriza pela existência de um único enfoque, concepção ou teoria sobre о psíquico. Existiam e existem, ao contrário, diversas correntes e uma pléiade de investigadores brilhantes com trabalhos que até hoje tem grande significado para a Ciência psicológica. Neste capítulo faremos referência à teoria propos­ ta, no final dos anos 1920, por U. D. Uznadzc; analisaremos também alguns aspectos da categoria de atividade nos trabalhos de S. L. Rubinstein e A. N. Leontiev, as investigações dos psicólogos leningrandenses e, por último, as teorias de A. K. Anojin e A. N. Bernshlein, em Fisiología. D. N. Uznadzc e a teoria do set D. N. Uznadze (1886-1950) cursou a Faculdade de Filosofia, na Univer­ sidade de Leipzig onde W. Wundt ensinava, na época, Filosofia e Psicologia. Uznadze participou, junto com Kõhler e outros psicólogos famosos, nos se­ minários de Wundt. Voltou à Geórgia em 1909, depois de receber o diploma de doutor em Filoso­ fia e instalou-se cm Tbilisi, desde 1917, participando da criação da Universidade dessa cidade. Foi chefe da Cátedra de Psicologia de tal cidade desde 1918 até sua morte c do Instituto Pedagógico de Kutaisi - de 1933 a 1942 diretor da Seção de Psicologia da Academia de Ciências da Geórgia, desde 1941 até sua morte. Em 1943, tal Seção converteu-se no Instituto de Psicologia, aquele que foi, até os anos 1970, o único Instituto Acadêmico de Psicologia da URSS. Foi eleito, em 1941, membro da Academia de Ciências da República Socialista Soviética da Geórgia. Em 1927, por sua iniciativa, criou-se a Sociedade de Psicólogos da Geórgia, que dirigiu até sua morte. Em síntese, a Psicologia esteve e está, nesta República, dire­ tamente relacionada com os trabalhos teóricos e experimentais de Uznadze, assim como com seu trabalho organizativo e pedagógico. Em relação às suas investigações, é importante assinalar que, já em seu trabalho Henry Bergson (1920) cm que criticou a intuitividade deste, о pen97 Digitalizado com CamScanner

sámenlo de Uznadze aproximou-se» cada vez mais, da compreensão marxista da natureza ativa do homem e das relações que estabelece com a realidade. Uznadze, vinculado com isso. se propôs a construção de uma Psicologia que pudesse superar o “postulado do caráter imediato” do psíquico, inerente tanto ao subjetivismo e ao atomismo da Psicologia empírica tradicional - que dava por certo a influência mútua e direta dos conteúdos da consciência —, como ao mecanicismo típico do comportamcntalismo c das orientações “objetivistas” que supunham a relação imediata e direta entre o estímulo e a reação. Como A. G. Asmólov sinalizou no Simpósio Internacional realizado em 197S, em Tbilisi, sobre o problema da atividade psíquica não consciente, {...] as variantes da solução da tarefa dc superar o “p o stu la d o d o imediatismo" elaboradas por D. N . Uznadzc nos anos 1920, a própria proposição desta tarefa por parte do autor da teoria do sct‘foram um passo Psicologia da crise cm que se encontrava. C onsideram os que a tarefa d e superar o postulado do imediatismo deve entrar na história da C iência psicológica com o “a tarefa de Uznadze”. (PRANGISHVILt; SHEROZ1A; BASSIN, 1978, p. 148).

Na busca do fator integral que permitisse explicar as ações do organismo dirigidas para uma finalidade c para o conhecimento objetivo da realidade, os atos de adaptação biológica e a atividade psíquica, ou seja o fator que está na base de qualquer manifestação do comportamento e do psiquismo, Uznadze chegou ao conceito de set c, mais tarde, a formulação de uma teoria psicológi­ ca do set ou disposição. Na monografia de Uznadze, Princípio de Psicologia , publi­ cada em 1925, formularam-se alguns princípios gerais da teoria do set. Como sinaliza Sh. A. Nadirashvili, (...] n sei c a disposição previa do h om em para certa ação, d isp o siç ã o q u e deter­ mina o caráter do com portam ento h u m an o c d o s p r o c esso s p síq u ic o s. Por sua parte, o set surge sob a influencia d o m eio ex tern o e as te n d ê n c ia s internas do hom em , graças ao que se prove o curso d o c o m p o r ta m e n to h u m a n o dirigido a uma finalidade. (PRANGISHVILI; SHEROZIA; BA SSIN , 1978, p. 111).

Em poucas palavras, o conceito de set pressupõe o estado real do sujeito c pode servir de base para fundamentar c explicar a unidade da consciência do homem e a realidade objetiva. Esta proposta teórica foi demonstrada c enriquecida experimentalmcnte por Uznadze que criou um método destinado a investigar esse estado psíquico1 1 Traduzimos a palavra russa uslatiovka - tendencia, inclinação, disposição, com o termo Inglês Jfli como c habitual na literatura psicológica.

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do sujeito que determ ina a atividade futura c o trabalho da consciencia. Uznndze c scus discípulos estabelecera, mediante dezenas de trabalhos experi­ mentais, as características estruturais do - a rapidez com que se forma, sua manutenção no tem po, a força de sua manifestação, o grau de plasticidade em sua substituição ele., c sua formação em diferentes modalidades e esferas sensoriais - hápticas etc. Em tais trabalhos dem onstrou-se que o efeito de ilusão de peso, pressão, quantidade ele., está provocado pelo set criado previamente, aquele que se encontra, por assim dizer, entre o estímulo e a reação, sendo um fator constitutivo da atividade do sujeito em suas relações com a realidade. As propriedades dinâm icas e estruturais do set permitem, à sua vez, caracterizar muitas peculiaridades psicológicas do sujeito. O desenvolvim ento da teoria do set tem, segundo Nadirashvili (NADIRASHVILI, 1986, p. 87-95), duas etapas: a primeira culmina desde os anos 1940 com a publicação da Psicologia general de Uznadze; a segunda, que se prolonga desde os anos 1940 até a m orte de Uznadze, caracteriza-se pelo des­ locamento do centro de estudo para os problemas da interação social entre as pessoas. U znadze reform ulou alguns conceitos-chave de sua teoria para enfrentá-los: por exem plo, considerou o set com o um fenômeno propria­ mente psíquico - anteriorm ente o definia com o algo que não era nem físico e nem psíquico - e desenvolveu o conceito de hierarquia de níveis na ativi­ dade psíquica. N este sentido, é im portante destacar a diferença entre o que se denomina set atual - estado psíquico específico de disposição do sujeito a uma determinada conduta, o que pode ser considerado como uma variável intermediária entre os estím ulos internos e externos e o comportamento do homem - e os sets disposicionais fixos - fenôm enos adquiridos que se encon­ tram no arsenal das possibilidades psíquicas do hom em , como possibilidades instrumentais, cujo sistem a perm ite caracterizar a personalidade do sujeito e que não constituem já um a variável intermediária, senão independente e, em grande medida, condicionante do com portam ento. O conceito de objetivação é outro conceito importante: o atraso ou a in­ terrupção da realização do sctyda atividade que l vivenciar uma vez mais o que acaba de ser objeto da vivência, porém vivenciá -Io como algo objetivo. Este ato de objetivação sinaliza uma relação particular com o m undo c constitui a condição indispensável da atividade cognoscitiva e de todos esses processos. Expressa o fato de que o hom em não só atua no 99 Digitalizado com CamScanner

mundo circundante, mas que sabe também que esse m undo existe e que ele é parte de tal mundo. Esta nova etapa do desenvolvimento da teoria do perm itiu propor os problemas específicamente humanos c, cm especial, os pertencentes à área da Psicologia social. Até fináis dos anos 1940 Uznadze generalizou os resultados experimentáis da teoria do set obtidos pelos psicólogos georgianos, em Bases experimentales de la Psicología del set, publicado em 1949; em tal trabalho exam inam -sc as lcis da atividade psíquica consciente e inconsciente, desde as posições da teoria do set. Esta monografia apareceu cm russo cm 1961 e cm 1966 foi publicada nos EUA com о nome The Psychology of set. Os seguintes falos falam sobre a importância dos pontos de vista, os tra­ balhos experimentais c a concepção de Uznadze: cm suas investigações sobre a formação de conceitos, realizadas no final dos anos 1920, Uznadze examinou as etapas de domínio, pela criança pequena, de conceitos que representavam os “equivalentes funcionais” dos conceitos adultos; esta linha de investigação per­ mite seguir o único caminho do desenvolvimento do pensamento desde a idade infantil até a adulta. L. S. Vigotski, em Pensamiento y lenguaje, analisou espe­ cialmente os resultados das investigações de Uznadze sobre os pscudoconccitos. J. Piaget, por outro lado, denominou “efeito Uznadze” a ilusão visual que se pode formar e estudar pelo método do sel,dedi publicado em 1944. Além disso, psicólogos cognitivislas, por exemplo, J. Cum­ mins, B. Bain, U. Neisser, R. Pollak c outros relacionaram suas investigações sobre os processos cognoscitivos com interpretações do efeito Uznadze. A questão que se refere a relação existente entre o con ceito de set e o inconsciente mostra-se muito interessante. Sobre esta questão existe uma grande quantidade de trabalhos em que os diferentes autores, em especial os psicólogos georgianos, discutem este problema. Dada a im possibilidade de resumi-los aqui, limitár-nos-emos a indicar que estas d iscu ssões se origi­ nam, em parle, no próprio desenvolvimento que a teoria do set experim en­ tou nas mãos de seu criador e que seus discípulos continuam atualmente. A questão relacionada com a natureza do sel - se é um fen ôm eno não psicoló­ gico, como o definiu Uznadze inicialmcntc, ou se é eslritam cnle psicológico, como o reconheceu no segundo período de sua teoria - entrelaça-se, por sua vez, com o problema de superar o dualismo cartesiano do con ceito de psique 100 Digitalizado com CamScanner

(consciência) co m o substância oposta à realidade física —ou fisiológica - e suficiente cm si. Disto resulta a apelação para conceitos com o “biosfera”, “situação” que c unidade das necessidades do indivíduo e os indicadores do meio. O se/, que surge sobre a base da necessidade e da situação que a satisfaz, não se reduz nem a primeira c nem a segunda, mas expressa o “ato extraordinário” (A. N. Leóntiev) do seu encontro. Ou seja, percebe-se aqui uma tentativa de superar a contraposição entre o interno e o externo, entre o subjetivo e o objetivo, entre o psíquico c o fisiológico. Entretanto, cm sua última obra. Bases experi­ mentales de la teoria del ,set Uznadze considerou o set co pertence à categoria de fenôm enos psíquicos, o que se por um lado dificulta a resolução do problema as relações entre o subjetivo e o objetivo etc., torna mais fácil solucionar a segunda pergunta que a teoria propõe: o set é ou não é o mesmo que o inconsciente psicológico. Aqui também os discípulos e co­ mentaristas de Uznadze divergem: existem aqueles que sustentam que a ativi­ dade psíquica inconsciente transcorre na forma de , com o que este inclui toda a esfera do inconsciente psíquico. Outros, ao contrário, consideram que o inconsciente c um conceito muito mais amplo que o de “ psicológico”. Se sustentarmos que os sets não são conscientizáveis e que sob sua influência reguladora encontram -se as formas mais complexas de comportamento, se dá por suposto uma infravalorização do papel da consciência. Sejam quais forem as opiniões existentes a esse respeito, o certo é que a teoria de Uznadze dem onstrou sua vigência tanto nas investigações de seus numerosos discípulos, com o no fato de 1er ocorrido um Simpósio Internacio­ nal Sobre o Inconsciente do qual participaram, além dos científicos soviéticos mais eminentes, uma quantidade notável de especialistas estrangeiros, em es­ pecial representantes de diversas correntes psicanalíticas. Os trabalhos apre­ sentados e os resultados das discussões constituem quatro tomos volumosos. Outra manifestação da vitalidade da teoria criada por Uznadze são as in­ vestigações psicológicas que se realizam na Geórgia, onde se estudam diferen­ tes questões de Psicologia geral - sensações, percepção, imaginação, memória, atenção, pensam ento, língua e linguagem , em oções, hábitos etc. de Psico­ logia diferencial da personalidade e caractereologia. A teoria do set aplica-se também em Psicopatologia e o m étodo emprega-se com fins diagnósticos. Desde os anos 1960, no marco da mencionada teoria, desenvolveram-se 101 Digitalizado com CamScanner

investigações psicossociais nas quais utiliza-se o conceito de disposição ou social. Sua aplicação cm diversas situações experimentais contribuiu para escla­ recer os mecanismos de ação do set c, à sua luz, estudaram-se diversos fenôme­ nos como os conflitos de papéis, as relações interpessoais, o conformismo ele. Uma outra demonstração da vigência da concepção de Uznadze foi a realiza­ ção, cm dezembro de 1986, de um Simpósio em comemoração dos 100 anos de seu nascimento. Participaram da reunião, celebrada cm 'I'bilïsi, além dos psicólogos soviéticos, científicos da Bulgária, EUA, Finlandia, a República Federativa Alemã, Checoslovaquia e Japão; apresentaram-se mais de 40 trabalhos referentes a proble­ mas teóricos c metodológicos da teoria do set. Alguns participantes propuseram a comparação entre a teoria dose/ c diversas correntes da Psicologia Contemporânea, assim como sua relação com os problemas mais diversos c aluais investigados por esta ciência - a teoria da cognição, o problema do desenvolvimento das capacida­ des, as peculiaridades caracterológicas da personalidade, as propriedades do espaço subjetivo, a motivação na atividade laborai ele. Reafirmou-se a vigência da teoria de Uznadze e seu desenvolvimento, sua importância para as investigações aplicadas na esfera da produção, da prática pedagógica, da Medicina etc. Em tal evento decidiu-se realizar, a cada três anos, um Sim pósio cm Tbi­ lisi dedicado às questões aluais da Psicologia do set, o que indica a atualidade da teoria criada por Uznadze e suas perspectivas de desenvolvimento. A categoria de atividade em Psicologia: S. L. R ubinstein c A. N . Lcónticv S. L. Rubinstein (1889-1960), um dos psicólogos soviéticos mais eminen­ tes, investigou uma gama amplíssima de problemas, entre os que se destacam questões filosóficas inerentes à Ciência psicológica, a memória, a percepção, o pensamento e a linguagem; a análise das diferentes correntes filosóficas c psi­ cológicas. Possuidor de uma cultura filosófica extraordinária, produziu obras essenciais que passaram a constituir parte do acervo mundial de conhecimen­ tos: Problemas de la Psicologia en los trabajos de C. M arx ( 1934), El ser y la con­ ciencia (1957), Princípios de Psicología general (1940, 1946); El pensamiento y los caminos de su investigación (1958); Principios y vias de desarrollo de la Psi­ cología (1959), El hombre y el mundo (1976), trabalho inconcluso e publicado logo depois de sua morte etc. Nos anos 1920, trabalhou na Cátedra de Psicologia da Universidade em Odessa. Em 1930, transferiu-se para Leningrado, onde M. Ya. Básov o convi102 Digitalizado com CamScanner

dou para trabalhar no InstiluLo Pedagógico Л. I. Herzen, onde dirigiu a Cá­ tedra de Psicologia até 1942. Nessa data viajou para Moscou onde ocupou a Cátedra de Psicologia da Universidade Estatal de Moscou ale 1950 e, ao mes­ mo tempo, chefiou ale 1945 o Instituto de Psicologia da Academia de Ciencias Pedagógicas da Rússia. Desde 1945 até a sua morte, criou c teve a seu cargo a Seção de Psicologia do Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da URSS (ENCICLOPEDIA FILOSÓFICA, 1967, p. 529). Como sc assinala na literatura correspondente, o princípio dialético da unidade da consciência - em geral, o psiquismo - c a atividade - laboral, cog­ noscitiva, de estudo etc. - é um dos mais importantes na Psicologia soviética e central na compreensão da natureza do psíquico. Este princípio sustenta que o homem e sua psique não somente se manifestam, mas que na realidade, formam-se na atividade, inicialmente na atividade prática. Foi formulado com grande exatidão por S. L. Rubinstein em Problemas de la Psicología en los trabajos de C. Marx (1934); entretanto, em 1922 já o havia esboçado ao sinalizar que qualquer atividade é criativa e nela o sujeito se cria e determina-se a si mesmo (RUBINSTEIN, 1986, p. 101-107). Posteriormente, Rubinstein desenvolveu este princípio em toda sua obra. Na análise da atividade, Rubinstein diferencia os componentes essenciais da mesma e analisa as inter-relações existentes entre eles. Sinaliza, com toda claridade, que a conduta do homem não se reduz, nem muito menos, a um conjunto de reações. Ao contrário, os elementos constitutivos da atividade são, segundo ele, a ação, a operação c alo, relacionados específicamente com a finalidade, o motivo c as condições nas quais a atividade se realiza. A diferença essencial entre a ação e a reação é que a primeira não é um ato dirigido ao estímulo, mas ao objeto. Esta diferença baseia-se, por sua vez, em que a relação com o objeto apresenta-se ao sujeito justamente como tal, como relação, e por isso regula a atividade. O que diferencia a ação do ato é que a primeira se converte no segundo na medida em que começa a ser regulada pe­ las relações sociais, mais ou m enos conscientes, ou seja, na medida em que se vai formando a autoconsciência. Neste sentido cabe destacar que o falo de que o homem tome consciência de sua atividade, ainda que seja de forma parcial, muda o caráter e o curso de tal atividade. Na atividade, manifesla-se o psiquismo, por meio da atividade pode ser co­ nhecido objetivamente posto que se forma nela. Rubinstein diz: “A atividade e 103 Digitalizado com CamScanner

a consciencia não são dois aspectos contrapostos; formam um todo orgânico. Não são uma identidade, mas uma unidade” Mais adiante precisa: “Л Psicologia inclui em sua área de estudo o aspecto psicológico da atividade [...]. Л Psico­ logia não estuda o comportamento em conjunto, senão [...] as peculiaridades psicológicas da atividade" (RUBINSTEIN, 19*16, p. 14-16). C om o se sabe, essa formulação deu origem a sérias divergências entre Rubinstein e Lcónlicv (1975, p. 90-92), às quais o último se refere em Actividad, conciencia y personalidad. Ainda que o tema mereça uma investigação m onográfica profunda, po­ demos dizer que a elaboração da categoria de atividade na Psicologia encon­ tra-se nas obras que correspondem ao primeiro período da criação de S. L. Rubinstein - provavelmente até os primeiros anos da década de 1940 —e reno­ vam-se em uma visão mais integral em sua última obra, publicada logo depois de sua morte, EI hombre y cl mundo. Devemos sinalizar que esta obra ainda não foi, pelo que conheço, estudada em profundidade. Porém, é evidente que Rubinstein voltou nela aos lem as que constituíram o centro de suas reflexões m etodológicas sobre a Psicologia e seu objeto de estudo, o caráter da relação entre o hom em e a realidade, a essência da consciência, o problema da ação com o forma de existência. Rubinstein diz: O ponto dc vista que provem de Descartes examina a existência somente como coisas, como objetos do conhecimento, como “realidade objetiva”. Л categoria de existência ou de ser se reduz à materialidade. Simultaneamente, exclui-se do ser, “os sujeitos”, as pessoas c com isso todas aquelas propriedades das coisas que são próprias dos “objetos humanos” incluídos nas relações humanas como instrumentos e produtos da prática (RUBINSTEIN, 1976a, p. 256-257).

E mais adiante: Diferenciando os distintos modos de existência [...] passamos à análise da questão filosófica sobre o modo dc existência do homem como sujeito da consciência e da ação (...) a correlação entre o sujeito c o objeto, sua inter-relação não se toma somente cm forma ideal, na consciência, mas também, no processo dc trabalho, cm forma real. material. Л ação, o trabalho, o homem criador, produtor devem ser incluídos - na Ontologia da existência humana - como elo indispensável c essencial. O homem atua aqui como ser que realiza sua essência nos objetos que ela gera e através dos quais toma consciência de si. Desta maneira, a especifici­ dade do modo humano de existência consiste na medida da correlação entre a autodeterminação e a determinação por outras coisas - condições, circunstân­ cias -, no caráter da autodeterminação cm relação com n presença, no homem, da consciência e da ação (RUBINSTEIN, 1976a, p. 258-259).

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No que concerne a elaboração fcila por Rubinstein da categoria da ativi­ dade cm Psicologia, pode-se indicar que ele investigou as relações entre ativi­ dade, ações c operações e as finalidades c motivos. Sinalizou que a unidade da atividade aparece, cm primeiro lugar, com o unidade das finalidades do sujeito c daqueles m otivos dos quais parte a atividade. Ainda que o motivo das ações humanas esteja ligado com a finalidade de tais ações, pode ocorrer que se separe da finalidade e se transfira para a própria atividade ou para alguns dos resultados desta. Sc existem diferentes condições, o resultado, que constitui a finalidade da ação, deve ser alcançado mediante a utilização de procedimen­ tos ou m eios distintos. Dito em outras palavras, enquanto a ação chega a um resultado em condições que não são invariáveis, converte-se na solução de uma tarefa (BRUSHLINSKI, 1984, p. 18). No centro de todas as inter-relações dos componentes da atividade do sujeito encontra-se, segundo Rubinstein, a ação, que constitui a “célula” ou a “unidade” de análise da Psicologia, ainda que tal Ciência não estude unica­ mente a ação e não a estuda em todos seus aspectos. O fato de ser a unidade significa que na ação a Psicologia pode evidenciar os germens de todos os ele­ mentos que constituem o objeto desta ciência (RUBINSTEIN, 1946, p. 143). A ideia da ação como unidade de análise da Psicologia mostra-se extraordinaria­ mente frutífera à luz dos trabalhos de Zaporozhets e, na atualidade, tem sido novamen­ te utilizada e desenvolvida por V. P. Zinchenko ern relação à imagem e ao movimento. Ao tratar o problema do desenvolvim ento do psiquismo, Rubinstein sina­ lizou que os fenôm enos psíquicos se desenvolvem no processo da evolução do mundo orgânico, no curso da evolução histórica da humanidade e no proces­ so da vida individual do hom em . N o que concerne ao desenvolvimento filogenético, a tese fundam ental é a que se relaciona com o papel decisivo que a forma de vida desem penha no desenvolvim ento da o desenvolvimento histórico da atividade humana mediatiza o desenvolvimento histórico de sua consciência. De maneira semelhante, no desenvolvimento individual do psi­ quismo, a consciência desenvolve-se na atividade do indivíduo, atividade que muda a natureza, o m undo externo e, ao m esm o tempo, ao próprio sujeito. Em relação ao desenvolvim ento individual do psiquismo, nas reflexões de Rubinstein o problema das relações entre o desenvolvimento e o ensino c a educação ocupa um lugar importante. Em seu artigo La Ciencia psicológica y la educación, diz que 105 Digitalizado com CamScanner

(...] a criança se desenvolve, educando-se e aprendendo e não se desenvolve, sc educa e aprende. Islo significa que a educação c o ensino incluem-se no pro­ cesso de desenvolvimento da criança e não se supcrcslrulurntu sobre ele |...|. As propriedades psíquicas pessoais da criança, suas capacidades, seus Iraços de carãter etc. (...) não só se manifestam, mas que também se formam no curso da atividade própria tia criança, por meio da qual sob a direção tio pedagogo, inclui-se ativamente na vida do coletivo, assimilando as regras e dominando os conhecimentos alcançados no desenvolvimento histórico da atividade cogno­ scitiva da humanidade (RUBINSTEIN, 1976b, p. 191).

Não é difícil ver no princípio da unidade da consciência c a atividade a aplicação das principais leses do marxismo ã Psicologia. Ncslc sentido, S. L. Rubinstein distinguai como ponto de partida, na compreensão marxista da atividade, sua definição como forma de relação dialética entre o sujeito с а realidade: nela muda tanto a natureza como o hom cm , posto que no proces­ so da atividade laboral, o homcm, ao transformar o objeto, põe a descoberto suas próprias forças essenciais. Assim como o trabalho c a atividade regulada pela consciência do homcm, a consciência não é algo existente fora, antes, indcpendentemcnlc, dessa atividade. Por sua vez, o caráter social do trabalho determina o caráter social da consciência, porem não no sentido vulgar de que a sociedade impõe os conteúdos da mesma, mas no sentido essencial de que é um produto da evolução histórica da sociedade humana. Entretanto, a partir desta definição ou postulado geral começam a emergir as diferenças entre o enfoque que S. L. Rubinstein deu à categoria de atividade c o pró­ prio da escola de A. N. Lcóntiev. Como é sabido, estas diferenças existem, foram sinalizadas pelo último autor citado, porém também foram um tanto acentuadas artificialmente nos últimos anos pelos partidários de uma e outra concepção. Como assinalam diversos discípulos de Rubinstein, a teoria deste inclui como categorias fundamentais, desde o ponto de vista m etodológico, a ati­ vidade, as formas de reflexo, os tipos dc determinação e o princípio pessoal. Reprovam na concepção de Lcóntiev 1er reduzido o objeto da Psicologia à ca­ tegoria de atividade, 1er convertido esta última em m odelo do psiquism o c 1er perdido a vinculação entre uma e outra, vinculação que se pode compreender apenas sobre a base do princípio de sujeito da atividade: Na nossa percepção mostra-se evidente que estas críticas são tendenciosas e apoiam -sc em uma compreensão muito limitada c “textual”, diríamos, da concepção de Lcóntiev. Por outra parle, os discípulos deste reconhecem que am bos autores sc ocuparam simultaneamente do problema da atividade, porém, acusam a Rubinstein 106 Digitalizado com CamScanner

o falo ele а 1er substituido, como objeto de estudo da Psicologia, pelo conteú­ do psicológico que aprésenla tal atividade. O próprio Leontiev sinalizou estas diferenças do seguinte modo: Como a atividade entra no objeto da investigação psicológica? Existem duas al­ ternativas c, penso, não é necessário diminuir o significado do caráter alternati­ vo das soluções. Uma: a atividade entra diretamente no objeto da investigação psicológica coin seu conteúdo próprio e isto não a diferencia como objeto de investigação de qualquer outro objeto de investigação científica (...]. A questão consiste no conteúdo que se torna objeto de estudo. A atividade (...) também entra como objeto da Psicologia, porém não como aspecto, ponto de vista ou angulo pelo qual ela é examinada, mas com seu conteúdo específico. Л outra posição é alternativa: a atividade entra na psicologia como aquilo que gera e que tem um aspecto psicológico. Parccc-mc que esta outra posição esta mais próxima da posição de L. S. Rubinstein, para quem, se a Psicologia compreende o que faz, estuda o psiquismo c somente o psiquismo. Na atividade estuda-se o psiquismo; a premissa deste é a atividade. Porém o objeto de estudo da psicologia são (...) a reação interna c não a própria atividade (...) que não entra no objeto direto da investigação psicológica (...) (LEÓNTIEV, 1986, p. 117).

Em resumo, parece evidente que é necessária uma investigação profunda de ambos autores, sobretudo à luz de suas últimas obras, com o objeto de esclarecer tanto a discussão como a avaliação das posições. Isto não significa, de nenhum modo, “colocá-las em harmonia”, reduzir as diferenças, ignorar a originalidade de ambas. Ao contrário, a confrontação permitirá estabelecer as diferenças essenciais e autênticas e encarar uma possível síntese. A. N. Lcónlicv (1903-1979) começou sua atividade científica em 1924 depois de terminar a Universidade de Moscou, Seção de Ciências Sociais - no Instituto de Psicologia da Universidade Estatal de Moscou - atualmente Insti­ tuto de Psicologia Geral c Pedagógica da A. de C. Pedagógicas da URSS - como assistente e depois como colaborador científico. Sua primeira obra importante, na qual concretizou os postulados metodológicos da teoria histórico-cultural de Vigotski - sob cuja direção trabalhou em tal Instituto -, foi desarrollo dc la memoria (1931). Tal trabalho foi escrito quando Leontiev trabalhava na Aca­ demia de Educação Comunista N. K. Krúpskaia - onde atuou de 1927 até 1931. Posteriormente, dirigiu a Seção de Psicologia na Academia de Psiconeurologia da Ucrânia c nesses anos formou-se o grupo de psicólogos que ele dirigiu em Járkov - entre os quais figuram P. I. Zinchenko, L. I. Bozhovich, P. Ya. Galperin, A. V. Zaporozhets etc. A investigação dos elementos constituti­ ng Digitalizado com CamScanner

vos da atividade objetai, sua estrutura sistêmica e a unidade estrutural entre a atividade externa, pratica e a interna, psíquica inicia-se nessa época e vincu­ lou-se a esse grupo de psicólogos. Em 1936. voltou a Moscou e trabalhou no Instituto de Medicina Expe­ rimental e depois no Instituto de Psicologia; entre 1936 c 19*10 realizou um ciclo importante de investigações destinados ao estudo do desenvolvimento histórico do psiquismo no aspecto filogenélico c da consciência humana. Os resultados de tais trabalhos constituíram sua tese de Doutorado, defendida em 1940 e publicada parcialmente, sob o titulo de Ensayo sobre el desarrollo de Ia psiíjuis. em 1947. Durante a Guerra, foi o diretor de um hospital de evacuação, onde traba­ lharam também P. Ya. Galperin - chefe da parte médica - , A. V. Zaporozhets - chefe dos laboratórios experimentais - e outros. O trabalho realizado nesse periodo está sintetizado em La rehabilitación de los movimientos. Investigación psicofisiológicade la recuperación de las funciones de los miembros superiores luego de ,h eridasescrito conjuntamente com Zaporozhets e ao qual nos referi­ remos com detalhes no capítulo VI. Em 1943, regressou a Moscou e dirigiu o Laboratório de Psicologia Infantil, no Instituto de Psicologia e a Cátedra de Psicologia na Universidade. Realizou investigações importantes relacionadas com o desenvolvimento psíquico c com os problemas do ensino e a Educação Infantil. Seus artigos: Bases psicológicas del juego prccscolar (1944), Cuestiones psicológicas del estudio consciente (1947), Cuestiones de la formación de la personalidad del niño en la edad prccscolar (1950), El desarrollo intelectual del niño (1950) etc., são desse período. Em Bases psicológicas del juego prccscolar, sobre a base das idéias de L. S. Vigotski e os trabalhos de D. B. Elkonin, Leóntiev formulou, pela primeira vez, o conceito de “atividade reitora”. Em Cuestiones psicológicas del estudio consciente expôs sua concepção sobre os níveis de tomada de consciência c do sentido pessoal em relação com o significado. Por outra parte, este trabalho colocou as bases para a direção posterior c muito importante cm Psicologia pedagógica e em Pedagogia que P. Ya. Galperin, D. B. Elkonin, V. V. Davídov, N. F. Talízina e outros investigadores desenvolveram. O ponto central este ciclo de investigações foi o estudo da geração c de­ senvolvimento da consciência individual como processos que se baseiam na apropriação, pela criança, dos conhecimentos e normas elaboradas pela hu­ ios Digitalizado com CamScanner

manidnde no curso dc sun história c fixados nos produtos da cultura - no sentido mais amplo do termo - e na linguagem. Л. N. Leontiev recebeu, рог este conjunto de trabalhos, a medalha Ushinski, em 1953. Já nos anos 1930, Л. N. Leontiev investigou, teórica c cxperimentalmcnte, o problema do surgim ento da sensação c, cm geral, do psiquismo. A hipótese fundamental c que a condição decisiva para o surgimento da sensibilidade c a passagem da vida desde um meio homogêneo, uniforme, a um meio que está constituído por objetos particulares. Esta passagem determina que o or­ ganismo se encontre separado dos objetos que satisfazem suas necessidades e que deva orientar-se com respeito às propriedades dos objetos que resultam indicadoras das propriedades significativas para o organismo. A sensibilidade c definida por A. N. Leóntiev, no plano de seu surgimento filogenético, como irritabilidade com respeito as influências que o organismo correlaciona com outras, quer dizer que orientam o ser vivo no conteúdo objetai de sua ativida­ de. Com o propósito de confirmar sua hipótese, Leóntiev investigou, primeiro em Járkov e depois no Instituto de Psicologia de Moscou, em condições artifi­ ciais e pelo m étodo experim entação genético-modelador, o processo de con­ versão das estim ulações não captadas em estimulações percebidas - processo de surgimento da sensibilidade da pele da mão aos raios visíveis. O problema do reflexo sensorial foi novamente proposto por Leóntiev. a mediados dos anos 1950, quando, sob sua direção, estudou-se o caráter ativo da percepção auditiva e visual e o papel que os componentes motores cum­ prem na modelação dos diferentes aspectos da realidade percebida. Seu traba­ lho fundamental. Problemas del desarrollo de la psicjitis, que mereceu o Prêmio Lenin de 1963, apareceu em 1959. Sua última obra. conciencia, per­ sonalidad, publicada em 1975, recebeu o Prêmio Lomonósov de 1976. Seria mais fácil, talvez, enumerar os problemas da Psicologia que Leóntiev não investigou do que aqueles nos quais fez uma contribuição essencial. Seus trabalhos relacionam -se praticamente com todas as áreas da Psicologia: Psi­ cologia pedagógica, infantil, industrial, história da Psicologia e, logicamente. Psicologia geral. Não só investigou, de fato, todas as áreas da Ciência psicoló­ gica, mas também foi o fundador de um entoque específico - a teoria psico­ lógica geral da atividade - capaz de ser o marco teórico geral para o estudo de todos os processos psíquicos em qualquer plano que eles sejam investigados - desde o ponto de vista filogenético, ontogenético etc. 109 Digitalizado com CamScanner

Mostra-se absolutamente impossível resumir sua obra ou fazer uma sín­ tese de suas contribuições à Psicologia, nos limites deste breve esboço tia his­ tória da Ciência psicológica na URSS. Antes de passar a uma breve análise do trabalho inconcluso de A. N. Lcóntiev, LaImagen del mundo, sinalizamos que este eminente investi criador de uma Escola psicológica que deu resultados brilhantes para a Ciên­ cia foi um dos fundadores e presidente da Sociedade de Psicólogos da URSS, atuou como vice-presidente da Academia de Ciências Pedagógicas da URSS, impulsionou a criação do Instituto de Psicologia da Academia de Ciências da URSS, foi membro da comissão de redação de Cuestiones de Psicologia c redator-chefe do Boletín de de Psicología de la Universidad de Moscú, decano da Faculdade de Psicologia da Universidade de Moscou desde a sua fundação, em 1966, até sua morte. Foi doutor honoris causa da Universidade de Paris, membro de honra da Academia de Ciências da Hungria, membro honorífico de associações de psicólogos de muitos países etc. A obra que evidentemente Leóntiev planejava escrever imediatamente após Ac­ tividad, conciencia, personalidad e para, a qual recolheu material desde 1975 até 1978, leva o título de La imagen del mundo. Conservou-se o resumo do conteúdo de tal trabalho e o do informe que, em 1975, foi feito na reunião ampliada da Cátedra de Psicologia geral, na Faculdade de Psicologia na Universidade de Moscou. Leóntiev começou sinalizando a ausência de uma teoria geral da percep­ ção que pudesse abarcar os conhecimentos acumulados, esboçar um sistema conceituai que responda às exigências da metodologia dialético-materialista. Afirmando que o problema da percepção deve ser proposto e elabora­ do como problema da Psicologia da imagem do mundo, Leóntiev destacou que, quando se trata do homem, da consciência humana, além do conceito de mundo de quatro dimensões - três dimensões espaciais e uma temporal - é necessário agregar o conceito de quinta quase dimensão, a saber, “o campo de sentido” ou sistema de significações. Expondo a essência de sua ideia, sinali­ zou que contém duas teses fundamentais: a primeira é que as propriedades de caráter inteligível, catégorial são características da imagem consciente do mundo e não são imanentes a essa imagem; a segunda é que essas caracterís­ ticas expressam a objetividade, revelada pela prática social conjunta e ideali­ zada no sistema de significações que cada indivíduo particular encontra como “existente-fora-dele" (LEÓNTIEV, 1979, p. 3-13). 110 Digitalizado com CamScanner

Comentando este trabalho inconcluso no contexto da criação científica de Л. N. Leónlicv, V. Р. Z inchenko sinaliza a unidade que caracteriza todas as investigações de L eónlicv na área da percepção c que o leva a formular, no final de sua vida, uní programa de interpretação dos falos investigados cuja significaçâo vai m uito m ais além do lema da percepção, se esta é entendida como processo co gn oscitivo em um sentido estrito.

Seguindo as diferentes investigações de Leontiev referentes ao surgimento da sensibilidade, das formas ontogenéticas da percepção tátil, visual, auditivas etc., Zinchenko indica que Leóntiev introduziu, para compreender tais processos, os conceitos de atividade, caráter objetai, mediatização e compreensão. O caráter ati­ vo da percepção devia ser decifrado e Leóntiev introduziu a ideia de mecanismo de similitude da dinâmica dos processos no sistema receptor com as propriedades da influência externa. O processo de similitude não supõe obrigatoriamente que seja realizado pelos meios próprios do sistema receptor. Quando o contato extemo prático do órgão motor com o objeto é impossível, a similitude se produz por meio da comparação dos sinais dentro do sistema, quer dizer, dentro do campo interior, sinaliza Leóntiev em Problemas del desarrollo de la psiquis. Porém, se nesse trabalho a hipótese da similitude resultava a base psicológica da teoria do reflexo - no sentido filosófico -, no final de sua vida, Leóntiev propôs que a condição para a percepção apropriada de um objeto isolado é a percepção adequada do mundo objetai em con­ junto e a atribuição deste objeto ao mundo (ZINCHENKO, 19S3, p. 140-149). S. D. Smirnov observa que a introdução da categoria de imagem do mun­ do permite superar definitivamente o esquema estímulo-reativo de constru­ ção da imagem e da ação de resposta, o limite rígido entre o conhecimento sensível e o racional, assim com o significa um passo enorme a frente no pro­ blema da unidade entre a esfera emocional e cognoscitiva da personalidade (SMIRNOV, 1983, p. 149-155). Em síntese, podem os dizer que essa obra inconclusa de A. N. Leóntiev é um legado inestimável para a Psicologia, um testemunho da fecundidade do enfoque da teoria da atividade e uma demonstração palpável das perspectivas que sua compreensão do m undo e do homem como sujeito da atividade abre. A Psicologia em Leningrado: V. N . M iasíschev e B. G. Anániev No que se considerou com o a “Escola leningrandense” em Psicologia, nos referiremos brevemente à obra dos dois autores mencionados que se estende

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desdo os inicios da Ciencia psicológica soviética alé os anos 1970. Por issu, ainda que eles sejam colocados no présenle capitulo, seus trabalhos abarcam um longo periodo e suas concepções formularam-se delinòtivamcntc nos lilijmos anos da década de 1950 e na de I960. V. N. Miasischev (1893-1973) formou-se como médico c já em seus primeiros anos de estudo intercssou-se pda Psicologia do homem sadio e enfermo, o que definiu uma das esferas de sua atividade cientifica: a Psicologia médica c a Psiconcurologia. Béjterev foi seu mestre que influenciou de maneira decisiva cm sua for­ mação como investigador; por outra parte, conhecia profundamente a obra de S. P. Botkin. 1. M. Séchenov e 1. P. Pávlov. Miasischev investigou, durante muitos anos, o problema da personalidade tanto no homem sadio quanto no enfermo e empregou, em seus primeiros tra­ balhos. características objetivas fisiológicas e psicofisiológicas para determinar os sentimentos e as vivencias subjetivas do indivíduo. Assim, em 1944, apresentou, como tese doutorai, seu trabalho Indicadores galvánicos de la piel del estado псиrvpsicológico del hombre, Este trabalho mostrou a possibilidade de estudar, com tal método, as vivências não só desde o ponto de vista quantitativo - por exemplo sua intensidade etc. - , mas também avaliar o significado que tem para o sujeito. Dedicou, no estudo da personalidade, atenção especial ao sistema de relações que o homem estabelece com o mundo externo e consigo mesmo, sistema que constitui, na sua percepção, o aspecto mais específico da personalidade humana. Considerando a personalidade como produto das condições históricas concretas nas quais o indivíduo vive, quer dizer, atua, produz e se vincula com as outras pessoas, Miasischev destacou que a personalidade não é uma for­ mação psíquica estável, mas dinâmica que sofre a influência de uma série de fatores, entre os quais os sociais desempenham um papel decisivo. Por outra parte, o sentido psicológico das relações consiste em que é uma das formas em que o indivíduo reflete, na sua consciência, a realidade que o circunda. Esta problemática o levou a ocupar-se da com unicação entre as pessoas, entendendo esta não no sentido estreito dos intercâmbios verbais, mas como processo de interação de pessoas concretas que se relacionam e influem entre si de determinada maneira. Ao estudar os problemas da comunicação interpessoal, Miasischev sinalizou que pode existir uma correlação entre a atitude que um dos sujeitos mantem cm 112 Digitalizado com CamScanner

relação ao oulro c n comunicação que se dá entre eles, lambem pode haver uma falta de correlação entre ambos aspectos. Segundo este investigador a presença ou ausência de correlação depende não só das propriedades pessoais de cada um dos participantes, mas também das condições cm que a comunicação transcorre. Uma das investigações fundamentais de V. N. Miasíschcv é a que realizou em colaboração com Л. G. Kovaliov, denominada Particularidades psíquicas del hombre, cm dois tomos cm 1957 с I960. O trabalho contem um estudo profun­ do sobre a tipologia c a classificação de caracterísiticas humanas. Neste sentido, os autores sinalizam o papel decisivo das condições históricas, concretas, sociais etc., que contribuem para a formação do caráter. Trata-se também, nesta obra, o problema das capacidades, considerado no plano da dependência que as ap­ tidões do sujeito hereditariamente condicionadas apresentam com respeito às condições concretas nas quais transcorre seu desenvolvimento e realização. Em La personalidad y las neurosis (1960), expos suas ideias sobre a personali­ dade a relação entre as alterações que surgem na esfera das atitudes e as neuroses. Em seus últimos trabalhos dedicou-se a aprofundar a questão dos crité­ rios do normal e da patologia, que tem tanta importância para a Psicologia médica. Dedicou, neste plano, atenção especial à fundamentação teórica do psicodiagnóstico, assim com o dos métodos concretos para realizá-lo.

B. G. A nániev (1907-1972) terminou, em 192S, o Instituto Pedagógico de

Gorki e em 1930, iniciou sua candidatura no Instituto do Cérebro de Leningrado. Sua primeira investigação científica, publicada em 1927, foi dedicada ao estudo experimental da influência que a música exerce no comportamento do homem. Anániev trabalhou no Instituto do Cérebro até 1943 e seu primeiro ciclo de trabalhos foi a investigação das peculiaridades da atividade reflexa condi­ cionada desde as posições da teoria dc Béjterev. Quando a discussão sobre a reflexologia foi produzida Anániev retratou-se desta e reconheceu a necessi­ dade dc reexaminar os pontos de vista referentes à essência do psíquico, da consciência e do comportamento humano. Neste sentido formulou teses so­ bre a medialização da filo c ontogênese do homem por parte da sociogênese, o caráter social inerente ao homem, a necessidade de estudar o homem con­ creto, real. Dedicou, ao problema da sociogênese do comportamento humano, os trabalhos El m étodo étd e estudio del comportamiento del ho socigen (1930), El problema dc la sociogcncsisdel comportamiento humano (1930) etc. 113 Digitalizado com CamScanner

Outra estera importante île sua atividade científica foi a investigação do temperamento, do caráter e as capacidades dos escolares sob a influência da qualificarão que o professor faz destes. Anániev deu um papel importante à qualificarão pedagógica como fator do desenvolvimento da personalidade in­ fantil. O produto das suas das investigações de Anániev nesse terreno loram seus livrosUiPsicologia tic lacalificación pedagógica (193 carácter en los (escolar1941). Anániev considera, nesses trabalhos, que о caráter é а unidade da orientação vital c da imagem das ações do homem, forma-se graças ao feto de que as relações externas se convertem cm traços internos; o caráter é o bloco terminal na estrutura da personalidade, que lhe outorga uma natureza integral e definidora. Por outro lado, Anániev analisou as vinculaçòes entre o caráter e o temperamento, sinalizando que este deve c pode ser compreendido somente em seu desenvolvimento e transformação. Constitui a base natural do caráter, o que inicialmente leva a que este dependa do temperamento; porém, à medida que a personalidade se forma e graças ao papel decisivo da prática social, tal relação muda e o caráter vai adquirindo uma importância cada vez maior no plano da transformação das bases inatas do temperamento. Anániev sinaliza, em relação ao problema do ensino, que é indispensável considerar as peculiaridades do caráter e do temperamento quando se esboça o enfoque individual na educação da criança. Em 1939, defendeu a tese doutorai que dedicou à história da Psicologia rus­ sa e soviética, denominada La formación de la Psicología científica en Ia URSS. Depois da Guerra - o trabalho realizado por Anániev durante ela será apresentado no capítulo seguinte - , investigou uma temática amplíssima: his­ tória da Psicologia, Psicologia infantil e pedagógica, Caractereologia, teoria das sensações. Em 1945, foi eleito membro da Academia de Ciências Pedagó­ gicas da Rússia. Em 1944, criou-se, na Universidade de Leningrado, a Cátedra - posteriormente a Seção - de Psicologia, que B. G. Anániev dirigiu. Nela rea­ lizou uma série importante de trabalhos dedicados aos processos sensoriais. Continuando as investigações iniciadas antes da Guerra sobre a sensibilidade, Anániev empenhou-se no estudo dos problemas da sensação e da percepção sensibilidade dolorosa, tátil, vibratória; as peculiaridades do sentido do talo, da diferenciação espacial, o trabalho dos hemisférios cerebrais. Todo esse material foi generalizado nos livros La diferenciación espacial (1955), La Psicologia del conocimiento sensorial (1960), Teoría de las sensaciones (1961) etc. Anániev res114 Digitalizado com CamScanner

saltou especialmente n importância elas formas sensoriais do reflexo do mundo externo e seu papel nào atenuado na medida que a inteligência se forma: neste sentido, compreendia c» intelecto como unidade do sensorial e do lógico, como uma estrutura de muitos níveis cujas raízes cncontram-sc na sensibilidade, Anánicv dirigiu o Instituto Pedagógico de Investigação Científica de I.cningrado, pertencente à Academia de Ciências Pedagógicas da Rússia, desde 1951 a 1960. Ali organizou c dirigiu o estudo integral dos problemas do ensino, da edu­ cação c do desenvolvimento e reuniu para isto pedagogos, psicólogos e didatas. A finalidade destas investigações era estudar as intcr-relações entre os diversos aspectos do desenvolvimento do escolar c estabelecer as bases para a organização adequada do processo de ensino. Os resultados correspondentes foram publica­ dos na monografia coletiva Laenseñanza y la Educación Desde 1966, foi decano da Faculdade de Psicologia da Universidade de Leningrado e o iniciador da criação do Instituto de Investigações Sociais Inte­ grais, onde dirigiu o Laboratório de Psicologia Diferencial. A diversidade de esferas em que Anániev desenvolveu seus trabalhos con­ dicionou em grande parte que nos últimos anos de sua atividade cientifica che­ gasse a formular a ideia das investigações integrais do homem. Em El hombre como objeto del conocimiento (1968), formula a concepção do desenvolvimen­ to psíquico individual, que chamou Ontopsicologia e que representa a síntese de todos os capítulos da Psicologia evolutiva e diferencial. A Ontopsicologia não é unicamente uma teoria do desenvolvimento, mas também das estruturas psíquicas; o enfoque pressupõe o estudo do desenvolvimento segundo as diversas linhas que correspondem ao indivíduo, à personalidade e o sujeito. Estas linhas generalizam-se na ontogénèse e no caminho vital A ontogènese significa, segundo Anániev, o desenvolvimento do indivíduo natural e representa a realização dos programas filogenéticos. Ao contrário, o caminho vital é a forma social na qual realiza-se a existência individual do homem e, em conseqüência, esta relacionada com a época histórica determinada que o sujeito viveu. Neste sentido, o conceito central é o de socialização, processo que se realiza mediante a interiorização das relações interpessoais c inlergrupais, dos papéis, das ações objetais externas etc. A socialização implica, no mesmo tempo, a individualização que se expressa na interação das propriedades sociais e individuais da personalidade. Como fica claro, esta proposição supõe uma tentativa de encontrar as re­ lações mútuas entre o “natural” e o “cultural” no desenvolvimento. Uma das 115 Digitalizado com CamScanner

leis mais importantes que se deduzem desta proposição ó que, no desenvolvi­ mento psíquico individual, existem periodos sensitivos do desenvolvimento que Anániev definiu como o momento de convergência ótima da ontogénèse e o desenvolvimento social, sem limitá-los ã infancia e a juventude. A ideia do caráter integral do homem e de seu desenvolvimento o levou a propor que a Psicologia deve estudar o homem de maneira multilateral, na medida ein que todas as propriedades deste determinam internamente os processos e estados psíquicos. Anániev insistiu, desde esta perspectiva, em que a Psicologia c um instrumento de vinculaçào entre todas as ciencias que estudam o homem e insistiu no enfoque integral, interdisciplinar, derivado do principio antropológico do sistema conceituai que criou. Em sua concepção, o principio da unidade da consciência e da atividade formulado por L. S. Rubinstein - adquire a forma de unidade da consciência e dos processos da vida, na atividade vital do indivíduo, na conduta social da personalidade e na atividade do sujeito propriamente dita —trabalho, co­ nhecimento, comunicação. Dito em outras palavras, o processo da vida não é redutivel à atividade objetai e a determinação da consciência tem uma base ontológica mais ampla (LÓGUINOVA, 1988, p. 157). Com o vem os, aqui mar­ ca-se uma diferença essencial com a teoria da atividade de Leóntiev. Em 45 anos de atividade científica, B. G. Anániev' publicou mais de 180 tra­ balhos, entre eles várias monografias. Foi membro da presidência da Sociedade de Psicólogos da URSS, da redação de Cuestiones de Psicología e do Boletín de la Universidad Estatal de Leningrado. Recebeu duas condecorações de Lenin, as medalhas N. K. Krúpskaia e K. D. Ushinski (LÍSENKOVA, 1982, p. 138). Outra vez o cérebro: novas respostas a velhas perguntas Como já temos assinalado, o pensamento materialista espontâneo na Ciência Natural deu, no final do século XDC, princípios do século XX, uma solução ao problema da relação entre os fenômenos psíquicos e o cérebro. As investigações de Séchenov, continuadas e desenvolvidas brilhantemente por Pávlov, deram lugar a uma concepção específica do funcionamento do sistema nervoso, tendo uma significação muito progressista desde o ponto de vista da solução do problema psicofisiológico. Porém, também temos visto os extre­ mos reducionistas resultantes da Reficxologia bejlcriana e nos tem os referido já a crítica formulada, no final dos anos 1920, contra a redução reílcxológica 116 Digitalizado com CamScanner

proveniente daquela c de alguns discípulos da Escola Pávloviana - em parti­ cular. Ivanov-Smolcnski. Produziu-se a extrapolação, metodológicam ente errónea, da teoria do funcionamento do sistem a nervoso à concepção explicativa dos fenômenos psíquicos c a am pliação do conceito de reflexo fisiológico ao princípio explica­ tivo dos fenôm enos tanto nervosos quanto psicológicos. Ainda assim, temos sinalizado que a teoria de Ujtomski, em particular seu conceito de órgãos fun­ cionais, representou um aporte extraordinário à compreensão do problema das relações entre o psíquico e se substrato material. Na Psicologia soviética, no final dos anos 1920 e começo dos anos 1930, voltou a aparecer esta problemática, que tomou a forma da dupla determina­ ção do psíquico: sua natureza social e sua caracterização como propriedade da matéria altam ente organizada - o cérebro. Até hoje esta questão aparece de vez em quando, as vezes com o problema dos dois fatores, as vezes como problema do b iológico e do socoal no hom em . Mostrava-se evidente que o esquema cartesiano subjacente à teoria dos reflexos condicionados, assim com o o do arco reflexo que Pávlov aplicou sem modificação; o caráter ativo, porém elementar, adjudicado às respostas do ser vivo; sua determ inação pelas influências do meio na base da experiência pas­ sada, quer dizer, o caráter adaptativo do comportamento às modificações do meio ambiente, não podiam seguir constituindo o “programa filosófico" da Fisiología. No início da década e por mais de 20 anos, dois investigadores empreenderam a tentativa de formular uma nova concepção fisiológica: um deles, P. K. Anojin o faz, partindo da teoria do reflexo clássica e o outro N. A. Bernstein, tom ando um enfoque totalm ente diferente com o ponto de partida: a fisiología da atividade. P. K. A nojin ( 1898-1974) trabalhou, desde 1927, sob a direção de Béjterev no Instituto do Cérebro e, entre 1922 e 1930, na Academia Militar de Medicina, no Laboratório de I. P. Pávlov. Na primeira metade dos anos 1930, foi profes­ sor da Cátedra de Fisiología do Instituto Médico de Gorki, onde começou seus trabalhos sobre dinâmica do sistem a nervoso e a relação entre o centro nervoso e a periferia, cm uma primeira tentativa dc compreender o caráter integral do comportamento através da análise de seus elementos. Entre 1934 e 1944, foi chefe dc departamento no Instituto de M edicina Experimental de Moscou e, 117 Digitalizado com CamScanner

desde 1946 a 1950, diretor do Instituto de Fisiología da Academia de Ciências Médicas da URSS. A partir de 1950, chefe do Laboratório de Ncurofisiologia da mesma Academia c depois do departamento de Ncurofisiologia do Instituto t|L. Fisiología Normal e Patológica, também pertencente à Academia de Ciências Médicas. Em 196S, recebeu a medalha de ouro I. P. Pávlov, que se outorga ao conjunto de trabalhos que desenvolvem a teoria deste, ainda que no ano 1950 fo¡ severamente criticado por suas tentativas “revisionistas” em tal campo. Anojin empreendeu, desde o começo dos anos 30, uma série de investi­ gações nas quais, conservando o método dos reflexos condicionados como o mais produtivo para a análise dos fenômenos a estudar, esforçou-se por in­ vestigar o comportamento integral ao colocar o animal em condições de elei­ ção motora ativa. Por outra parte, as operações de junções contrarierais dos nervos e a observação dos movimentos que o animal realiza para restabelecer a função afetada pela operação, levaram-no a propor importantes conceitos, cujo desenvolvimento posterior dará como resultado a elaboração de uma concepção fisiológica do funcionamento do sistema nervoso que se adiantou às principais categorias da cibernética. Já em 1933, Anojin propôs a diferença entre a teoria refletora clássica c a própria na explicação dos atos compocrtamentais: se a primeira trata de respon­ der à pergunta relacionada à integração da atividade nervosa a partir de reflexos isolados, das inter-relações peculiares cm que os arcos reflexos isolados entram, segundo Anojin, é necessário investigar de que forma e, no sistema, de qual complexo ontogenético integral se desenvolve o tipo dado de atividade nervosa. Por outro lado, nas investigações que se referem às inler-reiaçõcs entre o centro e a periferia, Anojin descobriu o fenômeno dos im pulsos aferentes de retorno que os órgãos de respostas enviam ao sistema nervoso cenLral. Este conceito de aferência do retorno, formulado pela primeira vez no começo dos anos 1930, tem duas conseqüências importantes na construção da teoria do funcionamento do sistema nervoso central: a primeira é que a aferentização de retorno - que sinaliza a correspondência ou não correspon­ dência entre o realizado e o necessário é que, em conseqüência, determina o término ou a continuação dos movimentos - m odifica substancialmente o conceito de reforço formulado por Pávlov. Para este, a ação do estím ulo incon­ dicionado, na sua qualidade de reforço do estímulo condicionado, era a con­ dição necessária e suficiente para que o organismo respondesse de maneira

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adequada. Para A nojin, os sinais provenientes dos aparelhos de resposta - que indicam a adequação ou inadequação da ação realizada ao que a situação dada exigia - constituem o elem ento informativo indispensável para a atividade inlegrativa do sistem a nervoso central. Л cibernética elaborou somente 10 anos dcpoi*s esse princípio co m o princípio do enlace de retorno. A segunda conseqüência importante c que não se representa o funciona­ mento do sistem a nervoso, segundo o princípio do arco reflexo, mas propõese a ideia da organização cíclica das funções. Isto leva Anojin a formular mais tarde o princípio dos sistem as funcionais, os quais representam organizações fechadas que reúnem os m ecanism os centrais c periféricos sobre a base da aferentização proveniente, em forma permanente, dos órgãos periféricos. Isto significa uma nova unidade de análise da atividade integrativa do organismo. O sistema funcional, diz Anojin, é o “contorno fechado de regulação auto­ mática” da atividade do organism o, a “unidade cíclica de autorregulação com aferentização do retorno” (ANOJIN, 1963, p. 213). Foi introduzido assim, na Fisiología, o conceito im portantíssim o de autorregulação do organismo que destaca o caráter ativo e não meramente adaplalivo de suas respostas. É evidente que o princípio da aferentização de retorno implicava a existência de algum aparelho que realizasse a comparação entre a informação proveniente da periferia e o que deveria ser conseguido por meio da ação adequada. Neste sentido, em seus trabalhos posteriores, Anojin introduziu o conceito de “aceita­ dor da ação”, destinado a avaliar os possíveis resultados da ação que ainda deve realizar-se. Este aparelho é considerado por Anojin a expressão da Lei funda­ mental de toda matéria viva, a saber, o reflexo antecipatório do mundo externo. O que no m undo externo desloca-se em macrointervalos temporais, como re­ sultado das ações repetidas sobre o organismo, é refletido por este em interva­ los de tempo cada vez menores. Ou seja, forma-se a possibilidade de refletir o mundo, que influi sobre o organismo, de maneira antecipada: esta formação das modificações preparatórias para acontecimentos futuros, introduz na Fisiología a categoria de futuro (ANOJIN, 1963, p. 179), o que já havia sido indicado por Sherrington. Anojin sinalizou que o reflexo condicionado é um caso particular das formas altamente especializadas do reflexo antecipatório. Por último, Anojin propôs a síntese aferente que é a unidade funcional das informações aferentes que chegam do meio externo, da aferentização de retorno proveniente das ações do organism o e das marcas da experiência pas119 Digitalizado com CamScanner

sada, como condição indispensável para a formação do aceitador da ação. Esta síntese aferente é uma etapa intermediária fundamental na formação do ato comportamental c pode conslituir-se no fundamento fisiológico de fe­ nômenos como a intuição, o caráter dirigido a uma finalidade, que c típico do comportamento etc. Aparecem, desta maneira, na Fisiología certas categorias para a explica­ ção dos aspectos mais característicos da condula do ser vivo: sua natureza integral, orientada a uma finalidade, ativa, autorregulada e sistêmica. Ainda que Anojin tenha declarado reiteradamente a vigência do conceito de reflexo condicionado para sua teoria, assim como a importância metodo­ lógica do mesmo, em realidade tanto os problemas que propõe - orientação para uma finalidade dos atos comportamentais, natureza integral da atividade nervosa central etc. - como as categorias que utiliza para explicá-los - aceita­ dor da ação, aferentização do retorno, reflexo antecipatório da realidade etc. - sobrepujam notoriamente os marcos da teoria Pávloviana e, em princípio, poderiam incorporar-se a outro esquema científico explicativo. Porém, Ano­ jin foi discípulo de Béjterev e de Pávlov e ainda que diga que “[...] o princípio do reflexo condicionado mostra-se insuficiente para evidenciar atos tais como a ‘tomada de decisão', o ‘prognóstico’ dos resultados da atividade, a formação do comportamento dirigido a um fim” (ANOJIN, 1980, p. 188), não concebe uma Fisiología sem esse conceito central. O que se mantém como contradição, na teoria de Anojin, e que se expressa concretamente na conservação do conceito de reflexo com o categoria indis­ pensável para explicar cientificamente o funcionamento do sistema nervoso, deriva-se da manutenção do esquema explicativo determinista científico-na­ tural aplicado a fenômenos cuja essência não se esgota com tal explicação. N. A. Bemshtein (1896-1966) terminou a Faculdade de Medicina em 1919 e freqüentou cursos da Faculdade de Matemáticas da Universidade de Moscou. Organizou, em 1922, o laboratório de Biomecánica no Instituto Central do Tra­ balho e, mais tarde, no Instituto de Medicina Experimental, assim como em outras instituições, por exemplo, no Instituto de Investigação Científica de Cultura Física. As idéias de Bernshtein constituem a base teórica da Biomecánica Con­ temporânea - em particular, o esporte, o desenho e a aplicação de próteses, a atividade dos cosmonautas etc. Introduziu aperfeiçoamentos importantes nas 120 Digitalizado com CamScanner

técnicas de registro e análise dos movimentos. Como sinalizado na Enci­ clopedia S oviétca( 1970, p. 257), sua concepção sai dos limites da Ncurofisiologia c da psicofisiologia e está no centro dos problemas aluais da Cibernética, da Biônica e outros ramos da Ciencia. Algumas ideias que formulou nos anos 1930 adiantaram-se aos postulados fundamentais da Cibernética - por exem­ plo, pertence a Bernstein uma das primeiras formulações precisas do conceito de “enlace de retorno”. Mereceu o Prêmio Estatal da URSS em 1948 pelo seu trabalho Acerca de la estructura de los movimientos. A culminação das investigações de Bcrnshtein é a concepção da Fisiología da atividade que examina esta como a propriedade fundamental do organismo, o principio que expressa as características essenciais das relações existentes entre o ser vivo e o meio. A concepção elaborada por N. A. Bemshtein, que em parte representa a continuação da linha de trabalho de Ujtomski, inscreve-se na história da Fisiología e da Psicologia como a teoria que, superando as concepções da “adap­ tação e equilibração do organismo e do meio” supera, assim, tanto a compreensão idealista da atividade, como a explicação mecanicista, reativa do comportamento, que outorga ao meio externo o papel decisivo na determinação daquele. A Fisiología da atividade, formulada por Bernshtein, representa essa Fisiolo­ gía psicológica corn a que Vigotski sonhou e que o mesmo e A. R. Luria tentaram desenvolver com suas ideias sobre a localização das funções psíquicas superiores. Como Gurguenidze sinaliza, no artigo La Fisiología de la actividad (EN­ CICLOPEDIA FILOSÓFICA, 1970, p. 328-330), a passagem dos estudos fi­ siológicos do organismo em situação de repouso e por suas funções isoladas a suas análises em estado de atividade e, em particular, o estudo da Fisiología do trabalho, provocou o surgimento de uma problemática especial que exigiu a elaboração de novos sistemas conceituais. N. A. Bemshtein mostrou já em seus primeiros trabalhos que nenhum movimento do homem pode ser analisado como uma soma ou uma cadeia de reflexos isolados e ja­ mais pode ser reduzido aos elementos mais simples que o compõem. A ideia do ato mo­ tor integral, seja simples ou complexo, encontra-se na base destas investigações iniciais. Bernshtein formulou uma série importante de teses, graças aos métodos de registro e de análises dos movimentos que elaborou e a realização de seus estu­ dos em condições da atividade de taisteses. Uma das quais é que o movimento do organismo vivo deve considerar-se um órgão funcional - segundo a ideia de Ujtomski - que se desenvolve e possui um tecido estrutural e propriamente 121 Digitalizado com CamScanner

biodinâmico. Na sua concepção o movimento vivo não ó uma reação, mas uma ação; não é uma resposta a um estímulo externo, mas solução de uma tarefa. Outro aporte seu importantíssimo é sua teoria sobre a correlação entre os componentes reitores e de fundo do movimento. O primeiro com ponente está dado pela tarefa e o segundo pelo sistema de coordenações sobre cuja base o movimento tem lugar, justamente a base de coordenações assegura a estrutura integral do ato motor. Além disso, pertence a Bernshtein a ideia essencial referente aos diversos níveis de organização do movimento c a que nas distintas etapas evolutivas e na solução de tarefas motoras diferentes, a correlação entre os componentes reitores e de base podem variar. Apareceram, graças a suas investigações, na Fisiologia conceitos com o ta­ refa motora, campo motor, movimento vivo. O m ovim ento é considerado um órgão funcional que apresenta diversos níveis de organização. Esta hierarquia está constituída pelo reflexo elementar, os atos motores com plexos, porém primitivos; os atos locomotores ou espaciais; os movim entos organizados ab­ jetamente e. por último, os movimentos simbólicos. O nível de organização do movimento depende do caráter da tarefa motora a ser cumprida em cada caso, do seu conteúdo, de sua “estrutura de sentido”. Segundo a concepção tradicional em Fisiologia, todos os tipos de mo­ vimento têm caráter reflexo e estão determinados por im pulsos eferentes elementares. De acordo com Bernshtein, o reflexo não é um elem ento indis­ pensável da ação, senão uma ação elementar; não é uma “parte” com a qual se constrói toda ação, qual seja seu grau de complexidade. Os reflexos ocupam um lugar determinado entre as ações do organismo, porém não constituem a parte componente indispensável de cada ação. Em suas investigações demons­ trou que todo movimento, que se apoia em articulações complexas e na tensão variável dos músculos, tem um número quase infinito de graus de liberdade e, em principio, é impossível dirigir esses movimentos por meio dos impulsos eferentes exclusivamente. São necessários impulsos aferentes sistemáticos que informem qual é a posição dos membros no espaço, a tensão muscular destes e que permitam realizar a autorregulação do sisLema. Nesse sentido, cabe sinalizar que Bernshtein formulou, aproximadamente cm 1928 e independente de Anojin, a ideia das correções sensoriais para a aulorregulação interna, anteripando-se assim ao conceito de aferentização de retorno. 122 Digitalizado com CamScanner

Segundo B ernshtein, os im pulsos afcrenlcs precisam da organização dos impulsos eferentes c criam o cam po m otor estruturado no qual transcorrem os ntos m otores. Isto significa que o trabalho do sistema nervoso não se carac­ teriza pelo arco reflexo, sen ão pelo circuito ou anel reflexo, no qual se produz a interação ininterrupta entre os diferentes escalões constitutivos. Estes são alguns d os novíssim os conceitos que Bernshtein introduziu na Fisiología dos m o v im en to s. N o que concerne à Fisiología da atividade, esta é a continuação lógica de suas investigações no campo dos movimentos e dos hábitos m otores, na m edida cm que, com o tem os assinalado, o estudo destes cm condições reais da atividade o levou a formular novos sistemas conceituais que explicam o caráter ativo do organism o. O sistem a vivo, seg u n d o Bcrnshtein, caracteriza-se pelos traços: a con­ servação da iden tid ad e co n sig o m esm o e a mudança permanente c orientada. O organismo n ão é um conjunto de respostas aos estímulos externos; muitas vezes atua contra o m eio, superando as dificuldades que este lhe apresenta no caminho de realização d e suas necessidades. Por isso, um dos conceitos fundamentais da fisiología da atividade é o da finalidade. Para explicar os pro­ cessos na natureza não viva é suficiente responder à pergunta de com o um ou outro fenôm eno transcorre; ao contrário, na Biologia é necessário responder à pergunta "para quê?” U m a ou outra ação é necessária, qual é a finalidade para a qual está dirigida a ação do organism o. Bernshtein su p ô s que o su rgim en to do enlace de retorno é apenas uma parte dos m eca n ism o s de regulação e que junto com ele existem mecanismos que preveem o ca m in h o ulterior que o organism o seguirá. Cada movimento inicia-se com um a d eterm in ad a finalidade c ela forma “o m odelo do futuro requerido”. Este m o d e lo é a b ase para cada tarefa motora: o que deve ocorrer determina o m o v im en to , intervém na qualidade de sua causa, é o modelo antecipatório gen eralizad o que p erm ite um a variabilidade ampla na realização da ação, a possib ilid ad e de realizá-la por diferentes procedimentos. Em síntese, a co n c e p ç ã o de B ernshtein, que apenas esboçamos em suas li­ nhas mais im portantes, sign ifico u , para a Fisiologia a substituição da concep­ ção reativa do co m p o rta m en to pela con cep ção da atividade; do arco reflexo, pelo circuito reflexo c a correção sensorial; do “equilíbrio do organismo com 0 mc«o”, pelo m o d elo d o futuro requerido p elo organismo; em uma palavra, o caráter criativo da atividade. 123 Digitalizado com CamScanner

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CAPÍTULO VI

A PSICOLOGIA NOS ANOS 1 9 4 0 -1 9 5 0 : A GUERRA E A PAZ A Psicologia sovicLica respondeu às circunstancias e necessidades do pe­ ríodo de Guerra, reorganizando sua temática para satisfazer as demandas da frente c da retaguarda. Os trabalhos realizados durante tal período tiveram, além da enorm e significação prática, grande importância teórica como de­ monstra o desenvolvim ento das investigações psicológicas nos anos de pósGucrra. Por outro lado, m uitos psicólogos incorporaram-se às filas do exército, participando dirctamente nos combates e utilizando seus conhecimentos para contribuir na solução das tarefas mais diversas no campo de batalha. Em relação à temática dos estudos realizados nessa época podem ser assi­ naladas três direções importantes: 1. A análise da atividade militar desde o ponto de vista das qualidades da personalidade necessárias para a mesma, a formação de determinadas características morais, políticas e militares do soldado e do chefe; a fundamentação do trabalho propagandístico e de divulgação; 2. O estudo psicofisiológico dos processos sensoriais e perceptivos, cujos resultados aplicaram-se para aperfeiçoamento das técnicas de mascaramento, à aceleração das reações, à sensibilização dos receptores, ao aperfeiçoamento dos processos de treinamento e aprendizagem - pre­ cisão do tiro, técnicas de voo etc.; 3. A elaboração dc enfoques fundamentados cientificamente para o res­ tabelecimento das funções psíquicas alteradas como resultado de fe­ ridas, traumatismos, contusões etc., com o objetivo de recuperar o doente e reabilitá-lo. Mostra-se im possível, nos limites deste esboço, fazer referência aos in­ contáveis trabalhos realizados nestas direções e mencionar a todos os inves­ tigadores que participaram deles. Limitar-nos-emos a mencionar os mais destacados nas três linhas m encionadas.

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A. R. Luria: da afasia traumática á Ncuropsicologia A. R. Luria (1902-1977) é, provavelmente, o psicólogo soviético mais co­ nhecido no estrangeiro. Suas obras principais foram traduzidas para muitos idiomas, entre eles o espanhol. Por esta razão não nos doleremos nos dados biográficos deste eminente psicólogo, autor de aproximadamente 300 traba­ lhos, mas analisaremos, com certo detalhamento, as linhas de sua investigação que abarcou desde os problemas teóricos fundamentais da concepção hislórico-cultural até a Neurolinguística, passando pelo desenvolvimento psíquico infantil, o papel da linguagem na regulação do comportamento, problemas da Defectologia, a organização cerebral das funções psíquicas etc. Ainda que a atividade científica de A. R. Luria tenha se prolongado por mais de 50 anos, fazemos, neste capítulo, uma referência à sua amplíssima obra porque seus trabalhos mais conhecidos são os de Neuropsicologia, ramo da Ciência que ele desenvolveu durante décadas; porem como sinaliza em sua autobiografia: [...] nesse período trágico para o Pais tivemos n possibilidade [...] de aprofundar nossa compreensão do cérebro c da organização cerebral dos processos psíquicos. Durante a Guerra e no período ¡mediatamente posterior a Neuropsicologia con­ verteu-se em um ramo autônomo da Ciência psicológica (LURIA, 1982, p. 131).

Luria dirigiu a organização e funcionamento de um hospital dc recupera­ ção na retaguarda, onde a equipe de colaboradores científicos - um total de 30 pessoas - deveria enfrentar e resolver duas tarefas fundamentais: elaborar, em condições bastante precárias, métodos para diagnosticar as lesões cerebrais locais e suas complicações causadas, por exemplo, por processos infecciosos; em segundo lugar, elaborar métodos para o restabelecimento das funções psí­ quicas alteradas pelas afecções - traumatismos, feridas etc. Todo material recolhido neste período, assim com o as investigações pos­ teriores a clínica das lesões localizadas no cérebro, os trabalhos destinados a estudar os mecanismos de regulação do comportamento, em particular da linguagem, em crianças normais e anormais - com retardo mental, oligofre­ nia, síndrome cerebroastenica - produziram, com o resultado, a elaboração de uma teoria original sobre a localização das funções psíquicas, do funciona­ mento do cérebro - teoria dos três blocos funcionais - e descrições brilhantes das distintas formas de alteração dos processos psíquicos em lesões com dife­ rentes localizações cerebrais. A concepção de Luria sobre as diferentes formas de afasia, a interpretação do papel que os lóbulos frontais desempenham na 126 Digitalizado com CamScanner

organização da atividade psíquica, as alterações da memória c muitos outros trabalhos clínicos conform am um dos legados científicos mais importantes que a Psicologia soviética deu para o desenvolvimento da compreensão dos problemas fundamentais da atividade psíquica. A obra de Luria caracteriza-se pela ligação interna estreita entre os temas estudados, assim com o por sua amplitude extraordinária. Outro traço dis­ tintivo c a investigação da linguagem em diferentes aspectos c enfoques: um de seus primeiros trabalhos, publicado cm 1929, é Materiales sobre la génesis de la escritura en el niño; sua última monografia, editada em 1979, chama-se Conciencia y lenguaje. Estas características derivam-se de que A. R. Luria manteve, na investiga­ ção de todos os temas que tratou, uma concepção bem definida sobre a natu­ reza da psique e sobre a Psicologia com o Ciência: a teoria histórico-cultural que ele contribuiu para elaborar, ainda que sempre sinalizou que devia, o que havia podido fazer na Ciência, ao gênio de Vigotski com quem se encontrou em 1924, no II Congresso de Psiconeurologia, realizado em Leningrado. Os postulados fundamentais da teoria histórico-cultural foram para Luria o marco referencial e o guia para interpretar os fatos; sendo ainda o prisma pelo qual estudou os fenôm enos psíquicos tanto na área da Psicologia - geral c evolutiva —, com o da Neuropsicologia e a Psicofisiologia. Parece-nos importante destacar este aspecto fundamental da obra de Lu­ ria, na medida em que m uitos psicólogos que se ocupam da Neuropsicologia não consideram ou desconhecem que A. R. Luria elaborou sua concepção da alteração dos processos psíquicos nos casos das lesões localizadas no cérebro, partindo da teoria psicológica histórico-cultural. Isto mostra-se muito impor­ tante porque não c difícil rejeitar o “localizacionismo estreito” na compreen­ são dos mecanismos cerebrais da atividade psíquica e substituir, inclusive sem adverti-lo, um enfoque mecanicista por outro, mais “moderno”. Inclusive, o enfoque “mais sistêm ico de todos”, o reconhecimento mais sincero de que toda função psíquica não é o resultado do trabalho de um único ponto do cé­ rebro, mas que representa um sistema complexo cuja função está assegurada por diferentes elos etc., não passa de um reducionismo modernizado quando se esquece todo o restante, que é o essencial: a saber, que a função ou o pro­ cesso psíquico c um fenôm eno social pela sua origem, o resultado do reflexo peculiar do desenvolvim ento sócio-histórico da humanidade. A essência his127 Digitalizado com CamScanner

tóxica do fenómeno psíquico é justamente o que muitas vezes não se considera quando se fala, comenta-se ou aplica-se a Neuropsicologia de A. R. Luria. O traço distintivo desta consiste em que ele conseguiu aplicar criativa­ mente as principais categorias e conceitos da teoria histórico-cultural aos pro­ blemas das relações entre o espiritual e o material no que se refere ao problema das localizações, a estrutura dos sistemas cerebrais que provem às funções psí­ quicas etc. Por sua vez, suas investigações contribuíram brilhantemente para enriquecer e precisar tal teoria. O que a Psicologia e, em particular a teoria histórico-cultural, representa para Luria, o ponto de partida e o marco referencial para a Neuropsicoloçia outorga a esta um caráter único. Os seguintes fatos podem ser analisados, apoiando o que foi dito: A. R. Luria dedicou muitas páginas de sua obra a te­ mas como o lugar da Psicologia entre as Ciências Sociais e Biológicas (LURIA, 1977a, p. 6S-73), a Psicologia como Ciência Histórica (LURIA, 1971, p. 36-63), o problema de uma Fisiologia psicologicamente orientada (LURIA, 1977b, p. 9-2S. 1975, p. 1S-37). Nestes trabalhos, com o em toda sua produção cien­ tífica. destaca permanentemente que a concepção histórico-cultural permite encontrar um novo enfoque para o estudo de todas as formas da atividade consciente do homem: “[...] não ha que buscar a origem da consciência dentro do cérebro nem nos mecanismos dos processos nervosos, mas na relação real do homem com a realidade, em sua rida social que constitui a fonte autêntica das formas mais complexas da atividade do hom em ” (LURIA, 1977a, p. 72). Propunha, deste modo, o problema da verdadeira unidade da Psicologia e da Fisiologia - e não seu tratamento mecanicista e reducionista. Luria opinava que era necessário formular novas idéias fisiológicas que correspondessem realmente à natureza histórico-sodal mediatizada dos fenômenos psíquicos. A. R. Luria cha­ mou esta Fisiologia “psicológica” ou “psicologicamente orientada” e considerou N. A. Bemshtein eP. K. Anojin como os cientistas que assentaram suas bases. Luria sustentou que a Psicologia humana é a Ciência que deve estudar a ativida­ de psíquica das pessoas enfocada no aspecto de sua origem histórico-social e o demonstrou não só com postulados teóricos, mas experimentalmente: no come­ ço dos anos 1930 estudou o desenvolvimento e as transformações dos processos cognitivos entre os habitantes de aldeias da Asia Central soviética cuja rida sofria mudanças radicais na esfera da economia e da cultura (LURIA, 1973) nestes mo­ mentos e voltou a confirmar esta compreensão em seus últimos trabalhos. 128 Digitalizado com CamScanner

O último capítulo de sua autobiografia científica chama-se Ciencia mántica caí. Luria insiste na importância transcendental que tem para a psicolo gia não reduzir o lodo a seus elementos componentes: “[...] a observação realizada corretamente alcança também a finalidade clássica da investigação científica - a aplicação dos fatos - e ao mesmo tempo não perde de vista a finalidade românti­ ca: a conservação da riqueza diversa do material” (LURIA, 1982, p. 171). No que se refere às investigações em patologia, Luria considerou in­ dispensável conservar o “espírito da análise clínica" (LURIA, 1982, p. 171), capaz de realizar a síntese de todos os dados disponíveis e construir o quadro da alteração, em que os fatores fundamentais e as conseqüências secundárias ou sistêm icas diferenciam-se. Em resumo: a rejeição do reducionismo, o enquadre individual dos casos e o enfoque histórico-cultural da essência dos processos psíquicos constituíram o “credo” cientifico de A. R. Luria e arcabouço interno de toda sua obra. A. N. Leóntiev e A. V. Zaporozhets: a recuperação dos movimentos e o caráter objetai da atividade psíquica Consideramos importante referir-nos ao trabalho que Leóntiev e Zapo­ rozhets realizaram no período bélico porque, além de sua significação prática evidente, representou, por uma parte, a continuidade das investigações que ambos, tanto conjunta quanto separadamente haviam realizado desde o inicio dos anos 1930 em Járkov e, por outra, constituiu uma etapa fundamental no estudo do caráter objetai da atividade psíquica, da importância do movimento na construção da imagem psíquica e a decodificação da natureza da atividade psíquica, da ação como unidade de análise em Psicologia. As investigações realizadas, sob a direção de A. N. Leóntiev' nos laboratórios do Instituto de Psicologia e da Cátedra de Psicologia da Universidade de Mos­ cou, reorganizados em um hospital da retaguarda e depois no Instituto Central de Traumatología e Ortopedia do Comissariado do Povo de Saúde Pública em Moscou, foram publicadas no Iívto La recuperación de los movimientos, conjun­ tamente com Zaporozhets (1945) e em artigos como La investigación psicológica de los movimientos luego de heridas en los miembros superiores (1945). As feridas dos membros superiores representavam uni material privile­ giado - considerando que a mão é o órgão principal das ações objetais huma­ nas - para aprofundar a investigação psicológica do movimento, seja desde 129 Digitalizado com CamScanner

o ponlo de vista do papel que desempenha na formação da imagem psíquica como de sua reorganização cm conseqüência de diversas lesões que provocam sua reestruturação anatômica. Partindo de postulados psicológicos gerais relacionados com o movimen­ to e de uma concepção precisa sobre a organização, a com posição c os níveis de estruturação fisiológica na coordenação dos movimentos, os autores enfo­ caram, de modo original, a explicação dos fatos observados na clínica e tira­ ram conclusões importantes em relação à reabilitação das funções afetadas. Em relação ao primeiro aspecto, Leóntiev considerou o m ovim ento não simplesmente como o campo de “manifestação” do psíquico, mas em certa medida aquilo que o forma, porque o movimento realiza a vinculação prática do indivíduo com o mundo circundante, vinculação que está 'na base do de­ senvolvimento dos processos psíquicos. Para Zaporozhets —quem havia reali­ zado um ciclo importante de trabalhos destinados a investigar o pensamento infantil -, o movimento, ou melhor dito, o sistema de m ovim entos - expres­ sivos, perceptivos etc. - que constituem o núcleo da ação objetai Iransforma-se em um sistema de operações e na imagem. Esta relação genética entre movimento e a generalização supõe uma interpretação diferente da dada por Vigotski em relação às fontes de origem das funções psíquicas superiores. No trabalho dedicado à recuperação dos m ovim entos depois de feridas dos membros superiores os autores apoiaram-se no falo, estabelecido por P. Ya. Galperin, da dependência existente entre a amplitude do m ovim ento que os setores lesionados podem executar e o caráter da tarefa que o doente deve realizar. Para a explicação integral dos fenômenos recorreram aos dados da Fisiología e à interpretação psicológica do m ovim ento humano. Por exemplo, a amplitude máxima do m ovim ento que um doente podia realizar variava substancialmente segundo o pedido de levantar o braço o mais alto possível ou alcançar um objeto colocado em um lugar alto. Como explicar que um mesmo movimento tivesse uma amplitude m aior ou menor, dependendo da tarefa proposta? A primeira conclusão é que as possibilidades motoras do membro lesio­ nado não se subordinam diretamente ao seu estado anatômico, mas ao seu estado funcional, modificado como conseqüência da lesão. Em segundo lugar, que as possibilidades funcionais do membro lesado mudam em dependência da tarefa; isto deve-se a que também são diferentes as condições de aferen130 Digitalizado com CamScanner

tização do m ovim ento em diferentes tarefas. Л inclusão de outros sistemas sensoriais - por exem plo, a visão - , além da proprioccpção do órgão lesiona­ do, assim com o o incorporação de sínteses sensório-motoras mais complexas implicadas na realização de ações objetais - alcançar um objeto cm lugar de simplesmente levantar a mão ou o braço - produzem como resultado o au­ mento na amplitude do movim ento. Porém, não é a tarefa a últina instância que determina a forma e as di­ mensões alcançadas pelo movimento; os trabalhos realizados permitiram des­ cobrir que o m ovim ento do doente depende da finalidade que a ação dada cumpra. Por sua vez, esta finalidade depende da disposição do doente para atuar com o membro lesionado. Os movim entos hum anos caracterizam-se sempre por alta organização gnóstica, já que inicialm ente formam-se sempre como ações, quer dizer, como processos dirigidos a um objetivo. Por isso seu restabelecimento não pode ser organizado na base de um treinamento mecânico que pressupõe a realização de certas operações “puramente físicas” “periféricas”. O movimento humano é voluntário, dirigido conscientem ente ao domínio das formas de ação com os objetos e com os instrumentos. Em resumo, é o resultado da formação, ao longo da vida do indivíduo, de sínteses gnósticos muito complexas, assim sua reabilitação pode organizar-se quando este processo de sua formação onto­ genética é considerado. Porém, na base da reeducação do movimento devem ser colocado não só os conhecim entos relacionados com a estrutura e a orga­ nização fisiológica do mesmo; também não são suficientes os dados psicoló­ gicos que indicam a importância do movimento na constituição das funções gnósticas que os fenôm enos psíquicos cumprem; é indispensável, além disso e em primeiro lugar, considerar a disposição interna do doente, sua esfera emo­ cional, as mudanças pessoais produzidas pela lesão. Somente assim a tarefa de reabilitação pode ser realizada com êxito. Nesse sentido, é importante não só a forma como se concebe o aspecto "motor” da reabilitação, mas também com o o processo do trabalho reabilitadorestá organizado, se é interessante e atrativo para o doente, se ele percebe sua importância ou se o considera apenas como um conjunto de procedi­ mentos terapêuticos mais ou m enos artificiais. Deve-se destacar que em El restablecimiento de los m ovim ientos não só analisam-se detalhadamente as condições da terapia laboral, mas também realiza-se uma descrição détailla­ nt Digitalizado com CamScanner

da das condições de trabalho, dos instrumentos necessários para favorecer a recuperação das lunções alteradas, dos m étodos utilizados etc. Em resumo, as investigações realizadas neste campo, por Leontiev e Zaporozhets mostraram quais serviços práticos diretos e eficazes podem oferecer à sociedade e ao ho­ mem uma psicologia verdadeiramente científica.

B. G. Anánicv c o restabelecimento das funções sensoriais e da linguagem B. G. Anánicv dirigiu, cm 1941, o trabalho científico c prático nos hos­ pitais da retaguarda, trabalho destinado à recuperação das funções psíquicas alteradas por feridas e traumas da guerra. Em maio de 1942, transferiu-se para Tbilisi com a missão de organizar, desde este lugar, a Psicoterapia de recupe­ ração nos hospitais. Durante sua permanência em Leningrado, B. G. Anánicv, junto com os colaboradores científicos do Instituto do Cérebro, realizou um trabalho prá­ tico importantíssimo de diagnóstico e recuperação das funções sensoriais especialmente da audição, do lato etc. - nos casos de traumas cerebrais. Este trabalho implicou no estudo das formas até então desconhecidas de alterações sensoriais, assim como na busca de métodos adequados para seu restabeleci­ mento. Em Tbilisi, onde também trabalhou no laboratório de I. S. Bcritashvili so­ bre Psicopatologia nos casos de traumas cerebrais, B. G. Anánicv estudou, cm particular, as diferentes manifestações das afasias, agrafías, alexias, apraxias e agnosias e elaborou uma série de provas diagnósticas diferenciais das altera­ ções corticais e dos novos procedimentos terapêuticos. Criou, por exemplo, um sistema de recuperação das alterações da linguagem c da audição verbal. Este trabalho permitiu a Anánicv não só encontrar uma m etodologia para curar o mudismo e outras formas de alteração traumática da linguagem, mas também compreender mais profundamente os m ecanism os da linguagem oral, suas vinculações com o ouvido verbal, o que o levou a reexaminar os mecanismos da linguagem interior, a intcr-rclação genética entre a linguagem oral e a escrita. A experiência enorme, as aplicações práticas c a generalização dos resultados deste trabalho rcflcliram-sc cm série de artigos publicados nos anos da Guerra e também no período pós-Gucrra rehabilitación

tical cn casos dc traumas cerebrales de guerra; La curación de la sordera. Ia dezy las logoncurosis de carácter conntocional; Algunas cuestiones de terapia 132 Digitalizado com CamScanner

recuperatoria¡liegos de heridas cerebrales etc. (LÍSENKOVA, 19 PU PK IN A ; POLIAKOVA, 1982, p. 138-145). B. M. Tcplov c a inteligência prática В. M. Tcplov (1896-1965) ingressou, cm 1914, logo depois de finali­ zar o Ginásio c a Escola de Música, na Faculdade de Filosofia c História da Universidade de Moscou, porém, a Primeira Guerra Mundial interrompeu seus estudos. Combateu na linha de frente, podendo terminar a Universida­ de apenas cm 1921. Trabalhou cm distintos institutos do Exército, dessa data até 1933 e, desde 1929, no Instituto de Psicologia - que na época pertencia à Universidade de Moscou - , o que se converteu no seu lugar principal de traba­ lho - loi vice-diretor em 1933 e 1935 c de 1945 a 1952. Foi o redator-chefe de Cuestiones de Psicologia desde 195S até a sua morte. Lecionou na Universidade de Moscou c no Instituto de Rcqualificação de Pedagogia Musical; dirigiu a Cátedra de Psicologia e Lógica da Academia de Ciências Sociais, pertencente ao CC do Partido Comunista da União Soviética e foi membro do Comitê que presidia a Academia de Ciências Pedagógicas da Rússia durante vários anos. Seus primeiros trabalhos datados de 1935, 1937 e 1941 pertencem a esfera da interação das sensações e percepções visuais c auditivas. Tcplov baseou-se, como em toda sua obra, cm uma análise profunda e ampla da literatura mun­ dial existente sobre estes problemas. Seu estudo experimental das sensações c percepções contribuiu para a formulação das idéias relacionadas com o papel do componente motor na percepção. Ainda que suas investigações abarcassem temas pertencentes à Psicologia geral c à Psicofisiologia, Л Psicologia pedagógica c militar, à Psicologia indus­ trial c do trabalho, sua contribuição fundamental é o estudo das diferenças individuais no que se refere ás capacidades e talentos. A lese doutorai defendida por Tcplov, cm 1940, denomina-se Psicologia de Ias capacidades musicales e, como todos seus trabalhos, distingue-se pela generalização dos resultados empíricos e as hipóteses acumuladas neste tema na Ciência mundial, assim com o experimentos próprios do autor. Teplov es­ tudou o conjunto das capacidades indispensáveis para a atividade musical que representa a unidade da sensibilidade emocional para a música c das pecu­ liaridades especiais que a percepção e a audição da música adquirem. Este trabalho deu um grande impulso á teoria geral das capacidades. 133 Digitalizado com CamScanner

Nn concepção tic Teplov sobre o problema tías capacidades os seguintes momentos devem ser destacados: i) as capacidades nflo se manllestam na ativi­ dade, mas criam-se nela, qner dizer, as capacidades desenvolvem-se; ii) o pro­ blema do “talento” deve ser enfocado desde o ponto de vista qualitativo e não quantitativo, posto que a realização exitosa de uma atividade pode ser consegui­ da por diferentes vias e meios psicológicos; ou seja que as capacidades podem compensar-se; Hi) o desenvolvimento destas depende de maneira mediatizada e muito complexa das premissas naturais. As premissas naturais, ou seja, as dis­ posições, segundo Teplov, é o único que se pode considerar inalo, na medida em que representam as peculiaridades anatomoíisiológicas do sujeito e constituem uma das condições internas das capacidades; porém estas não existem, não se desenvolvem a não ser dentro do processo de educação c ensino. Teplov publicou, em plena Segunda Guerra Mundial, um trabalho chama­ do Lainteligencia y la voluntad deijafe militar ( J9'13), reeditado posteriormen­ te na forma mais completada com o nome Acerca la inteligencia práctica (1SM5) c, cm sua redação final, como La inteligencia del jefe m ilitar ( 1961 ). Nesta investigação, sobre a base de materiais hislórico-mililarcs, respon­ deu às necessidades do momento, analisando as principais características que distinguem o pensamento dos grandes chefes militares c, ao mesmo tempo, continuou seu lema fundamental: o problema das capacidades que diferen­ ciam as pessoas entre si. Entretanto, o fez aqui não no plano da experimenta­ ção e da generalização teórica, mas desde o ponto dc vista do “estudo clínico da personalidade", como dizia Luria. Este trabalho c um dos poucos exemplos da aplicação de concepções teóricas gerais à análise concreta de personalida­ des reais - Napoleão, Kulúzov, Suvórov. Tal obra esteve dedicada, assim mesmo, a análise dc um velho problema da Psicologia: as relações entre o pensamento prático c o teórico. Em geral, entendia-se o intelecto prático como pensamento scnsório-m olor, concreto em ações, quer dizer, ligado diretamenle à percepção e à manipulação de ob­ jetos. Teplov sinalizou que o pensamento necessário para solucionar muitas tarefas práticas não está ligado indefectível e direlamente com a percepção e o manejo de objetos concretos, não deve considerar-se um tipo inferior de atividade intelectual em comparação com o pensamento teórico. Segundo tal investigador, o pensamento prático e o teórico não se diferenciam por seus mecanismos nem constituem dois tipos distintos de intelecto. A diferença está 134

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nas formas cm que se manifesta uma atIviclacle única elo pensamento, o que está determinado pelas peculiaridades das tarefas para resolver. Justifica-se, ainda menos a ideia que o pensamento teórico está distanciado da prática. Teplov sustentou que ambos estão lidados a esta, porém de maneira específica: O Irahullin do pensam ento prático está lidado, no fundamental, à MiluçAn de tarefas parciais, concretas |...J eiU|iianlo