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Portuguese Pages 205 Year 2017
A PEQUENA PRISÃO © Igor Mendes, 2017 © n-1 edições, 2017 ISBN : 978-856-694-342-9 ISBN DIGITAL : 978-85-66943-82-5 Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada. COORDENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes PREPARAÇÃO Isabel Teixeira REVISÃO Fernanda Perniciotti PROJETO GRÁFICO Érico Peretta IMAGENS Ateliê Fora de Esquadro (I.T.) sobre fotos de Bruna Freire CONVERSÃO PARA EPUB Cumbuca Studio A reprodução parcial sem fins lucrativos deste livro, para uso privado ou coletivo, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. APOIO:
“TER BONDADE É TER CORAGEM”. (Legião Urbana, Há Tempos ). Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Vagner Rodolfo CRB-8/9410 M538p
Mendes, Igor A pequena prisão / Mendes, Igor. - São Paulo : n-1 edições, 2017. 384 p. Inclui índice. ISBN: 978-856-694-342-9 1. Ciências políticas. I. Título. 2017-461 CDD 320 CDU 32 Índice para catálogo sistemático 1. Ciência política 320 2. Ciência política 32 Este livro é dedicado à heroica Liga dos Camponeses Pobres (LCP). Também me somo às vozes que exigem a imediata liberdade para Rafael Braga.
APRESENTAÇÃO UM GRANDE LIVRO SOBRE A PEQUENA PRISÃO ADVERTÊNCIA A PRISÃO O PRIMEIRO DIA PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS REGIME DE CASTIGO O COLETIVO O COLETIVO (CONTINUAÇÃO) CAIO E FÁBIO A GALERIA B LIBERDADE EPÍLOGO
APRESENTAÇÃO por CHRISTIANE JATAHY Conheci o Igor em setembro de 2015. Ele tinha saído há pouco tempo da prisão. Eu o entrevistei para o documentário da vídeo-instalação A Floresta que Anda ¹ . Conversando com ele me emocionei com o seu depoimento sobre a travessia que ele viveu no sistema penitenciário durante sete meses por participar e ajudar na organização das manifestações no Rio de Janeiro em 2013. Ali, ouvindo ele falar na presença da sua mãe, sem se vitimizar, sobre o que viu, ouviu e viveu nos arcabouços da prisão de segurança máxima de Bangu, pensei alguma vezes que essa experiência merecia virar um livro... E ele escreveu esse livro, que é muito mais do que um depoimento pessoal. A Pequena Prisão é um mergulho no universo escuro e terrível do sistema penitenciário brasileiro, iluminado através do contato íntimo do Igor com os presos, um encontro cheio de humanidade, de detalhes, de histórias pessoais, um painel amplo e intenso do que a sociedade brasileira tenta esconder atrás dos muros da invisibilidade. A Pequena Prisão também é um livro sobre um rapaz de 26 anos, estudante de geografia, que em nenhum momento abriu mão da sua condição de preso político, mas que enfrentou a prisão sem pedir nenhum privilégio, e que coloca na vida e em tudo o que faz suas ideologias e sua ética. Um livro que nos faz pensar sobre as nossas escolhas como sociedade e sobre o país que estamos construindo. Importante reflexão nos dias de hoje, em que os grandes roubos políticos e sociais permanecem impunes, enquanto pobres e pretos morrem aglomerados nos “novos navios negreiros” chamados presídios. CHRISTIANE JATAHY é autora, diretora de teatro e cineasta. 1 A Floresta que Anda é uma vídeo-instalação e performance com documentários pré-filmados e cinema ao vivo. O projeto é uma criação a partir da obra Macbeth de Shakespeare.
UM GRANDE LIVRO SOBRE A PEQUENA PRISÃO VERA MALAGUTI BATISTA Li o livro de Igor num só fôlego, em meio às ruínas nas quais trabalhamos na UERJ, onde o autor também estuda. Conhecia o caso do Igor e a escandalosa repressão a que foram submetidos alguns jovens que participaram das marchas e protestos de 2013. Aquela irrupção de ar puro que emanava das manifestações foi seguida de uma brutal perseguição penal realizada com o aval dos governos federal, estadual e municipal, com o auxílio descarado e implacável da grande mídia. O caso de Caio e Fábio aparece aqui com toda a sua carga de dramaticidade, principalmente se pensarmos que os dois jovens continuam nas garras do sistema, embora agora fora da prisão. É uma estranha democracia... A Pequena Prisão é talvez o mais importante livro brasileiro de criminologia dos últimos tempos. Tudo o que tentamos descrever como o sistema penitenciário brasileiro aparece aqui como uma verdade encarnada nos corpos dos seres humanos com que Igor conviveu em Bangu. Sabemos que o pequeno espaço de uma cela na periferia condensa toda a história da prisão, essa invenção do capitalismo industrial que tem no capitalismo vídeofinanceiro contemporâneo o seu esplendor. Loïc Wacquant já afirmou que a prisão é uma “instituição fora da lei”. Dentro de seus muros não há direitos, suspensas estão todas as garantias e também toda a beleza e delicadeza que os homens e mulheres ali jogados tentam teimosamente reconstruir todos os dias. A economia capitalista precisa da prisão para exercer o controle brutal dos pobres e dos resistentes. Nos dias de hoje, e mais especialmente no Brasil, o sistema penal (que vai da mídia aos tribunais, passando pela polícia) já não reivindica suas promessas falaciosas (as ilusões ressocializadoras) mas extravasa sua metodologia de aniquilação ancorada nas violências históricas da colonização e da escravidão. O desprezo pelo povo brasileiro é algo construído na longa duração. Na questão criminal as marcas da inquisição ibérica e do positivismo racista impregnam as práticas e os sentidos da prisão. Lendo o livro, lembrava-me a toda hora de algum autor da criminologia crítica. Lembrei-me de Alessandro Baratta, que descrevia a prisão como uma série de degradações e humilhações que sempre reproduz e aprofunda as desigualdades da sociedade em que está inserida. Lembrei-me de Zaffaroni na busca das penas perdidas, retratando o sistema penal latino-americano com seu “discurso jurídico-penal esgotado em arsenal de ficções gastas, cujos órgãos exercem seu poder para controlar um marco social cujo signo é a morte em massa (realidade letal)”. Igor nos apresenta os efeitos deletérios da prisionização, a verdade do seu princípio básico, o de less elegibility que institui que o encarcerado deve estar sempre abaixo do nível mínimo social dos trabalhadores. Se nosso nível mínimo é inimaginável, a que níveis pretende chegar a prisão na escala absurda em que se encontra no Brasil contemporâneo? As humilhações sofridas pelas famílias, as pequenas negociações sobre aquilo que deveria ser o básico, as penas colaterais embutidas na privação de liberdade que vão incorporando pequenos castigos físicos e mentais todo o tempo... Igor sabe muito bem que a prisão é uma tortura em si. Lembrei-me da bela tese doutoral de Rafael Godói sobre
as prisões paulistas e a sucessão de transferências e lugares que sobressaltam a vida miserável desses homens e mulheres. O que falar sobre o aberrante transporte dos presos para audiências. O que é isso? A insensibilidade de juízes e promotores, entre todos os que contribuem para essa barbárie, não deixa de ser um sintoma que nos ajuda a compreender esse grande encarceramento. Esse grande livro nos mostra também a tortura do tempo na prisão. Quem está por trás dos muros e grades tem o tempo em outra dimensão, como naquele trabalho do Kiko Goiffman, Valetes em slow motion ... Mesmo o Igor ateu reconhece um sentido que talvez nunca tenha percebido antes para as práticas religiosas na prisão. Ele nos aponta as renovadas torturas que surgem até no atendimento médico: baleados com curativo aberto andando descalços no chão imundo da prisão, fraturas que só eram reduzidas três dias depois etc. É como se a tortura fosse o ponto de encontro de todas as rotinas da prisão: “com o passar dos dias, entretanto, fui-me dando conta de algo muito mais sério: nada ali é fortuito, mas obedece a uma lógica rigorosa, certamente perversa, mas metodicamente calculada.” Socos e tapas, cabeças raspadas, humilhações... “o que é a privação de liberdade afinal, se não uma forma moderna de tortura, igualmente cruel, embora socialmente aceita”? As resistências se forjam mesmo no chão em que pisamos e Igor nos relata sua luta por pensar, por poder ler e escrever, mesmo com restrições incompreensíveis que só corroboram a economia de castigos que rege a administração de uma prisão. Joel Rufino dos Santos nos ensinou que a ética, essa palavra tão gasta, quer dizer “do lugar”. Ninguém mais ético como escritor e militante do que Igor. Convivendo solidariamente com seus companheiros de infortúnio, em total sintonia com todos os humanos que o rodeavam, ao mesmo tempo e corajosamente se diferenciava pela sua luta política. Sua resistência e seu destemido brado “sou preso político” iluminou seu coletivo para outras possibilidades e devires e nos trouxe uma reflexão importante na discussão sobre o caráter político de toda prisão e de todo preso. Igor destaca a importância da distinção do caráter político e de sua neutralização em casos como o das prisões dos Panteras Negras, alguns até hoje nos cárceres do coração do capitalismo. “No dia em que a massa carcerária, e as classes nas quais ela é majoritariamente recrutada, definirse a lutar decididamente contra a ordem social que a subjuga, abrindo mão das soluções individuais, daremos um passo significativo para a abertura de todas as prisões, grandes e pequenas.” Creio que a própria lucidez e integridade de Igor ajudam a retificar essa discussão sobre a natureza política de toda prisão e de todo prisioneiro; a diferença entre o preso político e o comum é que o primeiro sabe que sua prisão é política. Esse livro sobre a pequena prisão é tão contundente que reafirma a necessidade de repolitizarmos a questão criminal. Quando olhamos a história da questão criminal vemos como ela é naturalizada nos tempos de crise. Este grande livro vale por estantes inteiras de livros de criminologia. Seus leitores percorrerão todos os caminhos do grande encarceramento, tal como ele se apresenta no Brasil contemporâneo. Da desconstrução da “impunidade” à constatação da prisão como tortura, este livro é um importante libelo para as lutas abolicionistas que têm um olhar mais
extenso, na direção da derrota do capitalismo. Tenho dito e escrito que contar nossas histórias tristes é o método mais verdadeiro para uma criminologia comprometida com seu povo. Como disse a senhora (“esperava alguém querido sair da masmorra”) quando de sua libertação, quero te dizer, Igor: “Parabéns meu filho, parabéns pela luta!” Este seu livro nos ajuda a derrotar a prisão, principalmente por não deixar-te encarcerada a alma para sempre e por honrar de forma tão delicada e forte seus companheiros de tragédia. VERA MALAGUTI BATISTA professora Adjunta de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Secretária Executiva do Instituto Carioca de Criminologia.
ADVERTÊNCIA As linhas que seguem não são uma tese acadêmica ou uma reportagem sobre a lastimável situação carcerária brasileira. Tampouco são uma análise sociológica acerca das Jornadas de Junho de 2013 e o processo, crescente desde então, de criminalização das lutas populares. Pessoas mais gabaritadas já se têm proposto tais tarefas, de sorte que um texto por mim escrito nessa direção não traria nada de novo, ou mesmo qualquer interesse especial, sobre os referidos temas. Também não disponho de tempo ou recursos para ir atrás de numerosas fontes, dedicando-me a um trabalho de elaboração prolongado e ambicioso. Propor-me a fazê-lo significaria, provavelmente, adiar esse projeto para um futuro longínquo e incerto. O que o leitor e a leitora têm nas mãos é um depoimento, fruto de um compromisso assumido com as vozes silenciadas que me pediram, como único apoio, que dissesse o que vi e vivi nos porões de nossa sociedade. É, sobretudo, um depoimento engajado, assumidamente parcial, de quem continua disposto a prosseguir na briga, porque, como dizia Carlos Marighella, “a única luta que se perde é a que se abandona”. Penso que ele tinha toda razão. Escrever sobre as manifestações de 2013 e os seus desdobramentos era uma ideia que eu alimentava, vagamente, antes mesmo da minha passagem por Bangu (refiro-me aqui, e doravante, ao complexo prisional, e não ao simpático bairro suburbano). Mas foi lá, realmente, por força das circunstâncias, que esse projeto ganhou forma, pouco a pouco, até converter-se em uma ideia fixa. Forjou-se nas inúmeras cartas que escrevi e recebi, nos artigos precários que redigi e que os companheiros solidariamente publicaram, nas observações prolongadas, permeadas por dúvidas, mas principalmente pela certeza de que é necessário seguir em frente. Afinal, se nos querem calar, não é ainda mais necessário que falemos? Por defender certos pontos de vista, considerados “perigosos à ordem”, ofereceram-me a descida aos porões mais obscuros de nossa sociedade. Ofereço de volta a essa sociedade a visão iluminada do porão, talvez mal e fracamente, mas, em todo caso, iluminada. Abandonei, por ser inviável, a ideia de falar de junho de 2013 para cá e foquei na experiência da prisão, por ser mais próxima, mais presente, pelas marcas profundas que deixou. E também porque tenho pressa. Por que falo em “pequena prisão”? Exatamente porque, iludidos com uma sociedade autoproclamada “livre”, vivemos na verdade em uma imensa, cada vez maior, prisão. Não creio que possamos considerar realmente livres os que têm de enfrentar a rotina de um trabalho extenuante e embrutecedor, coagidos pela fome e pela ameaça de desemprego. “Livres” para ir ao supermercado e assistir televisão. “Livres” para acordar ainda de madrugada, atravessar a cidade em transportes caros e precários. “Livres” nas nossas prisões domiciliares, cheias de pequenos luxos desnecessários, pelos quais pagamos o equivalente a uma vida inteira de trabalho – isso quando temos o “privilégio” de ter um teto sob o qual nos abrigar.
Desse ponto de vista, o que chamamos de prisão, a cadeia, é apenas uma fração da prisão maior em que vivemos – um pouco mais pobre de vida, mais descaradamente odiosa, é verdade, mas ainda assim uma fração, se comparada ao grande presídio de povos em que se converte nossa sociedade nesses princípios de século XXI. Não me julguem pessimista: há um ditado penitenciário que diz: “a cadeia é longa, mas não perpétua”, e creio firmemente que isso é válido tanto para a pequena quanto para a grande prisão. Não espere, caro leitor e cara leitora, uma descrição minuciosa sobre lugares e objetos. Essa descrição, quando aparece, foi feita sempre em função de desvendar o estado de espírito, o que pensavam e como agiam aqueles que davam vida ao ambiente hostil, moviam a engrenagem aparentemente monótona. O fator essencial da sociedade é o Ser Humano , não as coisas, daí que minha atenção se voltou toda para os personagens que encontrei, no caso, pessoas reais, assombrosamente reais, tão complexas quanto cada um de nós. Também não me preocupei em seguir rigidamente a cronologia e, embora os capítulos, tomados no seu conjunto, respeitem a passagem do tempo, aqui e acolá avanço ou volto mais um pouco. Da mesma forma, não me propus a narrar tudo : busquei agarrar o que me pareceu essencial, aquilo que me impregnou o espírito e a memória, suspeito que por ser mesmo o mais importante. Para preservar a identidade de pessoas que me confessaram crimes, ou poderiam constranger–se com histórias aqui narradas, alguns nomes foram trocados ou substituídos por iniciais. Todo o mais é rigorosamente verdadeiro. Rio de Janeiro, 27/04/2016
A PRISÃO A cronologia resumida dos fatos que me levaram a Bangu é a seguinte: Em junho de 2013, vivemos as maiores manifestações populares de nossa história. No Rio de Janeiro, essas manifestações prosseguiram, estimuladas pela repressão brutal da polícia de Sérgio Cabral – até então, o todopoderoso governador do estado – e pelo desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, torturado e morto por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. Em outubro, durante a histórica greve dos profissionais da educação, novo auge, outras manifestações reuniram multidões nas ruas. Militando no Movimento Estudantil Popular Revolucionário (MEPR) desde muito jovem, participei, com muito orgulho, ao lado de minhas companheiras e companheiros, daqueles grandes acontecimentos; dias e noites memoráveis, que até há pouco muitos julgariam impossível serem protagonizados pelo povo brasileiro. Em fevereiro de 2014, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, contrariando o clamor popular, decretou o aumento das passagens de ônibus. Com a popularidade em declínio, restou à dupla Sérgio Cabral/ Eduardo Paes a velha alternativa da repressão: a Tropa de Choque tinha carta branca para fazer o que quisesse, e voltamos àquele tempo em que jovens eram detidos e espancados apenas por serem jovens, o que não poderia deixar de ser “suspeito”. Essa repressão feroz, por sua vez, em um efeito bumerangue, como ocorreu em junho de 2013, alimentava o sentimento de insatisfação popular, aumentando os protestos. Nesse contexto, morreu, acidentalmente, o cinegrafista da BAND, Santiago Andrade. Deu-se, então, a verdadeira cruzada dos monopólios de imprensa e governantes contra as manifestações, particularmente a partir da prisão de Caio Silva e Fábio Raposo, jovens acusados de disparar o rojão que atingiu Santiago. Naquele fatídico dia, também faleceu o vendedor ambulante Tasnan Accioly, atropelado por um ônibus quando fugia do caos gerado pelos efeitos das bombas de gás e balas de borracha disparadas descontroladamente pela Polícia. Sobre esse episódio não se disse praticamente nem uma linha nos jornais. Era o contra-ataque furioso da reação aos protestos, que só esperava o momento oportuno para desatá-lo. Em junho-julho de 2014, contudo, voltaram a ocorrer significativas manifestações contra a realização da Copa do Mundo. Era a resposta inevitável aos diversos crimes que, no seu esteio, praticaram-se contra o nosso povo, como remoções de favelas e bairros pobres, perseguições de ativistas, malversação de recursos públicos etc. Praças públicas foram cercadas e atos impedidos de marchar, aplicada a infame tática do “envelopamento” ² . O 7x1, fatídico para os que pensavam lucrar politicamente com o torneio, murchou o entusiasmo artificial criado ao seu redor. Os protestos prometiam crescer e tornar-se séria ameaça, impossível de ser ignorada, portanto. Na véspera da final da Copa do Mundo, no dia 12 de julho, tive, juntamente com duas dezenas de outros ativistas, minha prisão decretada. O objetivo explícito do governo, que era impedir a realização do protesto convocado
para o dia seguinte, foi frustrado, pois milhares de pessoas se concentraram na Praça Saens Peña, próxima ao Maracanã. Dilma Rousseff foi novamente vaiada, como já ocorrera na abertura do torneio. Alguns dias depois, em 15 de julho, milhares de pessoas marcharam pelas ruas do Rio defendendo a liberdade dos ativistas presos. Em agosto, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedeu definitivamente liberdade provisória aos 23 ativistas processados por, supostamente, planejarem protestos violentos durante a Copa. Foi-nos imposta uma série de restrições, uma das quais, inexistente tanto no Código de Processo Penal como na própria Constituição: a proibição de frequentar manifestações. Em 15 de outubro, participei, ao lado das companheiras Elisa (Sininho) e Karlayne (Moa), de uma atividade cultural na Praça Cinelândia em memória do Dia do Professor e da repressão desatada um ano antes nas escadarias da Câmara Municipal. Então, mais de 200 ativistas foram presos e cerca de 70 enviados para presídios em Bangu, o sombrio espectro que pairava, cada vez mais, sobre aqueles que ousavam permanecer nas ruas ³ . Ainda em outubro, Pezão elegeu-se governador, embora o número de votos brancos, nulos e abstenções tenha batido recorde. Caberia a ele administrar o ocaso da “Era Cabral”. No fim da tarde do dia 2 de dezembro, o juiz titular da 27ª Vara Criminal da Capital, Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, que já havia decretado por três vezes nossa prisão (duas vezes temporária e uma preventivamente), decretou-a pela quarta vez. Os motivos estão claros no seu próprio despacho: ELISA DE QUADROS PINTO SANZI , vulgo ‘Sininho’, IGOR MENDES DA SILVA e KARLAYNE MORAES DA SILVA PINHEIRO , vulgo ‘Moa’, foram beneficiados com a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, contidas no art.319 do Código de Processo Penal. Ocorre que, conforme comprovam as informações e imagens de fls. 4.423/4432, os supracitados réus participaram de um protesto realizado em 15/10/2014 na Cinelândia, em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, descumprindo, assim, a medida cautelar que proíbe a participação em manifestações e protestos. (...) ISTO POSTO , em virtude do descumprimento de uma das medidas cautelares impostas aos réus, qual seja, proibição de frequentar manifestações ou protestos, e para garantia da ordem pública, decreto a prisão preventiva dos acusados...” Naquele mesmo dia, à noite, a Polícia Civil foi ao apartamento de Elisa, que não estava. Avisada por alguém, ela mergulhou na clandestinidade, permanecendo foragida a partir de então. Karlayne, procurada no dia seguinte, pela manhã bem cedo, também não foi encontrada. Eu, sem saber de nada, naquela noite do dia 2, após um dia de aulas e reuniões, e depois de despedir-me de minha companheira com um singelo “até logo”, entrei pacificamente em casa, dormi um sono cansado, sem interrupções. Um raio não cai duas vezes...
Fui preso em 3 de dezembro de 2014, um dia quente, desses que anunciam a proximidade do verão. Daqueles primeiros momentos, recordo-me, particularmente, do olhar assustado de minha mãe, dizendo que a Polícia estava na porta. Recordo, também, da calma com que a abri; a voz de prisão dada por um brutamontes, que respondeu com um grunhido quando lhe perguntei se as algemas eram necessárias; os olhares curiosos dos transeuntes, indo apressados para o trabalho àquela hora da manhã. Eram seis e vinte. Dei um abraço em Dona Jandyra e recomendei-lhe, como voltaria a fazer naquele dia, que fosse forte e que confiasse que eu seria. Tinha de ser. As algemas apertadas nos punhos pareciam-me enormes e monstruosas (chegaria um tempo em que me habituaria a elas). As algemas não são nada, importante é o que eu levo na cabeça. Ao entrar na viatura, o único pensamento que me ocorreu foi: “isso tinha que acontecer”. Li com atenção o inquérito policial movido contra nós. Mesmo sabendo não haver nada que nos incriminasse – nem poderia, pois não havia crime em convocar ou participar de manifestações –, conhecia também, perfeitamente, as poderosas forças contra as quais havíamos nos chocado, e entendia que aos seus olhos havíamos cometido o pior e mais perigoso dos crimes, jamais aceito ao longo da história brasileira: a contestação dos seus desmandos e privilégios. De modo que a prisão, em si, não poderia ser encarada como uma surpresa. Sempre fez parte das probabilidades. Na véspera da final da Copa do Mundo, eu só não fui detido por sorte, dessas que acontecem uma vez na vida. Levantei cedo naquele sábado de inverno, frio para os padrões do Rio, e, atrasado para o compromisso marcado, desisti de tomar o sagrado cafezinho. Ainda na calçada de casa, passaram por mim três viaturas da Polícia Civil, bem devagar, e estacionaram em frente ao sobrado azul onde moro. A essa altura, eu, que já estava na esquina, voltei–me para ver que diabo era aquilo. Policiais com toucas-ninja, armados de metralhadoras, interditavam a rua, certificavam se não haveria por onde o perigoso elemento escapar. Alguns olhavam longamente o quintal do vizinho, conferiam algo no papel. Será? Nesse momento, meu telefone tocou. Um número amigo. – Igor, você tá aonde? – Eu tô saindo de casa. – Pois se apresse, está tendo uma grande operação, várias pessoas estão sendo presas. A Polícia está indo nas casas... – Já entendi. Eles vieram na minha também. Desliguei o telefone e, calmamente, peguei o primeiro ônibus que passou.
Esse foi um dos motivos da minha serenidade ao entrar na viatura. Diferentemente daquela vez, entretanto, não ia olhando distraidamente a paisagem, pensando no que fazer ao descer do ônibus. Já não me cabia decidir aonde ir, nem o que fazer. O caminho percorrido, agora, não me levava para longe do perigo, mas, ao contrário, diretamente para ele. Lembrei-me do dito popular: “um raio não cai duas vezes no mesmo lugar.” A caminho Algemado, sentei no banco detrás da viatura, entre dois policiais. O brutamonte que me prendeu mantinha o cotovelo ameaçadoramente apontado para o meu rosto. A delegada, sentada no banco da frente, me perguntou: – Qual é o caminho mais rápido para chegar à Avenida Brasil? – Não sei – respondi. – Tem um jeito dele lembrar rapidinho, doutora – disse um dos policiais. O cotovelo aproximou-se um pouco mais do meu rosto. – Deixa pra lá, vamos tentar o GPS. Martelava-me uma única preocupação: quantos seriam os companheiros presos? Qual a amplitude dessa nova operação? Quais as justificativas? No mandado que me fora mostrado, de relance, havia lido apenas o termo duro: prisão preventiva. Sabia, portanto, que deveria me preparar para passar, no mínimo, alguns dias em Bangu. Sem escapatória. Da viatura olhava o mundo, com uns olhares já meio diferentes. Pensava naquelas pessoas todas, arrumadas, indo para o trabalho, que sequer desconfiavam da batalha surda travada nos subterrâneos da nossa sociedade. Batalha entre os que defendem que o pão continue minguado, o ônibus lotado, o emprego incerto, e os que não aceitam nada disso, não o julgam nem inevitável nem natural, e anunciam e defendem uma ordem nova: a liberdade, o futuro, uma nova democracia. Passariam muitos meses até que pudesse voltar a ver as ruas, os ônibus, as pessoas, o dia ensolarado. Para que pudesse vê-los assim, com todos os seus movimentos e cores, sem grades a nos separar, sem ter que adivinhá-los dentro de camburões escuros, de aço. Novos tempos? Pertenço à geração que vive a transição entre uma época de relativa liberdade, conquistada ao final do regime militar, e o endurecimento da repressão política, em um contexto de crise econômico-social crescente e aumento das mobilizações populares.
Digo endurecimento da repressão política, especificamente, porque os pobres, vivendo em guetos nos bolsões de miséria das grandes cidades, ou no campo, vitimados pelos bandos de pistoleiros a serviço dos latifundiários, nunca deixaram de ser reprimidos, presos e mortos pelas tropas oficiais ou os famigerados “esquadrões da morte”. Essa é, na verdade, a maior refutação de que os “anos de chumbo” são coisa do passado: somos, atualmente, a quarta maior população carcerária do mundo, saltando de 90.000 seres aprisionados em 1990 para pouco mais de 700.000 em 2017. Temos as polícias que mais matam em todo o planeta, e a permanência em nosso ordenamento da famigerada categoria dos “autos de resistência”. Conhecemos casos escabrosos, como o de Amarildo de Souza, que provam eloquentemente que a iniquidade e a tortura não acabaram simplesmente porque eleições – essas eleições viciadas que conhecemos – passaram a ocorrer. No fundo de cada delegacia, no alto dos morros densamente povoados, em cada presídio, segue existindo um doi-codi ⁴ . Exagero? Não é porque as vozes que por lá passaram e passam não são ouvidas que as suas histórias deixam de ser verdadeiras. Rafael Braga Vieira, negro, morador de rua, foi preso durante a manifestação do dia 20 de junho de 2013, porque policiais “confundiram” o desinfetante que carregava em um recipiente com explosivos. Permaneceu mais de dois anos detido. Poucos meses depois da sua libertação, voltou a ser preso perto da sua casa, acusado de tráfico de drogas. As únicas testemunhas que o acusam são policiais da UPP. Apesar disso, foi novamente condenado. Em todo caso, para aqueles que iniciaram sua militância nos grandes centros – no meu caso, no movimento estudantil –, não era comum ver ativistas indo parar em penitenciárias de segurança máxima na sequência de manifestações. Pessoas detidas nessas circunstâncias eram normalmente liberadas na delegacia, na pior das hipóteses, respondendo processo em liberdade. Foi como reação às Jornadas de Junho de 2013 que o fantasma de Bangu (o complexo penitenciário de Gericinó) passou a pairar crescentemente sobre nós. Meses depois, eu assistiria, dentro de uma cela, à presidenta Dilma Rousseff declarar que, no Brasil atual, diferentemente de sua época, ninguém mais era perseguido por manifestar suas opiniões. Também veria, exibidos na televisão, cartazes das companheiras Karlayne (Moa) e Elisa (sobre a qual o monopólio de imprensa criou a personagem “Sininho”, que disseram possuir até treinamento de guerrilha em Cuba!) com os dizeres: “ PROCURADAS ”, e a recompensa correspondente. Vontade de gritar. Pessoalmente, tinha vivido anteriormente duas experiências com prisões que me marcaram profundamente. Uma, quando tinha uns catorze anos, ao visitar um amigo punk preso numa velha cadeia em Ricardo de Albuquerque, periferia do Rio, já desativada. Comparada à verdadeira via-crúcis que minha família enfrentou para me visitar, a facilidade com que entrei naquele pardieiro, apenas mostrando minha identidade, parece inacreditável. Dudu tinha dezoito anos, era negro, alto, envolveu-se em roubos para sustentar o vício em cocaína. Lembro-me dele explicando as regras do xadrez, as
palavras que podiam e as que não podiam ser ditas, as tretas com os guardas, a postura em dia de visitas. Para mim, ainda muito novo, aquilo parecia extraordinariamente complicado, um universo que eu não era capaz de decifrar. “Um lugar terrível” – pensei. Fixei sua resposta, quando perguntei o que faria ao sair: – Eu vou sair é cheio de ódio! Anos depois, mais velho, dentro de cubículos gradeados, veria muitas vezes essa frase repetir-se, na boca de outros jovens muito parecidos com Dudu (que morreu assassinado pouco tempo após sair da prisão). Sua mãe, uma mulher humilde, negra como o filho, que passava fome para custear o advogado, me explicou o porquê da benevolência dos guardas com as visitas naquele dia (mal fôramos revistados): – É véspera de Natal, quem quiser visitar é só pagar um dinheiro por fora. Fulana de tal me disse que viu um deles [agente penitenciário] socando dinheiro com um rodo dentro duma mala. A outra experiência foi quando minha irmã, Isabela, foi presa em uma manifestação que celebrava o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, em março de 2009. Detida sem que nada tivesse sido encontrado com ela, foi acusada de ter tacado pedras contra a fachada do consulado norteamericano. Após horas na porta da delegacia, foi-nos informado que o delegado estava intransigente e que ela provavelmente seria transferida. A sensação de impotência, ver-me impedido de cruzar os poucos metros que nos separavam, abraçá-la, tomá-la pelas mãos e levá-la para casa, era de longe o pior sentimento que me afligia. Preferia que fosse comigo. No dia seguinte, ao meio-dia, ela foi de fato transferida. Quando passou por mim, gritei, com todas as minhas forças (menos para a minha irmã do que para uma companheira de luta colocada à prova): – Isa, fica forte! Aqui, ninguém vai descansar enquanto você não sair! Ela, para orgulho de todos nós, manteve-se firme. Naquele mesmo dia, já quase de madrugada, foi libertada, e recebeu os merecidos abraços na porta de uma carceragem feminina em Mesquita, na Baixada Fluminense. Minha mãe, mantida à base de remédios, falou ainda meio grogue, quando ela chegou em casa: – Da próxima vez, eu quebro as tuas pernas! E correu até a cozinha para fazer um chá e uma comidinha para a filha. Dona Jandyra... Na Cidade da Polícia Atravessamos a cancela da Cidade da Polícia, que conhecia da televisão, e literalmente abrimos a DRCI (Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática). Eu, que sou um semianalfabeto digital, avesso às chamadas
“redes sociais”, estava preso, curiosamente, por uma instituição que deveria coibir os crimes cometidos através da rede – pedofilia, golpes financeiros, jogos ilegais. C’est la vie! Entrando na Delegacia, passou por nós um faxineiro, ao qual eu desejei bom dia. Ele me respondeu de cabeça baixa, apressado, aparentemente envergonhado da liberdade que ostentava. Daquele lugar, fixei as paredes brancas, o ambiente gelado, hostil. Tudo muito limpo, contrastando com o conteúdo do que é ali praticado – açougue humano, onde se processa a desgraça alheia. Fiquei sozinho com uns policiais, que se revezavam na minha escolta. Alguns articulavam palavras, puxando conversa, as quais eu respondia com monossílabos, secamente. Ao saber que eu insistira em colocar uma calça jeans para sair de casa, um deles comentou: – Pra que isso? Chinelo e bermudas, isso é tudo o que ele vai precisar por um bom tempo! Outro me perguntava se eu sabia da Sininho: – Essa tem as costas quentes, avisaram pra ela e ela saiu fora. Agora você, um cara que mora em Realengo, pra que vai se meter nessa encrenca? – Ele mora em Realengo? – interpelou um terceiro –. Pô, na minha área, se eu soubesse a gente podia ter marcado um horário, não precisava da viatura. Às oito tava bom pra você? Humor policial. De repente, em um momento em que estava escoltado apenas pelo policial que me prendeu (dizendo-se constrangido por ter me algemado, coisa que dizia se tratar de um procedimento padrão), entrou na sala um investigador, alto, branco, com cara de playboy. Colocou sua pistola em cima da mesa, de frente para mim, e perguntou, tentando soar amistoso: – Vamos lá, Igor, qual é o seu envolvimento com a rapaziada? Atento como estava, respondi na lata: – Nada falarei sem a presença de meu advogado, direito constitucional que me pertence, como o senhor sabe. – Porra! – deu um murro na mesa, desistindo do teatro – Na hora de quebrar banco vocês não querem saber de Constituição! Pro seu governo, todo mundo aqui é formado em Direito, não venha tirar onda de entendido, não! Eu nem tava registrando nada... E saiu da sala. Claro, ele só queria bater um papo.
Na parede, acima de mim, o tic-tac monótono do relógio. Ninguém mais havia chegado. Apurando os ouvidos, ouvi comentários sobre uma diligência que havia ido à Niterói, sem resultados. Também ouvi falarem Copacabana. Após umas duas horas de solidão entre as feras, chegou um advogado, o Dr. André de Paula, a pedido do meu defensor, o companheiro Marino. Foi um tremendo alívio encontrar um rosto conhecido. Ao seu modo característico, André chegou sem pedir licença, abrindo portas, derrubando divisórias, protestando contra aquela prisão absurda. Os policiais, desacostumados com aqueles modos francos, mostravam irritação, mas evitavam o confronto aberto. Na verdade, nem eles nem nossos advogados tinham muito que fazer: tratava-se de decisão judicial, que teria de ser cumprida. Ao ler, com calma, o mandado de prisão, senti alívio por saber que dessa vez a “caça às bruxas” restringia-se a poucas pessoas, e que as companheiras não haviam sido atingidas pelas garras policiais. Essa informação continha, entretanto, um aspecto que não me passou despercebido: teria que enfrentar, na minha primeira experiência de prisão (logo preventiva), os policiais e o sistema penitenciário sozinho. Essa ideia não deixava de martelar em minha cabeça. Na hora de prestar depoimento, o escrivão, sem nada perguntar, me ofereceu a folha para assinar, onde já estava escrito que eu me recusara a prestar quaisquer esclarecimentos. Ele já havia reparado que de mim não sairia nem uma vírgula que colaborasse para criminalizar a luta popular. Após isso, seguiu-se uma burocracia interminável. Como um gado levado para o abate, entrava em uma sala, era fotografado, registrado; saía, entrava em outra, esperava; uma, duas, três, quatro vezes. Ouvi, uma hora, um bateboca na delegacia, porque os policiais estavam dificultando o acesso de companheiros advogados que foram até lá prestar-me solidariedade. Depois dessa discussão, apressaram o andamento da papelada, voltaram a me algemar e me encaminharam para a carceragem da Cidade da Polícia, que fica no fundo da mesma, no final de um corredor estreito – carceragens são localizadas sempre no fundo, ou no subsolo, como se a mesma sociedade que as constrói tivesse consciência da vergonha que elas representam e, portanto, da necessidade de escondê-las. Como navios negreiros. Como campos de concentração. “Modernos”. Saindo da DRCI, a caminho da carceragem, avistei minha mãe, que devia estar a uns dois passos de mim. Uma advogada interpelou o policial que me escoltava: – Deixa ele abraçar a mãe, pelo menos. – Não pode, quando chegar na carceragem pergunte ao... Antes que ele terminasse a frase, estava já abraçado com Dona Jandyra, recomendando-lhe, pela segunda vez naquele dia, que ficasse firme. Ridículo seria esperar uma autorização para que o fizesse, estando assim tão próximo.
Já distanciado de familiares e advogados, o mesmo policial me disse rispidamente: – Você acha que pode fazer o que dá na telha? Você agora é um preso! – Eu sou um preso político! – contestei, em um tom de voz surpreendentemente alto. Sentia como se uma tocha ardesse em meu peito, me encorajando naquele momento difícil, enchendo-me de indignação, não apenas, nem principalmente, contra a arbitrariedade da qual eu era vítima, mas contra todos os crimes e arbitrariedades que assolam diariamente o nosso povo. Aquela seria a primeira vez, de muitas, em que teria que afirmar a minha condição de preso político; e em todas elas veria nos olhos dos policiais e carcereiros como isso os atingia, porque eu conservava antes de tudo a minha dignidade, bem mais precioso que seus códigos e ameaças nos tentam roubar. Sempre que isso aconteceu senti-me um pouco mais livre, apesar das algemas, das grades, das paredes sujas, do calor infernal. O responsável pela carceragem, ao receber-me, não pôde deixar de comentar: – E aí, tá ansioso pra conhecer o seu novo apartamento? Engraçado... Fui obrigado a tirar os cintos, o calçado e as meias, o relógio e, pela primeira vez, encerraram-me na cela. Essa era minúscula, gelada, tipo solitária: a porta de ferro chapada, um pequeno batente ao fundo, onde cabia apenas uma pessoa sentada, e um buraco no chão, o boi , no qual eu, curioso, fiquei procurando onde ficava a descarga – essa, na verdade, é sempre acionada de fora. No chão, havia um papelão imundo, onde algum infeliz passara a noite, já que ouvi o carcereiro comentar: – Deram azar, o pessoal acabou de sair com uma leva. Era bom ou mau adiar por mais tempo minha entrada na penitenciária? Não saberia dizer. Se, por um lado, me alentava a ideia de ganhar tempo para preparar-me mentalmente, por outro lado, era difícil administrar a ansiedade que antecede um mergulho no escuro. Sozinho. Conhecia essas celas da Cidade da Polícia pelos relatos dos companheiros e companheiras presos em julho. Avistei, aliás, na parede da minha cela, uma pichação: “Liberdade para os presos políticos!”. Havia também outra (soube mais tarde tratar-se de um provérbio de prisão): “A cadeia é longa, mas não é perpétua” . Gravei essa frase em meu coração. Sentei no batente e fiz um esforço para organizar minhas ideias e sentimentos. Quem me visse naquele momento estranharia, talvez, a calma exterior quase completa que eu demonstrava. Só eu sabia o furacão que me devorava por dentro. Havia que me preparar para a prisão, havia que ficar
forte, havia que não decepcionar os meus, havia que derrotar aqueles que se julgam capazes de quebrar nossas convicções. Não era uma opção: era uma obrigação. Uma voz, muito parecida com a minha, reiterava em meus ouvidos: “Nessa noite, você vai dormir em uma cela, vai conhecer a penitenciária”. Sempre devorei a literatura referente à prisão, que me causava particular fascínio. De “Papillon” , caminhando em seu cubículo escuro, lutando para não enlouquecer na idílica e ao mesmo tempo infernal Caiena, ao Graciliano de “Memórias do Cárcere”, íntegro e perspicaz observador da igualmente terrível Colônia Correcional de Dois Rios. Conversei, também, o máximo que pude com companheiros que passaram por essa experiência, tanto no passado como no presente. Isso me foi muito importante, tanto nesses primeiros momentos como em outros, mais difíceis, que enfrentaria depois. Esses relatos, que tomava a sério, como conselhos (como poderia ser um revolucionário coerente e não me preparar para a prisão?), ajudaram-me a formar uma ideia sobre aquele universo todo particular, invisível para a imensa maioria das pessoas, impenetrável para os que não o viveram; ajudaram-me a entender um pouco a lógica do encarceramento, a não ser de todo pego de surpresa pela sua agressividade, que desnorteia os que não a conhecem. Claro que esse conhecimento indireto correspondia apenas parcialmente à realidade viva, mas entre conhecer um pouco e desconhecer completamente já existe uma diferença muito grande. O fato de estar sozinho me obrigava a ser mais vigilante. Sentia-me como um animal acuado. Tinha que mobilizar tudo o que havia de melhor em mim, reunir as minhas forças mais genuínas. Seria muito maltratado pelos policiais? Como seria a recepção dos outros presos? Como seria dividir a cela com desconhecidos? E, o que mais afligia: estariam sofrendo demasiadamente aqueles que amo? Meus pais, irmãs, minha companheira, todos os que participam na grande luta? Tomei então a decisão, típica de quem nunca passou por isso, de não aceitar que essas pessoas queridas me visitassem, no caso de prolongar-se meu encarceramento. Como veremos, teria tempo de sobra para rever, por insustentável e imatura, essa decisão. Meu pai me trouxe um par de chinelos brancos, desodorante, escova de dente, um salgado. Tudo à toa. Os itens de higiene teria que jogar fora na entrada da penitenciária em Bangu e meu estômago estava embrulhado para comidas. Os advogados, com quem tive breves audiências, asseguravam-me que a prisão era inconsistente, não duraria muito. Claro que um preso quer acreditar que não demorará a recobrar a liberdade, mas recordei-me amiúde de um conselho valioso recebido certa vez: – Não se pode entrar na cadeia pensando que vai sair logo. Tem que confiar em quem está aqui fora trabalhando, mas se preparar para ficar o tempo que for necessário, senão não aguenta. Poucas coisas são mais insuportáveis, realmente, e atacam tão insidiosamente a moral de um detento, quanto falsas expectativas de liberdade.
Disse ao meu pai, antes da transferência, talvez menos para ele que para mim mesmo: – Saberei enfrentar tudo como homem, fique tranquilo. Chegou um pequeno camburão, não ainda do SOE-GSE ⁵ , agentes penitenciários responsáveis pela escolta dos presos, mas da Polícia Civil. Fui algemado com as mãos para frente e um policial, em tom paternal, disse-me: – Olha, com a gente aqui é tranquilo, mas quando você entrar na cadeia é mão pra trás e cabeça baixa. Não se esqueça disso! Fui levado para o Instituto Médico Legal (IML), a fim de realizar o protocolar exame de corpo de delito. Apesar de ter permanecido naquele lugar por, no máximo, cinco minutos, guardo o nojo que ele me inspirou. Tive que aguardar ser chamado algemado, olhando para a parede, dentro de uma salinha suja. Um funcionário do IML vestido de branco – não sei se era médico –, chamado pelo policial que me escoltava de “doutor” (o jaleco e o tratamento que recebia era a única coisa que o diferenciava do guarda), me perguntou, sem sequer me olhar nos olhos: – Sofreu maus tratos? – Não. – Sofreu maus tratos? – Não. E só. Fui dispensado sem que o homem do jaleco branco tivesse me olhado, me tocado, sequer me escutado, provavelmente. Até aí, realmente, eu não havia sofrido nenhuma outra violência além da própria prisão em si, a maior de todas. Pensei: sozinho, algemado, escoltado por um policial, a caminho do sistema penitenciário, quantos presos nessas condições teriam coragem de denunciar eventuais maus tratos recebidos? E, uma vez denunciados, que consequências isso teria, se é que teria alguma? Ao sair da salinha, passei às mãos das tropas da administração penitenciária. Prontamente, fui jogado no fundo do camburão que me levaria para Bangu – qual presídio especificamente eu não sabia. Pouco a pouco foram entrando os outros presos, cujos rostos, no escuro, eu não conseguia distinguir. A viatura, saindo do IML, ainda parou em outras delegacias, “catando” presos, no cortejo macabro em direção ao inferno. Fiquei horrorizado quando vi quatro presos entrarem algemados uns nos outros (em “caranguejo”, como se diz por lá), e cedi meu lugar para que um deles pudesse se sentar. Quando a caçamba já estava lotada, com ar quase irrespirável, adivinhamos, pelas poucas frestas existentes na blindagem da viatura, e pela velocidade desenvolvida, que estávamos na Avenida Brasil. Soube por um detento, que disse ter sido preso por engano, porque seu mandado de prisão não fora sustado após ter ganhado habeas corpus , que nosso destino era o presídio José Frederico Marques, ou simplesmente Bangu 10, a triagem masculina do sistema penitenciário. Suspirei, confiando
em toda nossa luta, sabendo que naquele instante não poderia contar com nenhum apoio externo, mas apenas com minhas próprias forças, com minha dignidade de militante consciente da causa que defende. Mergulharia fundo, a partir daí, nos porões invisíveis de nossa sociedade. 2 Envelopamento, ou “Caldeirão de Hamburgo”, é uma tática militar que consiste em cercar os manifestantes por todos os lados, mantendo–os encurralados e de fato detidos a céu aberto. 3 Naquele 15/10/2013, as polícias militar e civil fizeram uma grande operação para acabar com o movimento “Ocupa Câmara”, um dos mais emblemáticos dentre os surgidos em junho de 2013. Após suportar, por horas, bombas de gás e cerco policial, todos os que se encontravam nas escadarias da Câmara de Vereadores foram presos e enquadrados na nova lei de organizações criminosas (12.850/13), aprovada há pouco pelo Congresso Nacional. Suas barracas foram destruídas e pertences revirados. No dia seguinte, enquanto os ativistas detidos eram transferidos para diversas prisões, o jornal O Globo estampava na sua capa as supostas lideranças do movimento, com o título: “Crime e Castigo – Lei mais dura leva 70 vândalos para presídios” . Apesar do pré–julgamento, todas as denúncias então levantadas foram arquivadas. 4 DOI-CODI : “Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna”. Mantido pelo Exército, foi o mais bestial centro de torturas e assassinatos de militantes durante o regime militar, segundo relatos de diversos presos políticos. 5 SOE-GSE: Serviço de Operações Especiais - Grupamento de Serviço de Escolta. São os “homens de preto” da administração penitenciária.
O PRIMEIRO DIA Primeiros passos Chegar à penitenciária é como descer ao inferno. Lembrei-me das palavras de Dante: “Deixai toda esperança, vós que entrais!” Atravessar seus espessos muros de concreto, os portões de ferro, é como entrar em um universo paralelo, em que tudo é caótico, distorcido, absurdo. Não saber o que te espera a cada passo: essa é a terrível sensação de entrar na cadeia, pela primeira vez. Um guarda comandou, na descida do camburão: – Todo mundo de cabeça baixa e mão para trás, em fila indiana! Em frente! Já dentro do presídio, cruzamos um pátio externo, gramado. Um cheiro terrível de suor, não sei se meu ou do preso da frente, sufocava-me; a calça, sem cinto, caía. Vertigem. Contornamos o gramado e passamos por uma porta de ferro, gradeada, que dava para a parte interna da cadeia. Em pé, um funcionário perguntava, aos berros, aos que entravam: – Qual a tua bronca, vagabundo?! Dependendo da resposta, uma piada, um xingamento, um soco. Na minha vez, quando puxava o ar para dizer em alto e bom som “Sou um preso político!”, aquela justiça sumaríssima mudou de ideia e gritou nos meus ouvidos, histericamente: – Não te perguntei porra nenhuma! Entramos em um galpão, amplo, onde, à direita até ao fundo dispunham-se longas mesas de concreto e à esquerda havia uma pequena salinha, que não pude identificar logo para que servia. O galpão era, na verdade, antigo pátio de visitas, readaptado para aquele fim (receber as novas turmas de presos) desde que o presídio se transformara em triagem. Um grupo de cerca de seis ou oito guardas nos esperava. Sempre aos gritos, ordenaram: – Todo mundo de cara pra parede! Colocamo-nos em linha, de frente para uma parede cinza, bastante encardida, descascada. Fomos desalgemados e revistados. Alguns levavam empurrões, chutes, sem que eu conseguisse identificar qualquer critério para a violência. Recebemos, mais uma vez, a instrução fundamental: – Mão pra trás e cabeça baixa, porra! Vi, pela primeira vez, o que acontecia com quem descumpria a ordem: um violento tapa na cara, que ressoou pelo salão. – Tá olhando o quê, caralho?! Logo, novo comando:
– Agora todo mundo tira a roupa, relógio, tudo que tiver. Agora! Pelados, fomos obrigados a agachar, uma, duas vezes. Olharam também nossa boca e a sola dos nossos pés. Nossas roupas, após a revista, foram empilhadas. Algumas semanas depois perguntei a um faxina o que acontecia com elas: – São incineradas. – Mas ninguém pega nada, não? – Claro que não, o pessoal da direção não permite. Até parece. Ele próprio, cada vez que o encontrava, vestia um chinelo novo. Recebemos, então, o “honroso” uniforme da penitenciária: uma blusa de meia manga, branca, lisa, feita do tecido mais vagabundo; uma calça ou uma bermuda (eu recebi calça) azul–marinho, que tinha inscrito em letras brancas, na transversal: seap – r-e-s-s-o-c-i-a-l-i-z-a-ç-ã-o; um chinelo de dedos branco; um kit com papel higiênico, escova e pasta de dentes. Novamente as perguntas: – Fez o quê, vagabundo? – Qual o seu crime? A mim ninguém perguntava nada. Talvez o aspecto físico frágil me tornasse invisível naquele ambiente brutal. Melhor assim. Em todo caso, não havia comigo qualquer tratamento ou atenção especial, para o bem ou para o mal, diferentemente do que ocorreu com outros ativistas presos na sequência de manifestações. Estava sozinho, nada me destacava na turma de infelizes, em geral pequenos criminosos. Situação que, pela força das circunstâncias, iria alterar–se dentro de poucos minutos. Depois de revistados e uniformizados, outro guarda, segurando uma prancheta, perguntava a cada homem “qual a sua facção”. De acordo com a resposta, os detentos eram alocados nessa ou naquela cela, indicada pelo carcereiro. Os que não pertenciam a nenhuma facção, chamados neutros , também eram rigorosamente separados dos demais. Essa compartimentação rígida mantém-se, a partir daí, durante todo o tempo em que o preso permanece na cadeia, porque é questão de vida e de morte lá dentro ⁶ . Para que o ritual de despersonalização se completasse, faltava uma etapa essencial: a raspagem dos cabelos. Realmente, não se tratava de higiene pessoal e, sim, de humilhação. Jamais observei, por parte da administração dos presídios em geral, e da direção de Bangu 10 em particular, qualquer preocupação com a limpeza e condições adequadas dentro das celas, que ali eram quentes e úmidas. Naquele lugar, mosquitos e baratas eram “lixo” ⁷ . E isso ainda não era nada, comparado aos relatos de infestações de ratos, percevejos e mesmo morcegos que ouvi de internos de outras unidades.
Também não é verdade que seja procedimento “obrigatório” para todos: presos “apadrinhados” por alguém, ou membros de quadrilhas de milicianos e esquadrões da morte (muitos dos quais são ex-policiais), com forte atuação na zona oeste, inclusive na região do complexo penitenciário, são poupados desse ritual infame. Seus pertences não são “incinerados”, mas devidamente guardados. Com os políticos que mais recentemente foram parar naquelas masmorras, provavelmente se passa o mesmo. A pequena salinha que vi na entrada, descobri, então, era a “barbearia” do presídio. Nisso, um detento perguntou ao guarda: – Com todo respeito, meu chefe, posso beber água? (Havia um bebedouro ao lado da sala). – Bebe água quando entrar na cadeia ⁸ ! Não seria a última vez que veria a privação de água dentro da prisão, atitude considerada criminosa mesmo na guerra. Um sujeito, vestindo a camisa verde da SEAP, disse para mim que era o último da fila: – Vocês deram azar, esse é o pior plantão. Depois eu levo uma garrafa de água pra vocês. Ele era um “faxina”, isto é, um preso que trabalhava para a administração, em troca de pequenos privilégios e, eventualmente, um salário módico, além da remição de pena. Usam camisas verdes para diferenciar-se dos demais presos. Os faxinas são mal vistos pelos demais detentos, que os consideram dedos-duros, lacaios da direção. Essa desconfiança tem os seus fundamentos, como descobriria depois. Dilema Via, assombrado, os presos que saíam da salinha: tinham os cabelos muito mal raspados, com tufos de pelos irregulares caindo das suas cabeças. A camisa branca, há pouco recebida, já estava cinza, devido à imundície do lugar, ao suor e aos cabelos. Da salinha dirigiam-se ao fundo do pátio, onde deveriam esperar agachados até que o procedimento terminasse. Seu aspecto era desolador. Fui, então, assaltado por intensa luta interna. Aceitar o cabelo mal raspado, me sujeitar ao ritual infame, vergar-me à humilhação? Ou resistir, não por razões estéticas, naturalmente, e sim por convicção moral? Evitar o choque com os guardas, logo nos primeiros momentos, ou defender minha dignidade, arcando com as consequências? Outras vezes fui colocado diante desse dilema, mas não de forma tão aguda e em circunstâncias tão desfavoráveis como aquela.
Vacilava. Até a metade da fila estava inteiramente dividido, alheio ao tempo e ao espaço, concentrado em uma decisão que pode parecer pequena, mas pesava então como o próprio universo. Lembrei-me, naquela hora, de um livro lido há tempos, mas do qual ainda guardava viva impressão: Resistir é preciso , do revolucionário Alípio de Freitas, preso e torturado com bestialidade pelo regime militar fascista. Esse foi, aliás, o livro que de forma mais concreta me ajudou a enfrentar o cárcere, pela sobriedade e senso de realidade com que narra suas experiências, e também pela combatividade e paixão revolucionárias inabaláveis defendidas pelo autor. Lembrei-me, especialmente, do trecho em que narra sua chegada ao famigerado doi-codi do Rio de Janeiro, a espera para ser torturado, e o murro que, na primeira oportunidade, desfechou na cara do oficial torturador. Gesto esse que, se por um lado, lhe valeu um tratamento ainda mais rude dos algozes, por outro, preparou e elevou o seu moral para vencer as duras provas que viriam. Concluí que, se cedesse logo na primeira batalha, sucumbiria diante das outras e dentro em breve não me reconheceria diante do espelho. Atingiriam, assim, seus objetivos os meus encarceradores, não aqueles cães de fila que tinha diante de mim, que bufavam e xingavam, mas os que do alto de seus palácios e mansões luxuosas tremem todas as vezes que o povo marcha nas ruas. Não! Depois que tomei essa decisão, a luta furiosa dentro de mim se acalmou. Pela primeira vez nesse dia, tive paz, aquela paz que só sente quem sabe estar fazendo a coisa certa. – Próximo! –– ordenou um guarda, já distraído com outros afazeres. Cheguei à entrada da sala imunda, onde um faxina aguardava com a máquina de cortar cabelos na mão. Erguendo a cabeça, visualizei o pátio, onde os presos esperavam agachados, um grupo de guardas mexia em papéis. – Sou um preso político e me recuso a raspar o cabelo! Com o coração disparado, a boca seca, vi os presos erguerem instintivamente a cabeça em minha direção. Nos seus olhos, havia espanto. Os policiais civis e agentes penitenciários ficaram alguns segundos sem ação, como se não soubessem reagir à quebra da sua lógica arbitrária, repetida anos a fio, sempre incontestada. Tudo ficou suspenso por um tempo muito breve, que para mim pareceu infinito. Até que um guarda, o mesmo que nos recebeu aos gritos, quebrou o silêncio: – O que foi que você disse, seu filho da puta? Olhei fundo nos seus olhos, cometendo outro sacrilégio imperdoável, e repeti: – Sou um preso político e me recuso a raspar o cabelo! – Preso político é o caralho! Vamos ver se você não vai raspar o cabelo!
E veio em minha direção, com os olhos faiscando, como um cão desvairado, mau. Ciente de que seria espancado, reafirmei minha condição, acrescentando: – Vou denunciar qualquer agressão contra mim! Nisso, o sujeito já estava na minha frente. Tentou me dar um chute, do qual desviei, mas foi suficiente para arrebentar o chinelo “resistente” que o Estado havia me dado. – Para com isso! – interveio outro guarda, mais velho, que estava sentado em uma mesa. – Vamos ler a ficha dele e falar com o diretor. Recebi ordem de aguardar, com a cara voltada para parede, separado dos demais presos. Alguém seria consultado. Depois de alguns minutos, entrou no pátio um homem alto, louro, aparentando ter uns quarenta anos. Logo soube que era o “Seu” ⁹ Nunes, subdiretor do presídio. Conversou brevemente com o guarda sentado à mesa, depois me chamou: – Preso, vem aqui! Caminhei até lá. – Qual o seu nome? – Igor Mendes da Silva. – Você é black bloc? – Não, senhor, eu sou preso político, manifestante. – Sei... Você tem que raspar o cabelo, é a norma da casa. – Senhor, eu não vou raspar o cabelo. O homem sentado, no qual, de relance, percebi um moreno magro, com óculos finos, falou com a voz mansa: – Olha, Igor, vai assinando os papéis enquanto isso. Pela primeira vez, era tratado pelo meu nome. Olhei os papéis à minha frente, iguaizinhos a tantos que assinei aquele dia, com o mandado de prisão, fotografia, filiação etc. Contrariando minha própria determinação, assinei parte da papelada sem ler, devido ao estresse da situação e o esforço para ver qual era a reação dos demais presos – que aguardavam em silêncio, agachados, me fitando com o rabo de olho. O subdiretor voltou à carga: – Igor, melhor você raspar o cabelo, senão pode sofrer uma punição disciplinar, o que só vai atrasar o seu lado. – Eu não vou raspar o cabelo, senhor.
– Mas você já assinou a autorização – disse o homem sentado. – Tá aqui, ó. E me mostrou a assinatura “autorizando” o procedimento. Claro, eu havia sido enganado. De qualquer forma, estava provado que a administração não podia nos impor aquele castigo corporal sem consentimento prévio. Ora, se a ameaça real de espancamento não quebrou minha decisão, não seria esse golpe de vigarista que o faria. Fiquei quieto. O subdiretor, vendo o impasse, propôs um “acordo”, em alto e bom som: – Olha, faz o seguinte: não raspa, mas corta o cabelo curto. É uma medida de higiene, ninguém entra na cadeia de cabelo grande. Além disso, enquanto você tá aqui discutindo, os outros presos estão esperando... (Sublinhou o “você”, de modo a tentar me jogar contra os outros presos, mantidos desconfortavelmente agachados). Respondi, também de modo que os demais presos escutassem, não inteiramente convencido de que fazia a coisa certa: – Eu não quero privilégio, só não aceito ser humilhado. E também não quero que os outros sejam punidos por minha causa. Entrei na salinha, passei a máquina dois, em vez da zero, sem gritos ou humilhações adicionais. Uma meia vitória. Na tranca Depois que atravessei uma segunda grade, diante da sala da segurança, onde ficavam as câmeras de vigilância e os guardas reunidos, me mandaram encostar as mãos na parede. O subdiretor, Seu Nunes, ordenou ao guarda que me conduzia (a essa altura eu já havia sido separado dos demais detentos): – Tranca ele na B. Era a primeira vez que ouvia, a meu respeito, essa expressão, absolutamente cotidiana no universo da prisão: seria “trancado”. Como um animal. Não tinha a menor ideia do que significava a “B”. A parte interna do presídio consistia em um corredor imenso, úmido, ao longo do qual estavam distribuídas as galerias: eram oito, de A a H, com catorze celas em cada uma. Na galeria A, ficavam os faxinas, que permaneciam soltos em determinadas horas do dia, dedicados aos afazeres de manutenção da cadeia. Na galeria B, funcionava o isolamento, ou Seguro ¹⁰ , onde eram colocados presos em trânsito, “pagando” castigo ou ameaçados. Também ficavam aí os ex-policiais e integrantes de “milícias”, que não podiam se misturar com os demais criminosos. Essa galeria compunha-se de celas individuais, que chegavam a ser ocupadas por até três
presos, dependendo da lotação do momento. As demais galerias, isto é, da C a H, eram compostas por cubículos coletivos, com seis beliches de concreto em cada um – chegavam a abrigar dez ou doze pessoas –, divididas entre presos de facções criminosas e neutros . Claro que só vim a dominar essas informações mais tarde. Apenas me recordo do estalar do cadeado se abrindo, o silêncio profundo na galeria, sombras de rostos me encarando por trás das grades. De modo aparentemente aleatório, o guarda abriu a primeira cela que viu, à esquerda, exatamente a de número 1 (sempre, nas cadeias pelas quais passei, as celas ímpares ficavam à esquerda de quem entrava, e as pares à direita). Novo estalar de cadeado, dessa vez sendo fechado, brutalmente. Estava dentro da cela. A “porta” compunha-se de grades, de modo que eu mantinha contato visual com os presos das demais celas. À esquerda, havia o boi , em frente um pequenino corredor e no fundo ficava a cama de concreto. Por sorte havia um colchão velho, já forrado. Parecia não fazer muito tempo que o antigo morador havia saído. Voltei-me para a galeria: as pessoas conversavam baixinho, via mãos apoiadas nas grades. A cela da minha frente, B2, estava vaga. Na B4, vi um preso sem camisa, lendo tranquilamente, sentado no chão. Parecia um estudante universitário. Esse não deve estar preso há muito tempo. – Boa tarde – disse, sem grande convicção, não sabendo nem por onde começar a perguntar. – Boa tarde –– ele me respondeu. Pelo seu olhar, provavelmente também tentava adivinhar algo a meu respeito. Desisti de entabular conversa, por enquanto. Com a súbita diminuição da adrenalina, o estresse emocional e o cansaço físico desabaram sobre mim. Preciso organizar meus pensamentos. Sentei na cama. A essa hora eu estaria no escritório do meu advogado, trabalhando nos últimos acertos para a primeira audiência do nosso processo, prevista para dali a duas semanas. À noite faria uma prova. Amanhã, uma reunião importante. Havia que adiar os planos, adiá-los por tempo indeterminado. “Será que na audiência eu já estarei livre?” Pensei nos meus pais, provavelmente sufocados de preocupação. Se pudesse falar com eles, dizer-lhes que estava tudo bem... Pensei na minha companheira, tentei imaginar qual teria sido sua reação ao saber da notícia, já que não nos encontramos. Sabia ser alvo do pensamento dessas pessoas, e de muitas outras, mas nesse momento isso não me confortava. Vinham-me imagens desordenadas à cabeça, sem que eu pudesse reter qualquer uma delas. Entrei em um estado de torpor e devo ter dormido, não sei por quanto tempo. Em um sono agoniado, sonhei com a cadeia ao meu redor.
Acordei com a grade da cela sendo chacoalhada: – Acorda, vagabundo, é o confere ! Estava suado. Levantei confuso, fui para a porta da cela. O preso da B2, à minha frente, já tinha voltado. O da B4, que vi lendo mais cedo, me olhava com reprovação. O guarda contava um a um os presos, com uma prancheta e uma caneta na mão. Na volta, parou em frente à minha cela: – Você é o preso que não quis raspar o cabelo? – Sim, senhor. – Se fosse comigo, raspava até o cabelo do teu saco! E saiu batendo violentamente a grade, estalando ruidosamente o cadeado. – O confere do guarda é sagrado – disse o da B4. – Sua primeira cadeia? – É. – Logo vi. O confere é duas vezes por dia, de manhã e no fim da tarde. Tem que ficar em pé na porta da cela, com as mãos pra trás e a cabeça baixa. Não pode perder! – Obrigado. – De nada. Eu sou Marcinho. – Satisfação, Igor. O Sol começava a se pôr. Olhares curiosos voltavam a se pôr sobre mim. Começava, assim, uma época nova na minha vida: a época da prisão. Procurava me concentrar em cada detalhe, em cada palavra, em cada gesto. Para vencer esta etapa, eu deveria, antes de qualquer coisa, conhecer o seu funcionamento, assim como em dias distantes, em outros fins de tarde, aprendi a ir e voltar sozinho da escola ou andar de bicicleta. Tirando o tempo e as circunstâncias, o problema era o mesmo: o domínio dos meus medos, das minhas incertezas, a necessidade premente de olhar em frente, apenas em frente. 6 Por razões que me escapavam ao entendimento, reparei que os que se declaravam membros do “Comando Vermelho” – os mais numerosos dentre os que diziam integrar facções – recebiam o pior tratamento. 7 “Lixo”, na linguagem da cadeia, significa que é de acesso fácil, existe aos montes. 8 Na gíria, “entrar na cadeia” é ingressar na área interna, destinada aos xadrezes, comumente separada da parte administrativa da prisão. Pode assumir outros significados de acordo com a situação concreta, por exemplo: quando um preso pede para ficar no isolamento por temer alguma retaliação diz-se que ele não quis “entrar” na cadeia.
9 Os presos sempre se referem aos funcionários como “seu” fulano de tal. 10 O “Seguro” é composto por presos “neutros” e também por detentos ameaçados pelos demais, como os acusados de estupro, aqueles que abandonaram facções e outros do gênero. Esses presos formam, dentro da comunidade carcerária, uma coletividade própria, com suas regras específicas. Eu permaneci todo o tempo encarcerado nas estruturas do “Seguro”.
PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS Os presos A galeria B era considerada melhorada, tanto pelo conjunto dos presos como pelos guardas. Isso se devia, creio, às celas individuais, e também porque não ocorriam ali as cenas de espancamentos e gritarias verificadas em outras galerias. Não dispunha dos privilégios dos faxinas, moradores da galeria A, onde os presos possuíam até televisões; também não descia ao nível degradante verificado nas celas coletivas, o miolo da cadeia. É curioso observar como os dominadores em geral gostam de estipular gradações entre os dominados, levando-os a acreditar piamente nessas diferenciações, de modo que se dividam e não consigam enxergar a engrenagem odiosa que esmaga a todos. Essa estratégia muito antiga, de “dividir para dominar”, é aplicada conscienciosamente dentro do sistema penitenciário, talvez como em nenhuma outra instituição. Vivíamos, na verdade, em um duro regime de isolamento. Nas últimas celas, no fundo da galeria, havia um grupo de presos condenados a longas penas. Alguns permaneciam em Bangu 10 (local de triagem destinado, em tese, apenas a presos provisórios), acusados de causar problemas em suas antigas prisões, cumprindo castigo, enquanto outros simplesmente por “falta de opções”, impedidos de ‘entrar’ em cadeias lideradas por antigos desafetos seus. Por isso, de Bangu 10, dizia-se ser o seguro do Seguro do sistema, isto é, o destino daqueles que nem entre os detentos igualmente ameaçados são bem-vindos. O mais velho neste grupo de veteranos era Álvaro, preso há quase vinte anos, participante de uma luta sangrenta que pôs fim aos roubos e estupros entre os presos, ocorrida há muitos anos, no presídio de Água Santa. Álvaro chegou a ser ‘primeira voz’ ¹¹ do Bangu 2, maior cadeia de ‘Seguro’ do sistema penitenciário. Muito magro, tinha os cabelos já rareando aos quarenta e poucos anos e falava arrastando a voz, como um velho. Com Álvaro morava Ramon, “cadeeiro rodado”, como ele mesmo dizia. Ele era alto, branco, com a pele amarelada e os olhos fundos, sem um fio sequer na imensa careca. Passava os dias fumando remédios psiquiátricos – que esfarelava e apertava em algum pedaço de papel, normalmente folhas da Bíblia – e perturbando os companheiros que moravam próximos à entrada da galeria (como eu) para que chamassem, “com todo respeito ”, os guardas, porque precisava “ir à enfermaria”, “ir falar com o diretor”, “ir aqui ou ali”. Creio que sua única necessidade era pedir, apenas pedir, talvez por hábito, talvez para se certificar de que ainda havia no mundo quem fizesse algo por ele. Compunham ainda esse grupo “Da Penha”, que falava pouco, e Mil, um negro de estatura média, o mais animado dentre eles, que passava os dias e as noites conversando, contando histórias, fazendo piadas sobre as situações cotidianas da prisão. Havia também o “Morte”, um traficante que em (longínquos) tempos de glória havia participado de algumas guerras importantes em favelas do Rio, tirando já quase vinte anos de prisão. “Morte” sempre puxava assunto comigo, queria saber das manifestações, da “Sininho”, e dizia considerar-se também um “preso político”. Chamava
atenção, nele, as tatuagens por todo o corpo, as várias cicatrizes de facadas e tiros na pele remendada. As olheiras e a face cavada denunciavam os longos anos passados em precariedade, fazendo uso contínuo de drogas. Enquanto aguardavam transferência, esses presos “rodados”, profundos conhecedores dos submundos do sistema penitenciário, literalmente mofavam em Bangu 10, meses a fio. Contaram que, na primeira semana em que lá chegaram, foram mantidos em celas solitárias, já desativadas, obrigados a conviver com ratos e a lamber o ralo fio de água que descia pela parede. Esses detentos formavam um grupo destacado dos demais moradores da “B”, não só por conviverem em aparente união – embora também discutissem, o que descobriria ser um dos passatempos prediletos dos presos –, mas também porque, como presos sentenciados, tinham acesso a direitos que os demais não possuíam: ventilador na cela, visita aos domingos, banho de sol (de 40 minutos) uma ou duas vezes por semana. Isso, realmente, não era nada, ou era bem menos que o mínimo assegurado por lei, mas, na penúria absoluta em que vivíamos em Bangu 10, parecia muito. Havia outros dois presos condenados, que, entretanto, não se misturavam com esses do “fundão”, morando no início da galeria: Roberto, “Betão”, morador da B7, e Marcinho, da B4. Marcinho era uma espécie de líder informal da galeria B. Muito comunicativo, era o primeiro a conversar com os presos mais novos, explicando-lhes pacientemente os procedimentos mais básicos da prisão. Mostrava-se solidário com os que precisavam de um remédio para dor ou algum item de higiene, animava os que caíam em depressão. Seus óculos, a juventude que ainda possuía, as palavras calmas e medidas davam-lhe um aspecto intelectualizado, completamente estranho ao meio. Ele tinha 30 anos e estava preso desde os 22, acusado de participar de um esquadrão da morte no norte do estado. Já fora considerado culpado por dez homicídios, tendo ainda julgamentos a cumprir. A pena que lhe cabe é suficiente para mantê-lo trinta anos em regime fechado, limite máximo previsto em lei. Isso se não conseguir cumprir a promessa que fez a si mesmo, e que ouvi contar a outro preso. Marcinho, entre uma conversa e outra, passava os dias lendo o Alcorão (na cadeia, convertera-se ao islamismo) e escrevendo cartas. Uma vez alguém lhe perguntou: – E aí Marcinho, pra quem são essas cartas todas, mano? – São pro meu filho, quero que ele leia isso quando tiver 18 anos. (Sua esposa, que ia visitá-lo todo domingo e com quem estabeleceu contato quando já preso, estava grávida de seis meses). – Mas ele ainda nem nasceu, por que escrever uma carta pra ser lida só daqui a 18 anos?
– Porque daqui a uns anos, quando eu me quebrar, não quero que ele perca a lembrança do pai. Isso aqui é uma forma de eu falar pra ele o que é a vida, como faz pra trilhar o caminho certo e não o errado. Pra não repetir os erros que eu cometi. – Que história é essa de se quebrar Marcinho? Tá amarrado! – É normal, mano. Eu já quebrei um monte de gente, um dia vou me quebrar. Você acha que eu banco passar trinta anos aqui? “Quebrar” significava se matar. Como morava na B4, praticamente de frente para minha cela, pude ver seu olhar sombrio enquanto falava. Outro dia, vendo-o contar das namoradas que teve antes de encontrar sua esposa, perguntei-lhe como os presos faziam para conquistar novas mulheres: – Ué, irmãozinho, cada um encontra a sua melhor forma. Dá pra mandar recado pro presídio feminino, com foto e tudo. Eu particularmente não gosto, a maioria é mulher problemática, chaves de cadeia mesmo, maltratadas. Sabe aqueles programas de rádio, que as pessoas carentes ligam pra pedir música e deixam o contato? – Ah, sei – não pude deixar de rir ao imaginar as canções melosas, a voz brega do locutor. – Então, daí eu pego o contato e fico muito tempo conversando com a “dona”, dando atenção, falando com carinho. – Mas você já diz que é preso? – Claro que não, né? Só depois que acho que a moça tá gostando de mim é que chego e falo: “olha, vou te contar uma coisa muito importante”. Muitas vezes dá errado, mas algumas dão certo. Acho que a maioria de quem liga pra esses programas é preso. Fiquei imaginando um título adequado para um desses programas, que, pelo menos ali, certamente faria grande sucesso: corações penitenciários ... Também ficava claro para mim como o uso de celulares era algo absolutamente banal dentro do sistema prisional, sobre o que se falava com a maior naturalidade. Os evangélicos da galeria não gostavam de Marcinho, não apenas porque jamais participava das orações – eu reforçaria esse grupo –, como porque provocava os cristãos, chamando-os idólatras. Uma vez, falando da Bíblia, deu uma versão bastante peculiar da crucificação de Cristo: – Cristo não foi crucificado nada, colocaram um ladrão no lugar dele. Ele saiu fora e foi viver a vida. Achei engraçada aquela versão, bastante lógica do ponto de vista de quem vive naquele ambiente.
Às vezes, esses presos veteranos começavam a conversar entre si, contavam histórias passadas, desenrolavam “tretas” antigas. Eu, como boa parte dos outros presos iniciantes, julgava aquilo completamente indecifrável: “visão”, “comarca”, “pular fogueira”, “desenrolado” e outras gírias mais, típicas da pequena, porém complexa, sociedade prisional. Volta e meia se desentendiam, gritavam alto, parecia que o negócio ia ficar sério, mas, quando as grades eram abertas e saía o banho de sol, tudo ficava exatamente como antes. Xingamentos, jamais. Foi de um deles que ouvi, certa vez: -– “Vai tomar no cu” e “filho da puta” não existe na cadeia. Quem falar isso pro outro tá morto. “Morto”: tá sem moral, sozinho, tá ferrado. Somente em casos considerados extremamente graves, como deduragem ou assédio sobre companheiras de outros presos, pode ser tomado literalmente. Bem de frente para mim, na B2, morava o Edinardo, um negro de óculos que tinha a aparência mais pacífica do mundo e carregava sempre um sorriso amarelo nos lábios. Acusado de matar a esposa a facadas, por ciúmes, negava ser o autor do crime. Marcinho, que estava ao lado, não perdoava: – Cara, daqui a pouco você sai. Mas ó: fica bem longe da Tramontina! Conversávamos amiúde, no princípio. Eu contava sobre as manifestações; ele dizia apoiar os protestos, embora não participasse deles, pois trabalhava muito, encarando todo dia o trem lotado de Padre Miguel para São Cristóvão. Nas horas vagas, Didi, como o chamávamos, era dj e chegou a tocar no famoso baile de charme de Madureira. Quando falava da música, parecia esquecer a prisão, o tormento da mulher morta, as misérias que o futuro lhe reservava. Sobre o processo, me disse ter assinado a confissão, embora inocente: – Por que você fez isso, cara?! – Cheguei sozinho na dh ¹² , os policiais me ameaçaram, falaram que era melhor se eu colaborasse. Tava nervoso, assinei. – E agora? – Agora, minha advogada vai correr atrás. Eu fui obrigado, eles disseram que eu era um “preto safado”, que, se não assinasse, eu ia entrar na porrada. Eu não sabia o que fazer...
Marcinho, ao mesmo tempo em que Didi falava, fazia uma careta, como quem diz: Mentira. Embora busquem ajudar-se mutuamente, na medida do possível, sobretudo contra a depressão, que ameaça a todos, os presos têm uma forte tendência a não acreditar naquilo que seus companheiros dizem. Esse é um dos aspectos mais complexos da vida na prisão, que a essa altura, nos primeiros dias de Bangu 10, eu não podia compreender: a dificuldade de separar claramente a verdade da mentira, em um ambiente em que os laços são sempre transitórios, em que uma transferência pode cortar abruptamente relações construídas ao longo de meses ou anos, no qual o objetivo número um dos seus membros é sobreviver. Nesse sentido, na prisão, realmente, não há santos, embora praticamente todos se declarem inocentes. Com o passar do tempo, principalmente depois que retornei da transferência, diminuíram meus contatos com Didi, que se isolou cada vez mais dentro da cela. A cada dia parecia mais abatido, consumido pelas sombras que se acumulavam em sua consciência, pela saudade dos filhos pequenos. Volta e meia eu chegava à porta da cela e gritava: – Aê, Didi! Fala aê, Didi! E ninguém respondia. Marcinho insistia: – Aê, Didi! Suave na nave? Só, então, ele aparecia, com a cara inchada de sono ou lágrimas, e respondia com seu característico sorriso sem graça: – Suavão, pô. Tranquilidade. Suave na nave. Ele foi transferido (provavelmente para uma cadeia em São Gonçalo) quando a prisão temporária foi convertida em prisão preventiva e já não poderia ficar em um presídio de triagem. Iria para mais longe dos filhos e do bairro querido, onde até há pouco reunia-se com os amigos para tocar charme. Saiu com a roupa do corpo, que era a única coisa que tínhamos em Bangu 10, sem despedir-se de ninguém, sem olhar para trás. Mergulhado em sua agonia. A transferência Era um sábado ensolarado. Havia tomado emprestado com Marcinho um pouco de Pinho Sol, um faxina disponibilizara uma vassoura, que foi passada de cela em cela, e pus mãos à obra, de modo que o meu cubículo estava limpo. Terminado o trabalho, sentei na entrada da cela, com as pernas para fora da grade, e fiquei conversando com Marcinho e Didi. Eles começaram a cantar uns funks antigos, logo acompanhados por vozes mais ao fundo. Eu estava interiormente tranquilo, aguardando a decisão do “HC” ¹³ impetrado pelos meus advogados, a ser votado provavelmente na próxima semana. De repente, estalar de cadeado. Silêncio na galeria. Um guarda berrou:
– Igor Mendes da Silva! – Cela B1, senhor. – Transferência! “Transferência” significa que o detento deve arrumar imediatamente suas trouxas, sair sem tempo de despedir-se dos companheiros, dar novo mergulho no escuro. Pra uma melhor? Pra uma pior? No longo pátio, já havia uns trinta ou quarenta presos enfileirados, passando pela revista. Um guarda gordo, sentado em uma mesa, me disse apoiar os protestos, mas detestar aquela turma dos “direitos humanos”. – Um monte de hipócritas – disse-me, “solidário” com minha situação. – Esse pessoal do Estado vem aqui defender os direitos humanos, mas bota gente como você na prisão. Seu Fagundes, como era chamado, tinha outros motivos, digamos, menos ideológicos, para detestar “esse pessoal dos direitos humanos”: era um dos guardas que mais gostava de espancar os presos. Foi ele quem me disse que eu iria para o presídio Patrícia Acioli, em São Gonçalo. – Como é lá? – perguntei. – Mamãozinho – respondeu –, telefone e droga é lixo. Ao seu lado, estava um guarda com a inconfundível camisa preta da SOEGSE, a tropa mais odiada pelos presos, devido aos espancamentos e toda sorte de abusos que costuma praticar contra seus escoltados. Este guarda cantava, animadamente: – Aqui estou mais um dia, sob o olhar sanguinário do vigia. Quem diria, o guarda cantando Racionais. Faltou aquela parte: “Passa fome metido a Charles Bronson”. Fui colocado no fundo do camburão lotado. Apesar da apreensão, por não saber o que me esperava mais à frente, minha mente estava aguçada para saber quem eram aqueles homens, em geral negros, magros, com as roupas esfarrapadas. Eram o “povo do abismo” ¹⁴ , aqueles presos que, da minha cela na galeria B, via chegando às centenas no presídio, em fila indiana, recebendo aleatoriamente socos dos guardas. Não havia grandes traficantes ou presos notórios ali, mesmo porque esses, em geral, nunca se misturam à massa carcerária. Tratavam-se de “157” (acusados de assalto à mão armada), “156” (acusados de furto), “121” (acusados de homicídio), pequenos traficantes. Ao meu lado, estava um jovem de dezoito anos, com sotaque do Sul. – Da onde você é? – perguntei. – Sou de Joinville, Santa Catarina.
– Pô, saiu lá do frio pra “rodar” ¹⁵ no Rio? – atalhou outro. – Vim participar de um assalto. – Assalto de quê? – Banco. Lá em Joinville tem uma turma especializada. – Hã... De repente, do fundão, alguém se manifestou: – Aí irmão, se tiver vaga... tô cansado de rodar na rua, fazendo bagulho pequeno. Roubo grande é que dá futuro. Pude perceber, rapidamente, que meus companheiros eram majoritariamente jovens entre 20 e 25 anos, pés-de-chinelo no mundo do crime. A esmagadora maioria era reincidente. Os novatos em cadeia, como eu, eram exceção. Não demorou muito, a conversa chegou até mim: – Aê mano, qual é a tua bronca? – Eu sou preso político, das manifestações. – Pô, tu é blé, blá, back bloc? – Não, mas eu sou manifestante, luto contra o governo. – Pô, maneiro! Outros gestos de aprovação, e perguntas, seguiram-se: – Aí, tu é do bonde da Sininho? Bonde da Sininho, que engraçado... – Ela também teve a prisão decretada, mas está na clandestinidade. – Aí irmãozinho, foi tu que não quis cortar o cabelo, que deu aquele caô lá com os guardas? Finalmente saberia o que ao menos um daqueles que estavam agachados, de cabeça baixa, havia pensado do meu gesto. – Fui eu mesmo. – Aí menor, é isso aí, não pode baixar a cabeça pros “polícia” mesmo não! Do seu modo simples, aquele desconhecido me deu a notícia mais importante dos últimos dias. Presídio Patrícia Acioli Da passagem por São Gonçalo não tenho muito a dizer. Na chegada, o mesmo procedimento de revistas, nomes etc. O tratamento dos guardas era
visivelmente menos agressivo do que em Bangu – dificilmente poderia ser mais brutal, realmente. Quando me declarei “preso político”, não ouvi de volta um xingamento ou um grunhido insatisfeito, mas apenas um olhar curioso por parte do chefe do plantão que nos recebia. Após explicar-lhe o motivo da minha prisão e de ter a ficha conferida, fui separado dos demais detentos. Virando-se para um subordinado, ele ordenou: – Não sei por que diabos mandam um cara desse pra cá. Tranca ele no “porquinho ” ¹⁶ , enquanto eu decido o que fazer. Fui trancado, sozinho, numa cela próxima ao pátio interno da prisão, ao lado da sala dos guardas. Era uma cela imunda, sem pia, sem boi , sem comarca ¹⁷ . Recusei-me a sentar naquele chão sujo, e pus-me a caminhar de um lado para o outro, pensando na vida. Pensava no que eu estaria fazendo naquele sábado à tarde, em liberdade. Quem sabe onde eu estaria daqui a uma semana? Havia esperança, afinal, nos próximos dias, supunha, seria julgado o Habeas Corpus . Como estava perto da sala dos guardas, ouvia seu rádio, podia ver um deles lendo jornal, sonolentamente. Como seria bom ler o jornal! Horas depois, quando já anoitecia, o chefe dos guardas apareceu diante de mim: – Vou te colocar na cela de curso superior. Segunda o diretor vê o que faz contigo. Eu vou te dar essa moral, mas olha: você vai ter que colocar a Sininho na minha fita, ok? E riu. Essas pessoas sentem uma necessidade inexplicável de parecerem engraçadas. Patrícia Acioli é um presídio baixo, mal iluminado, bastante sujo e completamente superlotado. Fiquei na galeria A, cela 3, se não me engano, reservada aos que possuíam curso superior, raríssimos por ali. Na mesma galeria, ficavam os faxinas e os que não podiam conviver no coletivo, normalmente ex-policiais ou ex-bombeiros, acusados de pertencer a diferentes milícias. Na minha cela, construída para abrigar seis pessoas (possuía três beliches duplas), moravam apenas quatro, contando comigo: um paulista, Saviano, acusado de fraudar o sistema de informática de um órgão público; um inglês, David, casado com uma brasileira, enquadrado na lei Maria da Penha; e um alemão acusado de tráfico de drogas, cujo nome não me lembro, apesar de ter sido com quem mais conversei. Todos estavam presos há mais tempo que eu. Esse alemão me contava muitas histórias sobre as prisões europeias, que frequentou desde a juventude, ou sobre a forma curiosa como ganhava a vida no primeiro ano após a queda do Muro de Berlim: vendia pornografia, a preços superfaturados, aos moradores da antiga Alemanha Oriental, que não conheciam essa maravilha da “cultura de massas” do Ocidente... Nessa cela, passei o fim de semana, me alimentando melhor, conversando. Havia televisão e o mais importante: biblioteca, da qual um faxina – uma travesti, chamada Nati pelos demais presos, que a tratavam com o maior respeito – me trouxe o livro Farda, fardão, camisola de dormir , de Jorge
Amado. Quando o companheiro Marino D’icarahy, meu advogado, me visitou na segunda-feira de manhã, por volta das 11 horas, provavelmente me encontrou com o aspecto melhor do que as primeiras pessoas que me visitaram em Bangu. Ressalte-se, entretanto, que não fiquei nas celas “normais” do presídio, onde todos os relatos davam conta da presença de ratos, comida podre, superlotação. Na cela em frente à minha, por exemplo, com capacidade para abrigar seis pessoas, viviam doze. Tão logo meu advogado saiu, e voltei para a cela, lançando-me avidamente à leitura, um faxina me avisou, consternado: – Aê Igor: prepara tuas coisas, você vai pro isolamento. – Pro isolamento? Por quê? – Parece que você vai voltar pra Bangu. O Diretor disse que você é um preso especial, não pode ficar no meio da gente. Voltei-me rapidamente. Não tinha o que arrumar, na verdade. Os companheiros, muito solidários, ofereceram um monte de coisas, que recusei: conhecia o complexo de Bangu, sabia que nada entraria comigo. Disse aos meus novos amigos estrangeiros: – Se algum dia puderem, contem o que o governo brasileiro faz com quem o contesta. Fui colocado em uma cela solitária, dentro de uma galeria vazia. A única coisa que levei comigo foi o livro e uma garrafa de água. Pensei como seria deprimente passar a noite ali, sozinho. Ouvia presos conversando, ao longe, e o barulho da goteira que havia no teto, pingando, fazendo uma poça bem no meio do corredor estreito entre as celas. – Aê irmãozinho! Alguém gritou. Pelo visto, eu não estava sozinho. Menos mal. – Oi! – Aê irmão, você tem água aí? – Tenho sim, você quer? – Pô, quero sim, com todo respeito. Hoje ainda não ligaram a água, de sacanagem, só pra me massacrar. Eu estava na primeira cela à esquerda de quem entra na galeria. Ele, duas celas à minha esquerda, de modo que não tínhamos contato visual. Tinha visto, em Bangu 10, a habilidade com que os presos jogavam e pegavam objetos, de uma ponta a outra da galeria. Eu ficava sempre torcendo para não pedirem minha ajuda, dada minha completa inabilidade para aquele
jogo. Entretanto, como só havia nós dois na galeria, não me restava alternativa que jogar e acertar . Concentrei-me e joguei a garrafa, mas não com força suficiente para vencer a poça d’água, e ela ficou ali parada. – Puta que pariu! Foi mal, cara. – Tranquilidade. Deixa comigo. Rapidamente, o “amigo” amarrou um lençol trançado no chinelo, fazendo uma “teresa”, e calmamente “resgatou” a garrafa de água. Pareceu-me absurdo que tanto esforço fosse necessário por um gole de água. A distância entre nossas celas deveria ser de cinco metros. Antes que ele me devolvesse a garrafa, voltou o carcereiro: – Igor! – Aqui, senhor. – Prepara tuas coisas, o SOE já tá aí. Levantei, me despedi verbalmente do companheiro de infortúnio, desejandolhe boa sorte. – Vai com Deus, irmãozinho. Coloquei o livro do Jorge Amado numa sacola plástica, entre os itens de higiene. Não me sentia culpado por esse prejuízo ao Estado, que era, na verdade, apenas um “remanejamento”. O guarda, infelizmente, não pensava da mesma forma: – Esse livro é seu? Foi assim que saí do Patrícia Acioli sem a garrafa d’água e sem o livro. Antes de entrar no camburão, perguntei a um agente, que me pareceu menos hostil: – Pra onde estou indo, senhor? – Você vai pro Frederico Marques (Bangu 10). De volta a Bangu Cheguei a Bangu 10 por volta de meia noite, “massacrado”, como dizem os presos. Foram quase doze horas de um traslado que, em situações normais, teria durado no máximo duas. Paramos em vários presídios, trocamos de viaturas. Lá pelas tantas, um preso, apertado para urinar, gritou, quando o carro estava estacionado numa base do soe: – Aê meu chefe, com todo o respeito, posso ir ao banheiro? Não houve xingamentos em resposta, mas alguma piada que não entendemos, seguida de ruidosas gargalhadas. Após uns quinze minutos, e
porque o preso insistia, o “banheiro” veio até nós: um guarda abriu a grade da viatura e passou-nos uma garrafa PET de dois litros. Passei a noite de retorno a Bangu 10 na galeria A. Nas primeiras horas da manhã seguinte, fui retornado para a galeria B, colocado na cela 5. O espanto que encontrei na cara dos companheiros demonstrava o quanto aquilo era incomum. Marcinho, preso há oito anos, me disse: – Cara, nunca vi alguém voltar assim. Soube que a B5 havia sido limpa e desocupada, antes da minha chegada. O Estado que me prendera e a administração penitenciária, embora não admitissem publicamente minha condição de preso político – e de nenhum daqueles que esteve nessa situação –, na prática eram ciosos da minha vigilância e buscavam, no limite de suas possibilidades, diminuir meu contato com os demais presos, assim como com a lastimável situação carcerária, talvez por temer eventuais denúncias. Da minha parte, não lamentava ter voltado para lá: já conhecia os companheiros de galeria, estaria mais perto da minha família e era no Rio, afinal, onde tudo se decidiria. Não tinha ideia de quanto tempo demoraria naquele lugar, nem de como o regime de isolamento torna-se cada vez mais insuportável à medida em que se prolonga. # Quando voltei para minha cela em Bangu, na madrugada do dia dezesseis de dezembro, sabia que teria de encarar dias duros pela frente. Naquele dia, que coincidiu também com minha primeira ida ao Fórum para participar das audiências, meu Habeas Corpus foi negado pela Sétima Câmara Criminal do TJRJ, por dois votos a um. Os desembargadores entenderam que nosso comparecimento em um comício na praça Cinelândia “afrontou” o Poder Judiciário, sobretudo pelo fato de termos colocado mordaças para criticar o processo ao qual estávamos sendo submetidos. Imaginem se tínhamos razão para sentirmo-nos amordaçados... Uma desembargadora, que passou aquele Natal entre os seus, em algum apartamento luxuoso, bebendo vinhos requintados e apreciando a mesa farta, disse que, como pais fazem com seus filhos, também “aqueles meninos” – nós – necessitavam de um “corretivo”. Claro, tudo aquilo era apenas um “corretivo”. Sabia que não podia sucumbir. Havia que me preparar para a vida de detento. Confesso que pensei em todos os outros companheiros e companheiras, presos anteriormente, os quais, passada uma semana ou quinze dias, saíram pela porta da frente, sendo recebidos pelos seus, entre abraços afetuosos e palavras-de-ordem. Dessa vez, exatamente na minha vez, seria diferente. 11 “Primeira voz” ou quem “fala pela cadeia” é a liderança máxima dentro do presídio. É quem representa o coletivo de presos frente à administração e também quem dá a última palavra nas desavenças entre os detentos. 12 Divisão de Homicídios
13 Habeas Corpus . 14 Expressão cunhada pelo célebre escritor norte-americano Jack London. Referia-se às camadas mais profundas do proletariado, aquelas submetidas às piores condições de trabalho e existência. 15 “Rodar”, isto é, ser preso. 16 “Porquinho” é como se chamam as celas de trânsito. Nelas são mantidos os presos que aguardam atendimento, transferência ou que devem ser imediatamente separados dos demais. 17 A essa altura já aprendera que cama é “comarca” na linguagem da cadeia. Realmente, seria um pecado chamar de cama o concreto onde dormíamos...
REGIME DE CASTIGO Os companheiros Isolados como estávamos, a única ocupação possível era conversar uns com os outros. Normalmente os laços mais próximos se davam com os vizinhos de frente, por razão meramente geográfica: estavam mais próximos. Como Bangu 10 é um presídio de triagem, onde os detentos vêm e vão, em poucos dias vi inúmeros tipos habitarem a cela 6, de frente à minha, de número 5. Um professor universitário, evangélico, acusado de estupro (foi quem me deu uma Bíblia, única leitura a que tive acesso nesse período); um ex-policial militar, Júlio César, acusado de homicídio, angustiado de saudade dos filhos pequenos; dois peruanos, presos por furto, que passavam os dias cuspindo e arrotando dentro da cela; um matador profissional, Vitão, tipo singular; e mais um ou outro desgraçado qualquer, do qual não lembro mais o nome. Sempre que o vizinho da frente era transferido, a sensação de solidão nos assaltava, e vi gente chorar quando um “amigo” era chamado “de transferência”. Que bicho estranho é o Homem! Alguns julgam os presidiários pessoas perigosas, embrutecidas. Do ponto de vista emocional, foram as pessoas mais carentes que conheci: carentes, sobretudo, de quem os escute e veja como são, ou seja, seres humanos, com um passado, presente e – quem sabe? – um futuro. Também conheci, nesses começos, tipos mau caráter. É provável que houvesse até mais do que pude perceber, mas o fato de vivermos em celas individuais (o que colocava limites para a convivência) e também a inexperiência restringiam minha capacidade de discernimento. Por exemplo, a princípio via os faxinas como aliados, pessoas que por alguma razão (normalmente apadrinhamento) encontravam-se em situação privilegiada, mas que por isso mesmo estavam propensas a ajudar seus companheiros de infortúnio. Um desses faxinas, Júnior, (o mesmo que, estando sempre de chinelo novo, me jurava que os bens dos recém-ingressos eram rigorosamente incinerados), dizia-se um preso político, injustamente acusado de associação com o tráfico. Disse-me que podia contar com ele para o que desse e viesse e, acreditando em suas palavras, um dia pedi-lhe um livro emprestado, pois o ócio forçado era, dentre todas as coisas que tinha de enfrentar, a mais difícil. – Já, já vai seguir pra tu, tenho um monte de livro bom. Alguns dias depois, como não havia recebido nenhum livro, indaguei-lhe: – E aí, Júnior, se esqueceu de mim? – Não esqueci, não, Igor. Olha só, tem que perguntar pro Seu Taveira (chefe da segurança) se ele autoriza que eu te empreste o livro. Como eu, trancafiado dentro da cela vinte e quatro horas por dia, poderia perguntar algo ao chefe de segurança? Ele, ao contrário, passava parte do dia solto, circulando pela cadeia.
Um dia houve inspeção na galeria e aproveitei a oportunidade para perguntar a esse Taveira – que em outra oportunidade já me prometera acesso à biblioteca desativada da cadeia – se ele autorizava o faxina a me emprestar alguma coisa para ler. – Tudo bem. Pode pegar com ele. Passados vários dias, dei de cara com o Júnior, voltando da sala dos advogados: – E aí, mano, falei com Seu Taveira, ele disse que não tem problema de você me emprestar um livro. – Então tá bom, fica tranquilo. Aguarda lá que vai seguir. Terminou esse dia, depois vários outros, e fui transferido sem jamais receber o livro prometido por este sujeito. Dele, além de mentiroso, guardei a imagem de capacho, quando ilustrou nesses termos sua admiração pelo subdiretor do presídio: – Se ele mandar eu imitar um macaco, eu imito. Pelo menos nunca o vi agredindo outros presos, coisa que outro faxina, um tal de “Ciclope”, se orgulhava de fazer. Nem todos os faxinas eram gente dessa espécie, todavia: havia, entre eles, gente boa, que sempre que podia descolava um café a mais, ou encaminhava algum pedido qualquer. Mas esses eram normalmente mais vigiados pelos guardas, contavam com menos reputação entre seus companheiros e, por isso mesmo, margem de manobra mais estreita. Morava na B8, do lado oposto da minha cela, um tal de Reinaldo, negro, próximo dos sessenta anos, acusado de extorsão. Segundo boato que rolava na galeria, era pessoa rica, cujo caso atingiu certa notoriedade. Reinaldo era formado em Direito e estava preso há mais de dois meses naquele regime duro, aguardando transferência para Bangu 8, destinado aos que possuem curso superior. Numa época em que fiquei sem vizinho de frente passamos a conversar mais. Como ele era envolvido em esquemas eleitorais – emprestava dinheiro para candidatos, em troca de favores para a empresa de limpeza que mantinha –, conversávamos amiúde sobre política, ele concordando comigo que era tudo uma “bandalheira” mesmo, que era absurdo estarmos ali naquela situação e outras coisas do tipo. Na única visita que recebi naquele período, minha família conseguiu me passar um frasco de repelente. Como éramos muitos na galeria, não poderia, naturalmente, oferecê-lo a todos, mas vendo o quanto Reinaldo penava, emprestei-lhe. Daí em diante, sempre que ele ia conversar com seus advogados – o que fazia constantemente, pois sua esposa também era formada em Direito – trazia copos de refresco gelado para Betão e para mim, tirados da geladeira dos guardas, privilégio que só ele tinha. Isso, para nós, era uma verdadeira regalia, restritos que estávamos a beber as coisas na temperatura ambiente (ou seja, bastante quentes).
Como se vê, Reinaldo gozava de tratamento diferenciado por parte dos carcereiros e havia até um guarda que lhe trazia comida da rua, uma vez ou outra (não peguei essa fase, pois tal agente entrou de férias quase ao mesmo tempo em que eu cheguei ao presídio). No dia em que foi transferido, Reinaldo disse para Betão e para mim que, por intermédio desse guarda, nos enviaria uma comida especial, em nome da nossa amizade. Dizia-se comovido, particularmente com Betão, seu vizinho de frente, que se dispunha a dormir no chão para dividir com ele seu ventilador. Reinaldo prometeu-lhe também ajuda jurídica. Um dia, já na etapa final da minha estada em Bangu 10, perguntei ao Betão: – E aí mano, alguma notícia do Reinaldo? – Que nada, aquilo era só conversa. Muito amigo quando precisa da gente. Tipos assim eu já conheci vários. Havia bastante amargura na sua voz. Conheci também casos absurdos. Como o do rapaz que, passando ano novo em Copacabana, bêbado, pôs-se a balançar, lá pelas tantas, um desses postes pequenos, de sinalização de trânsito, que acabou caindo. Preso imediatamente por um PM, foi autuado na delegacia por dano ao patrimônio público, crime afiançável. Apesar disso, como os policiais o impediram de contatar a família, foi enviado, na manhã do dia primeiro, para Bangu 10, com direito a raspagem dos cabelos e todo o ritual de humilhações já descrito. Trancaram-no na galeria B. Estava visivelmente acuado, com medo de tudo e de todos. Busquei tranquiliza-lo, na medida do possível, e lembro ainda da sua expressão de incredulidade quando, dois dias depois, o guarda anunciou que o oficial de justiça chegara “na casa” com o seu alvará de soltura. Acho que saiu de lá tão estupefato quanto entrou. Um dia chegou à galeria um inglês acusado de tráfico de drogas. A maioria daqueles presos, de origem muito humilde, vários deles tendo passado praticamente a vida inteira atrás das grades, intercalando cadeias, jamais tinha conhecido um “gringo” pessoalmente. Daí que a chegada do inglês, chamado David, se não me engano, causou sensação. Todos os presos tentavam entabular conversação com o novo “hóspede”. Júlio César, o ex-PM acusado de homicídio, aprendeu que “how are you?” significa “como está você”, e passava os dias e parte da noite chamando o gringo: – David, David! How are you? E punha-se a rir, como se tivesse praticado um feito extraordinário. O pobre inglês que, no princípio, atendia solicitamente ao chamado do seu novo “amigo”, não tardou a substituir a solicitude por evidente desânimo, só não percebido por Júlio César, que continuava insistindo na grade: – David, David! How are you? Uma noite, um preso desejou ao David “boa noite”: – Goog night.
E o ouvi explicando, a seguir, para outro preso, que lhe perguntara o significado daquelas palavras. – Gúdi significa noite, e náite boa, entendeu? Boa noite. – Ahn... Ri sozinho, na minha cela, esquecendo um pouco tantas misérias. Era como se naquela galeria, cujas penas somadas elevavam-se a centenas de anos, a simples presença do gringo houvesse convertido homens tão curtidos em simples crianças... Betão Roberto, ou simplesmente Betão, como era chamado pelos demais presos, foi o detento que mais me impressionou, nesses primeiros tempos em Bangu. Alto, gordo, com a cara macilenta, a barba por fazer, abrigava no corpo flácido resquícios do homem forte de outrora. Com um currículo que abrangia desde assaltos a banco e carros-fortes até participação em sequestros e várias tentativas de fuga, estava preso ininterruptamente desde 1999, sentenciado a mais de trezentos anos. Com uma pena dessas, teria de cumprir, inapelavelmente, trinta anos em regime fechado. Morava na B7, ao lado da minha cela, embora a ausência de contato visual dificultasse nossa comunicação. Dificultava-a também sua crônica dependência de remédios, pois Betão estava quase todo o tempo dopado, dormindo no fundo da cela. – Betão! Betão! Gritava quase toda a galeria para acordá-lo, na hora do confere . Havia guardas que já nem ligavam, pediam apenas que fizesse um gesto, mostrando estar vivo. Sua voz lenta, nem doce nem amarga, era inconfundível. Era o médico da galeria: sofrendo de uma série de problemas de saúde, tinha sempre um remédio à mão para os males que apareciam, principalmente antidepressivos, fortíssimos, capazes de fazer um homem dormir ao ponto de “cair da comarca ”, como se dizia. Mas o aspecto que, nele, mais me chamou atenção foi a postura digna que mantinha diante de guardas e dos demais presos. Diferentemente de outros presos, que ficavam “fanfarronando” e às vezes se punham a discutir uns com os outros, Betão falava sempre pausadamente, nunca elevando o tom de voz, impondo respeito quase que naturalmente. Em geral, os guardas também o respeitavam, e alguns talvez até o temessem: a ficha indicava Betão como um preso “problemático”, tendo ido às vias de fato com mais de um carcereiro ao longo da sua peregrinação por quase todos os presídios do Rio de Janeiro. Por isso, e também pelas inúmeras denúncias que fez contra a administração penitenciária, era perseguido, o que explica sua longa estadia em Bangu 10, local completamente inapropriado para presos sentenciados.
Em um dia de visitas, um guarda novo, arrogante, chamou um a um os presos para o pátio, praticamente sem revistá-los, mas, na vez de Betão, agiu diferente: vetou que este levasse um pote de plástico, alegando ser maior que o permitido, mandou-o tirar a roupa, agachar três vezes, na frente de todos. Ainda completou: – Agora vira de costas e agacha de novo! – Seu fulano de tal, com todo respeito, eu não sou viado pra virar de costas pra outro homem. Betão disse isso sem qualquer alteração, com toda calma do mundo. O guardinha, que na verdade, diante dele, não passava de um fedelho, ficou desconcertado, dispensou Betão do procedimento vexatório. Essa atitude definia-o, realmente, e era rara em pessoas cumprindo penas tão longas, em geral acostumadas a ser mandadas e desmandadas ao bel prazer dos funcionários. Outra característica típica do universo presidiário, contudo, ele a tinha fortemente entranhada: a desconfiança. Betão, que já sofrera várias traições por parte de advogados golpistas e falsos amigos, dizia-me amiúde, quando mantivemos contato mais estreito: “ Não confie em ninguém ”. Um dia, voltando da visita – sua mãe e sua esposa não o abandonaram, mesmo com todo aquele tempo, o que também era excepcional – me gritou na grade: – Aê Igor! Igor! – Fala, Betão! – Pô irmão, bota a mão na grade aí, vai seguir uma parada pra tu. É humilde mas é de coração. Enviou-me, embrulhado em um plástico transparente, salpicão, um pouco de leite condensado, leite em pó. Isso, depois de tanto tempo vivendo apenas da boia insossa da cadeia, era um manjar! E, principalmente, sinal de verdadeira consideração. Por alguma razão, aquele sujeito taciturno encontrou motivos para se abrir um pouco mais comigo. Numa manhã em que estava desperto, o que era raro, contou-nos como entrou para a vida do crime. A história era tão insólita, e a narrou com tanta naturalidade, que pôs a galeria inteira a rir: Roberto trabalhava como segurança num banco, empregado de uma firma terceirizada: – Um dia, um amigo lá do meu bairro perguntou se eu não queria ganhar um dinheiro fácil, sem ter que fazer nada. Aí, conversa vai, conversa vem, eu aceitei, entendeu? O dinheiro “fácil” consistia em contribuir para o roubo da agência na qual trabalhava. Sua participação na empresa seria simples: estando no controle da porta giratória, deveria liberar a entrada dos assaltantes armados.
– Éramos dois seguranças e a gente revezava, uma hora um olhava a porta giratória e outro o interior da agência. O combinado era que quando eu tivesse na porta uma loura ia chegar e, estando tudo bem, eu piscaria o olho pra ela, entendeu? Era só isso que eu tinha que fazer. Por duas vezes, a mulher aproximou-se da agência e Betão fez que “não” com a cabeça. Na terceira, piscou o olho e, ato contínuo, liberou a entrada do bando. Uma vez no interior da agência, os assaltantes dirigiram-se à boca do caixa, anunciando, então, o assalto. A mulher loura estava encarregada do saque, enquanto outros três homens espalharam-se em pontos estratégicos. E aí começou o problema: – Tinha eu e mais um outro segurança na entrada, e outros dois dentro da agência, entendeu? Aí os caras entraram e desarmaram todos os guardas, menos eu. Eu falei no ouvido de um deles: pega minha arma porra, assim você vai me foder! Mas ele não quis me ouvir. Nisso eu mesmo me joguei no chão e já me liguei que os outros guardas tavam olhando pra mim, entendeu? Aí o gerente tava conseguindo sair de fininho, e quando eu vi que ele ia pra rua, me levantei e peguei ele na gravata. O cara, todo assustado, falou pra mim: – Me solta, eu sou o gerente, porra! – Por isso mesmo – respondi, sacando a arma. – Onde é que já se viu sair assim, no meio do assalto? Prosseguiu: – Nisso, o pessoal passou por mim com os malotes, e saiu fora. De repente eu fiquei sozinho com o gerente na gravata, os outros guardas olhando pra mim, entendeu? Só que eles tavam desarmados, foi a minha sorte. Mandei eles ficarem com a cara colada no chão e saí fora, peguei o primeiro táxi e não voltei mais em casa, nunca mais. Desse dia em diante eu fiquei foragido. Era fevereiro de 1998 e Betão, o amigo solidário que conheci na prisão, entrava definitivamente na vida do crime, em parte devido às trapalhadas (ou seria armação, para não dividir a grana com mais um?) dos seus comparsas. Viveu intensa e perigosamente essa existência, até janeiro de 1999, quando, delatado pela mesma “loura” do assalto ao banco, foi preso em uma tranquila praia do Nordeste, onde curtia o dinheiro do sequestro de um empresário famoso. A rotina A galeria consistia em 14 celas individuais, muito altas e estreitas. A cela – ou “cubículo” – é a unidade básica da cadeia. No seu interior, havia um pequeno corredor, no fundo do qual ficava a comarca e no canto o boi , separado do restante do cubículo por uma parede de cerca de 1,5 metro. O boi , além do buraco no chão e um cano usado como chuveiro, tinha um pequeno tanque, propositalmente entupido pelos presos para armazenar água. Isso era necessário porque os guardas só abriam o registro duas ou três vezes ao dia, por dez minutos cada vez. De dois em dois dias, esse tanque devia ser esvaziado, pois do contrário ficava completamente
infestado com larvas de mosquito (mosquitos que, aliás, eram um dos maiores inimigos dos presos naquele inferno). As paredes sujas no interior das celas, descascadas, tinham as cores azul e branco. Não havia, por parte da direção, qualquer preocupação com a limpeza das celas. Nos quarenta dias em que lá estive, apenas uma vez peguei em uma vassoura e, para varrer o chão, tinha que recorrer a uma camisa velha. Obviamente também não tínhamos acesso a desinfetante, água sanitária ou qualquer produto de limpeza, e mesmo a posse de um balde nos era negada. Como, por questão de segurança, não havia ralos nas celas, nem na galeria, lavar o chão era tarefa praticamente impossível. Para lavar as roupas, tínhamos que nos contentar com água e o sabonete ralo que nos forneciam, de modo que bastavam dois ou três dias para que uma camisa branca ficasse completamente cinza. Também não tínhamos acesso a espelho ou barbeador e cheguei a ficar várias semanas sem ver o meu rosto. Quando, finalmente, pude me ver, no banheiro do Tribunal, assustei-me diante da figura magra e maltratada refletida no espelho. Colchão nunca faltou na galeria B, mas quando cheguei à penitenciária, no princípio de dezembro, os presos das galerias do “miolo” dormiam no concreto (na “pedra”, como diziam), e só no princípio de janeiro vi chegar um novo carregamento de colchões. Também faltavam roupas: lembro-me do aspecto sombrio que tinham aquelas turmas, às vezes com uma centena de presos, entrando de cabeça baixa no presídio, sem camisa, apenas com a bermuda azul da SEAP, embaixo de gritos e pancadas. Os pertences que acumulei nesse período de isolamento foram: uma bermuda e uma calça da SEAP (a bermuda recebi em São Gonçalo), duas camisas “brancas”, sabonete, pasta de dentes, uma escova, um desodorante e um isqueiro, herdado de um preso transferido. E uma Bíblia. Bangu situa-se em um vale entre duas elevações rochosas: os maciços do Gericinó-Mendanha e da Pedra Branca. Esse relevo dificulta os ventos que vêm do oceano de atingir a região onde fica o bairro e, além disso, restringe a plena circulação de ar no seu interior, formando uma ilha de calor. Seu clima quente é famoso, particularmente no verão, quando registra seguidamente as temperaturas mais altas da cidade. O complexo penitenciário também é chamado, na imprensa, “Complexo de Gericinó”, porque está construído no sopé do Maciço do Gericinó-Mendanha (e também porque os moradores de Bangu não gostavam de ter sua imagem associada ao presídio, levando a Prefeitura a desmembrar Gericinó há alguns anos, considerando-o um bairro independente). Por isso, como se pode imaginar, o calor no interior das celas era insuportável. O calor, associado às moscas e aos mosquitos, dificultava ainda mais aquela nossa nuda vita ¹⁸ . Os mosquitos eram tantos e tão grandes, que havia horas da noite em que era possível fechar as mãos, em qualquer lugar que se estivesse, e apanhar uma dezena deles. A principal, mesmo única arma, da qual dispúnhamos nessa guerra particular, era confeccionar uma longa tira de papel higiênico bem enredado, que colávamos com cuspe na parede, as célebres japiracas (até hoje, não faço a menor ideia da origem dessa expressão).
Bastava cair a noite e o cheiro de papel queimado dominava o ambiente. Para dormir, era comum acendermos quatro ou cinco japiracas simultaneamente, e eu desenvolvi uma técnica particular: fechava um cinturão ao meu redor, e embora acordasse com as vias aéreas congestionadas devido à fumaça, isso ainda era melhor do que ser devorado pelos insetos. As japiracas eram proibidas, mas na galeria B os guardas faziam vista grossa com relação a elas. Nas demais galerias não era assim, e os presos que porventura fossem flagrados acendendo-as estavam sujeitos aos espancamentos, praticamente único método disciplinar adotado ali. Alguns detentos relataram que, desesperados, devido à impossibilidade de conciliar o sono em meio ao calor e aos mosquitos, e também às baratas, rasgavam a capa dos colchões novos e se “entocavam” lá dentro – o que também poderia redundar em castigos, por terem danificado o patrimônio público. Um colchão, naturalmente, é patrimônio muito mais valioso que reles presos... No penúltimo dia da minha permanência em Bangu 10, Seu Edson, um guarda veterano, evangélico fervoroso, que, não obstante agredia os presos ao sinal da menor insatisfação, chamou minha atenção enquanto fazia o confere , do qual participava o subdiretor, Seu Nunes: – O que é isso aí? – apontou para um pedaço de papel apagado, colado na parede. Que vacilo, esqueci! Sem remédio, respondi, francamente: – É uma japiraca, senhor. – Ahh, japiraca... e quem é que acendeu ela pra você? – Não sei não, senhor, apareceu acesa aqui na porta da minha cela. – Ah, apareceu acesa? E, virando-se para o subdiretor: – Olha aqui sub, tão acendendo japiraca na galeria B, estragando a parede... Não vi a resposta do subdiretor, que provavelmente fez algum aceno dando menor importância ao fato, e foi embora com a comitiva. Se esse guarda fuxiqueiro soubesse que era eu mesmo quem acendia as japiracas de toda a galeria, com o isqueiro que possuía, talvez eu ficasse em maus lençóis... O dia na prisão começava com o confere , a contagem dos presos, por volta das sete horas. Após o confere, “caía” a água, bem precioso e controlado na cadeia. Essa era a hora de tomar um banho para despertar, escovar os dentes, reunir forças para encarar um novo dia. Ocorreu uma vez, nessa época, de eu comentar com um preso vizinho: – Mais um dia... Ao que ele advertiu-me:
– Menos um dia... Faz sentido. Logo a cortina ¹⁹ da galeria se abria e os faxinas traziam-nos a refeição: pão puro (raramente vinha com margarina) e um copo de café ralo, com gosto de remédio. Durante o café, começava a conversa com os demais presos, que durava mais ou menos uma hora, até que aos poucos os detentos voltavam a dormir ou iam cuidar de seus pequenos afazeres, e o silêncio reinava novamente na galeria. Este só era interrompido pelas entradas e saídas de presos, que ocorria incessantemente, exceto aos domingos. Nessas horas, eu aproveitava para varrer a cela, com as mãos, ou me sentava no chão, encostado na parede, para pensar na vida. Muitas vezes, punha-me a cantarolar canções queridas, para mim mesmo, de modo a mitigar um pouco aquela monotonia cinzenta, opressiva. Por volta das onze horas caía o almoço. A comida era tão ruim quanto o lugar. Preparada com pouquíssimo sal, tornava-se mais insuportável com o passar do tempo. Tanto o almoço quanto a janta consistiam em quentinhas (“brilhosas”) com arroz empapado, às vezes meio cru, macarrão, alguns caroços de feijão e uma carne, que variava entre fígado, moela de frango, salsicha, linguiça ou carne moída. Também serviam um frango branco, sem tempero, e um empanado horroroso, gordurento, que os presos chamavam de “chinelão”. Não havia saladas ou frutas. Espaçadamente, recebíamos um bolinho industrializado, mas, geralmente, nossa única fonte de açúcar era o café pela manhã e o refresco industrializado, também muito ruim, quente, distribuído nas refeições. Pensava se tratar de uma comida padrão em todo o complexo de Gericinó, mas não: quando cheguei a Bangu 9, descobri que, ali, a alimentação era sensivelmente melhor, e também maior a porção servida na quentinha. Pelo menos, nunca recebi comida azeda, e soube que isso resultou de uma longa luta dos próprios presos. Era absoluta questão de honra que, se alguém, ainda que fosse um único preso, recebesse alimento estragado, todos os demais tinham que se recusar a comer, colocando a “boia” para fora da cela. Também não tínhamos talheres, nem de plástico, e havia que improvisá-los com a cobertura da quentinha. Não foram poucos os que vi comerem com as mãos. Enquanto comiam, os presos retomavam as conversas na grade. Passado um tempo, voltavam a recolher-se para a sesta e o silêncio reinava outra vez, até que estalasse um cadeado, ou o som inconfundível de gritos e pancadas. Para mim, que dificilmente durmo durante o dia, as tardes eram o período mais difícil – foi assim durante todo o tempo em que estive preso –, principalmente durante o verão, quando pareciam intermináveis. Buscava criar, com os exíguos recursos de que dispunha, artifícios para preencher o tempo, estabelecendo algo próximo de uma rotina. Era justamente à tarde que fazia minha série de exercícios físicos na cela. Após isso, esvaziava o tanque, que propositalmente enchia até o máximo na noite anterior, de modo a gastar mais tempo para limpá-lo. Enfiava os copinhos de 200 ml de refresco na água, já infestada de larvas de mosquitos, uma, duas, cem vezes, com toda a calma do mundo. Outra tarefa, essa
normalmente cumprida pela manhã, era escrever palavras-de-ordem ou frases queridas, nas paredes, usando pasta de dentes como tinta. Meu campo de ação era restrito, uma vez que só podia escrever em lugares que ficassem fora da vista dos guardas. Lembro que, na parede do boi , desenhei a foice e o martelo e a consigna: “Ousar lutar, ousar vencer!”. De frente para a minha comarca , escrevi: “Liberdade aos presos políticos!” e “Resistir é preciso”. Também encontrei espaço para escrever, em letras pequeninas, a bela frase retirada da canção da Legião Urbana, que me enchia de ânimo naqueles momentos duros: “Ter bondade é ter coragem”. Cheguei ao ponto de apagar frases escritas apenas para refazê-las em seguida, a fim de ocupar os minutos intermináveis. Essas consignas não apenas distraíam-me, por uma pequena fração do dia, mas também eram fonte de incentivo para que não me deixasse abater. No fim da tarde, o zum-zum-zum das conversas voltava a dominar a galeria. Entre cinco e seis horas (às vezes mais cedo), caía a janta, seguida de cultos puxados pelos presos e nova rodada de bate-papo nas grades. Depois, o confere , a confecção das japiracas e o sono. No dia seguinte, a partir do momento em que a claridade nos despertava dentro da cela, tudo recomeçava, sempre igual. Do cubículo, eu saía apenas para conversar com meus advogados. Nessas ocasiões, eu era retirado da cela, revistado e trancado em uma sala com a porta de ferro, sem janelas, onde conversava com meus defensores, separado por uma vidraça. Lembro-me da cara de desolação estampada pelas companheiras que me visitaram pela primeira vez em Bangu, da sua luta por me infundir ânimo, disfarçando o que sentiam diante do meu aspecto. Esse era sempre um momento importante, não só para mim, mas para todos os presos: o contato com o mundo exterior, o mundo vivo, a certeza de que esse mundo ainda lembrava-se e lutava por nós. O vidro separava não apenas duas pessoas, mas duas sociedades bem distintas, a barbárie reinando absoluta do lado de cá. Mesmo esse momento de trégua nos era penoso em Bangu 10: a sala, hermeticamente fechada, era insuportavelmente quente, e finda a audiência tínhamos que bater na porta de aço, chamando o carcereiro, que muitas vezes respondia com um xingamento e demorava ainda mais para nos retornar à cela –, isso quando não ameaçava nos agredir. Nesse lugar, tive contato mais próximo com os presos das celas coletivas, e vi as escoriações em vários deles, resultantes das surras às quais tinham sido submetidos. Então esses são os donos das vozes que gritam. Já disse que a oração era parte da rotina na penitenciária (assim foi por todos os lugares em que passei). Quase sempre tive respeitada minha condição de ateu, na mesma medida em que respeitei a religiosidade dos demais. Nos primeiros dias, tive muita dificuldade para me acostumar com os gritos e os cantos desafinados, entoados em coro por aquelas vozes desconhecidas. Na galeria B, também havia cultos, mas apenas algumas vezes na semana, enquanto nas galerias ao fundo, abarrotadas de presos, essas orações eram diárias e muito altas. Ironicamente, apenas no plantão do guarda chamado Jesus elas eram proibidas. O ambiente de miséria em
que vivíamos, as cenas repetidas de desgraçados entrando de cabeças baixas e mãos para trás rumo ao interior da cadeia, o confinamento, o calor, as grades, tudo isso dava um aspecto fantasmagórico àquele lugar, ao qual as preces lamuriosas vinham somar um quê de hospício. Era comum, nos apelos, ouvir o Pastor (cada galeria tinha o seu) clamar: – Que Deus abençoe os juízes. Que nessa semana nós tenhamos uma chuva de alvarás aqui nessa prisão! As semanas passavam e, longe de choverem alvarás de soltura, chegavam mais e mais presos. Saídas, só para transferências. Os agradecimentos também eram de praxe, o que me inquietava particularmente. O que, afinal, tinham aqueles miseráveis a agradecer? Permanecer vivos, naturalmente: – Estamos aqui, guardados pelo Senhor, poderíamos estar mortos uma hora dessas! Ouvi isso um sem-número de vezes e sempre pensei que preferia estar “entregue” a mim mesmo, em liberdade, a permanecer “guardado” por carcereiros, em uma cela imunda de Bangu. Contudo, refletindo e estudando mais um pouco, concluí que para muitos, de fato, estar preso significava ter sobrevivido à guerra movida nas ruas contra a população marginalizada, aos assassinatos sumários em supostos “confrontos”, completamente à revelia da lei. Realmente, sem essas práticas religiosas, a prisão teria muito maior dificuldade em existir enquanto instituição. A privação de liberdade é algo tão desumano, tão insuportável, quanto mais em regime de isolamento celular, que a religião exerce papel de paliativo, um analgésico para suportar tantas desgraças. Infelizes que buscam, em uma força superior, aquilo que jamais encontraram neste mundo: a compreensão das suas angústias. O mesmo papel cumpre a droga, incluindo aí os remédios psiquiátricos, embora de difícil circulação ali em Bangu 10. Por mais absurda e tosca que fosse aquela rotina, busquei o mais rapidamente possível habituar-me a ela, como tática para vencê-la. Como já disse, dividia meu dia em quadrantes rígidos, buscando ter momentos bem definidos para conversar, esvaziar o tanque, exercitar-me, dormir e até refletir. Cada um desses gestos, pequeninos, minúsculos até, transformavam-se, naquele universo comprimido, quase que em um ritual. Essa regularidade e disciplina me foram fundamentais para manter a estabilidade psicológica e física, na dura disputa contra o enclausuramento cruel, pensado para quebrar almas e vontades. Na parede da minha cela, havia um risco, feito por outro preso, e a indicação ao lado: 16 horas. Bom? Ruim? Aliviar-me pelas horas que já havia vencido? Angustiar-me pelas que faltavam? Como saber... (Des) Tratamento Como tudo no sistema penitenciário, o tratamento médico dispensado aos detentos é cercado de precariedade e violação dos direitos mais básicos. Há
as exceções, como em todos os aspectos da vida – as perfeitas linhas retas só existem na imaginação humana –, mas elas apenas confirmam aquela regra, como diz o ditado. Ora, se a população livre sofre com a negligência do Estado em atender seu direito sagrado a um atendimento digno e eficiente, imaginem o que está reservado aos que se encontram atrás das grades, invisibilizados, privados na prática de uma série de garantias. ²⁰ Em Bangu 10, via chegarem constantemente detentos arrebentados de pancadas ou baleados, mancando, andando descalços no chão imundo da prisão, com os curativos abertos. Uma vez, um preso com princípio de ataque cardíaco foi tirado da cela e colocado deitado no corredor em frente à galeria, no chão, acudido por outros detentos, e só depois de horas chegou o caminhão da escolta para levá-lo ao hospital do complexo penitenciário. Jamais saberei se aquele preso sobreviveu. Felizmente, nunca fui à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) que atende aos presos. Mas via como os detentos demoravam, às vezes dias, na espera de um procedimento – mais tarde, um companheiro de cela meu, quebrando o pé no futebol de sexta-feira, só conseguiu transporte para o hospital na tarde de segunda, sofrendo de dor intensa por todo o fim de semana. Na viatura, os enfermos eram tão maltratados como os demais, os desmaios e vômitos causados pelo abafamento dentro do veículo ocorriam com frequência. No hospital penitenciário, os presos eram misturados dentro de uma grande cela – que eles chamavam de “Maracanã” – onde aguardavam a triagem. As condições higiênicas que me descreveram sobre o “Maracanã” eram dantescas. Tuberculosos e portadores de outras doenças contagiosas ficavam em meio aos demais, entre fezes, urinas e vômitos. Como não havia lugar para todos deitarem, muitos tinham que permanecer no chão imundo, aguardando às vezes mais de vinte e quatro horas para receber o primeiro atendimento. Apesar da fragilidade física, ocorria de desafetos encontraremse ali, alguns com dívidas de sangue entre si, outros pertencentes a facções rivais, e as brigas ocorriam sem que ninguém interferisse no sentido de finalizá-las. Nos casos de maior complexidade, os presos eram transferidos para os hospitais públicos fora da cadeia, onde eram mantidos sob escolta. Era comum a odiosa situação em que mulheres grávidas davam à luz algemadas. Em outubro de 2015, ganhou notoriedade o caso de uma presa que, mesmo em estágio avançado de gestação, foi colocada em uma cela solitária, onde acabou realizando o parto, sem qualquer assistência. Após o fato vir a público, e pela indignação que gerou, Andreia Oliveira, então diretora do presídio feminino Talavera Bruce, foi afastada. Pouco depois, o governador sancionou lei proibindo o uso de algemas ou outro tipo de contenção física durante o trabalho de parto de presas ou internas no sistema penitenciário fluminense. Não sei qual o efeito prático disto, porque na prisão não vale necessariamente o que está escrito, mas a própria necessidade de legislação prova o caráter generalizado desta infâmia. A relação médico-paciente, segundo me disseram, também era muito ruim. Ouvi mais de um relato de médicos referindo-se aos doentes como
vagabundos, perguntando-lhes qual era seu crime, rebaixando-se à condição de carcereiros. Não é crível, do mesmo modo, que ignorassem as condições degradantes imperantes no “Maracanã”, frente às quais faziam vista grossa. Seria injusto, todavia, concentrar neles toda a responsabilidade, jogo que satisfaz os interesses dos gestores (nesse caso, o governo do estado), quando lançam a população contra aqueles que estão diretamente na sua frente, como ocorre nas escolas públicas com os professores. Posso dizer, aliás, que quando os presos recebiam um mínimo de atenção sentiam-se gratos até o fundo das almas com os “doutores” ou enfermeiros e os seus sobrenomes corriam rapidamente de boca em boca, através das galerias, transpondo os altos muros das prisões isoladas. A situação era a tal ponto insuportável que os presos, em geral, preferiam sofrer de dor ou tratar-se por conta própria a pedir uma senha para ir à UPA. Nas unidades prisionais geralmente há enfermarias, mas essas funcionam apenas de segunda à sexta, em “horário comercial”, ainda assim irregularmente, com constante falta de profissionais e medicamentos. Dentro do sistema prisional, é absolutamente comum a convivência com presos dependentes químicos e atingidos por alguma doença mental. Não há qualquer separação, exceto quando ocorre uma crise e o detento é transferido para uma temporada no sanatório penal, de cujas condições e tratamento dispensado aos internos dizem-se serem piores e mais degradantes que nas cadeias comuns. As torturas O convívio com a tortura era parte inseparável da rotina em Bangu 10. A qualquer hora do dia ou da noite, mas principalmente durante o dia, quando chegavam novas turmas de presos, os espancamentos, xingamentos, humilhações e toda sorte de covardias vinham nos recordar onde estávamos. Os mais novos ficavam sobressaltados. Os presos mais velhos normalmente davam de ombros, sentenciavam: – É cadeia, mano. Nos primeiros dias, ficamos atordoados, como se estivéssemos em choque. Tudo nos parece terrivelmente caótico e os guardas nos surgem como bestas-feras, sádicos. Custamos a acreditar no que dizem nossos olhos, ou melhor, custamos a crer que a prisão seja exatamente tudo aquilo que dela se diz. Com o passar dos dias, entretanto, fui me dando conta de algo muito mais sério: nada ali é fortuito, mas obedece a uma lógica rigorosa, certamente perversa, mas metodicamente calculada. Os funcionários que sujam suas mãos para realizá-la não se veem como torturadores, mas como meros servidores públicos, fazendo aquilo que a sociedade espera. Senão a sociedade, ao menos os seus superiores. Não se dão conta que a tortura é mundialmente reconhecida como um crime de lesa-humanidade, muito mais grave que a delinquência ordinária que pretendem combater. Mas não apontemos apenas aqueles que emprestam suas mãos para que se consume o crime. A sucessão de responsabilidades é longa. Inclui o juiz que
decreta a prisão, indiferente e mesmo hostil àqueles que são objeto de sua decisão, pouco se importando para onde será enviado e em que condições será mantido o “seu” preso. Abrange os políticos que, em troca de votos, fazem o fácil discurso populista, prometendo leis ainda mais duras e maior encarceramento, investindo mais em construção de prisões e armamento das polícias do que na assistência à nossa juventude. Passa pelos burocratas dos milhares de órgãos que, de um jeito ou de outro, são responsáveis pela fiscalização do sistema penal, até chegar aos diretores e subdiretores que costumam fechar os olhos ante o “excesso” de seus homens. Isso para ficarmos restritos aos que operam o sistema penal, não discutindo as causas econômicas e sociais desses males, com raízes ainda mais profundas em nossa história. Toda essa complexa cadeia de comando tem sua parcela de responsabilidade no quadro lastimável do sistema penitenciário, classificado por diferentes organismos nacionais e internacionais como “desumano” e “medieval” ²¹ . Toda essa teia de erros, arbitrariedades e omissões – e de crimes – desemboca nos espancamentos que vi com meus próprios olhos, que tinham o claro intuito de “amaciar a carne”, educando os presos recém-ingressos na rígida disciplina do porrete que impera no submundo das prisões. Que tem na tortura, entendida mais amplamente, e não apenas como dor física, a sua espinha dorsal. O que é a própria privação de liberdade, afinal, senão uma forma moderna de tortura, igualmente cruel, embora socialmente aceita? Já relatei da minha chegada, dos socos e tapas, do ritual de raspar a cabeça, dos gritos histéricos. Sempre que chegavam detentos, com raras exceções, podíamos ouvir, das nossas celas, os barulhos de socos machucando a pele de alguém. Às vezes também víamos, nas mãos dos guardas, objetos de madeira, correntes. Um dia, voltando da conversa com minha advogada, vi um jovem magricelo sendo puxado pela orelha por um guarda que dizia: – Esse aqui tá dizendo que é do Comando Vermelho. – Ah, é? – perguntou outro. – Quero ver agora, seu viado! E deu um murro no rapaz inerme. Passando rápido, escoltado por outro carcereiro, fixei apenas, além da magreza, os olhos fundos, resignados do rapaz. Apanhou sem dizer um “ai”. Um dos guardas, Jesus, tinha o hábito de entrar de madrugada nas galerias do fundo da cadeia e perguntar, aleatoriamente, ao primeiro infeliz que lhe aparecia: – Você quer conhecer Jesus? Desconhecendo seu interlocutor, o preso costumava responder, ingenuamente: – Sim, senhor. Ou então:
– Eu já conheço Jesus, senhor. Independentemente da resposta, Jesus – o carcereiro – abria a cela, retirava o infeliz e dava-lhe uma surra na frente de todos. Muitas vezes os gritos chegavam até nós, acordando os detentos que dormiam, ou tentavam dormir, em meio aos mosquitos e à fumaça das japiracas . Jesus era um negro muito alto, seco de corpo, já veterano, com aspecto de boxer aposentado. Uma vez, um detento chegado da galeria D contou-nos uma história medonha. Jesus entrou naquela galeria no momento em que ocorria o culto evangélico. Autoritário, bradou: – Vamos acabar com isso aqui! Ao que o preso que fazia a função de pastor teve a ousadia de retrucar: – Que Deus te abençoe. – O que você disse? – Que Deus te abençoe, senhor. – Pois eu vou te dar uma benção agora, seu abusado! O guarda abriu a cela, puxou o infeliz e só terminou o espancamento quando o preso caiu desacordado. No dia seguinte, às seis da manhã, antes de passar o turno para o novo plantão, Jesus, “arrependido”, entrou na galeria D , mergulhada em um silêncio sepulcral. E, virando-se para o pastor: – Precisava disso? O preso, posto de pé com a ajuda dos companheiros, com a face cheia de hematomas, baixou a cabeça, quieto. – Precisava disso? – Não, senhor. – Eu não gostei de ter feito o que fiz, mas você me obrigou. Virou-se, trancou o cadeado, dessa vez sem muito estrondo, e saiu. Quiçá tenha sido o mais próximo de um pedido de desculpas que chegou a dar em toda a sua vida. O pastor ficou ainda uma semana cuspindo sangue, com as costelas doendo. Um dia chegou uma turma de uns cinquenta presos. Antes de serem distribuídos nas galerias, de acordo com sua facção, foram amontoados no porquinho da cadeia, uma antiga cela solitária, que ficava de frente para a galeria B. Fazia um calor infernal. Essa cela solitária era evidentemente pequena para amontoar meia centena de homens. Não havia janelas ou grades, já que era fechada por uma maciça porta de ferro chapada. Após uma meia hora, os presos, certamente sufocados, começaram a bater na porta, gritando:
– Funcionário! Aê funcionário, dá uma atenção, por favor! Após muita insistência, ouvimos o cadeado que dá acesso à parte interna da cadeia se abrir. Veio, então, o chefe do plantão do dia, do qual não sabia o nome, caminhando lentamente, indolente. – O que é? Não podíamos ver quem falava atrás da porta, apenas ouvir sua voz: – Seu funcionário, com todo respeito, poderia arrumar água pra nós, com todo respeito? Tá muito quente. – Aguarda aí preso, daqui a pouco vocês entram na cadeia e bebem água. E saiu. Como nada aconteceu, as reclamações recomeçaram. O mesmo funcionário retornou, dessa vez acompanhado por mais dois guardas. Ao olhar preguiçoso somava-se agora um sorrisinho mau no canto da boca. Dois faxinas vinham atrás, carregando uma mangueira grande, que ligaram em um tanque que havia próximo. O chefe do plantão, fingindo falar seriamente, perguntou aos presos, que não viam nada: – Vocês querem água? – Sim, senhor, com todo respeito – respondeu a mesma voz de antes. – Fulano de tal, abre aí! Outro carcereiro abriu a porta de ferro e, sem delongas, o chefe do plantão jogou nutridos jatos de água sobre os presos, gargalhando com enorme satisfação. Sentia-se um campeão! Assim permaneceu vários minutos, até enjoar, mandando desligar a água. Após a “brincadeira”, o grupo de guardas xingou mais um pouco os presos, trancou a cela e saiu. Não tardou muito a recomeçar a reivindicação pela água. Na verdade, nada impediria algum faxina de passar garrafas pet por uma fresta existente na parte superior da porta de ferro, mas ninguém se mexeu. Na galeria B, os presos mais veteranos proibiam os demais de tomar qualquer atitude: – Vai botar todo mundo na bola, além disso, não vai adiantar. – Isso vai dar merda, esses caras não sabem onde estão! Novamente, o cadeado estalou . Agora, do lado do chefe, perfilava toda a turma de guardas. Alguns carregavam pedaços de pau, cintos. Abriram a porta de ferro da cela: – Quem é que tá gritando aí? Quem é que tá gritando aí, porra! Seja homem pra assumir! Silêncio.
– Fala, porra! Se não falar entra todo mundo na porrada. Anda, fala logo! Dois presos se apresentaram. Saíram de cabeça baixa, com as mãos para trás, como manda o protocolo. Magros e sujos, acuados. O primeiro esboçou um argumento: – Meu chefe, é que... Antes que terminasse, levou um “telefone” (um golpe em que o agressor bate, com toda a força, as palmas das mãos no ouvido do agredido). A partir daí a pancadaria começou. Não víamos o que acontecia, pois os dois foram levados para a parede do lado direito da galeria, mas podíamos ouvir as pancadas secas de punhos, pernas e paus moendo, rasgando e massacrando carne humana. Por muito tempo, esta cena horrenda atormentou-me, e ainda hoje me arrependo de ter cedido à determinação daqueles presos mais velhos, alquebrados pelo cárcere, que nos mandaram ficar quietos. Tivesse mais tempo de cadeia, mais experiência, jamais teria acedido. No meu depoimento em Juízo, em março de 2015, denunciei a série de espancamentos que presenciei em Bangu 10, assim como os praticados pelo soe-gse durante as viagens presídio-fórum, além de denúncias que ouvi da boca de detentos de outras penitenciárias. Disse, com todas as letras, perante o Judiciário, o Ministério Público e a imprensa, presente à audiência, que a tortura é a regra no sistema carcerário, o que, convenhamos, não é nenhuma novidade. A própria Defensoria Pública do Estado do Rio publicou, em junho de 2015, relatório denunciando as péssimas condições dos presídios fluminenses, e a cadeia pública José Frederico Marques estava lá, figurando entre os piores. Para mim, não houve nenhuma surpresa. Pelo menos quanto ao que eu narrei em Juízo, desconheço que qualquer providência tenha sido tomada. A luta por pensar Nem por um único dia deixei de reivindicar acesso a papel e caneta, e também a livros, que tanta falta me faziam na guerra contra o tempo. Apesar disso, somente depois da minha saída de Bangu 10 pude suprir aquelas necessidades implacáveis. Um belo dia, um detento conseguiu subtrair uma caneta da enfermaria, que passamos a usar para enviar toques uns para os outros. Com essa caneta escrevi às pressas, no princípio de janeiro, em um papel higiênico, a primeira carta aos meus companheiros e entes queridos. Escondi-a no interior da bermuda e ditei o texto para a companheira advogada, na primeira oportunidade. A sensação que tive ao escrever essa pequena carta foi realmente libertadora, e a reli tantas vezes que acabei por decorá-la. Guardo, como uma relíquia, esse pedaço de papel rabiscado. Reproduzo, aqui, essas palavras, que expressam bem o meu estado de espírito naqueles dias rudes: Aos meus queridos companheiros e companheiras:
Estava ansioso para enviar a todos vocês saudações militantes desde essa prisão que tem sido há 37 dias a minha trincheira de combate. Não posso me alongar e também não é a oportunidade de relatar tudo o que tenho visto e vivido aqui. Queria apenas ressaltar, desde já, que todos os presos com os quais convivi respeitaram a minha condição de preso político e se mostraram solidários com a nossa causa. A vida aqui é muito dura, e não temos nada, a não ser uns aos outros. Não sofri nenhuma agressão física e me sinto saudável. Não tive, no entanto, ao longo desses dias, nenhum banho de Sol e me tem sido sistematicamente negado o acesso a livros e a papel e caneta. Recebi as suas cartas e os informes da campanha pela nossa liberdade, o que me encheu de ânimo e forças, pois ao esforço que vocês fazem eu tenho que corresponder à altura. Fiquei feliz em saber que estão todos firmes e de cabeça erguida, e na verdade não esperava outra coisa. É claro que não vejo a hora de recuperar a minha liberdade, para me dedicar ainda mais à nossa luta. Mas, caso ocorra o pior, não se abalem, a nossa convicção vale muito mais do que grades e algemas. Sairei daqui mais convencido de que o Brasil precisa de uma grande revolução, que derrube esse velho Estado burguês– latifundiário que tanto oprime nosso povo. Muito obrigado a todos. Às companheiras Karlayne e Elisa um forte abraço, é uma vitória do movimento popular que essa prisão política e arbitrária não as tenha atingido. Sigamos em frente, como diz a bela canção, ‘nada a temer senão o correr da luta’. Lutar não é crime! Agora e sempre, fascistas não passarão! Resistir até o final! 09/01/2015. Essa frase, “resistir até o final”, havia-a lido em uma carta escrita por Caio, preso desde fevereiro em Bangu 9, para a campanha pela liberdade dos presos políticos. Incluía-a agora para ressaltar a solidariedade existente entre nós, reforçada com a minha passagem para o lado de cá dos muros da prisão. Quando o preso já citado me presenteou com uma Bíblia, lembro-me de lê-la vorazmente, de manhã à noite, tendo que me esforçar para não terminá-la em muito pouco tempo. De tudo o que li ali, gostei, particularmente, do Eclesiastes e do Evangelho de Paulo.
Efetivamente, queriam privar-me não apenas da liberdade de ir e vir, mas da liberdade mesma de pensar. O que só mostra a força tremenda de nossas ideias, da causa que desde cedo abracei, inspirando inegável temor em todos aqueles que se dispõem a combatê-las. Em momento algum, mesmo mais tarde, quando já estava “estabilizado” na prisão, tendo meus direitos relativamente assegurados, seria pacífica a atitude da administração penitenciária frente aos meus livros, cujo cerceamento era a primeira medida que adotavam para me punir. Dia de Ano Novo À medida que nos aproximávamos das datas festivas, me preparava para momentos particularmente duros. Embora não me importasse tanto com aquelas datas, podia imaginar, no entanto, o quanto aquele fim de ano seria penoso para as pessoas queridas. Com o Judiciário em recesso, não havia qualquer perspectiva de liberdade à vista. Os presos, em geral, não gostam de feriados: para o homem livre significam descanso, reuniões, passeios; para o detento, apenas a impressão de tempo vazio, ainda mais monótono que os dias regulares na prisão, sem visitas ou banho de sol. Significam saudades mais agudas também. Em Bangu 10, aquele final de dezembro foi bastante movimentado, particularmente quanto às transferências. Sendo presídio de triagem, os detentos que lá estavam há mais tempo aguardavam apenas alguma decisão administrativa para pôr-se em marcha. Marcinho foi um dos primeiros a sair, insatisfeito com o destino que lhe deram: o superlotado Bangu 2. Como no fim do ano a burocracia parece andar mais rápido, a galeria B foi ficando cada vez mais esvaziada, de modo que quando saí de lá, no dia 11 de janeiro de 2015, éramos apenas cinco ou seis moradores. O fato da maior parte das celas estarem vagas, silenciosas, dava àquele lugar um aspecto ainda mais sombrio. No dia 23 de dezembro, tive a grata surpresa da visita do meu pai e da minha irmã. Não sabia que ela ocorreria, de modo que quando o guarda me chamou, na entrada da galeria, supus, sobressaltado, tratar-se de nova transferência. – O que é, seu fulano de tal? – Não sei. No pátio, na área administrativa, o chefe de segurança, Seu Taveira, um carrasco usando óculos fundos de garrafa e barba malfeita, me disse: – Olha, seu pai tá aí. Ele é da Aeronáutica, né? – Sim, senhor. – Pois é, gente boa. Acho que você não merecia estar aqui, mas não me cabe julgar. Claramente ele queria que eu respondesse algo. Fiquei calado. O tipo prosseguiu:
– Eu vou deixar ele te ver, mas vê se não chora, nem deixa ele preocupado, viu? Tô te dando um papo de homem. – Eu não sou de derramar lágrimas, e nem quero preocupar meus familiares. – Muito bem. Quanto aos livros, eu não pude autorizar que eles te entregassem os que trouxeram. Mas tem uma biblioteca desativada aqui, depois da visita te levo lá. Como não pude deixar de notar, sua preocupação era apenas uma: o que eu contaria para os meus familiares, que tipo de coisas relataria a eles. Claro que eu não dedicaria o pouco tempo de que dispúnhamos para descrever toda a miséria que tinha visto e vivido, as torturas, o isolamento desumano, aumentando com isso sua angústia. Como diz o provérbio, há horas de falar e há horas de calar, e eu sabia que tinha de esperar para falar. Mas, em todo caso, o chefe dos guardas preocupava-se com isso. Também não deixei de notar que ele disse ter “deixado” minha família me ver, quando eu sabia perfeitamente que aquela visita-extra fora obtida por pressão dos meus advogados sobre a administração penitenciária, o que fugia completamente à sua alçada. Na sala pequena, encontrei meu pai e minha irmã preocupados, ela com os olhos marejados, mas ambos firmes. Conheciam-me suficientemente bem para saber que nada me seria mais difícil que vê-los fraquejar. Quase nada puderam levar: comida e frutas foram proibidas, de modo que havia alguns biscoitos e pão de forma, além de um frasco de repelente, meu presente de Natal de 2014. Trouxeram-me também cartas, alimento para a alma, fonte de solidariedade e força para seguir resistindo. Após meia hora, contada no relógio, voltou Seu Taveira: – Acabou, Igor, vamos voltar. Depois, em Bangu 9, tive acesso a mais uma visita-extra. Vi outras pessoas na mesma situação e, então, descobri que a meia hora contada no relógio foi fruto tão somente do autoritarismo daquela figura mesquinha, preocupada em não comprometer-se. Nada, absolutamente nada, o impedia de estender aquele tempo, para mim tão precioso. Aproveitei para lhe perguntar: – Agora eu posso pegar os livros? – Depois eu te tiro lá. E olha só, as cartas, eu deixei você entrar com elas, mas vai ter que me devolver. Nunca cheguei a ver a cor desses livros. Quanto às cartas, havia uma, particularmente, que não pretendia devolver: a que a minha companheira havia escrito, da qual me chegara apenas a segunda folha. Cortei-a em quatro pedaços pequenos, meti-a dentro da Bíblia, enrolada. Em todo caso, não vieram cobrá-las. Os próximos dias transcorreram monotonamente, com a galeria B cada vez mais vazia. A procissão de desgraçados entrando no miolo da cadeia,
entretanto, não parava nunca: se numa noite iam embora cem infelizes, no dia seguinte, pela manhã, cem novos detentos iniciavam sua via-crúcis no sistema penal. No dia 25 de dezembro, a única referência ao Natal veio na quentinha: um frango mais ou menos assado. Quando algum preso cometeu a imprudência de desejar “Feliz Natal” ao faxina que servia a refeição, ouviu como resposta: – Você tá feliz aqui, por acaso? Alguns presos, entre os condenados que ainda se encontravam na B, receberam visitas. Depois de retornados para as celas, não houve as conversas animadas ou a troca de comidas que normalmente ocorrem nessas ocasiões: supus que estavam todos recolhidos, cuidando das próprias feridas. Betão, meu vizinho de lado, com o qual, justamente nessa época, passei a ter uma relação mais estreita, reclamava em voz alta: – Olha só, pessoal, meu remédio tá acabando. Mas entregava, solícito, antidepressivos para quem o pedia. Como se negálos não fosse uma possibilidade, simplesmente. No dia 31 de dezembro, às quatro horas da tarde, quando estava entregue a uma modorra meio febril, o cadeado estalou . O guarda, sonolento, tinha a expressão de quem apenas quer se livrar de um sujeito chato, desses que não conhecemos, mas agem como se fossem nossos velhos amigos. À sua frente marchava um sujeito alto, forte, branco, com o rosto ligeiramente bronzeado, os olhos meio puxados. Falava sem parar. – Meu comandante, eu fecho com a Polícia, será que o senhor poderia me arrumar um cigarro, meu comandante? – Aguarda aí preso, depois eu vejo isso. Abriu a B6, em frente à minha, e trancou o falastrão lá. Era só o que me faltava. Não me parecia nada bom ter interrompido meu sossego, quando tinha combinado comigo mesmo, naquele dia difícil, tomar pela primeira (e única vez) o remédio do Betão, ir dormir cedo, acordar em 2015. – Amigo, amigo! O homem me chamava. – Fala aí, mano – respondi desinteressado, demonstrando não estar nem um pouco a fim de companhia. – Você por acaso tem um cigarro? – Cara, eu não fumo.
– Não acredito, eu preciso de um cigarro, cigarro, cigarro! O homem falava comigo, mas parecia na verdade estar falando consigo, ou com o mundo inteiro. Pude ouvir, ao fundo, interjeições, que deixavam claro que eu não era o único descontente com uma presença capaz de modificar o triste equilíbrio daquele dia. – Amigo, amigo! Olhei de volta. – Onde é isso aqui? Onde estamos? – Estamos em Bangu 10. Havia lágrimas nos olhos daquele brutamonte, que estava visivelmente desnorteado. Pôs-se, então, a andar na cela, de um lado para o outro. Levantou o colchão, pegou na grade, como a conferir se aquilo era mesmo real. – Tudo de novo...tudo de novo... É cada um que me aparece. – Irmãozinho, eu sou Vitão, e você? – Eu sou Igor. Satisfação. – Satisfação. Vem cá, você não fuma mesmo? – Não. – Faz bem. De repente reconheceu Betão, embora este parecesse não reconhecê-lo: – A gente tirou cadeia junto, no Bangu 6, há uns cinco anos. Algum outro veterano pareceu lembrar-se dele. Enviou-lhe um cigarro, que Vitão quase comeu. Passado um período de relativa calma, este voltou a andar de um lado para o outro, reclamando do destino, de si mesmo, exigindo vingança. Como uma criança, que quer muito uma coisa, exatamente por não poder consegui-la. Depois do confere , já no escuro, piorou. – Vou me matar, Igor, eu vou me matar. E revirava a cela, aparentemente em busca de algo que pudesse usar para cumprir o seu desígnio. – Não fala isso não, cara. Bebe o remédio que o Betão te deu, amanhã você vai acordar melhor. – Acordar melhor, atrás dessa grade aqui? Não vou não!
– Olha só, me conta o que aconteceu. Por que você veio parar aqui? Claramente ele precisava apenas de alguém que o ouvisse, por horas e horas e horas. E esse alguém seria eu, para minha própria infelicidade. Meu ano novo passaria convencendo um matador – já sabia, a essa altura, ser essa sua “profissão” – a não pôr fim à própria vida. Vitão foi, apesar de tudo, um dos tipos mais extraordinários que conheci na prisão, um assassino confesso, mas surpreendentemente infantil, ingênuo até, inclusive nas mentiras que contava. Betão, extremamente desconfiado com tudo e com todos, diferentemente de mim, não dava nenhum espaço para suas histórias, e me mandava bilhetes, alertando: – Caôzeiro, contador de histórias. Garganta. Vitão me contou ter sido preso há dez anos, pelo assassinato de um agente penitenciário, que tentou seduzir a sua mulher. – A trabalho nunca rodei – disse-me, orgulhoso. Após cumprir uns seis ou sete anos, passou ao regime semiaberto. Há nove meses havia recebido o direito de sair diariamente da prisão para trabalhar. Conseguiu trabalho como ajudante de serralheiro e passou algum tempo sinceramente dedicado a se remendar. – Mas depois, encheu o saco. Olha, eu não nasci pra trabalhar oito horas por dia, ganhar salário mínimo. Voltou a matar, sempre na zona oeste, a serviço de políticos, gente ligada a transporte alternativo, bicheiros, milicianos. Seus patrões – normalmente os chefes de segurança daquelas figuras – eram quase todos policiais ou expoliciais, militares das forças armadas, agentes penitenciários graduados. Contou-me como entrou nessa vida, seu histórico de crimes, o orgulho que sentia por jamais ter deixado um “serviço” por fazer. – Nessa atividade, a gente só trabalha com pagamento antecipado, porque a morte não espera. Quando recebo o dinheiro, digo pro meu patrão: fica sossegado que esse aí já tá até fedendo. Certa vez, perguntei–lhe, à queima roupa: – Você já se arrependeu de algum serviço? Ele me olhou com os olhos fundos, ficou um tempo silencioso, até responder, aparentemente fugindo da pergunta: – Quero sair disso tudo, um dia. Segundo me contou, foi preso no dia 31 de dezembro por uma bobeira: estacionou o carro para urinar no acostamento, sem querer esbarrou no retrovisor de um carro, que caiu. Quando tentava consertá-lo, o dono do carro, um policial militar, achou que estivesse roubando a peça, abordou-o, revistou-o, e encontrou no seu carro um revólver, naturalmente sem registro. Vitão havia ganhado, como preso antigo, prestes a conseguir a liberdade condicional, o direito de passar algumas datas do ano fora da
prisão – benefício que os presos chamam de saídão – e o ano novo era uma delas. Saiu da cadeia, no centro da cidade, no dia 30, e só teria que retornar no dia 2 de janeiro à tarde. Detido em flagrante por tentativa de furto e porte de arma, perdia os benefícios que conquistara, retornava ao regime fechado, à estaca zero. – Igor, eu já não aguento mais essa vida. Confere , comarca , visão , não dá mais, eu não aguento. Confidenciou-me já ter recebido por um serviço que estava prestes a executar. Sem saber, por coincidências completamente estranhas ao seu domínio, uma pessoa tinha poupada sua vida. Pelo menos por enquanto. Um dia me disse, sinceramente preocupado: – Eu acho que vocês estão certos, esse país tá todo errado. Mas toma cuidado, irmãozinho. Conheço como as coisas funcionam, um político desses contrata alguém pra matar vocês, não dá em nada. Hoje eu não faria mais um negócio desses, mas tem quem faça. Como era um contador de histórias inveterado, sua presença, pelo menos, me distraía. Relatava-me longamente acerca daquele submundo em que vivia, guerras de quadrilhas, o dia-a-dia em diferentes prisões. Indignado com os espancamentos que escutávamos, defendeu para mim uma proposta bastante peculiar a ser adotada pela sociedade como alternativa às prisões: – Para mim, nenhum ser humano, nem meu maior inimigo, merecia ficar preso. Isso acaba com a pessoa. Pra que polícia, guarda, cadeia? Na minha opinião, tinha que ter um horário, por exemplo, de dez da noite até às seis da manhã, em que tudo podia ser liberado. Na rua, claro, porque casa é sagrado. Ninguém vai preso: mata ou morre, acabou. Quem quiser usar droga, usa. Todo mundo armado pra poder se defender. Fiquei no meu cubículo imaginando aquela sociedade distópica realizada na prática, talvez não muito distante da nossa realidade atual. Sobretudo nos bairros pobres, em que são rotineiros os toques de recolher impostos por diferentes algozes. Foi transferido alguns dias antes de mim. Na saída, chegou junto à minha cela e falou: – Meu nome completo é fulano de tal. Me procura, irmãozinho, você é meu fechamento. Meses depois, já em liberdade, procurei seu nome no sistema eletrônico do Tribunal de Justiça. Ao menos a versão que me contou sobre sua segunda prisão estava lá descrita: era rigorosamente verdadeira. # Naquele 31 de dezembro, depois que Vitão tomou meia dúzia de remédios e desmaiou, quando a penitenciária mergulhou em um silêncio profundo, tomei também uma pílula para dormir, “fraquinha”, segundo Betão. Queria
simplesmente acordar em 2015, esperançoso de que não passaria o próximo fim de ano naquela situação. Como seria para aqueles que sabem ser esse apenas um momento, duma jornada que ainda vai longe? Um dia, seguido por centenas de outros, milhares de outros, mais tantos anos novos? Como seria não ter a menor ideia de quando se recobraria a liberdade, como seria sabê-la remota, improvável? Marcinho, já em outro presídio, encarcerado há oito anos, sabia ter mais vinte e dois a cumprir. Betão, ao meu lado, dormindo pesadamente, havia sido preso em 1999. Em 1999, eu era apenas uma criança, rezava antes do Botafogo entrar em campo, jogava bola depois da aula, chamava minha mãe nas madrugadas, durante as crises de bronquite. Ele já estava lá. E depois que eu saísse, ele ainda continuaria, por muito, muito tempo. Para mim, preso há menos de um mês, tudo isso ainda era complicadíssimo, impossível de compreender. Com o passar dos meses, com a convivência reiterada com presos há mais de década, constataria com meus próprios olhos essa capacidade excepcional dos seres humanos de se adaptarem ao que quer que seja, e tornar, mesmo o mais rude dos lugares, um lugar humano. Alguns sucumbem, é verdade; alguns eu vi sucumbir. Mas a maioria segue em frente, ainda que precariamente, mas segue, como se impelidos por uma força desconhecida, presente sempre em alguma medida dentro de cada um de nós. O “fator x”, aquele ao qual se referia Tolstoi, ao descrever uma batalha. Pensando nessas coisas todas, adormeci, despertando, entretanto, logo em seguida: mesmo dopado, acordei com o barulho dos fogos, numerosos até naquele fim de mundo. Feliz ano novo. 18 Nuda vita : a vida destituída de quaisquer acessórios ou satisfação espiritual, resumida ao mínimo necessário à existência biológica. Na prisão, em geral, mais duro é o regime quanto mais se aproxima desse mínimo. 19 Cortina: a grade grande, que dá acesso à galeria. 20 Digo “na prática” porque a Lei de Execuções Penais (LEP), no seu artigo 3°, estabelece que: “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Como estamos vendo, a realidade é bem mais complexa, e adversa, do que isso. 21 Em julho de 2014, o próprio Ministro da Justiça à época, José Eduardo Cardozo, declarou: “Nosso sistema penal é medieval”. Apesar da constatação, o ritmo de crescimento da população carcerária não parou de aumentar nos últimos anos, dobrando o número de presos entre 2005 e 2015: eram 300 mil naquele ano, e 615 mil neste.
O COLETIVO A transferência No dia 12 de janeiro, ocorreu a segunda audiência do meu processo. Como de hábito, regressei já de madrugada para minha cela em Bangu. Bangu 10 é o último presídio do vasto terreno onde está localizado o complexo penitenciário, depois mesmo de Bangu 9, onde Caio e Fábio estavam presos. Era-me sempre penoso vê-los descer e ficar absolutamente só, no interior do camburão. Cercado pelas feras. Não posso dizer que conhecesse o sinistro entorno do presídio. Nos raros momentos em que levantava a cabeça, enxergava apenas uma paisagem monótona, com seus altos muros cinzentos, particularmente desolada àquela hora, devido à escuridão e ao silêncio opressivos. Soube da minha transferência pelo Seu Edson: – Amanhã você vai ser transferido. – Pra onde, senhor? – Pra Bangu 9. Fez que ia encerrar o assunto, mas mudou de ideia, tentando esticar a conversa: – Vem cá, você foi preso por causa de manifestação? – Isso. – Humm... Era melhor ficar aqui com a gente, não se misturar com a bandidagem. Como pode? Aquele mesmo cidadão que implicara, mais cedo, com a japiraca que encontrou na minha cela, e não teria hesitado em punir-me, não fosse o descaso do subdiretor. Gritara na minha cara, mais de uma vez, ofendido diante da minha declaração de que era um preso político: – Agora sair por aí quebrando banco, ponto de ônibus, banca de jornal, é ser preso político! Pra mim tinha que fuzilar todo mundo, todo mundo! Começava falando pausadamente, terminava berrando, babando pelos cantos da boca, salivando nos interlocutores, quase a ter convulsões. Uma vez, no dia de Natal, se não me engano, o vi dando um “telefone” num preso que reclamava qualquer coisa: – Quem manda aqui é o guarda, entendeu? O guarda! Naturalmente, pior seria estar com a “bandidagem” do que vigiado por aquele exemplar funcionário público...
Betão, que já tinha rodado praticamente todas as cadeias dessa vida, me falava de Bangu 9, com sua tão característica voz amolecida de remédios: – Vai estar melhor que aqui, com certeza. Lá, tem cantina e tudo. No regime de fome em que estávamos, essa alusão a uma comida diversa da boia da cadeia só não me parecia mais sedutora que a própria liberdade. Pela manhã, no dia treze de janeiro, me arrumei logo após o confere : das duas camisas “brancas” que tinha, vesti a menos cinza. Quando vieram me chamar, fui acometido de estranha felicidade. Não me escapou, contudo, a contradição desse momento: não saía de Bangu 10 para a minha casa, como imaginara, mas rumo a outro presídio, outra galeria, outra cela. E, o mais grave: sentia-me satisfeito com isso. Pelo menos é um recomeço. Enquanto aguardava, algemado, os guardas do SOE mexerem na papelada, Júnior (o faxina mentiroso que havia me prometido alguns livros, o mesmo que estava disposto a “imitar um macaco” se o subdiretor quisesse) me pediu que enviasse um abraço para um conhecido seu em Bangu 9. Claro que eu não mandei abraço nenhum, e não só por falta de oportunidade. Outro “amigo”, que trabalhava na barbearia (preso por ceder a casa para um médico que fazia abortos), pessoa doce, solidária, desejou-me boa sorte, com os olhos cheios de lágrimas. Um gesto singelo, despretensioso, desses que, exatamente por isso – pelo que guardam de simplesmente humanos –, calam profundamente em nossa alma. Toda transferência é assim: uma parte nossa fica, absorvida pelas grades, entre poeira e ferrugem; outra parte segue a luta, aliviada e ressentida pelo que deixa, esperançosa e temerosa pelo que espera encontrar. Na verdade, estava decidido a radicalizar a luta pelos meus direitos básicos, caso a SEAP continuasse a protelar a minha transferência. A péssima alimentação, a ausência prolongada de sol, o regime de isolamento celular as vinte e quatro horas do dia estavam minando minha resistência física, deixando-me magro e pálido em excesso. Os meus advogados já haviam protocolado pedidos ao Juiz reivindicando a minha transferência ou, ao menos, a concessão, lá mesmo em Bangu 10, do que me era assegurado pela lei. Ao que “Sua Excelência” respondeu que nada podia fazer, pois isso não era da sua competência. Quantos crimes bárbaros se cometem, quantos seres humanos penam nas mãos de algozes pequeninos, simplesmente porque pessoas pretensamente cultas e poderosas, as mesmas que acham indigno elas próprias sujarem as mãos, declaram do alto de seus pedestais: “não é da minha competência”?
Todos supúnhamos que a relutância em transferir-me para a penitenciária Bandeira Stampa (Bangu 9), onde desde as jornadas de junho de 2013 eram mantidos todos os ativistas presos em decorrência das manifestações (com exceção dos presos na véspera da final da Copa do Mundo, que permaneceram em Bangu 10), decorria do fato de nela já se encontrarem Caio e Fábio. Provavelmente a administração penitenciária não queria que viéssemos a nos reunir. Assim que cheguei à minha “nova casa”, essa suspeita não demorou a se confirmar. Após apenas um minuto no camburão (uma rua estreita separa os dois presídios) fui desembarcado em Bangu 9. Sua construção assemelha-se à de Bangu 10, embora seja mais limpo e melhor iluminado, o que se percebe logo na entrada. Há um primeiro portão de ferro, azul, imenso, com o símbolo da administração penitenciária. Atravessando esse portão, há uma guarita e um pequeno corredor, que desemboca em outro portão. Atravessado este, entra-se já no pátio externo da penitenciária, à direita do qual se localiza um gramado e o imenso galpão onde ocorrem as visitas. Seguindo em frente, outra porta de ferro menor dá acesso ao prédio da cadeia propriamente dito. Este é pequeno, se comparado com a monstruosidade das estruturas de vigilância erguidas ao seu redor. Aí dentro, atravessando ainda alguns corredores e portas, chega-se primeiro ao pátio que compõe a parte administrativa da prisão, onde ficam a sala da direção, a enfermaria e outros serviços, área na qual, durante o dia, os faxinas fazem pequenos trabalhos ou batem papo. Nesse pátio, recebi ordem para esperar: – De frente pra parede, preso! Eram três horas da tarde, e o Sol de verão queimava por todos os lados. Só de senti-lo alcançar meu rosto já percebia novas forças ressurgindo dentro de mim. Quando poderia imaginar que o sol, esse bem que nasce para todos, sem distinções, far-me-ia tanta falta? Como uma planta, queria inclinar-me para ele, absorver os seus raios, me alimentar deles. A imagem da tarde clara, com o céu de um azul intenso, me surgia particularmente bela. Por cima dos muros, podia avistar a Serra do Mendanha, que me parecia imensa, implacavelmente livre, a contrastar com aquele mundo confinado da prisão. Um grito súbito veio me arrancar do mundo reconfortante dos pensamentos: – Atenção, preso, o diretor quer falar com você! Entrei numa salinha apertada, com ar condicionado gelado, onde, atrás de uma mesa estava sentado Seu Walace, diretor de Bangu 9. Sem um fio de cabelo sequer, baixo, parrudo, manco de uma perna, era dono de olhinhos pequenos e maliciosos, denunciadores de um longo trato com os presos. Não encontrei nele qualquer gravidade ou gestos afetados, mas uma linguagem fortemente impregnada do ambiente em que vivia. Perscrutava seus interlocutores com uma desconfiança felina, como se buscasse descobrir sob cada palavra um sentido oculto. Como todos os funcionários mais antigos, Walace e sua equipe, composta de velhos servidores da SEAP, exalavam cadeia por todos os poros, e me pareciam tão presos a ela como qualquer detento.
– Igor – me disse, enquanto corria a vista na minha ficha –, então você é do pessoal das manifestações? – Sim, senhor. Sou preso político. – Daquele grupo da Sininho? – perguntou Calazans, subdiretor do presídio e braço direito de Walace. Calazans era mais velho que o diretor, o que denunciavam os fios de cabelo brancos e o bigode espesso, à moda antiga. Tratava-me amistosamente. Esclareci: – Ela também está com a prisão decretada em nosso processo. – Sei... – continuou Calazans –, eu era diretor do 8 ²² quando ela passou por lá. Arrumou o maior problema: pediu pra ir ao hospital, mas quando chegou a viatura, não aceitou ser algemada. Tivemos que resolver isso diretamente com o Secretário. Fiquei quieto. – Eu tô vendo aqui – prosseguiu Calazans – que seus advogados entraram ontem com um requerimento contra a SEAP, exigindo sua transferência, porque você estava sendo maltratado no Frederico Marques. Isso procede? – Estou há quarenta e cinco dias no isolamento, sem direito a nada. Creio que meu aspecto miserável, as roupas imundas, o rosto cavado diziam mais que mil palavras. Na verdade, o fato de entrar no presídio com a direção consciente da mobilização exterior que havia em nossa defesa, longe de me preocupar a respeito de eventuais retaliações, fazia-me sentir protegido naquele ambiente hostil. – Você estuda? Aonde? – continuou Calazans. – Estudo na UERJ. Geografia. Não me pareceu que acreditassem que fosse um estudante de universidade pública que estivesse ali na sua frente, coisa realmente bastante rara naquele meio. A impressão que eu tinha, realmente, era a de estar sendo pesado e analisado, como uma “mercadoria do governo” ²³ . Walace, que me observava calado, resumiu o diálogo, com a franqueza que lhe era característica: – Olha, eu tô vendo aqui na ficha o seu perfil, e por mim te colocava na A ou na B (referia-se às galerias, que, como em Bangu 10, eram destinadas aos faxinas e aos presos que deveriam ficar separados do coletivo). Só que na A já tá o Fábio e na B o Caio, que como presos mais antigos têm prioridade. E eu tenho ordens superiores de não te colocar junto deles... Ordens superiores.
– ...por isso eu vou te colocar na galeria D. Você tem algum problema de entrar no coletivo? – Não tenho problema nenhum, não. – Então – interveio Calazans, me despachando –, toma aqui o seu kit (uma escova, pasta de dentes, lençol, sabonete, papel higiênico e um barbeador). Eu vou precisar pegar, amanhã ou depois, o seu depoimento, dizendo que aqui no Bandeira Stampa você está tendo acesso aos seus direitos. Qualquer coisa que precisar, você me procura. Fulano de tal – ordenou a um guarda –, bota ele na D7. Antes de sair reparei que, na parede ao fundo da sala, havia um quadro com o nome dos presos que habitavam cada uma das celas do presídio e algumas fotos, que supus ser dos que precisavam ser vigiados mais de perto. Também não me passou despercebida a existência de “ordens superiores”, no sentido de manter os ativistas separados dentro da prisão. Tampouco a preocupação dos diretores, que me entrevistaram pessoalmente, pareceu mera coincidência. Embora publicamente o Estado não pudesse reconhecer a existência de presos políticos, sob a vigência de regime formalmente democrático, praticamente, nas entranhas do sistema penitenciário, esse reconhecimento impunha-se, no medo que tinham de que nos organizássemos, no receio de que viéssemos a sofrer e, portanto, denunciar, eventuais maus-tratos recebidos. E, principalmente, não me passou despercebido o alcance da decisão que acabava de tomar, cujos desdobramentos práticos desconhecia: a entrada no coletivo. Até então, todos os ativistas encarcerados em decorrência das manifestações haviam sido rigorosamente separados dos chamados “presos comuns”. Os membros da Comissão de Prevenção à Tortura da Assembleia Legislativa que me visitaram em Bangu 10, assim como meus advogados, que batalhavam pela minha transferência, haviam sido categóricos quanto à manutenção desse protocolo. Não tenho dúvidas de que, diante da preocupação demonstrada na minha chegada, de modo algum a direção me colocaria contra a vontade em uma cela coletiva. Eu não poderia, contudo, sob pena de ser incoerente com a causa que defendo, temer o contato com a massa carcerária. Na verdade, nos contatos que até então mantivemos, em Bangu 10 e nas idas ao Fórum, sempre havia recebido da sua parte a maior solidariedade. É verdade que reivindiquei junto à direção de Bangu 9 ficar junto de Caio (Fábio estava morando na galeria dos faxinas, onde eu não aceitaria ficar), reivindicação que fiz constar no depoimento que me foi colhido dias depois, mas o fiz para deixar claro à administração que, ali dentro, nós formávamos um coletivo de presos políticos, e não para obter qualquer privilégio em relação aos demais. Saindo da sala da direção, cruzando o pátio ensolarado, entrei na parte interna do prédio, onde ficavam os xadrezes. Aí já não havia sol, mas o ar abafado que deve pairar sobre todas as cadeias. Logo na entrada ficava a sala da segurança, onde fui revistado. A galeria A, dos faxinas, também ficava ali, antes da primeira cortina .
A caminho do “povão” – as celas coletivas – avistei Fábio, que me cumprimentou e falou que logo daria um jeito de entrar em contato. Para mim era um alento estar próximo de pessoas conhecidas depois de tanto tempo, apesar da separação imposta por “ordens superiores”. A organização dos presos No coletivo, os presos estão submetidos a uma dupla disciplina: a que emana do próprio sistema penitenciário, mantida pelos funcionários, e a que vem dos seus companheiros, que visa manter a convivência dentro dos limites do bom senso – algo difícil de se conseguir em um ambiente em que estão compulsoriamente confinadas pessoas das mais diversas origens, sob forte tensão, grande parte delas educadas em uma escola tão individualista como a do crime. Olhando de fora, pode-se ter a impressão de que os presos formam uma massa homogênea, o que é corroborado pelas roupas quase idênticas e pela rotina monótona. Vendo mais de perto – e, sobretudo, olhando de dentro, o que boa parte dos observadores célebres das prisões não pôde fazer, felizmente para eles – percebe-se logo que tanto a uniformidade quanto a monotonia são aparentes: mesmo nas camisetas brancas, indistintas a princípio, percebemos com o passar do tempo enormes diferenças; a convivência nos permite formar um quadro quase completo do temperamento e situação de algum companheiro a partir de detalhes que escapariam completamente ao observador superficial. Sobre as roupas é bastante significativo observar que os presos desprezam completamente o uso do uniforme cedido pela SEAP . Substituem-no por bermudas jeans na altura dos joelhos, que têm a imensa vantagem de não trazer a horrorosa palavra “RESSOCIALIZAÇÃO” inscrita no tecido. Tratase, a meu ver, de uma forma de resistência, um esforço para preservar a identidade própria, em um ambiente estruturado para quebrá-la. Quanto aos homens, encontramos na cadeia os mesmos tipos diversos que perambulam pelas ruas, e às vezes eu me punha a fitar uns rostos pacatos, dizendo para mim mesmo que poderia perfeitamente tê-los encontrado no supermercado, alguns meses antes, comprando um pacote de biscoitos. Como se diz por lá, “para ser preso basta estar solto”. São apenas seres humanos, afinal. Embora o corte de classe e instrução seja bastante nítido – particularmente no meio do “povão”, onde estão os presos sem “condição” ²⁴ –, também encontram-se lá pessoas com bom nível cultural e família estruturada, levadas à prisão pela vã ilusão do enriquecimento rápido ou por um simples momento de desespero, um lapso, suficiente para desgraçar uma vida (ou várias). Esse normalmente é o caso daqueles que cometeram os chamados crimes passionais, os seres mais desgraçados que encontrei. As posições políticas e opiniões também são variadas e acompanham, quase em idêntica proporção, as vistas nas ruas. De modo que ali se encontram os tipos conservadores, normalmente evangélicos, pregando resignação e obediência; os que detestam discutir política, jovens sem estudo ou
perspectiva, que só se preocupam (até na cadeia) em adquirir tênis ou camisas de marca; e os naturalmente inconformados, críticos mais ou menos conscientes do cenário político e social do país, inimigos da ordem. Lembro-me que, alguns meses depois da minha chegada, ocorreu um aceso debate acerca da redução da maioridade penal. Como aqui fora, lá dentro também se dividiram as opiniões, e não foi sem espanto que vi um número razoável de detentos posicionar-se a favor da mesma, apesar de tal medida só vir a agravar a superlotação, núcleo básico do qual derivam quase todos os demais problemas carcerários. Apesar disso, nesse caso concreto, uma larga maioria, certamente superior à que se verificava junto à opinião pública em geral, opunha-se à redução, incluindo os próprios carcereiros e gestores. Uma das poucas unanimidades que encontrei ali foi a dureza com que se referiam à “Justiça”, por todos considerada lenta, inepta e (principalmente) injusta. As condições econômicas do preso, que atravessam com ele os espessos muros da cadeia, vêm estabelecer diferenciações no meio da massa. Os presos que têm visitas regulares, famílias dedicadas, costumam gozar de condições de vida infinitamente melhores que aqueles que foram abandonados em sua caminhada, normalmente após várias reincidências. Essa diferenciação social, a circulação de dinheiro, faz surgir, entre os presos, determinadas formas de exploração. Há presos, por exemplo, que não lavam nem as camisetas que vestem: pagam alguém para fazê-lo. O posto de “lavanderia”, aliás, é disputado, já que garante rendimento certo. Também há os faxineiros, que por cinco ou dez reais limpam o cubículo de outro preso, ou o seu parlatório ²⁵ . Outra função indispensável é a de barbeiro, que na galeria D era exercida por um detento magricela, meio caolho, apelidado Esquerdinha. Ele não cobrava pelo serviço: voluntariamente uns davam dois reais, outros três, outros quatro. Para os que não tinham recursos, Esquerda trabalhava de graça, já que o cabelo raspado ou cortado rente é exigência da administração. Havia um preso mais velho, seu Alcimar, acusado de um crime brutal, que ganhava a vida comprando biscoitos na cantina e revendendo-os à noite, quando aquela estava fechada, por um preço ligeiramente mais elevado. Essas funções de trabalho surgidas espontaneamente entre os presos (não são aquelas regulamentadas pelo Estado, em troca de remição de pena) normalmente eram executadas por detentos que não recebiam visitas e que, por isso mesmo, tinham de fazer por conta própria a sua correria ²⁶ . Havia, inclusive, uma espécie de “exército de reserva”, constituído por aqueles que não conseguiam ocupar nenhum desses postos e sobreviviam sem dinheiro. Esses chegavam quase à condição de mendigos, e distinguiam-se dos demais por ter de usar o uniforme dado pela penitenciária (considerado indigno, como já disse), simplesmente por não terem outro. Os que dependiam exclusivamente das quentinhas fornecidas pela SEAP, distribuídas em horários esdrúxulos – a janta era servida às três da tarde –, estavam condenados a um regime de fome permanente. Além da quantidade insuficiente, a qualidade piorava à medida em que os jornais noticiavam a
crise do estado do Rio, que apenas esboçava o quadro dramático que viria a se formar depois. As brilhosas eram distribuídas rigidamente uma por pessoa na cela e não era raro surgirem desavenças em torno de quem teria direito à “retomba ” ²⁷ quando algum preso não comia. Claro que esses presos miseráveis contavam com a solidariedade dos companheiros de cela, que variava de acordo com a convivência mantida dentro de cada coletivo. Coisa que os presos detestavam eram os “pidões”, mesmo porque dívida contraída é considerada sagrada: deve ser paga, do contrário o devedor está sujeito a reprimendas, que podem chegar até a uma surra. Dentro da cadeia, vi pessoas venderem as calças que vestiam, literalmente, para conseguir comprar um ou dois cigarros, situação das mais tristes e degradantes que presenciei. Os presos possuem um rígido código de conduta. Este “Estatuto”, que possui uma forma escrita, é relativamente complexo quanto às situações que aborda, normatizando o que se pode e o que não se pode fazer, como se deve falar e, até mesmo, o que não pode ser dito em caso de desavença. Nunca o li: na cadeia as regras eram transmitidas oralmente, através dos presos mais antigos. Um dos pontos que mais me chamou atenção foi a proibição, “escrita no Estatuto” – como se dizia quando se queria ressaltar algo –, de qualquer tipo de agressão física ou moral dentro do coletivo. Por exemplo: um preso jamais podia mandar outro “tomar no cu” ou injuriá-lo de “filho da puta”, coisa que já haviam me contado em Bangu 10. Família é coisa sagrada na cadeia, e não se aceitava, sob nenhuma hipótese, que fosse incluída em discussão. Também não era permitido que dois presos brigassem dentro da cela, sem prévia autorização do coletivo. Estupro, roubo, deduragem e assédio à companheira de outro preso são condutas inimagináveis dentro do coletivo, punidas com a maior severidade. Os assassinatos também eram objeto de legislação: em Bangu 9, não eram permitidos, e o castigo máximo previsto era o espancamento. Em outros presídios, controlados por facções criminosas, ouvi dizer que a prática era diferente e as mortes ocorriam com certa frequência. Para assegurar a vigência desse código, há uma hierarquia bem definida, que abrange desde a cela até o conjunto da penitenciária. Cada cela (coletivo) possui um visão ²⁸ . Cada galeria (que em Bangu 9 compreendia catorze celas cada uma) tem um ou dois visões , que normalmente ficam soltos pelo corredor, comerciando, enviando recados e “pagando” a alimentação. Acima deles, por sua vez, há a comissão da cadeia, que também tem, entre um conjunto de líderes, o seu visão , aquele que, na gíria presidiária, “fala pela cadeia”. Quando ocorre algum desentendimento dentro da cela, os presos podem resolvê-lo ali mesmo (e, nesse caso, ninguém tem o direito de se intrometer) ou levá-lo “pra frente”, isto é, colocar a questão para a comissão da cadeia. Esta, como em um julgamento, ouvirá ambas as partes, as eventuais testemunhas e dará o veredito, que é irrecorrível e deve ser aplicado imediatamente. Os presos chamam este processo de “desenrolado” ou simplesmente “desenrolo”. No caso de a sentença ser uma surra, somente os membros da liderança podem aplicá-la e o “condenado” não tem direito de
reagir. Quando um guarda pergunta ao preso castigado por que dos hematomas pelo corpo, ou no rosto, este deve responder, sob pena de incorrer em delação: – Caí da comarca. Ocorre do preso, antevendo a má sorte que o aguarda no “desenrolado”, antecipar-se à decisão coletiva e aproveitar uma saída da cela para pedir transferência, o que na gíria se chama “pular da cadeia”. É praxe no sistema prisional, como política de prevenção de homicídios, que alguém que “pule” deve ser imediatamente isolado, caso contrário a responsabilidade pode recair sobre a administração. Uma única vez, no Bandeira Stampa, soube de um detento castigado com surra, porque, ao disputar o controle da televisão com seu companheiro de cela, deu-lhe um tapa na mão. Esse foi motivo suficiente para que apanhasse no banho de sol, em meio de grande alvoroço, episódio que felizmente não assisti por estar em audiência. Em outra oportunidade, um preso foi levado ao “desenrolado” porque não teria impedido um “amigo” de tentar se enforcar com um lençol dentro da cela. Como a culpa não ficou comprovada, nem o suicídio consumou-se, nada aconteceu com ele. Esse sistema, que a alguns pode parecer bárbaro, é, no entanto, efetivo e impede que um lugar onde convivem homens tão diversos, todos amargurados pelo tédio e pela saudade, se torne inabitável. Aliás, a forma como os presos resolvem suas diferenças costuma ser bem mais branda que o tratamento imposto pelos funcionários quando querem castigá-los. Não existe um critério objetivo para que um preso chegue à condição de visão . Pesam, sem dúvida, a antiguidade e o histórico na cadeia (se é leal, correto, esperto), além do currículo no crime. As lideranças devem zelar pelas normas do coletivo, além de defender os direitos dos presos nos inevitáveis atritos que surgem com a direção, como quando a comida atrasa para chegar ou é cancelado o banho de sol. Uma das formas mais comuns de protesto, nesse caso, é proibir os presos de comprarem qualquer coisa na cantina, até que a situação seja resolvida – também atrás das grades o bolso é o órgão mais sensível da administração. Quando isso não funciona, ou quando querem chamar atenção dos guardas, os visões ordenam que os presos “balanguem” ²⁹ as grades até que a situação seja resolvida. A medida extrema é a rebelião (na linguagem presidiária, “virar a cadeia”), que não cheguei a viver. Também essa forma de luta, radical, só pode ser disparada pela comissão da cadeia. E, uma vez que a senha seja dada, todos estão obrigados a participar: – Se o “primeira voz” mandar virar a cadeia, a cadeia tem que virar – disseme um companheiro de cela, nos primeiros dias. Tráfico de café Uma vez que circula dinheiro na prisão – cada preso tem direito a receber, no máximo, cem reais por visita –, pouco ou quase nada é dado: há um comércio intenso durante todo o dia e pode-se comprar desde um cortador de unhas até uma televisão, por preços mais ou menos tabelados,
conhecidos de cor pelos detentos. Essas negociações, por vezes, arrastam-se todo um dia ou mesmo dias inteiros, entre ofertas e contraofertas, intermediadas pelos presos que ficam na “ligação”, e constitui um dos maiores passatempos na prisão. Na cadeia, palavra vale e, uma vez empenhada, o negócio não admite volta atrás, a menos que haja consenso entre as partes. Claro que, em se tratando de gente “escolada” na arte das negociatas, ocorriam também os pequenos golpes. Eu, novato, fui vítima de um. Cheguei ao Bandeira Stampa no auge do verão. Na primeira noite em cima da minha nova comarca , simplesmente não consegui pregar os olhos. O calor dentro da cela, mais intenso que em Bangu 10, sufocava-me. No antigo presídio, estando em uma cela individual, ao menos podia esticar meu colchonete junto à grade, próximo ao corredor, onde corria um vento de vez em quando. Nos piores dias, acordava de madrugada, molhava-me com a água do tanque. Agora, deitado sobre o concreto, colado à parede, sentia-me derreter e não me atrevia a ir até o boi com medo de acordar meus companheiros. Era desesperador. No dia seguinte, vendo meu estado deplorável, um companheiro ofereceume sua comarca , onde havia um providencial ventilador amarrado à parede, para que me deitasse por uma hora, desde que sobre o meu lençol. Aceitei, mas não consegui conciliar o sono: a noite infernal, a adaptação difícil a uma nova realidade, tudo isso turvava meu estado de espírito, deprimia-me. Decidi dormir no chão, na próxima noite, apesar do espanto de meus companheiros, porque não era incomum baratas circularem por ali. Quando minha advogada trouxe-me cem reais (o primeiro dinheiro que recebia desde que fora preso), pus-me a procurar um ventilador. Logo, foime ofertado um “tufão” por setenta reais. A felicidade foi tamanha que comprei até uma Coca-Cola para comemorar, com os companheiros de cela, o fim do sofrimento. A decepção não tardou, no entanto: o maldito aparelho não funcionava. Primeiro, os aros giravam muito fracamente, depois, quando o Paulista, visão da minha cela, decidiu trocar o seu capacitor, pifou de vez. Passamos ainda dois dias nessa batalha, em vão. – Das duas uma – disse Paulista –: ou ele te devolve o dinheiro ou conserta o aparelho. Preferi a alternativa do conserto, dada a escassez de ventiladores no “mercado”. Decisão errada, porque o espertinho pediu um ou dois dias para trabalhar e nesse meio tempo foi transferido para outra cadeia, coisa que naturalmente já estava prevista. Restou-me a peça avariada, inútil, sobre a comarca , alertando-me que tinha ainda muito a aprender sobre aquela sociedade. # – Primeira volta da cantina! Vai sair a primeira volta da cantina, hein! Assim gritavam os presos que estavam na “ligação”, quando a cantina abria, logo após o confere , e podiam ser feitos os pedidos. Estes eram escritos
num pedaço de papel qualquer, indicando o item que se queria adquirir e a quantia enviada para o pagamento, além do comprador e número da cela. Exemplo: Igor (D7) 4 pães Enviado: 2,00. O companheiro que estava na ligação guardava o papel e o dinheiro – devidamente contado – em um saco plástico que era repassado, através de outros intermediários, para o pessoal da cantina. Para a entrega dos pedidos, era percorrido o caminho inverso. Ocorriam duas “voltas”, ou seja, rodadas de compras por dia, uma logo após a distribuição do café “da casa” e outra perto do meio-dia. Podia–se comprar de tudo na cantina, desde itens de higiene, como sabão em pó e desinfetante, até pão francês ou hambúrguer. – Mais ou menos o dobro do que é cobrado na rua – explicou-me alguém como se formavam os preços lá dentro. As cantinas de cadeia são a verdadeira caixa preta do sistema penitenciário. Normalmente são administradas por funcionários que enriquecem com o comércio praticado, que, afinal, tem mercado cativo, está livre do pagamento de impostos (como água ou luz) e explora a mão-de-obra quase gratuita dos próprios presos. Isso para falar apenas do comércio lícito. Um dia, meu pai, vindo me visitar, viu chegar para a cantina um carregamento de produtos, rigorosamente lacrados. Um agente penitenciário, presumivelmente novato, seguindo à risca a norma de que nada nem ninguém entra na cadeia sem ser revistado, pôs-se a abrir os embrulhos. Outro agente, mais velho, correu até ao colega, aplicando-lhe uma descompostura na frente de todos: – Fulano de tal, você tá doido?! – Por quê? – perguntou o novato, admirado. – Como assim “por quê”? Material da cantina é inviolável! Convenhamos que isso dê o que pensar. Enquanto isso, as visitas, na sua imensa maioria mulheres, tinham de se submeter às revistas vexatórias e os potes humildes com comida que levavam eram revirados impiedosamente à procura de drogas. Bangu 9 é um presídio de segurança máxima, uma unidade pequena – em torno de 400 presos – e bastante controlada. Apesar disso, ali o tráfico de drogas ocorria quase sem interrupções, em um volume que não creio possível de ser mantido sem a conivência de peixes mais graúdos. Sentia-se o dedo desses peixes mais graúdos, inclusive, na política de drogas existente no presídio: maconha circulava regularmente, diferentemente da cocaína, que só aparecia esporadicamente. Claro, enquanto a cocaína agitava os
presos, quase todos eles usuários crônicos da mesma nas ruas, a maconha funcionava como calmante, assim como os remédios psiquiátricos, tornando a rotina prisional menos insuportável para os seus usuários. Bebida, realmente, quase não havia, e apenas de tempos em tempos aparecia uma garrafa de pinga feita na própria cadeia, à base de arroz apodrecido. A julgar pelo cheiro, devia ser tão repugnante como as condições em que era feita. Não podíamos ter “mergulhão” na cela, embora seu uso fosse generalizado na prisão. Mergulhão consiste numa resistência de chuveiro, amarrada a um fio de cobre e ligada numa tomada, usada para esquentar água. Era realmente um privilégio poder comer um miojo de vez em quando (era vendido na cantina a incríveis R$ 4,00 o pacote) e, principalmente, fazer nosso próprio café, dado que o da “casa” só era servido uma vez por dia e era horrível. As visitas, contudo, não poderiam nos mandar café, pois isso denunciaria a existência de mergulhão na cela. Por isso, o pó para fazer a bebida sagrada era negociado no mercado ilegal, a preço elevado – chegava a custar R$15,00 um pacote de 250g! –, e sua distribuição era feita pelos mesmos que negociavam drogas. Existia, realmente, como se vê, um autêntico “tráfico de café”, inimaginável aqui fora, denunciador da situação toda absurda, até nesses pormenores, que se vive naquela pequena sociedade, na pequena prisão que distorce com seu funcionamento particular as coisas e as pessoas. “Rael” Nessa época, o Bandeira Stampa era uma cadeia para presos do “Seguro” ³⁰ , cujo coletivo (não aceitam ser chamados de facção) denomina-se “Povo de Israel”, “Povo de Rael” ou simplesmente “Rael”, em alusão ao povo escolhido bíblico. A regra que impera no “Seguro” é que não importa o artigo ou o passado do preso, ele tem o direito de entrar e viver na cadeia, desde que não tenha nenhuma desavença com o coletivo e as lideranças locais. Isso inclui os estupradores, nos quais, aí, ninguém encosta um dedo, vivendo normalmente em meio aos demais. Essa organização que eu encontrei não se obteve subitamente. Ao contrário, a relativa tranquilidade que existe hoje dentro da cadeia, a supressão da extorsão e do estupro entre os presos, o fim das chacinas e das rebeliões constantes foi resultado de luta dos próprios detentos. Um processo que se impôs e definiu com violência, como quase tudo ali. Até princípios dos anos dois mil, os neutros viviam junto aos presos das facções. Isso dava margem para inúmeras desavenças e banhos de sangue, já que aqueles são mal vistos por esses, que os consideram covardes, dedosduros ou “jack” ³¹ . Entre si, esses neutros também eram desorganizados, imperando o “cada um por si” em contraste com a rígida hierarquia existente nos grupos do tráfico. Como, em questões de poder, não existe espaço vazio, essa hierarquia era preenchida na prática pelos presos mais fortes, física ou financeiramente, que “oprimiam” os demais, o que dava origem a covardias inomináveis e mortes frequentes. Era a época em que reinavam as facas, único ponto de apoio do preso para defender-se em meio ao caos e às brigas. Sobre esse período, os mais antigos contavam:
– Pior cadeia pra tirar era no Seguro. Ninguém mandava em ninguém, era todos contra todos. De Seguro mesmo não tinha era nada. Essa situação perdurou até que, entre 2000 e 2004, o sistema penitenciário do Rio entrou em colapso, registrando sucessivas mortes e motins, sendo alguns lendários, suas histórias se contando até hoje. Em Água Santa, em 2004, aproveitando-se da desordem, um grupo de presos matou a facadas a antiga liderança, que era conivente com os roubos e estupros, impondo as regras que vigoram até hoje no “Seguro”, e também a separação definitiva desta das demais facções. A partir daí nasceu o “Povo de Israel”. Além dos ameaçados de morte ou neutros , há os que vão para o “Seguro” com o propósito de ganhar dinheiro. Isso acontece porque, entre as facções criminosas, é rigorosamente proibido o golpe da extorsão por telefone (falso sequestro), com exceção do Terceiro Comando, que passou a praticá-lo recentemente, segundo ouvi dizer. Foi entre o “povo de Rael” que esse golpe foi criado e “exportado” para outras cadeias do país. Conheci alguns presos que eram célebres golpistas, dos quais se dizia terem ganhado fortunas atrás das grades. Um dos motivos mais frequentes para presos ganharem um carrinho ³² para Bangu 9, que é o castigo do “Seguro”, era a acusação de terem praticado esse crime em outros lugares. Uma tarde, ao final do banho de Sol, um preso me contou como funcionava o esquema. Era um ladrão reincidente, preso há dez anos, envelhecido pela cadeia e pelo uso de drogas: – Olha, irmãozinho, o negócio é o seguinte: telefone é mole arrumar, né? O negócio é conseguir quem assuma, algum infeliz condenado a mil anos, que não tem mais nada a perder. Aí, se tiver dura, ele segura a bronca do bico ³³ , né? – Mas como é, as pessoas costumam cair de primeira? – Ah, às vezes acontece, mas é raro. O normal é passar o dia tentando, cem, duzentas, mil tentativas pra uma dar certo. Seus olhos brilhavam intensamente enquanto me contava seu “trabalho”. Os dedos se agitavam, nervosamente. Estiquei a conversa: – Mas, me diz, as pessoas ainda caem nisso? Mesmo tendo tanta campanha? – Se não cai! – gritou, como se eu o tivesse insultado. – Olha, Igor, até um major do Exército eu já peguei, ganhei cordão de ouro, dois mil reais, mais um monte de coisas. Ultimamente tá mais difícil, mas isso é por aqui, Rio, São Paulo... ddd do interior de Minas, do Nordeste, o pessoal cai que nem patinho ainda. – Mas como faz pra pegar a grana? – Essa é a parte mais complicada. Se tiver alguém fora pra pegar, de moto, é melhor, mas é arriscado. Conta de banco também: se botar o dinheiro em conta da mulher ou de um parceiro, arrisca descobrirem, já vi até vagabundo perder esposa por causa disso.
Chegando a este ponto, meu “amigo” parou para respirar, como se uma memória distante viesse perturbá-lo. Continuou: – Agora, se for usar dos outros, 30% do faturamento é de quem tá cedendo a conta. – Olha só, mano, desculpa perguntar, mas cá pra nós, você conseguiu juntar muito dinheiro? Ele riu, como quem se vê descoberto em seu ponto fraco: – Que nada, cheirei tudo. Sabe como é, vem fácil, vai fácil. Meu primo, que tá nessa caminhada comigo, me disse que eu já devo ter cheirado mais de um milhão dentro da cadeia. “Vem fácil, vai fácil”, máxima que traduz perfeitamente a vida levada pela maioria dos meus companheiros de infortúnio. A vida consumida em celas e corredores úmidos, estreitos, desperdiçada atrás das grades. Vida esmagada por engrenagens que eles desconhecem, encarando-as com incrível fatalismo, simplesmente como se não pudesse ser de outra forma. É a sua própria vida, ao que parece, que vai embora, escapando pelos dedos. Na prisão, na delegacia, no final de um beco escuro, onde encontram o abismo. # Claro que levei um tempo para me habituar às normas e entender plenamente como funcionava o coletivo, que não se resume ao que está previsto nas normas, aliás, mas compreende a convivência prática, infinitamente mais rica de detalhes e combinações possíveis do que qualquer legislação. Numa conversa que mantive com o diretor, mais tarde, quando lhe apresentei a reivindicação de montarmos uma biblioteca na prisão, ele me disse uma coisa com a qual fui obrigado a concordar: – Preso é um bicho tinhoso. Você dá a ele um espaço pequenininho e disso ele faz um mundo inteiro. Mas voltemos ao princípio. Galeria D, cela 7 Depois de me despedir de Fábio, atravessei a primeira grande grade, cortina , após a qual ficava, à esquerda, o porquinho da cadeia e, à direita, a galeria B. Esta me pareceu, então, bem limpa e iluminada, em comparação com a similar de Bangu 10. Estava, entretanto, silenciosa, o que lhe conferia um aspecto particularmente triste. Após atravessar mais uma cortina , cheguei, finalmente, ao miolo da cadeia: as galerias do coletivo. À esquerda ficava a galeria C, destinada aos presos condenados a penas longas ou tidos como mais perigosos, onde morava a maior parte da liderança da cadeia, e à direita a galeria D, destinada aos presos provisórios. Pude ver que o corredor continuava até a galeria H, sempre entremeado por grades, por questão de segurança. Não prossegui, entretanto: sendo primário, era a D o meu destino.
Quando o carcereiro abriu o cadeado, fez-se silêncio na galeria e todos os presos, tanto os que estavam dentro das celas como os que perambulavam do lado de fora, quedaram-se curiosos. Vi mesmo alguns que olhavam através de pequenos espelhos que seguravam nas mãos, entre as grades, usados para bisbilhotar a incursão dos guardas ou para conversar com companheiros que se encontravam na outra extremidade do corredor. Naquele momento, tomado da sensação de apreensão e vigília que nos assalta quando estamos diante duma situação nova, não retive nenhuma imagem de alguém em particular: era para o conjunto que eu atentava. Lembro-me de observar, com o rabo de olho, o interior das celas, onde pude distinguir beliches de concreto, habitadas por quatro, cinco ou seis homens, a maior parte deles sem camisa, devido ao calor. Havia, nas celas, barulho de televisão, gente fumando e (o que me chamou bastante atenção, não sei exatamente porquê), muitas roupas, a imensa maioria brancas, penduradas em varais improvisados com fios de náilon. O chão era sujo, esburacado em alguns pontos; as paredes enegrecidas e, diferentemente do que vira nas galerias A e B, a iluminação era precária. Como a entrada de um novo preso não constitui nada de mais na rotina do cárcere, o zum-zum-zum de vozes recomeçou à medida que eu caminhava, crescendo rapidamente. O ambiente abafado misturava-se com um cheiro de gordura, provavelmente proveniente das brilhosas há pouco distribuídas. Esse primeiro percurso pela galeria durou apenas alguns segundos, mas causou-me tão forte impressão que não poderei jamais esquecê-lo, assim como as batidas violentas do meu coração naquele momento. Agora é pra valer. Fui trancado na cela 7, a quarta à esquerda de quem entrava na galeria. 22 Refere-se ao presidio Bangu 8. 23 “Mercadoria do governo”, expressão que os presos usam para referiremse a si mesmos. Como a administração dispõe como quiser da vida dos internos, podendo transferi-los a hora que bem entende, estes se sentem exatamente como uma mercadoria, barata, descartável. 24 “Condição” são os presos que, por serem apadrinhados de alguém, ou por possuírem melhor condição financeira, são separados do “miolo” da cadeia, normalmente alocados na faxina. 25 Parlatório é o compartimento onde ocorrem as visitas íntimas. É um conjunto de celas solitárias, isoladas do restante da cadeia, adaptadas para aquela finalidade. 26 “Correria”, isto é, o esforço feito pelo preso para ganhar um qualquer, seja lícito ou ilícito. 27 “Retomba”: repetição. 28 “Visão”: líder. Essa denominação varia de presídio para presídio, de acordo com a organização local.
29 “Balanguem”: balancem, chacoalhem. 30 “Seguro”, como já disse, é a cadeia dos presos que não têm facção – também chamados “neutros” – ou que estão ameaçados dentro do sistema penitenciário. 31 “Jack”: estuprador. 32 “Carrinho”: transferência. É uma alusão aos carros de escolta usados para o traslado dos presos. 33 “Bico”: telefone.
O COLETIVO (CONTINUAÇÃO) A cela Não sei traduzir, em números, o tamanho da cela. O que sei perfeitamente é que, em um lugar onde duas pessoas viveriam se esbarrando, cinco ou seis conviviam amontoadas, umas sobre as outras, literalmente. Atravessada a grade, tínhamos o boi , num canto, e três beliches-duplas, no centro, à esquerda e à direita. Praticamente não havia, como se vê, espaço no cubículo, apenas um estreito corredor entre as comarcas . Na D7, este corredor era ocupado por Paulista e Mozer, os presos mais velhos, que passavam as tardes jogando cartas com um baralho velho, feito à mão. Ao chegar, eu ocupei um beliche de cima – são ocupados por ordem de chegada, os mais velhos ou deficientes tendo preferência de ficar embaixo –, o que me impedia, inclusive, de poder (ao menos) colocar os pés no chão: todo espaço de que dispunha resumia-se à minha comarca , local onde dormia, assistia TV, conversava, comia, lia, escrevia, pensava, nutria esperanças, indignava-me. Esse espaço exíguo, limitador dos movimentos, minou bastante minha resistência física, a ponto de dez ou vinte minutos em pé serem suficientes para fazer-me sentir morto de cansado. O confinamento, associado à alimentação baseada em carboidratos (muito arroz e macarrão), faz com que a maior parte dos presos engorde, o que muitas pessoas equivocadamente confundem com sinal de “saúde” ou vida fácil dentro da cadeia. Formalmente não havia superlotação no Bandeira Stampa. Presos não dormiam no chão, diferentemente do que ocorria em Bangu 2 (o maior presídio de “Seguro” do complexo prisional), onde ouvi dizer que pessoas tinham que dormir em cima do boi . Contudo, esta superlotação existia de fato, pois, como se vê, as vagas existentes estavam em notória contradição com o espaço físico a elas destinado. Além disso, para piorar a situação, os presos permaneciam trancados dentro das celas as vinte e quatro horas – em muitos presídios as celas ficam abertas durante o dia, podendo o preso ao menos caminhar pela galeria –, só saindo para a visitação e o banho de sol, duas vezes por semana, mesmo assim sujeito este último a suspensões imprevistas ³⁴ . Esse rigor adicional ocorria porque Bangu 9 era o presídio onde os detentos do “Seguro” cumpriam castigo. Ou seja, se em uma penitenciária qualquer, como Patrícia Acioli (em São Gonçalo), ou Galpão (em São Cristóvão), alguém “rodava” com telefone, ou cometia falta disciplinar grave, recebia como punição a transferência para o Bandeira Stampa. Apesar de razoavelmente limpo e bem organizado, em Bangu 9 não havia a facilidade de acesso a telefones e drogas, nem a liberdade de movimentos existentes em outros presídios. O diretor, quando eu já me encontrava na galeria B, reforçando essa condição, lembrou aos presos reunidos na sua frente: – Aqui, é o penúltimo degrau. Quem vacilar, vai direto de Bangu 1. Bangu 1, como se sabe, é a última escala do rigor do sistema penitenciário do Rio, onde vigora um regime de completo isolamento do preso.
Viver em tal ambiente de confinamento é muito complicado, sobretudo para quem vinha do isolamento, como eu. Sofri para me adaptar e os primeiros dias foram particularmente duros, ao ponto de quase sentir falta da masmorra de Bangu 10. Na medida em que aprendi a manejar o convívio e encontrar, dentro dele, espaço para a tranquilidade e privacidade possíveis, as coisas foram ficando mais fáceis. Mas, realmente, o início foi difícil, e isso ficava simbolizado na questão do boi . Alguém concebe como seja fazer as necessidades quase coletivamente? Pois era esse o caso, afinal, em um cubículo minúsculo, habitado por cinco ou seis pessoas, não passava despercebido quando uma delas ia ao boi , nem os sons e os cheiros que vinham daí. Como quase tudo na cadeia, também isso virava chacota, e quando o fedor era intenso a “rapaziada” não perdoava: – Joga água, fulano! – Muita água! Não raro, o infeliz que estava agachado dizia, entrando na zoação: – Tá tão ruim assim? – O quê? Parece que jogaram um rato morto aí dentro! – respondia o provocador. Acontecia, inclusive, de o preso necessitado pedir “autorização” para ir ao boi , quando alguém estava comendo na cela. Na hora das refeições coletivas, aliás, não era bem visto que se fizesse o “número 2”. Havia, no coletivo, uma severa preocupação com a higiene. Mais do que sobrevivência, era questão de dignidade, contra uma ordem que visava desumanizar-nos. Apesar das regras gerais, o nível de asseio variava de cela para cela, de acordo com o perfil do líder de cada uma. Na D7, a limpeza ocupava o centro da preocupação do Paulista, que mantinha a todos vigilantes com isso. Se alguém espirrava sem ter um pano por perto, ele olhava mal-humorado e, se a coisa se repetia, não hesitava em dar uma bronca. A cela era varrida diariamente, e de dois em dois dias revezávamos a limpeza do boi . As quentinhas só podiam ser pegas depois de lavadas as mãos e de modo algum um preso podia tocar no pão de outro. Também não se aceitava que alguém deixasse restos de comida dentro da cela. O palavreado também era normatizado. O palavrão “porra”, por exemplo, usado acidentalmente, era tolerado, mas se alguém abusava do seu emprego era logo advertido: – Já viu homem ficar com porra na boca? “Bocas-sujas” eram mal vistos pelo coletivo, que os julgava mal-educados. Também não se falava “tomar” em referência a ingerir algo, como água, café ou leite: – Tomar não é coisa de homem. Homem bebe.
Os mais ortodoxos não pronunciavam a palavra “leite”, por motivos que a essa altura o leitor já pode imaginar. Empregavam, como sinônimo, “vaquinha”. Eu ria por dentro quando via aqueles marmanjos, muito sérios, gritando para os demais: – Aê rapaziada, quem vai querer vaquinha hoje? Descrevo aqui o quadro geral, mas não devemos pensá-lo como algo rígido, pois chegava a variar muito duma cela para a outra. Nunca vi um preso ser castigado pelas palavras que usava, mas essas questões eram incorporadas através do convívio e exemplo do meio. Para que se forme uma noção de como esse código era complexo, abrangendo diversas facetas da convivência humana, até a masturbação tinha suas regras. Era terminantemente proibido “quebrar uma” na noite que sucedia ao dia de visitas, o que, suponho, visava coibir “desrespeitos” às visitantes dos presos. Nunca vi uma denúncia desse tipo, mas suponho que, se alguém fosse pego no ato, e pelo menos uma testemunha confirmasse o “flagrante”, poderiam vir a ser sérias as consequências. Como se vê, a prisão era ambiente machista ao extremo, embora boa parte daqueles homens fossem sustentados por mulheres. A imagem de mulher virtuosa era a mãe dedicada, a esposa fiel, dispostas a todos os sacrifícios e, no caso desta última, preocupada com a beleza, ainda por cima. A influência religiosa, sobretudo evangélica, muito presente na cadeia, certamente contribuía para a construção desse ideário. Aparentemente paradoxal, diante disso, era o fato do coletivo admitir a entrada de homossexuais e travestis, o que é rigorosamente proibido em presídios comandados por facções. Esses presos têm permissão, inclusive, para “casar-se”, dividindo a mesma comarca com seu parceiro, e o “ativo” não é encarado publicamente como sendo homossexual, e sim como o “macho” da relação. Digo publicamente, porque, na prática, este também perde muito de sua moral entre os demais presos. De fato, os homossexuais são aceitos apenas como presos de segunda categoria, que devem obediência ao seu “homem” e também ao coletivo, ao qual precisam respeitar ainda mais que os demais. Eles perdem até mesmo os seus nomes, sendo comumente referidos como “o viadinho da cela tal”. Não podem tocar nos objetos dos demais presos nem participar da distribuição das quentinhas dentro das celas. O tempo todo lhes é indicado o seu devido lugar e, em caso de quebra dessas normas, o castigo previsto é severo. Constituem, realmente, uma casta inferior dentro do presídio. O tempo Cada detento criava a sua própria estratégia para ocupar os dias. A conversa na grade, animada o dia todo, era de longe a mais comum. Cadeias são, normalmente, barulhentas durante o dia e silenciosas à noite, como os desertos que alternam altas e baixas temperaturas. A televisão era outra necessidade básica dos presos, tão importante quanto a comida ou o banho de sol. Realmente, um dos castigos mais duros que se
impunha a um preso era tirar-lhe a TV, ao mesmo tempo fonte de distração, relógio, informação, contato com o mundo vivo das ruas. Paulista, visão da nossa cela, disse-me uma vez: – TV é 70% da cadeia. Quando, mais tarde, fui transferido para a galeria B, ficando alguns dias sem o maldito aparelho, sofri na pele as agruras que a sua falta faz. A solidão tornou-se maior e o tempo mais extenso. Isso é ainda mais verdadeiro nas celas individuais, onde a TV serve também de companhia, sua ausência contribuindo para deprimir os companheiros que não têm condições de adquiri-la. Entendi melhor os hábitos solitários das donas-de-casa, aprisionadas nos afazeres domésticos, quase sempre com os televisores ou rádios ligados (no Bandeira Stampa, infelizmente, era proibido aparelho de rádio, coisa que me fez muita falta). A direção só permitia uma TV por coletivo ³⁵ . Embora se buscasse um entendimento mínimo para decidir quais programas assistir, a palavra final era do dono, o que quase sempre coincidia com a figura do preso mais antigo, que de um jeito ou outro acabava “herdando” o patrimônio de alguém já transferido. Os programas policiais recebiam as maiores audiências, sobretudo os mais sensacionalistas, às vezes provocando acesos debates sobre a conduta dos criminosos e os seus métodos. Novelas também eram sagradas: os presos são noveleiros de carteirinha e, quanto mais melosas, tanto mais sucesso fazem entre eles. Via-os torcer entusiasticamente para o “bem” contra o “mal”, principalmente quando aquele era representado por alguma donzela meiga e bela. Quando lá estive, fez estrondoso sucesso a novela “Império”, e passávamos dias inteiros discutindo dentro da cela quem era o vilão oculto da trama. Montaram-se bolões e pequenas fortunas (para os padrões do lugar) foram apostadas. As apostas, aliás, em cima dos eventos mais diversos, são outro passatempo dos mais populares ali. Ao final de um episódio, quando um personagem da turma do “mal” era pego no flagra, ouviam-se gritos vindos de várias celas: – Aí fulano de tal, a casa caiu! – Agora eu quero ver! – Rodou, mané! Como se fosse real. Engraçado é que o visão da galeria, um preso apelidado CDD, parecia-se com um personagem travesti encenado na novela, chamado “Xana”. De sorte que, sempre que tal figura aparecia na telinha, choviam, de todas as celas, “saudações” ao nosso companheiro: – Fala aí, CDD!
O pessoal do seu xadrez contou que, nessas horas, ele punha-se de cara amarrada em cima da comarca , fazendo que não tinha nada a ver com aquilo. Ou simplesmente ia dormir, tão logo acabava o Jornal Nacional... As discussões constituíam também uma ocupação e, às vezes, acertos e combinações de questões miúdas demoravam dias para ser resolvidos. Coisa da qual os presos pareciam gostar mais do que de tudo era fazer planos irrealizáveis, como, por exemplo, onde iriam gastar um dinheiro ganho na mega-sena ou em que praia passariam o próximo feriado. Talvez com isso se sentissem mais livres, transpondo, ainda que mentalmente, a vigilância e as grades. Os bate-bocas na grade eram um evento à parte: no início da minha caminhada, quando via dois presos falando alto na grade, me parecia que a violência estalaria a qualquer momento. Tratava-se de impressão falsa, entretanto: tão logo saíamos para o banho de sol, os ânimos, como que milagrosamente, serenavam, e não se falava mais naquilo. Havia ainda o futebol, coisa séria na cadeia. O campeonato interno era disputado, contando com times definidos, árbitro, tabela e uma comissão encarregada das normas. Com o sol rachando, os presos, quando não conseguiam alguém para emprestar-lhes calçados, iam descalços para a quadra e a dedicação era tamanha que muitos voltavam para a cela com os pés sangrando. As partidas transmitidas pela TV eram acompanhadas atentamente, não só pela torcida aos times do coração, como também pelas apostas: tanto as que envolviam dois presos, cujo valor combinavam livremente, como o “bolão”, que movimentava toda a cadeia. A dois reais podíamos comprar um talão, feito à mão, com os jogos da rodada e marcar o resultado previsto. Como em uma loteria esportiva, cada um podia comprar quantos talões quisesse e quem acertasse todas as combinações levava o dinheiro. Eu, na primeira vez, acertei sete de oito resultados possíveis, para espanto dos companheiros de cela, que me julgaram apostador de talento. Nunca mais repeti o feito, entretanto: não passou de sorte de principiante... Quando, no campeonato carioca de 2015, o meu amado Botafogo enfrentou o Flamengo, fui colocado diante de uma situação delicada: só havia eu e mais um botafoguense na galeria inteira, contra uma legião de rubro-negros. Perder seria uma tragédia, principalmente depois de uma semana repleta de provocações de parte a parte. Acontece que, claro, nós ganhamos! E eu, tido como pessoa extremamente calma, fiz como todos nessa situação: fui para a porta da cela, “balanguei” a grade e gritei feito um louco. Acho que, pelas expressões dos meus “rivais”, um tanto surpresos, além de contrariados, eles reviram um pouco seu conceito a meu respeito... No banho de sol, que ocorria duas vezes por semana, exceto nos feriados e dias chuvosos – quando, para comoção geral, era cancelado –, as caminhadas e conversas constituíam a maior distração, além do jogo de cartas, a dinheiro, num canto. Nunca consegui me sentir completamente à vontade em meio a setenta ou oitenta presos e costumava encostar-me a um canto, trocando ideia com um grupo mais reduzido. Quase invariavelmente o assunto nas rodas maiores era o crime, as façanhas desse ou daquele, a história de ações ou parceiros famosos. No princípio, a curiosidade me empurrava para aquelas conversas, mas com o tempo, sentia-me profundamente entediado com aquilo. Primeiro, porque nunca pertenci
àquele submundo, o que me fazia eternamente “estrangeiro” nessas questões, e, segundo, porque era difícil, nessas horas, separar o que havia de verdade e o que havia de mentira nos relatos dos meus companheiros. Em geral, sempre tive mais afinidade com os presos mais velhos, talvez porque estes também se entediassem das bravatas da turma mais nova. Essa linha tênue, entre, por um lado, conviver e integrar-me aos demais detentos, e, por outro, deixar clara a minha condição e moral de militante e preso político, nem sempre era simples de administrar. Ocorreram mesmo na minha caminhada alguns episódios de tensão, poucos é verdade, dos quais pude sair bem. Com o passar do tempo, pelos argumentos e principalmente pela postura firme e solidária que mantive no dia-a-dia, consegui angariar sem alardes o respeito dos demais. Os livros eram coisa rara por ali. No coletivo, de fato, logo percebi que o nível médio de instrução era muito baixo, não superando, normalmente, o ensino fundamental incompleto. Quando recebia toques ³⁶ esses eram recheados de erros básicos, alguns até bastante criativos. Por exemplo: escrevia–se “oprimição” em vez de opressão, “tenque” no lugar de tem que, “boua” e não boa, e outras coisas do tipo. Os leitores eram poucos. Desses, a maioria absoluta lia textos religiosos ou de autoajuda, provavelmente à procura de um analgésico moral para suportar a dura realidade. Um dos momentos de maior felicidade, e também responsabilidade, que experimentei deu-se quando um “coroa” que estava na minha cela me pediu que escrevesse uma carta para sua esposa, a quem não via há meses. Digo que fiquei feliz não só porque pude ser útil a outra pessoa, mas também porque foi sinal de grande confiança da sua parte pedir-me tal coisa. Dediquei-me conscienciosamente ao trabalho, que me tomou horas inteiras, ainda mais que se tratava de tema delicado, pois que era um acerto de contas entre eles. Depois dessa vez, escrevi outras cartas para meus companheiros. Funcionava uma escola no Bandeira Stampa. As salas, segundo me contaram, eram multisseriadas e dividiam-se entre ensino Fundamental e Médio. A escola ficava instalada em uma sala ampla, na área administrativa do presídio, próxima à direção. Alunos e professores permaneciam trancados durante o horário letivo e, no interior da sala, divisórias separavam as classes. Os presos não toleravam, sob nenhuma hipótese, qualquer constrangimento ou desrespeito com os professores. Estes, por sua vez, costumavam se mostrar sensíveis aos problemas dos detentos, levando filmes ou músicas para trabalhar, proporcionando atividades sociais geralmente inacessíveis no ambiente carcerário. Apesar disso, a própria adversidade do ambiente impunha dificuldades para o funcionamento da escola: muitas vezes as aulas eram canceladas ou as turmas modificadas no meio dos cursos, em razão das contínuas transferências. Dependendo do plantão de guardas, estes demoravam a “tirar” um preso para a aula, ou simplesmente “esqueciam” de fazê-lo. Conseguir uma vaga também não era simples e ocorria de presos esperarem quase um ano até ver convertido seu pedido de ingresso em matrícula efetiva na escola.
Na cadeia, cada dia, tomado isoladamente, parecia alongar-se quase ao ponto de se tornar insuportável. Pela manhã, normalmente, acordava bem disposto e aproveitava a mente fresca para ler, escrever, conversar. As tardes, entretanto, eram sofríveis, particularmente no verão, quando pareciam intermináveis. Muitas vezes, lá pelas três da tarde, assaltava-me uma ânsia desesperadora, uma vontade de gritar represada na garganta. Para mim mesmo, inventei a expressão “minuto da agonia” quando percebia a chegada dessa sensação, que nenhuma conversa ou leitura podia socorrer. Nessas horas, eu cheguei a compreender mais profundamente o significado da palavra angústia. Era desesperador. Conforme a noite caía, meu ânimo serenava, e sempre perto de dormir sentia-me aliviado por ter vencido mais um dia. Embora cada dia singular parecesse eterno, a soma dos dias corria rapidamente, os dias transformando-se em semanas, as semanas em meses. Quando passei a receber visitas, a unidade básica do tempo passou a ser o intervalo entre uma e outra. Notar essa passagem do tempo, aliás, o suceder das datas festivas, dos aniversários das pessoas queridas, das estações do ano, é das coisas mais penosas que existem na prisão, porque nos sentimos subtraídos, de modo irrecuperável, da nossa própria vida. Saber concentrarse na “vidinha” da prisão, distanciando-se desses sentimentos, é questão de sobrevivência e aqueles que não conseguem assimilar sua nova situação podem sucumbir, vítimas da depressão ou da loucura, como presenciei algumas vezes. O prolongamento da prisão foi a coisa mais difícil que tive que enfrentar. Exigiu-me grande esforço manter-me vigilante frente ao impacto que sua rotina ia gerando no meu modo de agir e pensar. Sentia-me contaminado aos poucos por sua influência insidiosa, que nos domina de modo quase imperceptível, como se fosse uma doença crônica. Por exemplo: algumas vezes, ouvindo uma história, me pegava desconfiado, duvidando de tudo o que dizia meu interlocutor. Outras vezes, sentia-me indiferente diante das reclamações recorrentes sobre os maus tratos recebidos aqui ou ali, ou sobre a comida, que eram em geral muito ruins mesmo. Nessas horas, chacoalhava-me por dentro, preocupado. Igor, não esqueça quem você é, nem pelo que está aqui. E retomava a postura serena, solidária, crítica. É preciso muita disciplina e um esforço tremendo para não ser devorado pelo meio, para não naturalizar o que ele tem de absurdo, para manter-se consciente e, nesse sentido, livre. A prisão, afinal, nada mais é do que um mecanismo pensado para quebrar almas e vontades, mais do que para reter corpos estritamente. Uma máquina de moer gente. D7 Assim que entrei na cela fui recebido pelos meus companheiros, que tentavam medir, com olhares curiosos, quem seria o novato. Paulista, que era o visão da nossa cela – embora não aceitasse o título – disse-me onde ficar, quais eram as regras básicas, apresentou os demais. Assim que eu me declarei “preso político”, a curiosidade deles aumentou ainda mais:
– Você é do bonde da Sininho? – Pô, legal, um black bloc de verdade aqui na nossa cela! Com o tempo, expliquei-lhes que não éramos nem um “bonde” nem um “bando”, mas ativistas políticos, participantes das maiores manifestações populares da história do país. Tampouco eu era um black bloc. Houve quem me reconhecesse por causa das audiências, pelo gesto de erguer os punhos. – Eu fui a todas as manifestações em junho, com o pessoal da Força Jovem do Vasco – disse-me orgulhosamente Tiago, um jovem preso por assalto à mão armada. Embora sua família fosse remediada, foi levado ao crime pelo vício da cocaína. – É mesmo? E o que você achou? – respondi. – Ah, era maneiro. Mas eu gostava mesmo de quebrar as lojas. Uma vez a gente entrou numa banca de jornal, pegou os guaravitas da geladeira e distribuiu pra todo mundo. Tinha que ver! E ria gostosamente, como se aquela tivesse sido a coisa mais divertida que fez em toda a vida. Também moravam na D7 Mozer, cinquentão, condenado por tráfico de drogas, abandonado pela família (para sua esposa escrevi a carta a que já me referi) e um mineiro acusado de estelionato. Esse último, que logo pediu transferência para a Igreja (galeria H), era um contador de histórias inveterado, fazendo jus à sua “profissão”. Durante os pouco mais de dois meses em que permaneci na D7, formei, juntamente com Paulista, Mozer e Tiago, o núcleo da cela. Os demais membros do coletivo variaram rapidamente. Paulista, sujeito sério, deu-me inicialmente uma impressão mal-humorada, chata até. Só o via realmente descontraído enquanto jogava cartas com Mozer. Uma noite quase nos desentendemos quando, assistindo ao Jornal Nacional, eu defendi a Palestina, então bombardeada por Israel: – Colé, mano? – ele me interpelou. – Não se ligou que aqui é o povo de Israel, não? – Não tem nada a ver com o povo bíblico de Israel não, Paulista – respondi indignado, tocado em um tema particularmente caro –, mas com o Estado de Israel, que mata crianças, mulheres, inocentes, igual faziam os nazistas. – É isso aí, eu também fecho com os palestinos! – apoiou-me Tiago, encerrando a discussão. Particularmente difícil foi a situação em que me envolvi ainda nos primeiros dias da minha chegada ao coletivo. Logo da minha entrada, Paulista me explicou sobre as práticas religiosas que ocorriam na galeria (em toda a cadeia, na verdade): diariamente, às seis da tarde, ocorria a oração e, na véspera dos dias de visitas, ou seja, duas vezes por semana, o culto, que era mais extenso, com músicas e testemunhos.
– Da oração ninguém é obrigado a participar, aqui todo mundo respeita a crença de todo mundo. Agora, do brado – ressaltou – é obrigatório que pelo menos um de cada coletivo participe. Pra não ficar pesado pra ninguém, a gente reveza, cada dia vai um na grade, amanhã é a sua vez. – Sem problemas, mas me diz, o brado tem algum cunho religioso? – perguntei, suspeitando que o fato de ocorrer após as orações não seria mera coincidência. – Não tem nada de religioso, não. O brado é o grito do coletivo, mais nada. Em Bangu 10 rezava-se, como já disse, mas não desse modo sistemático, “regulamentar”, como no Bandeira Stampa. Tampouco havia qualquer “brado”. De cima da minha comarca observei, nesse primeiro dia, a oração, e em seguida o tal “brado”: um orador entoava palavras-de-ordem, respondidas vigorosamente pelos presos de frente às grades. Seu conteúdo era o seguinte: – A vitória é nossa! (orador) – Pelo sangue de Jesus! (coletivo) (2x) – Se Deus é por nós! (orador) – Quem será contra nós?! (coletivo) (2x) – Operando Deus! (orador) – Quem impedirá! (coletivo) (2x) – E o povo de Deus! (orador) – Declaramos isso! (coletivo) (2x) – Bandeira Stampa! (orador) – É do Senhor Jesus! (coletivo) (2x) – As nossas famílias! (orador) – É do senhor Jesus! (coletivo) (2x) – Zero, zero, um! (orador)
– Povo de Israel! (coletivo) (2x) – Rael! (orador) Confirmando as minhas suspeitas, o conteúdo religioso era evidente. Não posso ceder. Senti um calafrio ao concluir que deveria ser intransigente, como no primeiro dia de prisão, com a diferença (fundamental) de que agora teria de contestar os meus próprios companheiros de cela. No segundo dia, fiz-me de desentendido e como outro “amigo” participou do culto, ficou também para o “brado”, de modo que passei despercebido. No terceiro dia, todavia, não tive escapatória: – Aí Black, hoje você representa nós lá no brado, falou? – indagou Paulista. – Não posso, Paulista, o brado tem cunho religioso, e eu sou ateu. Como se eu acabasse de socar uma mesa ou começar uma briga, os demais pararam seus afazeres e me olharam aturdidos, embora eu buscasse falar calma e pausadamente. – Como assim, meu? O brado é o grito de guerra aqui do coletivo, todo mundo tem que cantar! – Olha, Paulista, eu posso ficar em pé na grade, sem problemas. Agora, cantar, não. – Mas por quê? – Olha, mano, eu estou preso pelas causas que defendo, isso pra mim é sagrado. O brado tem cunho religioso e eu sou ateu, não posso cantar. – Mas não tem nada de religioso, é só o brado... Paulista falava com firmeza, embora sem se exaltar. Não compreendia a minha resistência ao que lhe parecia um rito natural, palavras a serem repetidas e nada mais. Falando para todo o coletivo, mudei o tom da argumentação, levando em consideração que eles provavelmente não teriam conhecido muitos ateus em sua vida: – Olha, eu entendo e respeito o brado. Mas, veja, imagine que eu não fosse ateu, mas muçulmano, que eu adorasse Alá. Você concorda que eu não poderia gritar “pelo sangue de Jesus”? Todos me olhavam, acompanhando as palavras. Paulista insistiu: – Mas se você não cantar o brado, o pessoal pode achar que você não fecha com o coletivo, é alemão ... a gente pode ter que levar o problema pra frente, senão podem pensar que a cela tá mandada ³⁷ .
– Não tem problema. Eu discuto com quem precisar, tô na minha razão. Paulista me olhou ainda um tempo, como se testasse se eu bancaria mesmo minha posição, “como homem”, segundo se dizia por lá. Como eu não cederia, deu por fim seu veredito: – Tá tranquilo black bloc, não precisa dar o brado, não. A verdade é que nunca alguém de fora notou que eu não participava do brado, muito menos me julgou alemão por causa disso. Com o passar do tempo, Paulista e eu nos aproximamos, chegando a estabelecer laços de verdadeira estima. Sua preocupação com a ordem era um nobre esforço para conservar a própria dignidade; defendia ao pé da letra as normas do coletivo por ser daquelas pessoas que, uma vez aderidas a um grupo, colocam-se em segundo plano perante os interesses do mesmo. Era, em linguagem política, um homem de partido. Se a D7 era a cela mais limpa e organizada de toda a galeria, considerada pelos demais o melhor coletivo para viver, isso se devia, sobretudo, à autoridade do nosso Paulista. Por trás daquela carapaça, havia, realmente, um homem sensível, leitor de José Saramago, cujos livros enviava-lhe sua esposa, professora de português. Demonstrava solidariedade dividindo o pouco que tinha com os demais, principalmente com Mozer, seu parceiro de jogatina. Atingido por uma condenação atroz – quinze anos de prisão por tráfico de drogas, embora fosse réu primário –, estava preso há três anos, fazendo as contas para progredir para o regime semiaberto. Embora não demonstrasse facilmente os sentimentos, escapava-lhe, num olhar, ou numa frase ríspida, o quanto sofria com aquela sorte, com a ausência da mãe, já idosa, que não via desde que fora preso. Como quase todos os presos condenados, rodara várias cadeias e falava com saudades do velho Galpão ³⁸ , por esse ter, segundo dizia, “a melhor escola do sistema”. Unia-nos, também, o vício do café. Ele chegou, inclusive, a ser proprietário de uma pequena cafeteria, fechada quando foi preso. Revezávamos a compra do valioso pó de café, que dividíamos com todos, embora coubesse a ele fazê-lo, pois eu não ousava manusear o mergulhão velho que ele mantinha com tanto zelo. Usando esse mergulhão preparou para nós, com um forninho improvisado com papel alumínio e pedaços de papelão, um pudim, que demorou quase um dia inteiro para ficar no ponto. Talvez pelo trabalho que custou, a guloseima pareceu-me particularmente saborosa, combinada com a Coca-Cola comprada na cantina. Tiago tinha a minha idade. A principal característica da sua personalidade era o individualismo: mesmo na prisão prestava grande atenção nas marcas das camisetas e chinelos que usava, e gostava de ostentar o que tinha diante dos mais pobres. Raramente dividia suas coisas com alguém: se alguém lhe pedia algo, dava o preço. Embora reprovasse, intimamente, sua atitude, não me cabia julgá-la, e a mim ele sempre tratou fraternamente (na verdade, foi quem primeiro me acolheu na D7). Um dia descobri que ele gostava de jogar damas tanto quanto eu, e passávamos os dias disputando melhores-de-cinco, que a princípio eu ganhava com facilidade, mas que pela sua aplicação foram se tornando cada vez mais acirradas.
Sua desgraça era o vício em cocaína. Por causa dele passou a roubar, menos para sustentar o vício do que para potencializar a adrenalina propiciada pela droga. Preso uma vez, conseguiu liberdade provisória, e nessa situação foi novamente detido, após roubar o carro de um taxista. Era evidente que, nessas circunstâncias, não conseguiria se livrar tão facilmente da prisão, embora acreditasse piamente – como acontece na maior parte dos casos – que conseguiria a liberdade no dia da audiência, marcada para abril (fora preso em setembro). Como lhe era penoso viver sem a droga, passava os dias à base de remédios para dormir. Arrastava-se para o confere da manhã, só levantando realmente próximo ao meio-dia. No tempo em que convivemos, não o vi limpar o boi ou varrer o cubículo nenhuma vez. Paulista, exigente com essas questões, conciliava com Tiago, talvez por conhecer seu ânimo explosivo, genioso. Ele, no fim das contas, era um jovem como tantos outros, cuja mente girava em torno de farras, mulheres e roupas de marca, mimado pela mãe e pela tia, que não lhe deixavam faltar nada. Quando, por alguma razão, elas não apareciam na visita, Tiago ficava profundamente deprimido e não levantava da comarca para nada. Creio que ele precisava, realmente – talvez ainda precise –, de tratamento médico e não de um presídio. Havia na galeria algumas figuras que me chamaram atenção. Uma delas foi um preso apelidado Grilo – nunca soube seu nome –, um negro alto, magro, de cerca de cinquenta anos. Entre idas e vindas, passara praticamente toda a vida na prisão. Não tinha família e sempre que podia ficava na ligação ³⁹ , onde se podia pedir uma coisa aqui, outra ali, de modo a não ficar totalmente descalço ⁴⁰ , como dizia. Grilo, a princípio, me pedia um ou dois reais “emprestados”, a serem pagos “daqui a pouco”, coisa que nunca acontecia. Como na prisão não se pode vacilar com questão de dinheiro, parei de emprestar-lhe, para que não folgasse e eu tivesse que cobrá-lo. Depois disso, como me via sempre às voltas com papéis, passou a me pedir folhas em branco, que transformava em pequenos envelopes, vendidos a cinquenta centavos cada. Analfabeto, criou uma pronúncia particular para certas palavras, o que divertia os demais presos, tornando-o um dos alvos preferenciais de imitações. Por exemplo: quando a cantina abria, ele gritava, a plenos pulmões: – Aí rapaziada, vai sair a primeira volta da quentina ! Prepara os pedidos da quentina aí, pessoal! Mais de uma vez vi alguém tentando explicar-lhe a pronúncia correta, ao que ele ouvia impassível, para logo seguir em frente, falando exatamente como antes. Acredito que, em sua opinião, ele estava certo e todos aqueles intrometidos estavam errados... Outro que me chamou atenção foi um menino de dezoito anos recémcompletados, que morava em frente à D7. Sua juventude e o jeito tímido me faziam indagar como afinal fora parar ali. Intriguei-me ainda mais depois que vi sua foto estampada no gabinete do diretor, distinção dada aos presos “perigosos”. Num banho de sol, finalmente, contou-me sua história: – Tô aqui porque matei um policial. Sabe como é, me envolvi com a mulher dele, quando fui ver, era ele ou eu.
Na verdade, esse policial e ele agiam juntos em atividades ilegais. – Mas existem provas contra você? – perguntei. – Ah, parece que não, nem encontraram a arma. Mas eu já confessei. – Mas por que você confessou, cara? Se não tem a prova! – Eles me espremeram muito na Delegacia. Achei melhor acabar logo com aquilo. “Acabar logo com aquilo” implicaria, para ele – réu confesso no homicídio de um policial –, passar os próximos dez anos ou algo semelhante disso atrás das grades. Não sei se a resignação com que falava da sua sorte derivava de uma alma particularmente serena ou por não ter ainda a dimensão completa do que lhe aguardava. Dada sua pouca idade, acredito ser esta última a principal possibilidade, infelizmente. Na cadeia, a dignidade e a vileza caminham lado a lado, separadas por uma linha sutil. Alguns crescem diante da adversidade, encontram dentro de si forças novas e insuspeitas. Embora se adaptem ao meio, por questão de sobrevivência, não permitem que este destrua sua personalidade e os seus valores. Outros, colocados diante dos mesmos problemas, rebaixam-se, acovardam-se, perdem o senso de dignidade, mimetizam-se com as paredes sujas e as grades enferrujadas. Entre estes últimos o sistema recruta os delatores, que nunca faltam nas prisões, pessoas dispostas a quaisquer artifícios para obter alguma vantagem, ainda que sejam alguns cigarros ou a proteção enojada da direção. Esses miseráveis de espírito são chamados pelos demais presos “vermes de cadeia”, pessoas que se confundem com aquilo que a prisão tem de pior, merecedores do desprezo dos próprios companheiros. Um dia entrou na D7 um preso chamado Vinicius, acusado de homicídio, no qual negava participação. Casado há pouco, pai de filho recém-nascido, a única coisa que possuía era a roupa do corpo, mesmo assim rasgada em algumas partes. O coletivo logo o “abraçou”, de modo que arranjou o mínimo necessário para que fosse vivendo com dignidade, até que começasse a receber visitas e as coisas melhorassem. O sujeito, entretanto, confundindo as coisas, começou a abusar da solidariedade do coletivo, pedindo dinheiro que não pagava, filando um cigarro, um gole de café, absolutamente tudo o que via pela frente. Tiago, que já não costumava dividir as coisas, foi o primeiro a romper com ele. Mozer, coitado, não tinha nada seu para ser filado, mas preferia passar fome antes de rebaixar-se à condição de “pidão”. Em seguida, Paulista tomou-lhe desafeto, pois Vinicius era negligente com a higiene, levando nosso visão a dar-lhe broncas tão severas que deixavam a todos constrangidos dentro da cela. Até o pão “da casa”, distribuído igualmente para todos, começou a sumir depois da chegada de Vinicius ao coletivo. – Esse aí é imundiça ⁴¹ ! – falava Paulista. – Imundiça braba! – reforçava Tiago.
Um dia, quando eu estava no Fórum, ele recebeu a visita da esposa e do filho, que registrou dentro da cadeia. Com muito sacrifício, a família proveuo de itens como bermudas, casaco, lençóis, chinelos. Não devem ter durado uma semana: no mesmo dia em que recebeu as roupas começou a vendê-las, gastando o dinheiro não se sabe com quê. Fumante inveterado, aceitava cigarros na permuta, os quais fumava desesperadamente, sem dividir com ninguém, inclusive com aqueles que o “fortaleciam” na hora da penúria. Ao cabo de alguns dias, trocou a última bermuda que lhe restava por dois cigarros e voltou à estaca zero. A atitude de dissipar aquilo que a família lhe dera foi mal vista pelos demais presos e o fez cair definitivamente em desgraça perante o coletivo. Até mesmo Paulista, quando comprava um biscoito na cantina, não lhe oferecia, contrariando hábito antigo. Apenas eu, até o fim, consegui não chegar a esse ponto. Vinicius, vendo que na D7 não conseguiria mais nada, passava os dias na grade, gritando, mandando recados, chorando pitangas. Com essa atitude angariou a antipatia geral. – Sai da grade, ferrugem! – gritavam os presos de outras celas. Comigo a gota d’água ocorreu quando me pediu dez reais emprestados para comprar um maço de cigarros na cantina. Como o cigarro, a varejo, custava setenta ou oitenta centavos, vendendo um maço inteiro ele conseguiria, na diferença, arrecadar alguns trocados. Foi com esse argumento que me pediu a grana, que lhe emprestei, embora nessa época ainda não recebesse visitas da minha família, tendo que controlar bem o que gastava. Como, naquele dia, tive audiência, não vi o desfecho da história. Passados dois ou três dias, como ele nada disse, indaguei-lhe: – E aí, Vinicius, vendeu os cigarros? – Pô, Igor, tô vendendo, amanhã te pago. Tiago, que estava atento a tudo, me disse: – Olha, Igor, esse cara tem que te pagar. Você tem que colocar no coletivo e ele tem que te pagar. Eu sou tua testemunha, vi tudo acontecer. Ele não vendeu nada, comprou o maço e fumou tudo sozinho. No dia seguinte, cheguei novamente perto dele, dando-lhe uma última chance: – E aí, mano, o dinheiro que eu te emprestei tem volta? – Cara, me dá mais um tempo, tô sem um real. – Ué, mas você não vendeu os cigarros? – Não vendi, não. Eu te pedi emprestado pra poder fumar. Aí já era demais! Na hora da refeição, quando estavam todos sentados, falei em voz alta, olhando firme para o espertinho:
– Como é, Vinicius, eu te emprestei dinheiro pra você comprar um maço de cigarros, você faz o que quiser com eles, mas tem que me pagar! Fez-se silêncio na cela, todo mundo prestando atenção. – Mas, é que...não, eu não pedi pra... – Não importa pra que você pediu, tem que me pagar o que deve, é só isso. Ele não esperava por isso, julgando que eu seria presa fácil da sua lábia. Uma vez colocado o problema no coletivo, ele teria que me pagar, sob pena de ser cobrado . No mesmo dia, pôs-se a enviar freneticamente toques para um, para outro, e não falou com mais ninguém dentro da cela. Por fim, restituiu-me os dez reais. Não se tratava de dinheiro, somente. Existia, sem dúvida, a ofensa pessoal, mas não era só isso, também. O essencial é que deixar-se enganar na prisão, sem reagir, é trilhar um caminho perigoso, diminuindo-se frente aos demais. A essa altura eu já tinha adquirido experiência suficiente para saber disso. Sem condições para ficar, sentindo que a animosidade geral que o cercava podia logo encontrar algum pretexto para transformar-se em algo mais sério, Vinicius pediu transferência para a Igreja . Saiu sem se despedir de ninguém, sem ser saudado por ninguém. Depois da transferência, ainda me mandou um toque, pedindo qualquer coisa, que eu nem respondi. Muito triste aquilo, muito triste. A implosão do coletivo Uma semana após a libertação de Caio e Fábio, a galeria D, tal como conhecíamos até então, deixou de existir: seus moradores foram remanejados para diferentes presídios, principalmente Bangu 2 (sinônimo de superlotação e más condições) e Galpão (também muito precário estruturalmente, embora os presos elogiassem a menor rigidez disciplinar existente por lá). Tudo aconteceu em uma manhã ensolarada, no fim de março. Após o confere, começaram boatos de que haveria uma transferência em massa. Podia perceber, pela seriedade com que se comentava aquilo, que não se tratava de nenhuma brincadeira. As dúvidas acabaram quando CDD chamou a atenção de todos na grade: – Aí pessoal, pode preparar as trouxas! A D vai ser toda transferida pro Galpão e Bangu 2, principalmente Galpão! Vai que vai mesmo, daqui a pouco os caras da SOE estão aí!
Éramos vítimas de uma reação em cadeia. Presos do Terceiro Comando haviam se rebelado num presídio em Campos, no norte do estado, e como represália foram castigados com um período de quarentena em Bangu. Após alguns dias em Bangu 10, onde posso imaginar a que tipo de tratamento devem ter sido submetidos, foram transferidos para Bangu 9, a fim de cumprir o restante do castigo. Uma vez que presos do “Seguro” e de facções não podem ser misturados, o Bandeira Stampa tornou-se pequeno demais para todos. Na cadeia, até a mudança de comarca ou de cela já significa um acontecimento importante, quanto mais uma mudança de presídio, sobretudo assim, imprevista. O Galpão, segundo ouvi dizer, era uma cadeia muito velha, infestada por ratos, composta de celas imensas, com setenta comarcas em cada uma. Era famoso, também, pela fartura de drogas e celulares. Outra particularidade sua era o grande número de travestis que abrigava, levando-o a ganhar o apelido de “Galpão do amor”. Depois da notícia, um preso dizia em voz alta, na galeria: – Pra fazer correria o Galpão é bom, a ligação funciona vinte e quatro horas, mas pra viver aqui é melhor. Na verdade, nem sempre os critérios que eu próprio utilizava coincidiam com o da maior parte dos presos para definir se um lugar era bom ou ruim. Enquanto para mim, por exemplo, infraestrutura e um mínimo de tranquilidade eram essenciais, meus companheiros eram capazes de elogiar um lugar caindo aos pedaços, contanto que nele houvesse oferta de telefones e drogas. O comunicado da transferência me caiu como uma bomba. A essa altura eu já estava plenamente habituado ao coletivo, do qual conquistara estima. Nessa época, só moravam na D7, além de mim, Paulista e Mozer. Por isso mesmo, eu conquistara um lugar na comarca de baixo, bem mais cômoda. Os “coroas” e eu nos dávamos bem, não havia atritos entre nós, eles passando os dias jogando cartas, como se estivessem numa praça ao ar livre, tranquilamente, eu à volta com meus livros e papéis. Além disso, meu pai finalmente estava com a posse da carteirinha de visitação e o presídio ficava relativamente próximo da sua casa, diferentemente de São Cristóvão. Na verdade, sempre que as coisas pareciam equilibrar-se, algum fato nos vinha lembrar perfeitamente onde estávamos. Foi assim até o dia em que saí da prisão. Esse poder que tem o sistema, tirá-lo daqui, botá-lo acolá, colocarte hoje a morar com tal pessoa, amanhã com outra, é das piores coisas que existem na prisão, fazendo-nos perder quase completamente qualquer noção de autonomia, minando a autoestima do preso. Isso para não falar das condições concretas que envolvem uma transferência: a submissão ao tratamento desumano da escolta, as revistas vexatórias, a necessidade de abandonar objetos pessoais, a destruição das frágeis redes de solidariedade lentamente construídas. – Eu – disse Paulista – não deixo nada pros ratos: até as bacias levo comigo, ninguém vai tomar o que é meu!
As famílias não são avisadas da transferência e só descobrem o ocorrido ao bater com a cara na porta, no próximo dia de visitas (no caso de os presos não conseguirem, na nova “casa”, um telefone para avisá-las). Para elas, também se impõe uma readaptação: os gastos, o tempo de deslocamento, as normas quanto ao que entra ou não na cadeia (inclusive as roupas e os calçados permitidos às visitas), tudo deve ser reaprendido, redimensionado. Decidi-me a não ser transferido, principalmente pela proximidade da minha família. Era consciente de que havia, desde 2013, uma determinação para que os manifestantes presos ficassem no Bandeira Stampa e o diretor certamente não a ignorava. Chamei o guarda de plantão e indaguei-lhe: – Seu fulano, gostaria que o senhor perguntasse ao Diretor, em meu nome, qual é a posição dele, porque sei que como preso político eu devo ficar aqui. De fato, a minha condição era reconhecida, a essa altura, não apenas pelos demais presos, mas pelos próprios funcionários, que em sua maioria me tratava respeitosamente. Além disso, existindo uma vigorosa campanha em defesa da nossa liberdade, à administração não interessava cometer certos atropelos. Dez minutos depois voltou o guarda: – Igor, arruma suas coisas! – Vou pra onde, seu fulano? – indaguei, surpreso, imaginando que a minha “ousadia” tivesse suscitado algum castigo. – Vai pra B. Dei um abraço em Paulista, outro em Mozer, que tinha lágrimas nos olhos. Naquele ambiente de confusão, não pudemos nos despedir como eu gostaria, o que, aliás, quase sempre ocorre na prisão: laços verdadeiros, como aqueles que construímos na D7, demoram a ser tecidos, mas basta uma ordem para que sejam desfeitos, como se nunca tivessem existido. Enquanto fazia o caminho inverso na galeria, de saída, muitos daqueles que no primeiro dia me olhavam desconfiados, ou nem me olhavam, ocupados em fumar ou papear, iam para a grade, interrompendo os preparativos da trouxa com suas coisinhas simples, para saudar-me, mandando um abraço, desejando boa sorte. Meu coração estava oprimido mais uma vez, embora não como quando cheguei. Sentia pela sorte daqueles companheiros que aprendi a estimar, pela minha própria sorte – Caio e Fábio já haviam saído, agora era o meu próprio coletivo que deixava de existir –, pelo fato de ter que recomeçar mais uma vez. Sozinho. Durante o restante do dia, observei, da minha nova cela, a saída do pessoal, com os lençóis amarrados nas costas, cheios de tralhas. Quando Paulista passou, gritei-lhe: – Tamo junto, Paulista! Boa sorte, meu irmão!
– Boa sorte também, black! Daqui a pouco você tá na rua! – Você também, eu vou lá te ver! – Vai sim, vou te receber na minha casa, leva a tua companheira! Palavra empenhada tem que ser cumprida, mais dia, menos dia. Balanço da experiência As lições, o domínio das normas e a convivência com pessoas tão diferentes de mim, e diferentes entre si, tudo isso não adquiri rapidamente, mas através de um processo penoso, vencendo percalços. Durante todo o tempo em que estive no presídio, fui colocado perante uma tarefa nem sempre fácil – aliás, bastante complicada – de resolver: integrar-me aos meus companheiros, sê-los solidário, ganhar o seu respeito e, se possível, consideração; e, ao mesmo tempo, não diluir meu estilo de vida, meu pensamento e os meus princípios. Eu jamais aceitei que qualquer guarda, fossem os vestidos de azul, no interior da cadeia, fossem os vestidos de preto, da escolta, me chamassem de “bandido” ou “vagabundo”. Os demais presos, diversamente, não tinham nenhum problema em chamar-se “bandidos” ou invocar a “lei do crime” para marcar sua posição acerca desse ou daquele problema. Meu gesto de erguer os punhos no Tribunal, em sinal de resistência, interessava-os particularmente, dividia-os também: havia os que admiravam aquela atitude firme, sentiam-se, de certa forma, representados pelo meu ato. Mas também havia os que a consideravam absurda, uns por nutrirem o mesmo respeito supersticioso pelas autoridades que há em todo o povo, educado desde cedo na lógica da dominação, outros por julgarem que aquilo simplesmente atrasaria minha cadeia, era “teimosia”, diziam. – Na frente do Juiz é cabeça baixa, sim senhor e não senhor – instruíam-me, como se eu fosse apenas “inexperiente”. – Sou um militante político, não há porque baixar a cabeça. Não tenho do que me envergonhar – respondia, invariavelmente. Nessa diferença de pontos de vista residia um problema mais profundo, que aquela apenas indicava. Para mim, como preso político, a liberdade, entendida de modo limitado, ou seja, a saída da cadeia – na verdade, liberdade é algo bem maior do que isso –, não era um objetivo em si, nem o que de mais importante eu esperava para minha vida. Muito menos algo pelo qual eu estava disposto a fazer tudo . Colocar-me contra meus companheiros, inventar motivos para delatá-los a fim de beneficiar-me, como está tão em moda atualmente, ou renegar a luta, “desculpar-me” por ter feito o que sempre considerei uma obrigação – colocar-me ao lado dos trabalhadores, ao lado da minha gente – eram coisas que eu não faria em hipótese alguma, ainda que tivesse que apodrecer na prisão. Para meus companheiros de galeria D, acostumados a manter-se completamente (supostamente) indiferentes à política, educados pela vida do crime a viver no mais alto grau o “aqui-agora”, esse ponto de vista não
era apenas absurdo, mas simplesmente incompreensível. Sobretudo aqueles sentenciados a longas penas, mas não só esses, em grande número seriam capazes de qualquer coisa para obter o sonhado alvará de soltura, inclusive rebaixar-se a cometer indignidades ou aceitar as mais torpes condições. O sistema penitenciário usa com mestria esse afã de safar-se que há naqueles homens, acostumados a viver como bichos na selva, para não permitir que eles estabeleçam uma plena solidariedade entre si, para estimular no meio deles a desconfiança e a deduragem , para dividi-los, enfim. Ouvi, ao longo do período de detenção, várias fórmulas que expressavam esse mesmo conteúdo: pela liberdade, vale tudo. – Se o Juiz chegar aqui e dizer que se me comer manda me soltar, dou pra ele agora mesmo, na frente de vocês! – Se tiver que botar uma melancia pendurada na cabeça, e andar com ela pela rua, eu boto! – Se tiver que tomar mil chicotadas no lombo, eu levo! O “ se” aqui não é mero detalhe. Estava sempre presente, alertando para o caráter puramente fantasioso daquelas sentenças inusitadas. Era-lhes igualmente dificílimo compreender que eu me dedicasse a uma causa por ‘mera’ convicção. Como a motivação da imensa maioria deles era, basicamente, o dinheiro, a sustentação de um estilo de vida incompatível com a sua classe, escapava-lhes que alguém pudesse se sacrificar por outra razão. Passei muito tempo procurando explicar-lhes que, de certo modo, eu também estava lutando por uma vida nova, mas não de um ponto de vista individual, e, sim, para milhões de pessoas simples do povo, condenadas à miséria e à opressão, como as famílias da maior parte deles inclusive. Convencidos da minha “pureza” ⁴² , respeitavam-me um tanto mais, embora não deixassem de me olhar com curiosidade, tentando descobrir de que planeta vinha uma pessoa assim. Essa relação de estranhamento, que também continha respeito, ocorria também com os carcereiros. Não falo dos que se dispunham a agredir os presos, aos covardes incorrigíveis, que aí são outras relações, mas daqueles que simplesmente cumpriam seu papel, abrindo e fechando grades, anotando números e nomes nas pranchetas, recebendo e emitindo ordens. Esses carcereiros volta e meia vinham puxar conversa, às vezes me dispensavam da revista, e sempre me perguntavam, entre incrédulos e espantados: “mas, afinal, por que você leva essa vida?”. É interessante observar como, quanto às origens de classe, cor da pele e mentalidade, guardas e presos formam uma só massa, pensam de modo semelhante, compartilham valores comuns, sofrem o estigma social (não da mesma forma, naturalmente), diferenciando-se “somente” pelo uniforme – esse sim, traço de distinção definitivo entre uns e outros. Perante esses carcereiros, eu também era um ser meio inexplicável, completamente estranho ao seu ambiente. Sobre isso há um caso engraçado. Meus advogados trouxeram-me de presente o célebre livro Guerra e Paz , de Tolstoi (isso foi mais tarde, quando
eu já estava na galeria B). Antes de me entregar o volume, Seu Eufrásio, chefe da segurança, evangélico fervoroso, pôs-se a folhear atentamente as páginas; e perguntou-me com a maior seriedade: – De que trata o livro? – Trata da invasão de Napoleão à Rússia, em 1812 – respondi. – Napoleão? – ergueu a voz, exatamente como alguém que se lembra de um conhecido não visto há muito tempo. – É, Napoleão – repliquei sem maior entusiasmo. – Napoleão era um sujeito bom! Fiquei em silêncio, espantado pela resposta entusiasmada. Apesar da curiosidade para descobrir o que inspirava, no carcereiro de Bangu, tanta admiração pelo imperador francês, preferi não prolongar a conversa – eu só queria o meu livro. Como eu nada disse, prosseguiu Eufrásio, com entusiasmo ainda maior: – Soube que ele não quis invadir Israel... A minha relação com os livros, frise-se, foi sempre complicada dentro da cadeia. A direção da penitenciária, a princípio, permitiu-me acesso aos volumes trazidos pela companheira advogada, com uma condição: eu não poderia ter mais do que dois livros na cela ao mesmo tempo. – Não queremos que você monte uma biblioteca aqui dentro – justificou-se Seu Calazans, subdiretor, ao recolher meus livros. Na verdade, a direção demonstrava clara preocupação quanto àquela literatura perigosa, crítica, que eu fazia entrar na cadeia, querendo impedir que ela circulasse entre os demais presos. Livros marxistas, nem pensar. A má vontade quanto aos meus livros aumentou depois que reivindiquei, juntamente com Caio e Fábio, a instalação de uma biblioteca no presídio (o que é direito dos presos, inclusive a fim de remição de pena) e passou a boicote aberto após o meu depoimento em Juízo, em que afirmei, diante da imprensa, ser a tortura a “espinha dorsal” do sistema penitenciário. Passei semanas sem poder ter acesso aos livros deixados por meus advogados, com a justificativa que eu estava “acumulando” livros, que estes eram muito volumosos, que haviam “esquecido” de me entregar ou simplesmente sem justificativa alguma. A prisão é, por excelência, um ambiente obscurantista, sob todos os aspectos. Livros, em tais lugares, são sempre um sinal de distinção, algo fascinante e perigoso ao mesmo tempo. E excepcionalmente perigosas – para uma ordem baseada na subjugação, na precariedade, na humilhação, como é a ordem penitenciária – são as ideias revolucionárias. Pontuei longamente os aspectos cotidianos da vida no coletivo, porque quero fugir, principalmente, de qualquer idealização: para o mal, imaginando os presos como monstros devoradores de criancinhas, ou para o bem, julgando-
os apenas “vítimas” de uma ordem externa, esquecendo que eles são também seres conscientes, que se movem e pensam, e não coitados que não sabem o que fazem. Vê-los assim somente seria rebaixá-los à condição de bichos, desumanizá-los, encará-los como uma massa amorfa, sem passado, presente e futuro, sem fraquezas e virtudes, sem vontades. Enfim, seria encará-los não como pessoas reais. # Nunca aceitei ser tratado de forma diversa dos demais. O próprio fato de ter aceitado viver no coletivo, ao invés de pressionar para ser dele separado, diz mais do que mil palavras. Sempre que me insurgi contra alguma arbitrariedade foi para exigir um tratamento justo, legal, regulamentar, como é direito de todos. Toda prisão reveste-se dum caráter político, sem dúvida, possui causas econômico-sociais concretas, e não só a prisão, mas todos os aspectos da vida humana em geral. Entretanto, é distinto o encarceramento dos que são levados à margem da lei como consequência do perverso sistema econômico-social que nos governa e a perseguição dos que conscientemente combatem o próprio sistema, e por isso são em geral tratados pelos governantes (em todas as épocas e em todos os países) como os mais perigosos e piores criminosos – os dissidentes, os revolucionários, para os quais sempre se destinaram as condições carcerárias mais duras. Huey P. Newton, célebre Ministro da Defesa do Partido dos Panteras Negras, desde o cárcere tratou desse tema: Há duas espécies de prisioneiros. A maioria é formada por aqueles que aceitaram a legitimidade das hipóteses sobre as quais se baseia a sociedade. Querem ter as mesmas ambições dos outros: dinheiro, poder, avareza e os gritantes sinais externos da riqueza. Para consegui-los empregam, no entanto, métodos e técnicas que a sociedade definiu como ilegítimos. Quando essas pessoas são descobertas, são presas. Podemos chamar-lhes ‘capitalistas ilegítimos’ pois que seu objetivo é adquirir tudo o que a sociedade capitalista definiu como sendo legítimo ⁴³ . Ou seja, a maioria dos presos, ou daqueles que se chamam “comuns”, tem as mesmas ambições legitimadas e incentivadas pela sociedade burguesa, faltando-lhes, contudo, os meios para satisfazê-las. Muitos deles, e isso eu vi de perto, simplesmente queriam alcançar (e rapidamente, ainda por cima) um padrão de vida completamente incompatível com sua origem social, seu nível de instrução etc. Percebem, sem dúvida, os estreitos limites da vida de assalariado, a falta de perspectivas que assola os filhos dos trabalhadores, mas seu inconformismo não está voltado a derrubar os fundamentos em que se ergue essa sociedade, mas à ascensão individual, usando métodos “ilegítimos”, ou criminosos. Prossegue Huey: A segunda espécie de prisioneiro é composta por aqueles que rejeitaram a legitimidade das hipóteses sobre as quais a sociedade se funda. São aqueles que afirmam que as pessoas no escalão mais baixo da sociedade são exploradas em proveito dos que se encontram no cume da escala social (...). Assim, o prisioneiro da segunda categoria afirma que a sociedade é
corrupta, ilegítima e deve, por isso, ser destruída. Este segundo tipo de prisioneiro é o prisioneiro político. Não aceita os argumentos da sociedade e não pode participar no seu sistema de exploração corrupto, esteja preso ou em liberdade ⁴⁴ . Este segundo tipo de preso, o preso político, rejeita a própria legitimidade do discurso burguês, que afirma todo o tempo a ascensão individual, o consumo desenfreado, a necessidade de ostentar riquezas obtidas à custa do trabalho alheio. O preso político luta contra a sociedade capitalista e a ideologia individualista burguesa que nasce dela, espontaneamente. A prisão é um momento da sua atuação, um espaço igualmente de luta e de resistência, onde sua militância deve prosseguir – inclusive para abrir os olhos dos presos da “primeira categoria”, iludidos com os encantos da ordem vigente. O depoimento de Huey, além de claro e mordaz quanto aos argumentos que desenvolve, tem também enorme importância pelo contexto em que foi escrito. Em primeiro lugar, porque foi redigido nos cárceres dos Estados Unidos, isto é, em um país considerado “democrático” pelo senso comum. Em segundo lugar, porque foi escrito por um negro, ou seja, um membro daquela camada social que compõe a maioria dos presos chamados “comuns”, marginalizados por fatores históricos, econômicos e culturais que todos conhecemos. Esses dois aspectos refutam a afirmação de que não pode haver, no Brasil dos dias de hoje, prisão política: uns, porque afirmam ser o nosso regime “democrático”, outros por dizerem simplesmente que toda prisão é uma prisão política, dada a desigualdade social e também o preconceito racial, que nos afligem. Por mais ingênua e até bem-intencionada que pareça a afirmação de que “todo preso é um preso político”, ela serve, em última instância e independentemente dos propósitos de quem a defende, a deslegitimar a atuação dos militantes que lutam conscientemente por uma nova sociedade ou mesmo por algum interesse concreto das camadas populares, como o direito à terra, por exemplo, confundindo-os com aqueles que, de um modo ou de outro, apenas querem o seu próprio “lugar ao sol”. Sabemos que mesmo os regimes mais atrozes negaram sempre a existência de presos políticos em suas fronteiras. Assim agiram os militares brasileiros, nos anos mais duros do regime instalado em 1964, classificando os militantes revolucionários presos e assassinados como “assaltantes”, “terroristas”, “sequestradores”, ou seja, criminosos “comuns”. Assim agiu o governo norte-americano, a “maior democracia do Ocidente”, não reconhecendo os prisioneiros e prisioneiras Panteras Negras – alguns dos quais seguem presos até hoje – como militantes políticos encarcerados. Essa é uma disputa de conceitos importantíssima, permanentemente travada entre as forças conservadoras e as forças populares e revolucionárias. É lamentável que atualmente muitas pessoas comprometidas com as causas progressistas tenham dela recuado. No dia em que a massa carcerária e as classes nas quais ela é majoritariamente recrutada definir-se a lutar decididamente contra a ordem social que as subjuga, abrindo mão das “soluções individuais”, daremos um
passo significativo para a abertura de todas as prisões, grandes e pequenas. Fingir que isso já aconteceu, apagar o que distingue os socialmente marginalizados dos que são perseguidos pelos pontos de vista políticos que defendem, é um empecilho para que aquele passo se realize. # Já no final da minha convivência no coletivo ocorreu um episódio que guardo na minha alma como dos mais significativos. Umas duas ou três vezes os guardas deram “geral” na galeria D, quando eu lá estava. Nessas ocasiões, os presos eram obrigados a sair da cela, colocados, nus, no fundo do corredor, e, enquanto eram revistados, outros guardas vasculhavam os cubículos atrás de drogas e celulares. Todas as celas, alternadamente, passaram por isso – com exceção da D7, que nunca foi importunada. Alguns achavam que isso se devia à minha presença, à possibilidade de que eu viesse a denunciar eventuais abusos dos agentes; para outros, a exceção dava-se simplesmente porque a direção sabia, conhecendo o perfil de cada um dos presos, e quiçá pelos informantes ocultos que possuía, que na nossa cela não havia “treta”. Um dia Paulista me falou, provavelmente para sondar o que eu pensava: – O Liminha tá querendo vir pra D7. – Por quê? – Porque acha que a cela é segura pro negócio dele. O “negócio” dele era tráfico de cadeia. Botava droga para dentro no dia de visitas, pela boca ou pelo ânus, depois, na cela, expelia a mercadoria valiosa, limpava-a, movimentava o comércio. Eu, naturalmente, não gostei nada daquilo: em primeiro lugar, porque me sentia usado por um espertinho, que aproveitaria da moral da nossa cela para traficar. Ora, que cada um fizesse o que bem entendesse, e eu, afinal, quando cheguei à cadeia, já encontrei as suas regras postas, sendo obrigado a conviver com elas; mas isso era diferente de participar, ainda que passivamente, daquilo. Em segundo lugar, havia o aspecto criminal: em uma eventual inspeção, sendo encontrada droga na nossa cela, o que poderia acontecer? E a eventual repercussão do caso? Passei aquela noite pensando no que fazer. Ficar quieto não poderia; mas, por outro lado, falar também não era simples, o tráfico de certa forma move a cadeia, muitos presos ganham dinheiro com isso, coisa considerada natural para o seu mundo, segundo as suas regras. E se me tomassem por um potencial dedo-duro? No dia seguinte, depois do confere da tarde, quando a cadeia sossega e o pessoal recolhe-se dentro das celas, falei para o coletivo:
– Olha, turma, é o seguinte: não posso proibir ninguém de fazer sua correria. Agora, se o Liminha entrar num dia, no outro eu peço transferência. Tudo que o governo quer é um motivo pra desmoralizar a gente, e eu não vou dar bobeira. Paulista e Mozer se entreolharam. Paulista tomou a palavra: – Fica tranquilo, Igor, você não sai, não. Eu vou falar com o Liminha, se ele vier pra cá, sai todo mundo, eu vendo a TV, a gente parte pra outra. Esse coletivo é seu também. Era meu também, sim, com toda certeza. Apesar de tantas diferenças que havia naquele pequeno coletivo, a prisão não havia vencido a nossa solidariedade, companheirismo, dignidade, surgidos em tão adversas condições. 34 Os presos sentiam-se satisfeitos pelo banho de Sol duas vezes na semana, pois em muitos presídios ele só ocorre uma vez. A Lei de Execuções Penais, entretanto, prevê que ele deva ser garantido diariamente. 35 Essa era a regra no Bandeira Stampa. Há presídios em que cada preso pode ter, em sua “comarca”, a própria televisão ou aparelho de rádio. 36 “Toques”: recados, escritos em folhas de papel ou pedaços de papelão. 37 “Mandada”: com más intenções, desleal. 38 Presídio Evaristo de Moraes, localizado em São Cristóvão. 39 Ligação: os presos que transitavam soltos pela galeria, levando recados, distribuindo a alimentação etc. 40 Descalço: desguarnecido. 41 “Imundiça”: de imundície, dizia-se de presos que eram sujos, ou não sabiam respeitar as regras do coletivo. 42 “Pureza”: agir sem segundas intenções, apenas com bons propósitos. 43 Huey P. Newton, Prisão, qual é sua vitória? 44 Idem.
CAIO E FÁBIO Embora acusados de pertencermos à mesma “quadrilha”, conheci Caio Silva e Fábio Raposo dentro da prisão. Sabendo que minha detenção relacionavase ao envolvimento com os protestos, os carcereiros perguntavam-me, repetidas vezes: – Foi você que matou o cinegrafista? Na investigação exaustiva (e invasiva) mantida sobre a FIP ⁴⁵ e as manifestações do “Não vai ter Copa!”, a Polícia Civil não encontrou nenhum indício de envolvimento de Caio e Fábio em referidos espaços (não custa recordar que eles já estavam presos quando ocorreram os protestos contra a Copa). Apesar disso, o Ministério Público do Rio incluiu-os na denúncia oferecida contra nós, em uma manobra que tinha o intuito de confundir a opinião pública. Com isso, mais uma vez o corpo de Santiago Andrade era usado de maneira oportunista para criminalizar tudo que estivesse relacionado às Jornadas de Junho. Não por acaso, na cobertura que fazia do processo dos 23 ⁴⁶ , em que eu me sentava ao lado dos dois (éramos os únicos réus presos), o monopólio de imprensa referia-se a nós três, indistintamente, como acusados “também” pela morte do cinegrafista da BAND. Encontrei-os pela primeira vez no dia 16 de dezembro de 2014, no interior de uma viatura blindada, que saía de Bangu a caminho do Fórum. A empatia foi imediata, afinal, compartilhávamos o mesmo sofrimento. Não faz muito tempo eu estava num comício, pedindo a liberdade deles. Caio é moreno, robusto e usa óculos que emprestam ao rosto sério um ar de menino. Como era bastante falador, em poucos minutos já conversávamos animadamente. Fábio, nesse primeiro momento, pareceu-me severamente deprimido: estava emagrecido, com olheiras bem nítidas, cabisbaixo. Na verdade, embora cada um reagisse ao seu modo, era evidente que as causas e circunstâncias da prisão haviam sido devastadoras para ambos. Além da acusação de assassinato, completamente desproporcional aos fatos, o linchamento moral sem par ao qual foram submetidos vincou marcas profundas em sua alma. Estas marcas provavelmente demorarão a cicatrizar, se é que cicatrizarão algum dia. Recordo de uma frase que Caio me disse algumas vezes, tentando me animar: – Eu vou te ver indo embora, deitado na minha comarca , o pessoal te recebendo lá fora. Igual foi no meio do ano (julho de 2014) ⁴⁷ . Ao que eu respondia, sério: – Não importa quem vai sair primeiro, quem conseguir antes levanta a bandeira de quem ficar.
Era sincero e querido o seu apoio. Mas cheio de amargura em relação ao seu próprio futuro, também. No trajeto, fomos conversando sobre o processo dos 23, a respeito do qual eles estavam completamente desinformados. Percebia neles, além de uma surpreendente resignação quanto ao futuro, ressentimento frente aos “amigos”, que na hora do aperto os abandonaram. Procurava levantar seu ânimo, relatando a campanha pela liberdade dos presos políticos que ganhava mais força a cada dia, inclusive com a participação, em alguns eventos, dos seus familiares. Eu estava particularmente interessado em conhecer o seu dia-a-dia na prisão. Logo soube das torturas a que foram submetidos no início. Fábio chegou a ser espancado dentro da cadeia. Ambos ficaram isolados por meses, sem acesso a visitas ou qualquer contato com o mundo exterior, exatamente como eu me encontrava naquele momento, em Bangu 10. Caio me falava, misterioso: – Cadeia é um bagulho doido. Às vezes a gente ouvia a parede tremer, uns ruídos estranhos, não é, Fábio? Ele tinha o hábito de concluir a frase invocando a confirmação do interlocutor. Contaram-me que, durante o isolamento, para evitar que algo acontecesse a um deles sem que o outro soubesse, amarraram um fio de náilon nos tornozelos, de modo a ficarem ligados. Ligação física, no caso, porque a vida já havia entrelaçado os seus destinos antes disso. Presos políticos Discutimos sobre a nossa condição de presos políticos. Disse-lhes que, na minha opinião, deveríamos entrar de cabeça e punhos erguidos no Tribunal, porque nada tínhamos do que nos envergonhar. Eles me escutaram com atenção e, por fim, concordaram com meu ponto de vista, gerando aquela cena que foi amplamente registrada pela imprensa. Não passarão! Esse gesto sempre provocou controvérsias, dentro e fora da cadeia. Os advogados de Caio e Fábio os orientaram a não repeti-lo, com medo de que pudesse soar como uma “afronta” que prejudicaria ainda mais sua situação. Embora compreendesse o sentido desta preocupação, não poderia concordar com ela: na minha opinião, a afirmação de firmeza e dignidade só pode “afrontar” a quem pretenda alquebrar outros seres humanos, o que não é, pelo que eu saiba, o objetivo da justiça criminal (ao menos formalmente). O fato de algumas “autoridades” incomodarem-se tanto com essa atitude revela apenas sua prepotência, seu objetivo oculto de atacar a causa que defendemos, mais do que supostos gestos ilegais que tenhamos cometido. Uma vez que os presos são tratados como trastes, muitos esperam que eles se comportem como tal. Mas esse não era o nosso caso. Estávamos de pé, apesar de tudo, e foi essa a mensagem que quisemos passar.
Demorei-me nessa argumentação no exíguo tempo de que dispúnhamos para conversar dentro dos camburões, porque no presídio éramos mantidos estritamente separados. Os companheiros acataram a orientação dos seus defensores, e eu não insisti: respeitaria o ponto de vista deles, sem abrir mão do meu. Os policiais militares que nos escoltavam no interior do Fórum jamais desistiram de impedir o gesto de resistência. Passamos a ser algemados com força excessiva, inclusive com as mãos para trás, medida completamente desproporcional e incomum no Tribunal. Como eu insistia, passamos a entrar não apenas com as mãos fortemente algemadas, mas com os policiais segurando nossos braços (o que, naturalmente, pressionava os dentes das algemas contra os nossos punhos, machucando-os). Isso também foi em vão. Um dia, um PM decidiu mudar de tática: – Olha só, rapaziada, eu entendo a condição de vocês, sei que ninguém aqui é vagabundo. Mas olha só, esse negócio de levantar o braço complica, a gente é que leva bronca. Então eu queria que vocês me prometessem que não vão fazer mais isso. Eu nada respondi, coerente à minha decisão de só argumentar com policiais e carcereiros em caso de extrema necessidade. Caio, no entanto, respondeu: – Pode deixar, seu fulano de tal, a gente não vai fazer o gesto dessa vez. Discordei de sua atitude, mas não o contestei na frente do policial. Chegando à sala de audiências, mantive meu gesto – do qual não abri mão jamais –, para evidente contrariedade do companheiro. Na volta, enquanto esperávamos na carceragem a chegada do maldito camburão, discutimos asperamente. Como toda relação verdadeira, a nossa também tinha seus desentendimentos. # Outra vez, colocaram um P2 na nossa cela. “P2” é o serviço reservado da Polícia, mas, entre os militantes, tornou-se um jargão para designar infiltrados em geral, qualquer que seja sua origem. No Fórum, éramos sempre colocados em uma cela à parte dos demais presos. É claro que essa determinação não partia dos policiais, que guardavam a carceragem, para os quais os presos são apenas números que se sucedem dia após dia (aí, como no presídio, a única separação estabelecida logo na chegada era de acordo com a facção). Havia “ordens superiores” nesse sentido, vindas talvez dos mesmos que determinaram que eu fosse mantido rigorosamente separado de Caio e Fábio dentro da prisão. Normalmente, colocavam-nos na cela de número 1, se não me engano, uma cela ampla, ovalada, com um banco de concreto ao fundo e um boi no canto. Havia uma câmera instalada no corredor, bem em frente a essa cela, fato que não nos passou despercebido.
Um dia encontramos na cela um rapaz, aparentando ter uns vinte e cinco anos, mais ou menos. Diferentemente de todos os demais presos, o sujeito usava uma calça jeans clara, camisa colorida e tênis, como se acabasse de chegar da rua. Estranho... Imediatamente, olhei para Caio, sinalizando a minha desconfiança. Fábio, que estava de costas, não viu o nosso movimento. O sujeito falava sem parar, nos chamando sempre de black bloc’s , perguntando sobre a morte de Santiago Andrade, sobre as manifestações, sobre a “Sininho”. – O que você tá fazendo aqui na carceragem do Fórum, fulano de tal? – perguntei, sem esconder a minha suspeita. O infeliz balbuciou alguma resposta incompreensível. Caio indagou, de forma incisiva: – Mas por que você tá com essa roupa, com esse jeito de quem não tá preso? – Eu acabei de me entregar pra Justiça, tenho pena a cumprir. Me mandaram pra cá. Não era difícil perceber que o sujeito mentia. Qualquer pessoa que se apresentasse no Fórum, a fim de cumprir pena, seria imediatamente enviada a uma delegacia, onde se realiza toda a imensa burocracia que cerca a prisão, incluindo o encaminhamento para cumprir o exame de corpo de delito, sem o qual ninguém pode ser misturado à massa carcerária. Mesmo que tivesse de aguardar o deslocamento, o novo preso seria mantido em alguma cela separada no Tribunal – existem muitas por lá –, mas não colocado junto àqueles que estão dentro dos presídios. Além disso, o mal mentiroso disse ser ex-militar da Aeronáutica, na qual teria servido na base aérea do Galeão. – Você já se tratou no HCA ⁴⁸ alguma vez? – perguntei-lhe. – Humm – balbuciou, sem convicção. – Isso é um sim ou um não? – Sim, eu já fui lá. – E onde fica o Hospital? – Não sei. – Como não sabe?! Você diz que é ex-militar, que serviu na Aeronáutica, e não sabe onde fica o HCA? Você não sabe o bairro, nem em que região da cidade ele fica? Zona Norte, Zona Sul? – Não sei, eu fui pra lá de viatura... Desgraçados. Acham que nós somos uns moleques, uns burros.
– Cala sua boca, seu mentiroso! – interrompeu-o Caio, com firmeza. – Diz pro seu patrão que a gente tá aqui firme, tá resistindo, e que ele vai cair. – Que patrão o quê, black bloc? – respondeu o infiltrado, dessa vez frisando ironicamente o “black bloc”, como se quisesse nos provocar. Antes que a coisa desandasse de vez, um policial (que provavelmente acompanhava tudo atrás do corredor, ou pela câmera) chamou-nos para subir. Ainda faltava muito para o início dos trabalhos e tivemos que aguardar um tempo excepcionalmente longo na cela minúscula localizada ao lado da sala de audiências. Nunca mais vimos aquele fantasma. O episódio é tão grotesco que cheguei a me perguntar se não teria sido uma alucinação. Como estava acompanhado, entretanto, e os dois companheiros participaram de tudo, só posso concluir que foi tudo real, absurdamente real. As audiências As idas ao Fórum são as lembranças mais amargas que guardo do período em que estive preso. Emocionalmente era muito desgastante, indescritível, contraditória, a sensação de ver as pessoas que amo – o que era muito bom –, mas não poder falar com elas, não poder tocá-las. Sentia-me dentro de um aquário, com uma espessa barreira invisível a nos separar. O dia da primeira audiência, duas semanas após minha prisão, foi duríssimo: enquanto assistia aos depoimentos de nossos acusadores (policiais, delatores), em outra sala era julgado nosso Habeas Corpus , que acabou negado por dois votos a um (o voto vencido foi dado pelo desembargador Siro Darlan). É claro que não foi a melhor sensação do mundo receber a notícia de que teria que voltar a Bangu, mas justamente ali, na frente de todos, eu não tinha o direito de fraquejar. Depois disso, a sessão continuou até tarde da noite e pesava a imposição de permanecer calado, a impossibilidade de denunciar o quanto tudo ali era iníquo, absurdo, silêncio forçado que consumia minha alma como se fosse fogo. Numa certa altura, ao olhar todos aqueles rostos conhecidos, sentados no banco dos réus ou na assistência, percebi que, em certo sentido, já não havia identidade entre nós. Sentia como se eles fossem seres de outro planeta, cujas vidas eram-me indecifráveis. Inversamente, os olhares piedosos que me eram dirigidos pareciam dizer o mesmo. Eles hoje vão pra casa, dormir em suas camas. Como pode? As condições em que éramos transportados para aquelas audiências eram terríveis. A escolta é feita por uma tropa especial de agentes penitenciários, o SOE–GSE (Serviço de Operações Especiais – Grupamento de Serviço de Escolta). Creio que, devido ao uniforme preto, todos ali se considerem um “Capitão Nascimento”, embora sua missão consista em transportar uma carga desarmada, algemada, inofensiva. Há, naturalmente, casos de tentativa de resgate de presos, histórias lendárias que correm de boca em boca dentro das viaturas escuras. Em todo caso, são exceções: na maior parte do tempo, os “homens de preto” da SEAP são apenas algemadores e motoristas, que não hesitam em abusar da violência física para afirmar sua
autoridade. Fábio os definiu, uma vez, como “domadores de leão preso”. Trata-se de síntese de rara felicidade, realmente. Os caminhões em que éramos transportados, sobretudo os mais antigos, eram verdadeiros cofres blindados, fechados por chapas de ferro por todos os lados, nos quais não entrava nem uma rajada de vento ou raio de sol. Para que não morrêssemos sufocados, havia alguns buracos pequeninos no chão e nas laterais, e um sistema de ventilação interno. Ocorria frequentemente de sermos trancados naqueles caminhões, em dias escaldantes de verão, nos quais a sensação térmica chegava a atingir os 50°, com a ventilação desligada. Várias vezes cheguei ao Fórum desidratado, semidesmaiado, com a camisa encharcada de suor. Nessas condições, as algemas pesavam como se fossem bolas de ferro. Muitas vezes só conseguíamos nos manter em pé apoiados uns nos outros (além de tudo, o carro normalmente andava superlotado). Os espancamentos também eram frequentes, sobretudo no retorno ao presídio, para que fosse mais difícil sua denúncia. Eram tapas na cara, socos, chutes, normalmente porque os presos conversavam na hora da revista ou teriam olhado para o rosto dos agentes. Não havia pecado maior do que este: a atitude que permite identificar o que tortura ou mata é também passível de ser punida, como ocorria nos porões do regime militar, como ocorre atualmente nas favelas ou no campo. Era comum sermos jogados em viaturas vomitadas, e eu ouvi vários relatos de presos que eram espancados por terem cometido a “indisciplina” de passar mal. Essa condição degradante tornava-se ainda mais odiosa pelo contraste violento com o ambiente do Tribunal. Não era raro entrarmos com a camisa ainda úmida de suor na sala de audiências, onde o potente ar-condicionado nos fazia tremer de frio. Indignava-me ver toda aquela imponência no falar e no vestir, os luxos e privilégios que cercam o Poder Judiciário, quando a alguns passos dali reinava a sujeira, as revistas humilhantes, as agressões físicas e morais, o medievalismo, enfim. Uma vez, vi chegar ao Tribunal uma pessoa cuja algema fora tão barbaramente apertada em seus punhos que não conseguiam mais tirá-la. Andávamos três ou quatro presos algemados uns nos outros, sempre sob a rude voz de comando: – Rápido, vagabundo, rápido! O tratamento era tão ruim que os presos sentiam saudades da cadeia, da sua comarca . Reproduzo abaixo o trecho de um depoimento anônimo que encontrei por acaso na internet, escrito por um egresso do sistema penal: Ao vê-lo passar [a viatura do SOE-GSE] uma lembrança horrível me atropelou. Lembrei dos momentos de dores e agonia que ali dentro eu vivi. Uma das experiências mais horríveis da minha vida. Eu vejo cela de prisão e não fico tão traumatizado pois, na cela, eu sorria em alguns momentos, brincava com algum outro penitente. Já no carro do SOE não dá. É agonia, é calor, é desespero. (...). Lembrei que os desmaios e vômitos eram frequentes. Lembrei que eu vomitava e desmaiava, acordava e desmaiava novamente. Um pânico sem fim. Um inferno! (...). Sempre vi o carro do SOE como instrumento de tortura. Não me lembro em ver tal caminhão prestando serviço de assistência à Justiça. Ali é um veículo de tortura móvel.
Da forma sombria em que se movimenta, dezenas de pessoas são torturadas sendo chacoalhadas, espremidas e amassadas, umas sobre as outras, inalando um forte cheiro de diesel e sob uma temperatura que faz o inferno ser inverno ao comparar. O blindado do SOE é isso mesmo: um instrumento de tortura móvel. Por acaso ignorará o Poder Judiciário o que se passa tão perto das suas vistas? Ignorarão, juízes e promotores, as denúncias que chegam a cada audiência, de todos os lados? Ignorarão o aspecto lastimável dos presos que se apresentam na sua frente, diariamente? Não é difícil concluir que os algozes do SOE-GSE apenas fazem o serviço sujo, que, afinal, deve caber a alguém. Colocam as mãos no que a sociedade julga ser a sua escória, sua latrina, o país dos uniformes brancos-encardidos. Os “doutores” que ganham salários elevados e fingem não ver as consequências que derivam de suas decisões, aqueles que discutem Direito e Filosofia, mas ignoram o que acontece no subsolo dos seus gabinetes espaçosos, têm na verdade as mãos tão sujas quanto aqueles carcereiros “de elite”, apesar da ausência de calos, apesar do olhar burocrático, impassível. Outros subsolos Numa semana de março, se não me engano, tínhamos audiência marcada para uma quinta-feira. Na quarta de manhã, após o confere , quando eu me preparava para iniciar a rotina de leituras programada para aquele dia, o companheiro que estava na “pista” ⁴⁹ chegou à porta da D7 e gritou: – Aê Igor, prepara pro Fórum. O polícia já vem te tirar! – Como assim Fórum? Tem certeza? – Ué, tenho sim, o seu fulano de tal falou que a SOE já tá até aí. Puta que pariu... Comecei a pensar em “n” possibilidades: a audiência teria sido antecipada? Alguma novidade? Será que, finalmente, havia chegado a hora do meu depoimento? Na área administrativa do presídio, encontrei Caio e Fábio. Estranhei, afinal, eles já não estavam indo às audiências há algum tempo (pediram ao Juiz que os dispensasse, para não terem que submeter-se à via-crúcis narrada acima). Cumprimentamo-nos com o olhar. Após as revistas e protocolos de sempre, depois que nos trancaram na viatura, perguntei-lhes: – E aí, vocês sabem o que vai ter hoje? – Não sei, não – disse Fábio. – Não sei também, não, e hoje era minha visita – reclamou Caio, com cara de poucos amigos. – Aê amigo! – interpelei o preso sentado ao lado (nesse dia o camburão estava vazio). – Sua audiência é no Fórum da Capital?
– Não. Meu Fórum é em Japeri. – Ué, que diabos nós vamos fazer em Japeri? Após uns quarenta minutos de viagem, o veículo estacionou. A porta se abriu e um guarda chamou nossos nomes. Não tínhamos ideia de onde estávamos. Diferentemente do Fórum da Capital, descemos em uma garagem acanhada, ao fim da qual ficava a entrada da carceragem: três ou quatro celas sujas, ligeiramente abaixo do nível do solo. Fomos trancados em uma delas, que estava apinhada de gente. Os bancos de concreto estavam imundos, as paredes completamente pichadas e um cheiro de urina impregnava o ambiente. – Aê, irmãozinho, passa a visão, que lugar é esse? – perguntei. – Pô, aqui é o Fórum de Nilópolis. Quantas voltas o mundo teve que dar para eu me encontrar no fundo de uma cela, num fórum da Baixada Fluminense? Estávamos mortos de fome e devoramos o lanche dado na saída de Bangu: pão de forma com queijo, um copo de refresco e um achocolatado, famoso pelas diarreias que costumava provocar nos presos. Essa foi a única refeição que fizemos até o retorno, já depois de meia-noite, para os nossos cubículos em Gericinó. Logo, fomos chamados por uma policial negra, baixinha, acompanhada de outro PM. Eles nos olhavam com curiosidade: – Então foram vocês que mataram o cinegrafista? Mais do que para mim, supus como seria insuportável para Caio e para Fábio ter de responder sempre àquela pergunta. Algemados em “caranguejo”, atravessamos uma garagem, que percebemos ter uma porta que dava para um pátio. Depois deste pátio, cercado por um muro não muito alto, estava a liberdade. Após tomar o elevador, chegamos em um corredor branco, cruzamos uma sala que parecia ser do Júri, com um vidro enorme, transparente. Era a primeira vez em muito tempo que via, ao vivo e a cores, a rua. Lembro-me do Caio apontando, entusiasmado: – Tá vendo aquela casa da cor tal? Eu já morei ali, Igor. Obviamente eu não vi nada. Mas me imaginei naquela rua, em liberdade, tomando o sol.
O nosso compromisso foi breve: tratava-se da oitiva dos pais do Caio, no processo dos 23. O carinho que eles me dispensaram, aliás, particularmente dona Marilene, que mantinha minha mãe informada sobre o dia-a-dia na prisão (eu ainda estava sem visitas), é desses tesouros inapagáveis na vida de uma pessoa. Na prisão, ficamos privados de muitas coisas, principalmente de humanidade, e às vezes um gesto solidário (não de pena, que é coisa diferente), que a muitos pode parecer banal, vivifica tanto como um copo d’água no deserto. Encerrada a audiência, descemos novamente para a carceragem, que já estava vazia, para aguardar o retorno a Bangu – que só ocorreria oito ou nove horas depois. Nesse dia, devido às longas horas de que dispusemos a sós, pudemos estreitar nossos laços, esclarecer alguns pontos de vista. Principalmente: pudemos voltar a ser nós mesmos. Conversamos sobre política, literatura, história. Fábio contou suas experiências no bairro, falou da relação com a tatuagem. Caio falou da Baixada, de um primo já falecido, das “tretas” de rua comuns a qualquer moleque suburbano. Eu relembrei o começo da minha militância, as manifestações pelo passe-livre, o grêmio do Instituto de Educação. Repassamos as manifestações de junho de 2013, nos vimos novamente no meio da multidão, o cheiro de gás e suor impregnando nossas roupas. Cantamos Legião Urbana, Cazuza, Racionais. Rimos. A não ser pela porta de ferro, as grades, a camisa verde da SEAP, éramos apenas três jovens conversando, como se estivéssemos numa praça, depois da aula, ou na porta de casa. Nem o “perrengue” do retorno, quando fomos pra Japeri, depois pra Água Santa, para só então regressarmos a Bangu, com água pingando em nossas cabeças pelo teto esburacado da viatura (caía uma chuva torrencial), pôde estragar a sensação de liberdade que vivemos naquele dia. Cheguei esgotado à D7, pelo cansaço e por ter conversado horas a fio sobre assuntos variados, queridos, quase esquecidos. Acho que só voltei completamente a mim quando, no dia seguinte, após o confere , o “ ligação ” gritou: – Igor, prepara Fórum! Paulista, que já armava a mesa para a jogatina diária, não perdeu a oportunidade: – De novo? O black bloc passa mais tempo no Fórum que na cadeia! Companheirismo A administração penitenciária sempre procurou descaracterizar nossa condição de presos políticos. Para este fim, era indispensável impedir que nos organizássemos, ainda que minimamente, como um coletivo. Não se diga que isso se dava porque éramos acusados de pertencer à mesma “quadrilha”: supostos bandos de traficantes ou de assaltantes, pessoas presas em flagrante na mesma ação não são, necessariamente, separadas dentro do sistema e é comum ver “companheiros de processo” dividindo celas, estudando possíveis linhas de defesa, batalhando transferências. Atualmente, com os presos da Lava-Jato no estado, se passa o mesmo. Conosco, não. A minha manutenção por longo tempo no isolamento, em
Bangu 10, deveu-se à intenção de me separar de Caio e Fábio, determinada por “ordens superiores”. Apesar disso, nunca aceitamos passivamente estas barreiras. Encontrávamos mil e uma maneiras de manter contato, nem que fosse para dizer simplesmente “alô”. Fábio, quando ia para o seu banho de sol, costumava gritar debaixo da minha cela, e trocávamos então duas ou três palavras. Com ele eu não conseguia trocar toques : as galerias coletivas não se comunicavam diretamente com os faxinas. Com o passar do tempo, depois de muita insistência minha, consegui passar-lhe um livro. No dia em que cheguei a Bangu 9, ele me enviou um lanche da cantina (X-Tudo com Fanta Laranja, que engoli sofregamente) e uma bermuda jeans que me seria muito útil, libertando-me do uniforme horroroso da SEAP. Com Caio eu me correspondia frequentemente, embora tivéssemos que tomar cuidado com o teor das conversas, pois o pessoal da ligação (certamente seguindo orientação da direção do presídio) lia descaradamente o que escrevíamos um para o outro. Uma vez, no Fórum, levantamos a possibilidade de exigir ficarmos juntos. A questão da greve de fome chegou a ser cogitada, mas concluímos pela sua utilização apenas em casos extremos. Combinamos, então, um código: em caso de transferência repentina ou agressão física contra qualquer um de nós, a greve seria imediata. Decidimos reivindicar, junto à direção do presídio, a instalação de uma biblioteca. Passamos duas ou três idas ao Fórum combinando como abordar a questão, sem que parecesse uma afronta, mas também de modo a demonstrar que estávamos unidos. Discutimos, também, o projeto em si, a necessidade de mover, aqui fora, uma campanha de doação de livros etc. Assim que começamos a falar, Walace, o diretor, já se mostrou desinteressado. Disse que a ideia era boa, mas tudo na SEAP era complicado, dependia de autorização, já havia um projeto em andamento, e outros empecilhos. Colocou outro problema: a provável utilização dos livros para transportar drogas, como se, na prisão, o tráfico precisasse de bibliotecas para existir. Lá pelas tantas, ingenuamente, eu “reforcei” a reivindicação com o seguinte argumento: – Quanto aos livros, seu Wallace, nós movemos uma campanha lá fora, a administração não vai precisar gastar um centavo. Ele apertou os olhinhos pequenos, espertos, e me respondeu com a maior sinceridade do mundo: – Olha, Igor, esse não é o problema. Para a Secretaria, com certeza, é mais interessante comprar os livros. Comprar.
Depois dessa entrevista, não apenas não avançou a questão da biblioteca, como passei uma boa temporada tendo sabotado o acesso aos meus próprios livros. Pelo menos, não saímos daquela conversa com as mãos abanando: outra reivindicação que levantamos, a de nos darem roupas limpas para irmos ao Tribunal, foi atendida. Nessas ocasiões, a direção fazia questão que usássemos o uniforme verde da SEAP, que dentro do presídio só é vestido pelos faxinas (que também são chamados “verdinhos” por isso). Os guardas recolhiam as camisas dos detentos que voltavam do Fórum, jogavam-nas no chão e, no dia seguinte, entregavam-nas aos que saíam. O uso contínuo e a ausência de lavagem deixavam as camisas gastas e fedorentas. Como se vê, a humilhação dos presos ocorre até nos mínimos detalhes. Após a nossa reivindicação, ao menos temporariamente, os internos do Bandeira Stampa passaram a desfrutar daquela pequena dignidade de andar com as roupas limpas. Recobrando a liberdade Era uma quarta–feira, 18 de março, a segunda vez que meu pai me visitava na cadeia. No pátio esvaziado, naquele meio de semana, pedi-lhe que avisasse à dona Marilene que o Caio estava bem. Ele tinha sofrido uma punição após discutir com um guarda que o acusou de usar uma máquina de cortar cabelo para fazer tatuagens. Por isso teve suspensos, por dez dias, visita e banho de sol. Nessa época, eu me preocupava crescentemente com Caio, sentia-o cada vez mais abatido pela implacável passagem do tempo, que torna tudo mais difícil. Tanto na ida como na volta, cumprimentei-o ao passar em frente à galeria B. Ele, que morava na B11, ao fundo da galeria, me acenou de volta, pelo espelho: – Tamo junto! – Tamo junto, irmão! Àquela altura, Fábio parecia-me mais inteiro, física e emocionalmente. Seriamente deprimido quando o conheci, fazia agora o caminho inverso, reagia, mostrava-se mais animado. Nesse dia, conversei com ele em frente à galeria A, antes de entrar para a cadeia. Lembro-me de lhe perguntar, como se ele estivesse agora na minha frente: – Então, Fábio, alguma novidade do HC de vocês no STJ? – Não, nenhuma. Prefiro deixar pra lá. Conversamos sobre a punição ao Caio, devolvi sua bermuda jeans, que me fora tão útil, prometi enviar-lhe algum livro. Ele perguntou da minha família, eu da sua. – Eu e o Gringo – referia-se a um holandês da faxina que cumpria vários anos por tráfico internacional – queremos fazer faculdade. Tem que ver se a Justiça vai deixar, né?
Planos. Na prisão. Entrei na cela, com a mente ainda atordoada, como ocorre nos dias de visitas. Meus companheiros jogavam baralho, fumavam. De repente, tudo mudou, rápida e avassaladoramente: – Tribunal de Justiça do Rio manda soltar Caio Silva de Souza e Fábio Raposo Barbosa, acusados da morte do cinegrafista da Band, Santiago Andrade. Mal pude acreditar na manchete da televisão, que fez meu coração dar solavancos. Liberdade? O que era evidente – Caio e Fábio não eram assassinos, não premeditaram a morte de Santiago Andrade, não poderiam ser levados ao Tribunal do Júri sob acusação de homicídio doloso triplamente qualificado – parecia, até então, uma verdade difícil de ser defendida, dada a cruzada furiosa movida pelos monopólios de imprensa contra eles. Aqui, é preciso falar sobre o episódio em si. O falecimento de Santiago foi, evidentemente, um acidente. Se quiséssemos apontar responsáveis, de forma séria e objetiva, deveríamos enumerar, em primeiro lugar, o governo, que só conhecia a repressão brutal como forma de lidar com os protestos populares; em segundo lugar, também deveria ser responsabilizada a empresa que manteve o seu profissional trabalhando numa zona de confronto sem a mínima proteção indispensável nesses casos. O clima de histeria, então gerado, entretanto, impedia a opinião pública de enxergar o óbvio: não houve qualquer intenção naquele ato. O Dr. Nilo Batista, um dos nossos mais brilhantes juristas, foi das poucas vozes corajosas que ousou remar contra a corrente naqueles dias: Se o Delegado resolvesse fazer uma reconstituição do fato – a mídia gostaria muito – poderíamos verificar empiricamente se um rojão lançado naquelas condições, do solo, implica um curso causal dominável. A irrepetibilidade do fato confirmaria seu caráter casual ⁵⁰ . O ambiente de “caça às bruxas” não surgiu do nada, mas foi alimentado e serviu aos interesses inconfessáveis das forças políticas e econômicas que viram seus privilégios serem contestados nas ruas a partir de 2013. Essas forças retrógradas valeram-se do acidente para desqualificar e criminalizar, na figura de Caio e Fábio, toda a geração que permanecia nas ruas desde as Jornadas de Junho. É triste que a família de Santiago Andrade, da qual respeito a dor, tenha fechado os olhos para todo esse contexto, cobrando uma vingança cega contra os dois ativistas, sem dizer uma palavra sequer contra a Bandeirantes, por exemplo. Também foi lamentável, na verdade, vergonhoso, o papel desempenhado pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em outras épocas notória defensora dos direitos de livre expressão e manifestação. Agindo como um sindicato patronal, dócil instrumento dos grandes grupos de comunicação, atacou raivosamente os manifestantes, silenciando o fato, comprovado por
diversos estudos, de que a maior parte dos episódios de violência contra jornalistas praticados no Brasil parte das forças policiais. As referidas declarações traíram as melhores tradições daquela entidade. Não surpreende que, serenados os ânimos, a defesa de Caio e Fábio tenha conseguido, por meio de um trabalho tecnicamente impecável, desqualificar as acusações imputadas contra eles. Sua libertação foi, para todos nós, a primeira grande boa notícia em muito tempo. Liberdade! Em todo o presídio o “fuzuê” foi tremendo. Barulheira, comentários, opiniões de todos os tipos. Como já disse, o processo de formação de opinião dentro da prisão não é muito diferente do que se passa nas ruas. Um engraçadinho, de outra cela, tentou desmerecer a libertação dos companheiros: – Os caras mataram e vão sair pela porta da frente. Queria ver se fosse um de nós... – Ninguém matou, isso foi um acidente, e além do mais eles são um de nós, estão aqui ao lado, passando pelo mesmo sofrimento que você e eu – respondi-lhe, asperamente. Curiosamente, esse sujeito estava preso acusado de um homicídio do qual se dizia inocente. Grilo, ainda solto na galeria, apesar de já ter passado o confere , chegou à grade da D7 e falou, com seu jeito desengonçado: – Poxa, Igor, os caras tão soltos e você continua aí?! A corda sempre arrebenta do lado mais fraco mesmo... – Não se trata disso, Grilo – expliquei-lhe, pacientemente –, são processos diferentes, o que importa é que os manos vão sair. – Amém. (Notem que mesmo estando há meses no coletivo, continuava tendo de explicar que meu processo não se relacionava com o caso Santiago Andrade). Ouvi os gritos de Caio, que ressoavam desde a galeria B. Exprimiam uma felicidade profunda, angustiada. Lembrei-me das suas palavras, nos nossos primeiros encontros: – Daqui a pouco você vai embora, Igor, eu vou ficar da minha comarca assistindo. Punido, sem visitas e sem banho de sol, sairia do castigo diretamente para a liberdade. A conversa que mantive com Fábio naquela mesma tarde, da qual me chamaram atenção os seus planos de longo prazo na cadeia, já pertencia a um passado distante. O mundo dá mesmo muitas voltas...
Semanas depois, um faxina me contou que o Fábio ficou completamente paralisado quando viu a notícia, incapaz de acreditar no que diziam os jornais. No dia seguinte, assim que “abriu” a cadeia e os ligações começaram a circular, mandei um recado ao Caio (pedindo que o transmitisse também ao Fábio). Por intermédio de um guarda, solicitei ao diretor que me permitisse despedir dos companheiros. Ele nem me respondeu. Paulista, que foi à escola nesse dia, contou que ambos estavam na pracinha da área administrativa, soltos, aguardando o oficial de justiça. O tempo estava nublado, o ar abafado, como se também ele estivesse agoniado pela espera. Os dois passaram ainda mais uma noite na prisão, numa cela da galeria A. Como os guardas me negavam qualquer informação, soube da sua saída pela televisão. Não pude dormir até então: era tão virulento o tom dos noticiários, que temia por alguma reviravolta. No sábado de manhã, entreguei ao meu pai um manuscrito, rogando-lhe que providenciasse o mais rapidamente possível, pelos meios que tínhamos, a sua publicação. Naquela folha, passada a limpo não sei quantas vezes, para tornar a letra legível, eu dizia, dentre outras coisas: Assistindo a toda histeria reacionária que se seguiu a libertação dos dois me sinto no dever de fazer um contraponto; traduzir, para o argumento político, a minha profunda felicidade por vê-los de volta à vida, já que, por aqui, apenas se sobrevive, e mal. Os que falam em impunidade não fazem ideia do que os dois e seus familiares passaram ao longo de mais de ano encarcerados. Não sei qual caminho seus pés trilharão doravante, mas sei que merecem estar livres para escolhê-los. Eu sabia, perfeitamente, o que ambos haviam passado. Para mim, o combate teria de continuar ⁵¹ . 45 FIP: Frente Independente Popular. Fundada em agosto de 2013 sobre os princípios de classismo, independência e combatividade, agrupava os coletivos e movimentos contrários às eleições que foram atuantes durante as Jornadas de Junho. Organizou, no Rio, os protestos contra o governo de Sérgio Cabral, o movimento “Não vai ter Copa!”, a campanha pela liberdade dos presos políticos, a solidariedade às vítimas de remoções forçadas em diferentes comunidades, dentre outras mobilizações. Essa frente de ação política, que se reunia sempre em lugares públicos, é que é a suposta “quadrilha” do processo. 46 Como ficou conhecido o processo movido contra os ativistas que tiveram a prisão decretada na véspera da final da Copa do Mundo. 47 Os ativistas presos na véspera da final da Copa permaneceram em Bangu 10, não se encontrando com Caio e Fábio, que já cumpriam prisão preventiva no Bangu 9. Caio referia-se à sua libertação. 48 Hospital Central da Aeronáutica. 49 “Pista”: o corredor da galeria.
50 Nilo Batista: As duas faces do domínio do fato. 51 Em 2016, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acatou recurso do Ministério Público e determinou que Caio e Fábio sejam submetidos ao Júri Popular. Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), seguiu esse entendimento, mas ainda cabe recurso ao colegiado do tribunal.
A GALERIA B Casa nova Cheguei à galeria B dez dias após a saída de Caio e de Fábio da prisão. Do mesmo modo como foi difícil a passagem do isolamento para o coletivo, também seria difícil, agora, a readaptação a uma cela individual. Ao chegar à B5, percebi a minha penúria: eu simplesmente não tinha alguns itens básicos, como baldes, vassoura, espelho, sem falar na televisão. Na vida dentro do coletivo, não precisava me preocupar com isso, pois essas coisas já estavam dispostas antes da minha chegada. Agora, ao contrário, tudo seria por minha conta. O porquinho da cadeia ficava em frente à galeria B. Ele estava cheio de remanescentes da D, aguardando transferência. Gritei, então, para meus excompanheiros de galeria: – Aê, turma, alguém tem espelho pra vender? Uma dúzia de espelhos reluziu na minha frente. Para todos era bom negócio conseguir uns trocados, antes que eventualmente perdessem o que tinham pelo meio do caminho. Depois de ajeitar as minhas coisas, sentei na comarca – era apenas uma cama de concreto no fundo da cela, como em Bangu 10 – para refletir sobre a nova situação. Estava sozinho, pela primeira vez em muito tempo. A cela, nua e silenciosa, parecia-me deprimente. A limpeza e a iluminação da galeria B, tão diferentes do semiabandono da galeria D, pareciam reforçar o aspecto sombrio da cadeia ao invés de atenuá-lo. Essa impressão me acompanhou até o dia em que saí daquele lugar. Eu já conhecia alguns moradores da B de vista ou através das histórias narradas pelo Caio. Luciano, do qual Caio sempre me falou com amizade e admiração, fez questão de me pagar um sanduíche na cantina, como saudação de boas-vindas. Tentei recusar, pois jamais pedia ou aceitava nada de alguém, mas ele não me deixou escolha. Disse-me, então, com a voz mansa que lhe era característica: – Igor, é o seguinte: o Caio falava muito de tu, eu gosto muito dele também. Qualquer coisa que você precisar, é só falar comigo.
É claro que, quanto às condições carcerárias, a cela individual era melhor para viver. Sempre senti falta da privacidade (acho que como todos os outros), uma das necessidades e direitos básicos de qualquer ser humano. Administrar a convivência com pessoas diferentes, das mais diversas origens, como ocorre no coletivo, não é uma coisa simples. A galeria B era mais silenciosa (melhor para ler e escrever, portanto) e o banho de sol era mais bem aproveitado, porque menos homens ocupavam a quadra. Quanto a isso havia algumas pequenas, mas muito claras, diferenciações: enquanto na galeria D éramos obrigados a sair para a quadra sem camisa, na galeria B podíamos ir como quiséssemos. Se chovesse, por exemplo, a direção remanejava nosso sol para outro dia, enquanto nas galerias coletivas ele era simplesmente suprimido. Uma mudança para melhor foi que, na galeria B, não havia oração ou “brado” às seis da tarde, nem qualquer referência ao “povo de Rael”. Seus internos não se consideravam parte do coletivo. Na verdade, alguns estavam ali isolados devido a desentendimentos antigos com gente do “povão”. Contudo, a ausência do coletivo e de suas normas pré-definidas fazia aflorar ali o espírito de competição, no estilo “cada um por si”. As “panelinhas” e fofocas multiplicavam-se rapidamente, como ervas daninhas. Enquanto na D os conflitos eram mediados pelos próprios presos, na B eles logo eram levados para a direção. Walace, aliás, que eu só vi entrar no coletivo uma vez, inspecionava quase diariamente a B, que chamava de galeria “diferenciada”. Outro aspecto, para o qual alguns companheiros logo me chamaram atenção, era que certos presos desempenhavam o papel de alcaguetes, a fim de barganhar a consideração da direção ou um lugarzinho na faxina. No coletivo, uma simples suspeita desse tipo já bastaria para fazer alguém cair em desgraça. Embora só tivessem uma comarca , na maior parte do tempo as celas eram habitadas por dois presos, devido à superlotação do sistema prisional. A convivência era mais delicada do que nas apertadas celas coletivas. Às vezes, dava impressão que dois homens tinham menos espaço do que seis. Talvez isso acontecesse porque a intimidade forçada com um estranho ficasse mais evidente nessa situação, ou simplesmente porque ambos se sentissem frustrados pela ausência de individualidade. Os presos do “povão” enxergavam as galerias A e B como a aristocracia do presídio. Na B, além da suposta individualidade das celas, moravam (em tese) presos de casos com grande repercussão ou apadrinhados por alguém, com nível econômico e de instrução acima da média geral. Essa visão, entretanto, correspondia apenas parcialmente à verdade. Quanto à sua composição interna, a galeria encontrava-se dividida entre os presos com o perfil acima descrito, no qual se incluíam alguns acusados de envolvimento com as “milícias”, e os presos que estavam ali porque não podiam entrar no coletivo, devido a “mancadas” que teriam cometido. Estes últimos eram pobres diabos sem eira nem beira, que viviam pulando de cadeia em cadeia, sem poder estabelecer-se em nenhuma. No meio desta categoria, estavam os delatores.
Esta divisão dava margem a intrigas e desconfianças, quando não a uma guerra declarada dentro da galeria. Dança das cadeiras Raramente permanecíamos a sós na cela por muito tempo. Por determinação expressa da direção, havia detentos que nunca dividiam cela com ninguém, como Luciano e Betão, amigos inseparáveis (este cumpria pena por homicídio, supostamente motivado por disputas políticas em Guapimirim). Outro preso que vivia rigorosamente isolado, inclusive quanto ao banho de sol, era Sailson, acusado de assassinar dezenas de pessoas na Baixada Fluminense, a maioria mulheres, esfaqueadas ou estranguladas. Quando Sailson foi preso, eu estava em Bangu 10. Recordo-me do frenesi com que se aguardava a chegada do “ serial killer da Baixada” na penitenciária. Os guardas mal podiam esperar para “moê-lo”. Sailson, não obstante, foi transferido da delegacia diretamente para a galeria B de Bangu 9, fato aliás incomum. Foi aí que o encontrei morando na B14, a última cela ao fundo da galeria. Vivia miseravelmente, sem visitas, trancado na cela as vinte e quatro horas do dia, plenamente consciente de que essa deverá ser sua rotina pelos próximos trinta anos. Na galeria, havia os que não falavam com ele, embora a maioria dos presos tratassem-no normalmente. Chegaram a apelidá-lo “sucrilhos”, não me lembro exatamente porquê. Falava pouco, com voz calma, e seus olhos fundos cravavam-se fixamente no interlocutor. Nunca reclamava e parecia absolutamente conformado com sua situação. Mais do que isso: parecia reconhecer a necessidade de permanecer preso. Companheiros contaram que, antes da minha chegada, ele teve um surto e jogou fezes em um guarda na hora do confere . Após um dia inteiro de surras, voltou à solidão da B14, com a mesma serenidade mórbida de antes, como se nada tivesse acontecido. Tive com Sailson um diálogo inusitado. Seus crimes contra inocentes (que incluíram algumas crianças, pelo que se dizia) repugnavam-me e me restringia a um “bom dia” ou “boa tarde”, quando passava por ele. Um dia estava papeando em frente à cela do Luciano, na B10, quando ele me chamou: – Igor, desculpa te incomodar, mas quando puder me dá uma atenção aí. Terminada a conversa, fui até a B14: – Fala, Sailson. – Pô, é o seguinte: aquele livro que você tinha emprestado pro Luciano, eu peguei pra ler, tá bom? Luciano e eu, realmente, trocávamos livros. Emprestara para ele Orquestra Vermelha , obra que retrata a atuação do serviço secreto soviético dentro da Alemanha nazista, na Segunda Guerra Mundial. Sailson, atento a tudo, logo se inscreveu na fila, e agora se punha a ler aquele magnífico relato de guerra.
“Bem, leitura é coisa que não se nega”, pensei com meus botões. – Tudo bem, Sailson. Mas, me diz, você tá gostando? – Mais ou menos. Tô achando um livro muito difícil. – É verdade. Se não se compreende o contexto da guerra, fica difícil acompanhar a história. Fiquei assim alguns segundos olhando-o nos olhos, sem me decidir a ir embora, movido por uma estranha curiosidade. Ele também me encarava, esperando que eu dissesse algo ou fizesse alguma piada, como os outros. – Qual tipo de leitura você prefere? – disse-lhe, por fim. – Ah, eu gosto mesmo é de livro de serial killer . Faz sentido. # Na galeria B, vivíamos em permanente instabilidade. Ficávamos sobressaltados a cada vez que o cadeado estalava , à espera de que nos remanejassem de cela ou colocassem um novo morador em nosso cubículo. Em três meses – fim de março a fim de junho –, tive quatro companheiros de cela diferentes. O primeiro foi Fabinho, “sobrevivente” do extinto coletivo da galeria D. Fabinho era um gorducho com aspecto bonachão, preso por envolvimento com jogo do bicho. Coisa curiosa era o medo que tinha do diretor: todas as vezes que Walace lhe dirigia a palavra, Fábio baixava a cabeça, suava, a voz custava a sair. O diretor ria perante aquele excesso de “respeito”. Nossa convivência durou apenas um dia: após receber um toque vindo do coletivo, ele pediu transferência para a galeria C. Há homens que simplesmente não conseguem viver fora dos hábitos comuns e do falatório no meio do “povão” e creio que com ele se dava o mesmo. No mesmo dia em que saiu Fabinho, chegou um novo companheiro de cela: JP. Este fora preso havia cerca de um mês numa grande operação da Polícia Federal contra tráfico de drogas, acusado de plantar maconha geneticamente modificada ( skunk ) no seu apartamento. JP vinha de Bangu 10, muito agitado, falando sem parar. Ele era um perfeito yuppie: branco, endinheirado, estudante de Direito e morador da Barra da Tijuca, um individualista convicto e confesso. Acostumado a ter tudo na vida, na hora desejada, era particularmente difícil sua adaptação ao ambiente penitenciário. Previ que nossa convivência seria complicada. No início, nos dávamos bem e passávamos os dias jogando damas, lendo e conversando. Sabendo da minha condição de preso político, JP estava sempre tecendo críticas ao “sistema” e fazia questão de me mostrar, como um colegial orgulhoso, os rap’s que compunha, criticando – à sua maneira – o governo e a prisão. Aquela atitude sempre me soou artificial. Era a sua própria sorte que o indignava, atingindo as raias do desespero.
Outro aspecto da sua personalidade que me chamou atenção, negativamente, era o fato da sua relação com o mundo estar sempre mediada pelo dinheiro. JP não se preocupava em construir relações de solidariedade e confiança com as pessoas, o que demanda tempo e paciência. Quando queria um favor, ou julgava que alguém poderia ser-lhe útil, simplesmente comprava – com dinheiro ou comida – os préstimos das pessoas. Como a cadeia é um lugar de penúria, conseguiu recrutar, com esse método, um pequeno número de lacaios que o usavam tanto quanto eram usados por ele. O que logo abriu um atrito entre nós foi o fato de JP nunca limpar a cela. Preferia que pagássemos Alessandro, nosso vizinho do lado, para fazê-lo. Nunca gostei de pagar ninguém para fazer minhas coisas, mas acabei cedendo, apenas para não ter que arrumar a cela sozinho, o que certamente pioraria nossa relação. Creio que nossa primeira discussão séria foi quando ele externou sua opinião sobre a praia da Barra: – Lá, eu só aproveito dia de semana e mesmo assim fora da alta temporada. Nessas datas, é uma merda, porque os paraíbas tomam conta. Que absurdo! Naturalmente, eu não admitiria aquele “argumento” sobre os nordestinos, gente trabalhadora, que pôs de pé o Rio de Janeiro (e o Brasil). Tratava-se de opinião preconceituosa, típica de gente que confunde sua propriedade à beira-mar com a propriedade da própria praia. O toque de ironia na situação residia no fato daquilo ser dito dentro duma penitenciária, ou seja, o lugar mais estigmatizado pela sociedade. Enfim, não se trata aqui de discutir a atitude em si, exposta para ilustrar como pode ser difícil a convivência compulsória dentro da cadeia. Para meu “amigo”, certamente, a recíproca era verdadeira. Foi um alívio para nós dois quando conseguimos a televisão. Eu pedi à direção do presídio autorização para o aparelho entrar no complexo de Bangu, o que consegui – como é regra – somente após bastante insistência. Estava um dia no pátio de visitas, acertando exatamente isso com meu pai, quando Seu Umbelino, responsável pela custódia ⁵² , me chamou na área administrativa: – Olha, Igor, eu te dei autorização pra trazer a TV, mas não se preocupa com isso não. Nós temos sobrando aqui dentro, de gente que foi embora e não veio pegar. Vou deixar uma contigo. – Eu agradeço, Seu Umbelino, mas não precisa, já combinei com meu pai. – Precisa sim, olha só: vai dar trabalho pro teu coroa à toa? Hoje, depois da visita, você vem aqui e a gente acerta isso. Umbelino, por falar nele, em nada se parecia a um agente penitenciário: baixinho, com uma cara amistosa, a fala mansa, era conhecido e querido pelos presos por “não atrasar a vida de ninguém”. Em sua sala, realmente, sobravam ventiladores e televisores velhos, deixados por presos transferidos ou soltos, que não voltariam à Bangu para resgatar objetos que só possuíam
algum valor dentro do presídio. Coincidentemente, a TV que me foi entregue pertencera ao Caio, que àquela hora estava longe, em liberdade. Passados alguns dias, JP me disse: – Olha, Igor, minha mãe me mandou uma TV. É mais nova, bem melhor que essa nossa. – Mas não precisava, mano, já temos uma. Meu colega de cela ficou contrariado. Seu Umbelino foi um dia à B5, saber que fim daria àquela televisão novinha em folha que recebera da mãe de JP. Fosse minha a TV instalada na cela, como preso mais antigo, não caberia nenhuma discussão. Mas o diabo é que não era... – Com duas TV’s vocês não podem ficar – disse Seu Umbelino. – Agora, se a nova vier pra cá, eu mando essa pra alguém que está sem. Diante desse argumento, acedi. Poucos dias depois, voltando do pátio de visitas, onde passara uma tarde sossegada com meu pai, encontrei tudo mudado: JP – e a TV – na B6, a B5 às escuras, com Fabiano, outro preso, dentro. O que aconteceu? JP, vendo-me, baixou os olhos, balbuciou uma explicação: – Pra mim, é melhor ficar sozinho, dada a minha situação (JP quebrara o pé numa partida de futebol, numa disputa de bola (imaginem!) justamente comigo). Apareceu a oportunidade, eu agarrei. Devo ter ficado vermelho, porque senti um calor subir pelo meu rosto. Fui sacaneado. As palavras custaram-me a sair: – Cara, por que você não me avisou que ia pedir pra ficar sozinho? Eu tomava minhas providências, pedia pro meu pai ver o lance da TV... – Não foi pensado. A oportunidade surgiu, foi isso. Era véspera de um feriadão. Teria que recomeçar a correria por uma nova autorização. Passariam, no mínimo, quinze dias até que eu pudesse providenciar um novo aparelho. Perderia a final do campeonato, o Botafogo disputando. Como, na galeria B, quase todos os presos tinham TV, ficar sem ela era condenação certa à solidão e ao tédio, principalmente à noite, depois que a cadeia era “fechada”. No dia seguinte, companheiros que estavam na ligação contaram-me que, assim que eu saí para o pátio de visitas, JP chamou o guarda, pediu uma conversa com o diretor. Este o protegia, uma vez que, além de ter recursos, era filho de uma ex-funcionária do sistema (sua mãe, que era médica,
trabalhara na SEAP). Para atender ao pedido de JP, Walace tirou Fabiano da B6. Não “surgiu” oportunidade nenhuma: ela foi criada, com base em puro favorecimento, como é regra dentro do sistema penitenciário. O que mais me deixava com raiva, entretanto, não era a atitude egoísta, o gesto covarde de não me dizer, olhando nos olhos, que pediria para sair da cela: o que me enraivecia era a minha própria atitude, ingênua, estúpida. Enraivecia-me por não ter dito, simplesmente, a JP e a Seu Umbelino: “sou mais antigo na cela, a TV está em meu nome, ponto final”. Alguns presos mais velhos, conscientes do que ocorrera, deram-me razão, acrescentando: – Pede a TV de volta, você tá dentro da sua razão. Seu Umbelino manda seguir na hora! Ocorre que a “minha” TV, além de não ser minha de fato, já estava com outro preso, Ratinho. Este rapaz, sem dinheiro nem visitas da família, passava os dias em pé diante da grade, sem ter o que fazer. No dia em que o chefe da custódia registrou o aparelho em seu nome, ele, que tinha cara de menino, as orelhas imensas, deformadas (nunca vi nada parecido), ria como se tivesse ganhado a própria liberdade. Não seria eu quem cometeria uma covardia contra ele. – Deixa pra lá, depois eu ajeito isso. Fabiano, que se dizia ex-bombeiro e matador profissional (tempos depois, caído em desgraça, descobriu-se que não era nem uma coisa nem outra) durou apenas alguns minutos na B5: o diretor, achando-o incompatível comigo, colocou-o em outra cela. Custei a dormir naquela noite, chateado comigo mesmo, chateado pelo fato de ficar tão chateado com essas ninharias. Esse fato miúdo não vai ocupando páginas à toa: mostra, de forma bastante concreta, a dimensão deformada que as coisas adquirem na prisão. Hoje, olhando para esses acontecimentos, eles parecem comezinhos, e soa-me até indigno que tenham tomado alguma importância para mim. Ocorre que, quando estamos confinados, o pequeno torna-se grande e a atmosfera pesada do lugar, carente de acontecimentos, faz multiplicarem-se as agulhas no palheiro. As palavras mais despretensiosas dizem-se, lá, com bastante cuidado, e às vezes um olhar basta para levantar suspeitas, selar ou encerrar amizades. Também eu não passava impune ao transcorrer do tempo e acho que era essa constatação que mais me amargurava naquela noite solitária. #
Era perto da meia-noite. Na cadeia, dorme-se cedo, pelo tédio, pela vontade de poder logo traçar um risco: “menos um dia”. Muitos presos desenvolvem o hábito de dormir com a TV ligada e esse era o único barulho que permanecia na galeria até altas horas. Creio que os guardas, que têm turno de 24 horas, ou seja, de seis da manhã de um dia às seis da manhã de outro, também dormissem àquela hora (quase todos fazem serviços de “segurança” para complementar o orçamento, nos dias em que não estão de plantão). Por isso, o estalo do cadeado àquelas horas é coisa rara e normalmente de mau agouro. – Acorda, preso! Ouvi, vagamente, a exclamação. Dormia um sono pesado. – Acorda, preso! E o vulto, que eu já distinguia entre as pálpebras semicerradas, balançou as grades da minha cela. Pus-me de pé, o coração aos saltos, imaginando uma transferência, algum castigo. – Você tem problema com alguém na galeria? – Não, senhor. – Hum. Quem me interpelava era Seu Eufrásio, chefe da segurança, aquele mesmo que considerava Napoleão um “sujeito bom”. Ele adorava demonstrar sua “autoridade” transferindo presos de um lado para outro, sobretudo em fins de semana ou à noite, quando o pessoal da direção não estava (ele era o único guarda com cargo de chefia que tirava plantão). Evangélico, empostava a voz para falar com os presos, como se fosse um pastor: – Você tem problema com alguém na galeria? Hum. Tirou-me da cela, ordenando que ajudasse o preso que morava na B1 a fazer a mudança para a B5. O guarda sussurrou-lhe algo, ao que ele deu de ombros. Logo vi que era S. quem viria para a minha cela. Enquanto ajudavao a se desfazer de algumas tralhas, inúteis em uma cela dividida, o chefe da segurança me perguntou alguma coisa, ao que eu respondi, inadvertidamente: – Você , etc e tal... – VO–CÊ? – disse-me (fingidamente) espantado, aparentemente feliz por encontrar motivo para me repreender. Pronto... – Desculpe, senhor, a essa hora é difícil organizar os pensamentos... Frisei, propositalmente, “a essa hora”.
O chefe de segurança discorreu, então, no seu melhor estilo, algumas frases acerca da disciplina, da autoridade e todas essas coisas. O guarda ao seu lado bocejava, o que interpretei como uma solidariedade tácita a mim. Recordo apenas que, concluindo sua arenga, disse-me: – Uma pessoa assim tão estudada como você... Duvido que fale assim com o Juiz. – O senhor também quer que lhe chame de Excelência? Igor! Escapou-me aquele desaforo, lançado na cara do carcereiro, entre dentes. Não sei se ele não ouviu ou fez que não ouviu. Apenas deu meia-volta, mandou o guarda trancar-nos, sumiu. O desabafo poderia ter me custado caro... S. já era um “coroa”, com seus 54 anos, se não me engano. Nunca entramos no mérito da sua acusação, que eu soube depois ser por estupro. Dizia-se injustiçado, metido em uma trama horrorosa, enganado por um advogado pilantra. S. era evangélico e politicamente conservador. Desempenhava a função de conselheiro informal da galeria B, socorrendo os presos que fraquejavam, infundindo-lhes ânimo. Viveu dez anos foragido, a sentença pairando sobre sua cabeça. Nesse meio tempo, casou-se com sua segunda esposa e tiveram uma linda menininha, que eu conheci no pátio de visitas. Apesar das grandes diferenças, nossa convivência cotidiana era a melhor possível. Evitávamos cuidadosamente os pontos críticos, como religião e política, e respeitávamos mutuamente nossos espaços e opiniões. Conversávamos bastante sobre os processos, as saudades, também sobre música popular, que ele admirava tanto quanto eu. Gostávamos da tranquilidade, de ler e assistir ao noticiário, e também de futebol. Outro aspecto importante é que S. não era fofoqueiro nem “duas caras”, ao contrário, pelo menos comigo sempre foi leal. Sinceramente, eu sempre preferi ter boa companhia a ficar sozinho na cela. Difícil era construir boas relações de convívio na prisão. Nunca nos desentendemos. Como ele era mais velho, embora bastante saudável, cedi-lhe meu lugar na comarca assim que chegou, gesto de boa vontade que, acredito, foi determinante para estabelecermos uma boa empatia. Certa vez, ficando sem nenhum livro, devido a alguma implicância da direção, S. compadeceu-se da minha angústia. A leitura, realmente, compunha minha rotina diária, ocupava horas preciosas e a sua ausência desorganizava-me, alargava a extensão das horas. Lembro de dizer para meu pai, uma vez, no pátio de visitas, de forma a não deixar qualquer dúvida: “se algum dia você tiver que escolher entre me trazer livros ou comida, por favor, traga-me livros”. S, solidariamente, ofereceu-me o único livro que tinha à mão, já que os outros estavam emprestados: um trabalho do pastor ultradireitista, Silas Malafaia, em que este buscava “conciliar” o criacionismo com a teoria da evolução de Darwin! Vi-me em situação embaraçosa, afinal, não seria capaz de ler uma página daquilo, mas constrangia-me mal agradecer a
preocupação do amigo. Não me restou alternativa senão aceitar o livro, prometendo que o leria “mais tarde”. O meu azar foi ser S. um vascaíno roxo. Em 2015, por uma infeliz coincidência, a final do Campeonato Carioca foi decidida, justamente, por Vasco e Botafogo, ficando o Glorioso com o vice-campeonato. Só eu sei os berros que tive que ouvir, e por quanto tempo... Após um mês e meio, S. foi transferido para a faxina, deixando-me, generosamente, a TV de “herança”. Gozei por pouco tempo da tranquilidade de ficar só: num sábado, Seu Eufrásio decidiu esvaziar a B5 para colocar nela três detentos que tinham criado problemas no coletivo e aguardavam transferência. Fui morar novamente com JP. JP e eu não chegamos a ficar rompidos. Depois do estremecimento inicial, conversávamos sempre (ele era meu vizinho de frente), um conhecendo bem o jeito do outro, ele um individualista feroz, eu, talvez um “chato” cheio de regras, na sua visão. Falávamos sobre Literatura, Direito, ele me pedindo conselhos para enfrentar o prolongamento da prisão. Via-me como alguém totalmente deslocado naquele meio, como ele, e dizia admirar a serenidade com que eu enfrentava aquela situação. Nossa segunda convivência durou pouco: ele conseguiu a transferência para o presídio de Água Santa, aguardada há algum tempo. Dizia que qualquer coisa seria melhor que Bangu, “esse quartel”, segundo suas palavras. Após a sua saída, passei novo período sozinho e depois... Bem, o depois é outra história, um desfecho que me era então completamente imprevisível. Alessandro Mesmo que viva mil anos, jamais esquecerei aquela manhã de segunda-feira, dia 8 de junho de 2015. Fazia frio em Bangu. Na penitenciária, os raios de sol batiam preguiçosamente por entre as grades, opacos, anunciando a proximidade do inverno. Aquele seria um dia como outro qualquer, passado entre pequenos afazeres, custosamente. Após o confere , beberíamos o café comprado à Igreja (o da casa era péssimo, além de frio), conversaríamos uma coisa à toa na grade, depois iríamos cada um para seu canto – este a ler, aquele a ver televisão, fulano batalhando uma senha para a enfermaria, ciclano a tramar planos para o futuro, quase sempre inúteis, irrealizáveis. Eu, provavelmente, passaria aquela segunda conversando com S., relendo cartas queridas, respondendo-as em palavras passadas a limpo não sei quantas vezes. Contando os dias para a próxima visita. Mas havia, naquele ar frio, nos raios de sol indolentes, no carcereiro sonolento, em cada um de nós, uma tristeza palpável, “exata”, como falava o poeta. No confere , vendo-me postado diante da grade, Seu Junior, um guarda novo, respeitador dos presos, que se dizia indignado com a minha prisão, cumprimentou-me:
– Fala aí, Igor. Tranquilidade? – Tranquilidade, Seu Junior. – Ainda por aqui? – Pois é. Passou à cela ao lado. Sua expressão, subitamente, empalideceu, e guardo vivamente na memória a modificação que se lhe ocorreu. Parecia ter visto uma assombração. – Quem mora aqui na B7? – voltou-se para mim, num tom já radicalmente distinto do adotado anteriormente. – É o Alessandro... Antes que eu terminasse a frase, ele já balançava a grade, aos berros: – Alessandro! Alessandro! Deixou o confere no meio, saiu correndo pela cadeia. Meu Deus! Meu coração disparou e, apesar do desespero do funcionário, ninguém esboçou reação. Todos olhavam para a cela 7, entreolhavam-se, conscientes que algo muito grave ocorrera. Estava tudo silencioso. Só então reparei em JP, na B6, vizinho de frente de Alessandro. Estava petrificado, os olhos crescidos atrás das lentes dos óculos. Como um soldado que, no meio da batalha, estaca, em choque, e ainda que seus companheiros o empurrem e as balas sobrevoem seu corpo, não é capaz de dar nem um só passo. Ele já sabia que coisa terrível havia acontecido, antes mesmo que o guarda voltasse, abrisse a cela, anunciasse o que já estava implícito na atmosfera sombria daquela manhã de segunda-feira, gelada apesar do céu de um azul límpido e bonito. Aquilo que todos os homens já sentiam que havia acontecido. Alessandro estava morto. Suicidara-se com uma lâmina de barbeador, comprada a dois reais na cantina, usada como tesoura pelos presos. Com essa pequena navalha cortou a garganta, na calada da noite, e suportou a agonia sem dar um pio, no mais profundo silêncio, tão definitiva era a sua decisão. Terrível, terrível. Mesmo os presos mais acostumados àquela vida sórdida, que me pareceu então mais odiosa do que nunca, mesmo aqueles presos degradados pela cadeia, curtidos na miséria, que dali a uns minutos estariam reivindicando a abertura da cantina e o banho de sol – porque, afinal, diziam: “é cadeia, e cadeia é assim” – mesmo estes sujeitos, naquele primeiro momento,
sentiram a garganta embargar, a espinha ser percorrida por um calafrio, oprimiram-se sob a pesada atmosfera de morte e dor, beberam do cálice amargo da desgraça. Alessandro sairia de Bangu naquele mesmo dia. Não pôde suportar as paredes de cor cinza, a perspectiva de passar muitos anos entre aquelas grades, os fantasmas que o vinham atormentar em noites de insônia, que só ele conhecia. Alessandro sairia de Bangu naquele mesmo dia, mas jamais conheceria novamente a liberdade. Por que uns suportam e outros não? O que faz de uns, na adversidade, lutadores incansáveis e de outros suicidas? Como entender essa lógica? Ela pode mesmo ser entendida? S., com lágrimas nos olhos, bradava: – Ele não tinha o direito de fazer isso! Covardia! Ontem mesmo estive com a sua mãe, ela me pediu para cuidar dele... Não pude deixar de reprová-lo, mentalmente (porque as palavras nem sempre devem ser ditas, a qualquer custo e doa a quem doer). Mas reprovei: não era tanto o suicídio que lamentava, mas a atitude que ofendia a sua fé, revelava suas limitações. Alessandro era, realmente, dos mais assíduos leitores da Bíblia, e ele e S. constantemente conversavam a respeito. O bálsamo religioso surtiu efeito durante algum tempo, mas, finalmente, a realidade impôs-se, impiedosa como só ela consegue ser. Outro carcereiro, sujeito bruto, sem muitas conversas, tentou interpretar o episódio: – Tem gente que mata pra caramba e não sente nada... Agora, quando o cara não é do meio, e acaba “quebrando” gente da relação dele, aquilo fica atormentando a cabeça, não é qualquer um que consegue aguentar, não. Esse é entendedor de mortes... Eu sentei no colchão, estirado no chão, coloquei as mãos entre os cabelos. Buscava algum conforto, alguma explicação. Revoltei-me com tudo aquilo. Revoltei-me com as grades, com os detentos que diziam “é cadeia”, fatalistamente, com os psicólogos que, quando apareciam, “tratavam” a depressão epidêmica com a distribuição de livrinhos de autoajuda. Revolteime também comigo mesmo, por não ter reconhecido a desgraça próxima estampada na cara de Alessandro, na sua magreza doentia, no arroxeado dos seus olhos. Aquilo não era inevitável, mas revoltava-me saber que, naquelas circunstâncias, talvez fosse, sim. Quem repararia no sofrimento alheio num lugar daqueles, em que há tantas cruzes quanto homens? Não estávamos todos nós, afinal, numa casa de mortos, como escreveu Dostoiévski? Foi isso mesmo que eu senti, naquele primeiro momento: ódio, um ódio difuso, confuso, contra tudo o que me cercava. Ódio inexprimível em palavras. Senti-me mais preso do que nunca, enjaulado, acuado, impossibilitado de sair da cela um minuto que fosse, respirar o ar fresco, certificar-me que a manhã e a vida ainda existiam em algum lugar ali fora,
apesar de tudo. O cheiro repugnante da morte, o sangue escorrendo pela cela, sujando a galeria, a presença de diretor, subdiretor, carcereiros, faxinas, curiosos e tanta gente vinda não se sabe da onde, tudo aquilo me oprimia, me cansava, me consumia. O diretor falou alguma coisa que não compreendi, pois só via seus movimentos. Não ouvia mais nada além da minha própria mente inquieta. O que eu estou fazendo nesse lugar, mil vezes maldito? O duro era permanecer trancado. Teríamos que permanecer trancados, à chave, como animais, sem banho de sol, até que se fizesse a perícia. Trancados enquanto o corpo apodrecia – Alessandro não existia mais, era apenas um corpo que apodrecia –, até que chegasse a polícia. # Alessandro era muito branco e nos últimos dias estava quase amarelo, bastante magro, com olheiras arroxeadas e bem nítidas. Morava ao lado da minha cela, na B7. A fala correta, o hábito da leitura, denotavam uma instrução simples, mas sólida. Era alguém completamente estranho àquele ambiente. A resignação aparente era sua estratégia para adaptar-se, à custa sabe-se lá de quantos sofrimentos. Sua depressão, embora evidente, não era daquelas que estão sempre exigindo atenção. Ao contrário, disfarçava-se em aceitação, em passividade, em uma solidão que não dividia com ninguém. Mesmo sendo aguda, passava quase despercebida. Era, por isso mesmo, profundíssima, insidiosa, fatal. Alessandro gostava de sair para a “pista”, onde desempenhava com diligência e seriedade a função de ligação . Como não tinha dinheiro para comprar uma TV, encontrava nessa função um meio de distrair a mente e cansar o corpo. Lia, também, e sempre voltava da psicóloga com um livro embaixo do braço (gostava particularmente de ler Augusto Cury). Sua família, humilde, nem sempre podia visita-lo. O pouco que tinha de seu adquirira dentro da cadeia mesmo, fazendo faxinas: um par de chinelos, outro de tênis, uma bermuda “melhorada” para o dia de visitas. Cobrava dez reais pelo serviço, que fazia com esmero, deixando o cubículo impecável. Seus hábitos eram espartanos, e raramente comprava alguma coisa na cantina. Logo estabeleceu uma relação com JP, que lhe encomendava favores. Por isso, estacionava constantemente em frente à B5: – Bom dia, senhores! Era daquelas pessoas que falam com todos, mas não chegam a ser especialmente queridas por ninguém. Ligou-se pouco mais a JP, por uma estranha relação de servidão, e a S., que lhe confortava nos momentos mais duros. Alguns presos tinham-no por homossexual, imitavam-lhe os trejeitos, aumentando ainda mais o abismo que o separava dos demais. Cerca de um mês antes do suicídio praticamente deixou de sair para a ligação . Nesse período, adoeceu uma ou duas vezes, quase não falava e passou a trabalhar menos. Como normalmente acontece, só nos demos conta disso depois.
Num domingo em que não recebi visitas, lembro-me de vê-lo fazer faxina no cubículo de JP, que estava no pátio com sua mãe. Às duas horas da tarde entrou correndo na cela do amigo. – Por que a correria, Alessandro? – perguntei-lhe, puxando assunto. – Vai começar o filme. Desde que fui preso não consegui assistir nenhum. Aquilo me doeu, dito assim, singelamente. Não a ponto de me fazer perder o sono, mas não de modo a me passar despercebido. Nunca me aproximei muito de Alessandro, em parte porque me incomodava o servilismo que desenvolveu em relação ao JP. Em uma das primeiras vezes em que estacionou diante da nossa cela, quando ainda pulsava dentro dele a energia própria da vida, a decisão de lutar, mostrou-me uma foto de sua filha. Descobri em seus olhos opacos uma chama que até então desconhecia: o tamanho da saudade que sentia. Alessandro era autor daquilo que vulgarmente se chama crime passional. Casado durante anos com uma delegada, que conhecia desde a infância, era dependente dela em tudo, inclusive financeiramente. Ajudava a esposa no trabalho burocrático da delegacia, da qual era um funcionário informal. Essa relação, sabe-se lá através de que meandros, deteriorou-se a ponto de se tornar insuportável. Em mais uma noite de briga, esta escalou a níveis inauditos de violência e a mulher terminou com o pescoço quebrado. Na versão de Alessandro, foi um acidente. Na versão da Polícia, assassinato, para receber o seguro de vida feito pela esposa. Sobre o período em que foi interrogado, comentava apenas, com naturalidade: – Apanhei muito na Delegacia. No domingo, 7 de junho, me lembro de vê-lo conversando calmamente com os pais, no pátio de visitas. Por entre as grades, acima do telhado, adivinhávamos uma esplêndida tarde de fim de outono. Como apenas a galeria B, pequenina, recebia visitas naquele dia, estava tudo calmo, sem gritarias ou muitas crianças correndo de um lado para o outro. Alessandro, sem que ninguém soubesse, se despedia da família. Sua mãe, na hora da saída, talvez desconfiada com o estado de espírito do filho, pediu a S.: – Cuida do meu filho aqui dentro, por favor. Retornando à cela, ele, que não tinha praticamente nada, distribuiu quase tudo que a família lhe trouxe na visita. Esse gesto, que indicava explicitamente seu desígnio, também só veio a ser notado depois da sua morte. # O torpor em que mergulhou a galeria B só foi rompido após a realização da perícia, quando se retirou o corpo de Alessandro. Enquanto o cadáver era colocado dentro do saco preto do IML, vários detentos esforçavam-se para
ver a imagem sinistra. Eu, ao contrário, virei-me de costas e só voltei a olhar para a galeria quando tive certeza que não veria mais a cena mórbida. Seu Antônio, guarda responsável pela zeladoria do presídio (isto é, por tudo o que dizia respeito à sua manutenção), um velho carcereiro muito cioso da sua responsabilidade, entrou na galeria cercado de faxinas, dando ordens: – Olha só, abre as celas, todo mundo pra fora. Quero essa galeria limpa! Como um faxina, com um rodo nas mãos, recuou ao ver uma poça de sangue na cela, Seu Antônio repreendeu-lhe asperamente: – Para de frescura, isso aqui é cadeia! Por questão de segurança, não havia ralos dentro das galerias (muito menos dentro das celas). Por isso, para tirar o sangue empoçado na B7, seria necessário limpar toda a galeria B. Confesso que aquela ação enérgica do Seu Antônio me pareceu saneadora: era como se as suas palavras, o movimento de rodos e vassouras, a água corrente, viessem limpar algo mais do que o chão. S. e eu nos colocamos logo em prontidão, afinal, nossa cela seria uma das mais alagadas. Pegamos o rodo e tacamos água e sabão na B5! Desfizemonos de todas as coisas inúteis que haviam na cela, como pedaços de papelão ou vasilhas velhas, amontoadas embaixo da comarca , em cima da divisória do boi . Eu sentia (e creio que com S. se passava o mesmo) que aquelas miudezas, além de velhas e imprestáveis, estavam contaminadas de morte. Era preciso descartá-las, era preciso um recomeço. O fato de termos finalmente saído das celas, ocupando-nos com o trabalho, era de imenso alívio para todos nós. Grossos jatos de água saídos duma mangueira limpavam o sangue coagulado na B7, sangue que escorria pelo corredor, ameaçava entrar em nossa cela. Ficamos, S. e eu, armados com rodos na porta do cubículo, repelindo aquele líquido viscoso, não permitindo que sujasse o nosso chão. Nessa batalha, a água venceu, o sangue foi embora para sempre, o sol se pôs. No dia seguinte e até a próxima visita, ainda se falou em Alessandro. Depois, ele desapareceu, como se também tivesse sido levado pelas águas, ou como tantos outros companheiros, dos quais se falava, raramente: “Fulano de tal foi de transferência, já faz muito tempo...”. Bons e maus Muitos rostos, muitas histórias. No coletivo, dadas as regras que normatizavam os diferentes aspectos da vida cotidiana, as singularidades diluíam-se no meio duro, impessoal. As características particulares de cada um, que muitos chamam “humanas” – referência superficial, aliás, porque todos nossos atos, mesmo os mais assombrosos, não podem deixar de ser atos humanos – empalideciam. Na galeria B, ao contrário, devido ao menor número dos seus habitantes, era mais fácil perceber os avanços e as limitações de cada um. Em relação ao coletivo, a B era certamente mais fria, mais solitária.
A complexidade da alma humana aguça-se enormemente na prisão. Às vezes eu me punha a reparar nos companheiros ao meu redor. Nas ruas, por mais que conheçamos (ou julguemos conhecer) as pessoas que compõem o nosso círculo social, tanto elas como nós voltamos para casa, no fim do dia. Este, veste-se, porta-se e pensa como estudante, aquele como operário, aquele outro como comerciante ou intelectual, e não é simples discernir onde termina esse invólucro e começa o que alguns chamam alma, ou personalidade, isto é, aquilo que carregamos de essencial e está além do visível, do aparente. Não é mera coincidência notar que a palavra latina persona indicava, originalmente, as máscaras usadas pelos atores, e também os próprios personagens representados. Até que ponto somos os personagens que representamos na nossa vida e até que ponto esses personagens são tão somente a forma de ser de nós mesmos não é coisa simples de estabelecer, em meio às idas e vindas do cotidiano. Na prisão, seguramente, não há igualdade. Relatei como as condições socioeconômicas e culturais do preso atravessam com ele os altos muros da cadeia, o que pode facilitar sua caminhada ou, ao contrário, interpor obstáculos e sofrimentos adicionais. Relatei, também, que os detentos abandonados pela família, sem recursos financeiros, passam privações terríveis, ao ponto de virarem quase mendigos, implorando a solidariedade dos companheiros para poder fumar um cigarro. E contei, ainda, que há dentro da cadeia relações de exploração e dependência pessoal. Apesar disso, as diferenças que se verificam lá dentro são infinitamente menores e menos complexas do que as existentes nas ruas. Todos, de um modo ou de outro, estão obrigados a conviver com os demais, dividindo as agruras comuns que derivam da própria natureza da pena privativa de liberdade. Estas podem ser atenuadas ou agravadas, dependendo das condições carcerárias concretas, mas nunca deixam de atingir os que estão sujeitos a ela. O bloqueio do direito de ir e vir, a separação forçada dos seus e da sua vida tal como existia até ali, a perda da autonomia individual, todas essas são violências inauditas contra qualquer ser humano. Ninguém passa impunemente pela cadeia, realmente, por mais que isso pareça um trocadilho. Dentro de Bangu, independentemente do grau de instrução ou da conta bancária, todos tinham que usar roupas brancas; tinham que defecar agachados, no boi ; tinham que posicionar-se, duas vezes por dia, em posição de sentido, para o confere ; tinham que torcer para que a chuva não cancelasse o banho de sol, ou que a comida não viesse assim tão ruim, pois a brilhosa era a única fonte de arroz e feijão para todos. Esse nivelamento forçado, longe de suprimir a individualidade (o que poderia ocorrer a um observador superficial), fazia emergir justamente aquilo que carregamos de essencial dentro de nós. Nuns, a solidariedade espontânea, independente de regras; noutros, o individualismo feroz, conduzindo tanto ao ato temerário como a mais vil covardia. Nuns, a luta por conservar a dignidade e a integridade, a resistência tenaz à “prisionização” ⁵³ ; noutros, o abatimento, a perda dos princípios, a rendição. O heroísmo e a torpeza, ou o bem e o mal, para usar essa dicotomia que tanto impregna nossa forma de ver o mundo, não variavam somente entre os
indivíduos, o que seria simplificar até ao maniqueísmo a complexidade do fenômeno. Não: variavam também dentro de cada um de nós; variavam de acordo com o dia e, em cada dia, tomado isoladamente, variavam segundo as horas desse dia. A convivência funcionava como verdadeiros Raios-X das nossas almas, pois nada é capaz, tanto quanto a convivência, de rasgar idealizações que façamos sobre os outros e sobre nós mesmos. Nada como a convivência para provar que somos todos, no fim das contas, ainda meio bichos, mais ou menos conscientes, mais ou menos cultos, mas igualmente imperfeitos. Cada um de nós, olhado mais de perto, tende a ser um tanto pior do que se imagina – ou simplesmente um tanto mais humano. Convivi com homens que, segundo os valores cultivados aqui fora, poder-seiam considerar monstros, completamente irrecuperáveis. Dentro da prisão, contudo, eram calmos, solidários, disciplinados, passavam os banhos de sol jogando bola ou papeando sobre a vida. Tanto quanto eu, ansiavam por recuperar a liberdade, nutriam esperanças quanto à vida futura, fosse qual fosse a acusação que respondessem. Um “amigo” com o qual divido um copo de café, pela manhã, falando pacificamente sobre futebol, pode ter chacinado famílias inocentes, em troca de dinheiro ou esfaqueado covardemente alguém ou violentado uma moça. Como saber? Como saber se o que diz ser um assaltante valente não passa de um estuprador ignóbil? Como saber se este fulano com quem converso agora, tentando animá-lo a seguir a luta, não seria capaz de assassinar-me, a pedido de um patrão que ele mesmo sabe ser cruel e venal? Mas, questão ainda mais difícil, é saber se o facínora está apenas representando o bom vizinho, por força das circunstâncias ou se, ao contrário, essa pessoa que nos sorri bondosamente é que é a real, e a miséria cometida anteriormente foi um ponto fora da curva, uma exceção. Em Bangu 10, Vitão, matador profissional, recomendou-me que tomasse cuidado, pois sabia como “as coisas funcionavam” (havia trabalhado para muitos políticos). Disse, olhando-me nos olhos, que não faria mais aquilo e creio que naquele momento dizia a verdade. Mas, e depois? Seria capaz de apertar o gatilho? Na galeria B, na primeira cela à direita de quem entrava, ficava um preso muito novo, apelidado Ratinho. Já o mencionei aqui, dizendo que me chamava atenção sua cara de menino e as orelhas enormes que possuía. Era magricelo, tinha o sotaque interiorano, pois era da roça de Campos, e não possuía absolutamente nada de seu. Compadeci-me daquela figura frágil e, de vez em quando, lhe mandava um amendoim que comprava na cantina, escolhia-o, no banho de sol, para jogar bola, embora fosse perna-de-pau. S. me relatou que Ratinho apanhou muito quando chegou ao Bandeira Stampa. Tiravam-no da cela, depois do confere da noite, e moíam-no de pancadas na sala dos guardas. – Como vocês permitiram isso? – indaguei, indignado e surpreso, pois nunca vi acontecer nada semelhante ali. – Mas o que você queria que a gente fizesse? Apanhasse junto? Luciano, certa vez, com sua voz sempre calma, me contou sua versão:
– Esse Ratinho tem cara de anjo, mas é um monstro. Matou uma família inteira, estuprou a mãe e uma criança, não merece piedade nenhuma. Até os guardas mais tranquilos batiam nele quando chegou aqui. Será? Teria aquela criança – aparentava ter catorze anos – cometido tantas barbaridades? Teria sido capaz disso a mesma pessoa que estava sempre em pé na B2, sorridente, as orelhas desproporcionais, esperando o banho de sol como um colegial espera ansiosamente o recreio? Certa vez não resisti e perguntei-lhe, sem rodeios: – Olha, Ratinho, o S. me contou sua história. Você é culpado? – Não, não mesmo. – disse-me, com seu sotaque de matuto. – O advogado já achou até o culpado, mas eu tenho medo, porque ele ameaçou minha família. Mais dia menos dia, eles vão ter que me soltar. Quem não é inocente aqui? O dito pelo não dito, escolhi acreditar no que me parecia menos perverso, e Ratinho continuou sendo escolhido para meu time, recebendo doses do meu café. Herdou quase todas as minhas roupas quando recobrei a liberdade. Outro personagem da galeria B era um preso que tinha a função de dedoduro oficial do Bandeira Stampa. Foi ele quem me narrou como funcionava o golpe do falso sequestro, com o qual chegou a ganhar muito dinheiro na cadeia. “Tirando” dez anos “de ponta a ponta” (ininterruptos), em algum momento, seja sob coação ou em busca de vantagens, ou ambas as coisas, optou por “fechar com a Polícia”, como ele mesmo dizia. Prestava-se ao infame papel de subir ao telhado do presídio, entre ratos e morcegos, para, daí, observar o que os presos faziam dentro das celas, por um buraco colocado com esse propósito no teto de cada cubículo. Sempre que saía à noite, a pedido dos guardas, imaginávamos que era para espionar os outros. Esse detento dividia a cela com outro preso, Simpson, que dizia ser seu primo. Quem poderia confirmar? Dentro da B, esse X-9 tratava os demais com respeito, particularmente a S. e a mim. Achava um absurdo eu ser mantido ali, em meio a “vagabundos”. Quando o mergulhão de nossa cela pifou, foi ele quem tentou consertá-lo. Tinha plena consciência da ignomínia da sua função, de como era usado pela administração. A posição de delator tornava-o refém da direção, pois sua vida dependia de que fosse mantido rigorosamente isolado dos demais presos em todas as cadeias pelas quais passasse. Abandonado pela família, desconhecedor de quaisquer valores além da própria sobrevivência, optou pela colaboração, que preferiu em vez de viver mendigando ou praticando outros crimes de cadeia, como tráfico ou extorsão. Trocou sua dignidade por favorzinhos minúsculos, que em tese não deveriam ser favores, mas direitos assegurados a todos: acesso à enfermaria, sem necessidade de implorar aos guardas, dias a fio; algumas horas de caminhada no pátio, fora da cela; a disputada autorização para receber uma visita extra. A mesma administração que lhe concedia esses “favores” nada fazia para acelerar seu processo junto à Defensoria Pública,
uma vez que jurava estar com cadeia vencida. Um dia foi transferido, juntamente com seu primo, para o presídio Bangu 3, controlado por uma facção criminosa, onde sua condição de delator, se descoberta, implicaria morte certa. Seu primo voltou uma semana depois, com os olhos arregalados, dizendo que passaram o pão que o diabo amassou no isolamento, revezando-se para dormir, cada um com uma faca. Já do outro, não tive mais notícia, exceto que foi enviado para o superlotado Bangu 2, onde contava muitos desafetos. Talvez por lá precisassem mais dos seus serviços... Sentia ódio desse preso? Pessoalmente, não. Dele, como indivíduo, sentia pena e repugnância pela função que cumpria. Ódio eu sentia do sistema econômico-social e da instituição carcerária dele resultante, que produzem diariamente esses pobres-diabos, seres deformados, meio-homens, meioratos. Outra figura que não passava despercebida era J., acusado de ter degolado seu ex-patrão, um rico comerciante, por encomenda do próprio filho deste. Preso há sete anos por outro homicídio, esperava o Júri daquele crime. Embora se fizesse de durão, não escondia a angústia quando falava do próximo julgamento: caso fosse considerado culpado, a reincidência e os agravantes poderiam esticar em mais uma década seu suplício atrás das grades. J. e eu conversávamos bastante, principalmente sobre futebol. Ele gostava de falar e, como sua cela ficava de frente para a minha, eu ouvia longamente suas histórias curiosas. Ele possuía um humor muito instável. Às vezes discutia gratuitamente, arrumava encrencas, recolhia-se dentro da cela sem falar com ninguém; ou então conversava amigavelmente, era solícito, quase doce com os que lhe angariavam respeito. Era J. quem normalmente esquentava água para eu comer um miojo, já que nunca consegui ajeitar um bom mergulhão . Nos dias bons, seus olhos brilhavam e ele punha-se a fazer planos mirabolantes, gostava de perguntar a cada um de nós onde estaríamos, naquele dia e naquela hora, se fôssemos livres. Em compensação, nos momentos de fúria, era capaz de voar no pescoço de guardas e companheiros, e, em seus olhos, ardia uma chama ruim, irascível, má. Havia outros personagens na galeria B. Tiago, um rapaz simples, que coincidentemente era filho de um velho amigo de S. Cumprindo pena por homicídio, estava prestes a progredir de regime. Tiaguinho, como era chamado, não fazia mal a ninguém, não se envolvia em “panelinhas” e destacava-se no banho de sol, por ser um dos melhores jogadores do presídio. Homero, acusado de homicídio, aguardando há três anos o julgamento, uma das figuras mais tranquilas que conheci lá dentro. Jorginho, preso há quinze anos, que passava os dias dormindo, à base de remédios, como muitos daqueles condenados a longas penas. E ainda outros, muitos outros. Um detento que não morava na galeria B, mas merece menção, é Waldemar, à época “primeira voz” do Bangu 9. Ele era baixo e tinha os olhos puxados, como os paraenses. Estava sempre de bermudas, perambulando solto pelo
grande corredor de acesso às galerias (chamado pelos presos de “Avenida Brasil”). Pessoa de poucas palavras, deixava que seu interlocutor falasse, sem interrompê-lo. Era plenamente consciente de sua autoridade, que não confundia com autoritarismo. Conversamos algumas vezes e sempre lhe deixei claro que, em caso de qualquer abuso contra os presos, me deixasse ciente, ao que ele me agradecia e respondia: – Tá tranquilo, pode deixar. Nunca me relatou nenhum problema, exceto a odiosa revista íntima, que logo foi, na penitenciária, completamente substituída pelo scanner . Na verdade, a condição de primeira voz dava-lhe alguns privilégios dentro da cadeia. Logo, concluí que não poderia confiar de todo nesse “amigo”, que não raramente reunia-se em particular com a direção para resolver certos “problemas”. Um dia, voltando do Fórum, já dentro do complexo penitenciário, troquei de viatura, indo parar ao lado de Waldemar, que retornava do hospital. Foi aí que fiquei sabendo que ele estava preso há doze anos, o que contrastava com sua saúde física e emocional, aparentemente muito firme. Mas o que me chamou atenção foi a relação dele com a escolta, isto é, os odiados guardas do SOE: cordial, admitindo até mesmo algumas brincadeiras, coisa impensável de se fazer dentro do presídio, sob pena de cair em suspeição perante o coletivo. Faça o que eu digo, não o que eu faço. Apesar dessa desconfiança, que talvez (ou mesmo provavelmente) fosse recíproca, nos dávamos bem, ele perguntando sempre do nosso processo, da “Sininho”, que dizia admirar. Elogiava meu gesto de erguer os punhos no Tribunal, segundo ele, “atitude de homem”. Há pouco tempo soube, pela imprensa, que o tranquilo Waldemar protagonizou um dos maiores escândalos dos últimos anos no sistema penitenciário. Após fugir, supostamente durante o traslado hospital-presídio, foi recapturado e confessou que subornava os “durões” agentes do SOE-GSE para sair periodicamente da cadeia. Ia, como qualquer pessoa normal, passear no shopping ou visitar a mãe e a esposa, sendo escoltado por agentes penitenciários descaracterizados. Numa dessas ocasiões, fugiu. A polícia sustenta que ele teria pagado um companheiro de cela para sair em um desses “passeios” e matar uma amiga da sua esposa, que estaria influenciando-a a se divorciar dele. Os agentes envolvidos nesse caso seriam aqueles mesmos que eu vi batendo papo com Waldemar, tão informalmente, naquele fim de tarde, e que tanto me chamaram atenção? Luciano Aquele com quem mantive melhores conversas na galeria B foi Luciano, que sempre se mostrou ávido por discutir política e compartilhar leituras. Seria exagero dizer que tornamo-nos amigos. Isso é coisa dificílima na prisão, de modo geral, devido à transitoriedade das relações, e no caso particular, porque estivemos o tempo todo em celas separadas, mais ou menos
distantes uma da outra. Fomos, isso sim, bons companheiros de luta, aquela luta especial por mantermo-nos íntegros naquele universo degradante, eu enfrentando isso por um curto período, ele há quase dez anos. Luciano é acusado de ser um dos líderes de uma quadrilha de milicianos da zona oeste do Rio – a “Liga da Justiça” –, lendária pelo poder que chegou a exercer. Seu pai e seu tio, que também estão presos, foram eleitos vereador e deputado estadual, respectivamente, e nessa época eram exaltados publicamente por Sérgio Cabral como políticos exemplares. Após uma série de escândalos na imprensa sobre a atuação das “milícias”, o ex-governador buscou se distanciar cada vez mais dos antigos aliados, que já respondiam vários processos. Desde então, não obstante, o número desses grupos paramilitares apenas se multiplicou, assim como as guerras que têm travado entre si e com traficantes pelo controle de vastos territórios. Pude ver de perto como “milicianos” presos – a maioria acusada de homicídio ou porte ilegal de armas – gozam de tratamento diferenciado dentro do complexo de Bangu, muitos deles sendo policiais ou ex-policiais. São respeitados por diretores e carcereiros, que os consideram “homens” e não “vagabundos”, como fazem questão de frisar. Falo aqui do contexto geral. O Luciano que eu conheci no Bandeira Stampa era um sujeito politizado, inteligente, que sempre parava em frente à minha cela para prosear sobre os mais diversos assuntos. Não sei, nem nunca me interessou saber, se participou ou não dos crimes dos quais é acusado, e nossa conversa jamais enveredou por esse caminho. Nossos papos sempre terminavam em política. Ele era, tanto quanto eu, ferrenho opositor do governo Dilma, mas sua concepção de mundo aproximava-se muito mais da classe média que marchava em Copacabana do que da juventude combatente que tomou as ruas em junho de 2013. Luciano chegou ao Bangu 9, retornando de uma penitenciária federal, no início de 2014, quase ao mesmo tempo em que Caio e Fábio. Foi-lhes solidário nesse período difícil, figura importante para que sentissem algum apoio dentro da prisão, e Caio referia-se a ele como a um irmão mais velho. Da personalidade de Luciano, o que mais me chamou atenção foi que o longo tempo de prisão, modificando-o radicalmente sob vários aspectos, não deteriorou sua integridade; ao contrário, encontrei-o sempre sereno e lúcido. Nunca aceitou ser devorado pelo meio. Sempre que conversávamos, eu puxava assunto sobre sua estada de cinco anos nas penitenciárias federais de Porto Velho, Campo Grande e Catanduvas, em regime análogo ao RDD ⁵⁴ . Lá, o preso não tem direito à televisão, rádio ou ventilador, também não pode ter espelho na cela e até o contato visual com outros detentos é vedado: o cubículo é fechado por uma porta chapada de aço maciço. Dele, a pessoa sai apenas duas horas diárias para tomar o banho de sol ou falar com os advogados. Trata-se de regime realmente desumano, desafiador para a sanidade mental dos que têm que suportá-lo. Luciano foi transferido para o regime federal em 2008, acusado de ser um dos mentores da fuga do preso apelidado Batman, que saiu pela porta da frente do complexo de Bangu. Naquelas condições, viu seu casamento acabar e perdeu parte da infância de suas duas filhas, que eu conheci no
pátio da penitenciária caminhando alegremente de mãos dadas com o pai orgulhoso. Sobre o primeiro dia passado no novo regime, me disse: – Igor, é o seguinte: quando me trancaram lá, na primeira noite, e eu vi a porta de aço na minha frente, não tenho vergonha de dizer: eu chorei, sentei na cama e chorei. “Meu Deus, eu não vou conseguir passar nem uma noite aqui!”, pensei. Quando fui ver, tinham passado cinco anos. A única distração permitida aos presos nesse regime de rigoroso isolamento é a leitura e Luciano tornou-se leitor assíduo, de revistas (cada preso pode manter assinatura de cinco delas) e literatura de todo tipo. Contou-me que, na galeria em que estava, quase diariamente os presos organizavam discussões sobre matérias ou acontecimentos diversos narrados pela imprensa: – Quase sempre conversávamos de política. Não era igual aqui, que esses caras só sabem falar de crime. Lá, o nível é outro. Muito interessantes foram os episódios que me narrou das oportunidades em que conversou com Fernandinho Beira-Mar. O regime deste último é ainda mais draconiano, pois até seu banho de sol é solitário: – No dia seguinte à minha chegada, ele tava tirando banho de sol na quadra, que ficava embaixo das nossas celas, e conversamos um pouco. Ele perguntou quem eu era, mas, depois que eu respondi, não ficamos de rixa, não. Me contou que estava sofrendo de depressão profunda, falou para eu não me entregar e recomendou que eu fizesse exercício na cela todos os dias. “Isso é muito importante pra não enlouquecer”, ele me disse. Em outra oportunidade, durante uma transferência de presídio – lá, as transferências também ocorriam de repente –, sentou-se ao lado de BeiraMar no avião da Polícia Federal e os dois trocaram algumas palavras. Este lhe teria confessado, então, num instante de autorreflexão: – Sinceramente, se pudesse começar de novo, eu preferia vender picolé na praia. Acho que seria mais feliz. Eu disse a Luciano que ele deveria escrever sobre essa experiência tão amarga, ao mesmo tempo excepcional, combinação que certamente faria sucesso. Não sei se o convenci... O amigo inseparável de Luciano era Betão. Preso há alguns anos, Betão privara da intimidade de muitos políticos, inclusive administradores do sistema penitenciário, que costumavam frequentar sua casa na Barra da Tijuca. Apesar disso, quando denunciou a direção do presídio Bangu 6 por extorqui-lo em troca de alguns privilégios, foi implacavelmente perseguido pela administração penitenciária, que enviou-o duas vezes para Bangu 1, o temido castigo do sistema prisional fluminense. Apesar de cinquentão, Betão portava-se como um garotão e gostava de conversar sobre boates badaladas, roupas de marca, viagens e mulheres, no melhor estilo bon-vivant . Luciano e Betão aglutinavam ao seu redor alguns outros presos, muitos dos quais queriam simplesmente bajular pessoas consideradas “fortes”,
possuidoras de recursos e contatos. Eu, que sempre tive horror a puxasaquismos, tanto quanto de “panelinhas”, mantinha-me distante desse grupo, e por isso não conversei mais vezes com Luciano. Mantivemos, entretanto, relação de estrita consideração e foi dele que ouvi, numa manhã de terça-feira, a notícia da minha tão ansiada liberdade. Dia de visitas O dia de visitas é acontecimento crucial na prisão, como o sangue que corre nas veias e dá vitalidade ao organismo. As visitas são o apoio moral e material do preso, garantem o contato do submundo carcerário com o calor das ruas, a entrada de dinheiro e objetos de necessidade na prisão. São, em suma, o evento que purifica o ambiente carregado de agruras e tensões, a seiva que fortalece e vivifica. Fui preso em dezembro, mas a carteira de visitação do meu pai só ficou pronta em meados de março. Até essa data só estive com meus familiares duas vezes: uma em dezembro, ainda em Bangu 10, por meia hora; outra em fevereiro, na quinta-feira seguinte ao carnaval, já no Bandeira Stampa, onde revi meu pai, minha irmã e, após muitos meses, minha companheira. As horas voaram e, quando me dei conta, estava de volta à cela, com o cheiro dos perfumes conhecidos em minha roupa, inebriado pelo afeto recebido. Foi difícil aquele carnaval de 2015: não apenas doía ver a festa popular nas ruas, contrastando com minha imobilidade no interior da cela quente como um forno; doía também a passagem desesperadoramente lenta do tempo, uma vez que eu sabia estar agendada a visita-extra, conseguida com muito custo pelos meus advogados. Meus advogados foram, aliás, além de aguerridos e competentes defensores, companheiros e amigos fiéis. O Dr. Marino se despencou até Bangu, em um dia 2 de janeiro, apenas para dizer que ninguém havia me esquecido na passagem do ano. Sempre otimista, tratava de manter elevado nosso ânimo, mesmo quando todos nós sabíamos a adversidade das circunstâncias. A Dra. Luísa Maranhão, doce e firme ao mesmo tempo, mulher lutadora que jamais se intimidou com as truculências cometidas pela polícia nas ruas em 2013 e 2014. E, especialmente, a companheira Brena, que apelidei de meu “anjo da guarda”. Ela assumiu com empenho denodado a ingrata tarefa de ir regularmente a Bangu, ouvindo pacientemente as minhas perguntas variadas, informando-me das atividades da campanha pela liberdade dos presos políticos. Devo a ela ter conseguido acesso aos meus livros, em negociações sempre complicadas com a direção do presídio. Eram realmente libertadoras as horas que passávamos conversando através do vidro. Já que eu não podia sair pelo mundo, eles levavam-no até mim. Após sua saída, eu passava horas e horas digerindo as palavras que me haviam dito, decifrando os acontecimentos que me contavam, tão próximos e distantes ao mesmo tempo. Em meados de março, ultrapassada a barreira dos cem dias preso, ficou pronta a carteirinha do meu pai. Era um dia de semana à tarde e eu ainda estava na galeria D. Recordo que armava o tabuleiro de damas, na porta da cela, para iniciar a partida, quando o ligação berrou:
– Igor! Prepara pra sair, o guarda vem te tirar! “Não é possível, será que eu tenho Fórum?”, pensei com meus botões, muito contrariado com aquela possibilidade. – Sabe se é Fórum, CDD? – Né não, é visita mano, o cartão da sua mãe caiu! Naturalmente, CDD pensou tratar-se de minha mãe, pois as mulheres são, como todos sabem, maioria absoluta entre os visitantes. Mães e esposas raramente abandonam os filhos e maridos, principalmente quando não são reincidentes. Mesmo nestes casos, a maioria acompanha o “seu” preso por anos a fio. Enfrentam filas, longos deslocamentos e a hostilidade dos funcionários. No Bandeira Stampa, já não havia mais as revistas vexatórias, substituídas pelo scanner, mas essa não era a regra em todo o complexo. Muitas mulheres levavam os filhos pequenos numa mão e os potes com comidinha caseira noutra (esta parecia ainda mais saborosa pelo contraste com a boia da prisão). Difícil imaginar gesto demonstrativo de um amor mais verdadeiro e mais desinteressado do que essa fidelidade ao preso. Infelizmente a recíproca não é verdadeira, e pais e esposos visitando as mulheres encarceradas é fato bem mais raro de se ver, o que se atesta pela ausência de filas diante dos presídios femininos. Por tudo isso, família é coisa sagrada, e os dias de visitas eram sossegados dentro da prisão. Bate-bocas eram raros nessas ocasiões e os presos voltavam do pátio de visitas meio que anestesiados. Os infelizes que não recebiam visitas tentavam ignorar aquele acontecimento, tão fundamental na prisão, mas nos seus olhos e nas suas perguntas percebia-se uma dose palpável de amargura. Essa tristeza era remediada com a troca de comidas e biscoitos, intensa quando do retorno para as celas. Nem tudo eram flores, contudo: as visitas traziam para aquela pequena sociedade todos os problemas da grande sociedade, como as mortes, os revezes na Justiça, as dificuldades financeiras. Os que tinham filhos pequenos sofriam adicionalmente, impossibilitados de ver a evolução dos seres amados. Muitas vezes, os presos descarregavam sobre as mulheres parte das tensões represadas da vida na prisão. O medo da traição, numa situação de carência inigualável como aquela, atormentava constantemente os homens, embora disso só falassem em momentos de grande fragilidade. Não obstante as palavras maldosas, os desentendimentos e as injustiças, aquelas mulheres voltavam, semana após semana, visita após visita, sob o sol escaldante ou sob chuvas torrenciais. E iam maquiadas e arrumadas, ainda por cima. # Aquele sentimento contraditório eu vivi na pele: passei com meu pai tardes maravilhosas e creio que tivemos aí as mais longas e mais profundas conversas de nossa vida. O meu “velho” foi de uma dedicação incrível, abnegada mesmo, e não ouvi de sua boca uma única palavra de desaprovação ou reclamação. Inicialmente, roguei-lhe que não viesse me ver
duas vezes por semana, por não querer vê-lo preso junto comigo. Entretanto, lá para o fim de abril e início de maio, quando todos acreditavam que a decisão do Habeas Corpus poderia sair de uma semana para outra, pedi-lhe que se esforçasse para vir nos dois dias, dada a ansiedade que me assaltava, a dificuldade crescente que tinha em permanecer na cela. E ele foi mesmo, discreto, como se não significasse nenhum sacrifício a mudança da rotina de anos, a descida regular ao inferno. Mas também passei com ele o momento mais duro da estada na prisão. Nem as idas ao Fórum, nem o isolamento, nem os espancamentos que assisti e ouvi, nada foi pior do que o dia em que vi – o único dia em que vi – meu pai encher seus olhos de lágrimas. O sábado se aproximava do meio-dia e eu já tinha perdido as esperanças de receber visitas (depois de meio-dia mais ninguém passava da cancela do complexo). Estava me desarrumando quando o cartão “caiu”. Chegando ao pátio, encontrei-o com os olhos vermelhos, inchados, de quem passou uma noite sem dormir. – Desculpa vir assim, Igor, sem trazer nem comida, mas é que fui em Bangu ontem, tomei uma cerveja, quando fui ver... – Por favor, pai – disse-lhe, sentindo um nó na garganta –, você não tem que pedir desculpas, na verdade, você devia ter ido dormir! Quando for assim eu prefiro que você não venha, eu vou entender que aconteceu alguma coisa. Na verdade, eu sempre prefiro que você venha. – Não, Igor, não é nada não, eu tô bem. Conversamos sobre o processo, sobre as perspectivas de liberdade, que pareciam remotas naquele dia. Era como se o mundo estivesse apagado e só existíssemos nós dois, em um pátio feio em Bangu. Quando ouvi suas palavras pessimistas e vi os seus olhos se encherem de lágrimas, senti, pela primeira vez, faltarem-me as forças; senti-me culpado por fazê-los (meu pai e todas as pessoas queridas, sobretudo as mais próximas) passar por tudo aquilo. Este sentimento de culpa existe concretamente, independentemente de quão sólidas sejam nossas convicções, e vencê-lo é coisa que exige vontade férrea, ainda que racionalmente saibamos que a culpa está do lado dos que querem atrasar o trem da história. Por um momento as lágrimas quiseram vir, mas não podia sucumbir, por ele eu não podia sucumbir. Consegui mudar de assunto, bruscamente, e respirar, e recomeçar. Ao voltar para a cela, caí desmaiado no colchão. Sentia-me exausto. Uma imensa felicidade foi rever minha companheira, no início de maio. Seria impossível esquecer o primeiro dia em que ela me visitou. A caminho do pátio, naquele dia, acreditando que encontraria o meu pai, reivindiquei junto ao carcereiro uma visita à assistente social do presídio, justamente para tentar agendar uma visita-extra para a minha querida Bruna. Ele me respondeu, friamente:
– Difícil, muita gente quer essa senha. Em todo caso, vou encaminhar seu pedido. Franzi o cenho e entrei no pátio disposto a armar barulho na cadeia, coisa que não me era típica, para defender o meu direito. Aumentava minha indignação o fato da Bruna ter entrado há quase dois meses com o pedido da carteirinha e este não ter sequer chegado às minhas mãos para que o assinasse, como é de praxe. Qual a minha surpresa quando, em meio às visitas, encontrei-a sentada, com as pernas cruzadas e um sorriso maroto, de quem sabe estar pregando uma peça. Linda! Abraçamo-nos fraternamente, de forma sentida, afetuosa. Creio que, como as conversas com meu pai, jamais troquei com minha companheira ou com quem quer que seja abraços ternos e ao mesmo tempo intensos como aqueles. Porque temperados pela longa distância forçada, pelas saudades reprimidas e por tudo o que não se disse ao longo de todo aquele tempo. Mantínhamos contatos pelas cartas, mas estas, que no princípio eram um alívio, motivo de alegria e esperanças, com o passar do tempo tornaram-se torturantes, dada a impossibilidade de tomar em meus braços aquelas letras no papel. Punha-me a imaginar suas mãos perfeitas a escrevê-las, em um quarto calmo e ensolarado, mãos que eu não podia tocar, quarto que eu não podia visitar. Não era em baladas ou em grandes aventuras que eu pensava. Faziam-me falta as coisas simples, como preparar um café pela manhã, ouvir música, andar de mãos dadas pelas ruas, sentar em seu colo, bagunçar seus cabelos. Essas coisas singelas, acessíveis a todos, tornadas quase invisíveis pelo cotidiano, mas que concentram em sua simplicidade tudo o que há de mais belo e verdadeiro na vida. Ela me contou que sua carteira estava pronta há mais de um mês, mas a atendente do sistema penitenciário nunca a encontrava, porque solicitava o número do seu RG – na verdade, era em meu número que estava registrada. Foi necessário que a companheira advogada fosse até o ponto de entrega, pessoalmente, para que se esclarecesse aquele “mal-entendido”, efeito da mais pura negligência. Terminado o dia de visitas, feitas as despedidas, as promessas recíprocas de escrever ou tomar essa ou aquela providência, voltávamos para as celas, exauridos pela imensa descarga de emoções. Trazíamos em nossos espíritos um grande estoque de tristeza. Creio que todos pensávamos naquelas pessoas amadas encarando os ônibus para as casas distantes, retornando aos problemas cotidianos, enquanto nós permanecíamos ali, como um peso morto, assistindo a vida passar na nossa frente; assistindo a vida que se esvaía, subtraída entre aquelas grades malditas, embora nossos corpos ainda estivessem cheios de energia para lutar. Esse sentimento contraditório fazia com que a visita fosse o melhor e, ao mesmo tempo, o dia mais difícil na prisão. Apesar disso, na manhã seguinte recomeçava a contagem infinita, íntima, necessária: Faltam x dias para a próxima visita . #
No domingo, 21 de junho, fazia frio em Bangu. Na quinta, havia recebido a visita de minha companheira e, para o fim de semana, aguardava o meu pai. Arrumei-me, sem pressa, e vi um a um os companheiros serem chamados para o pátio de visitas. Não me surpreendia ser um dos últimos, pois os homens visitantes entram por último na cadeia: as mulheres, que são imensa maioria, têm prioridade. Quando passou das onze e meia fiquei preocupado; ao meio-dia já andava de um lado para outro na cela; meio-dia e meia sentei na comarca , desistindo, embora intimamente aguardasse uma chamada imprevista, que não veio. A visita frustrada é difícil para o detento, que deve desarrumar-se, ocupar o tempo de outra forma, sem as conversas regeneradoras, a comidinha gostosa, o trocadinho da semana. Naquele dia, para piorar, ficara sem dinheiro, inclusive para comprar café. Estava sozinho na B6, já que JP fora transferido na sexta. Enfim, tudo de mau. Encolhi-me embaixo dos lençóis, terminei o fabuloso Guerra e Paz , pendente por poucas páginas. Senti saudades do meu pai, e fiquei preocupado: teria acontecido alguma coisa? Apesar da noite mal dormida, pois nessa época estava terrivelmente atacado de insônia, não adormeci, e pus-me a pensar até quando duraria aquilo. Já desistira de fazer planos, aferrando-me ao princípio de viver um dia de cada vez. Mas entre decidir por essa atitude e conseguir aplicá-la vai uma grande distância. A visita frustrada e os pensamentos banais daquele dia, que em outras circunstâncias passar-me-iam despercebidos, os retenho vivamente no coração, pois ironicamente aquela semana, começada daquela forma, seria a minha última na prisão. Nos próximos dias, eu viveria o capítulo ansiado por longos meses, capítulo sonhado por todos os presos, qualquer que seja sua origem, condição social ou ficha criminal: o capítulo da minha liberdade. Tardia, é certo, mas ainda assim, liberdade! 52 Custódia é, na cadeia, tudo aquilo que vem de fora para os presos: roupas, itens higiênicos, TV, ventilador etc. Responsável pela custódia é o funcionário, integrante do corpo da direção do presídio, que supervisiona a entrada desses materiais. 53 “A ideia de prisionização está relacionada ao conceito sociológico de assimilação, o qual pode ser entendido como ‘[...] processo lento, gradual, mais ou menos inconsciente, pelo qual a pessoa adquire o bastante da cultura de uma unidade social, na qual foi colocada, a ponto de se tornar característico dela (Thompson, 1993, p. 23)’”, citado por Fábio Lobosco no trabalho “PRISIONIZAÇÃO: MÚLTIPLOS ASPECTOS DA ASSIMILAÇÃO PRISIONAL”. Mais à frente o autor estabelece distinções entre os conceitos de assimilação e prisionização, pois, dadas as características peculiares da prisão, como exemplo mais acabado de instituição total, este fenômeno atua nela de maneira mais agressiva. Ele considera-o inevitável para todos os membros da comunidade carcerária, inclusive guardas e administradores, variando apenas a intensidade com que ocorre. 54 RDD: Regime Disciplinar Diferenciado. Criado em 2003, é o mais duro regime carcerário previsto pela legislação brasileira, estipulando o isolamento quase completo do preso. Os mecanismos pelos quais as pessoas são capazes de adaptar-se, e resistir, às condições mais duras é tema que me fascina. Talvez por isso tenha sempre buscado conversar com aqueles
companheiros presos há mais tempo, com os quais, em geral, mantive as melhores relações.
LIBERDADE No dia 25 de junho de 2015, perto das nove horas da manhã, meus advogados chegaram à penitenciária. Pela última vez, um carcereiro tiroume da cela e ouvi, atrás de mim, o inconfundível estalo do cadeado . Eles estavam fatigados, após três dias de correria providenciando papeladas e assinaturas para concretizar a minha soltura, mas felizes, tanto quanto eu. Conversando com eles, através do vidro, me lembrei dos clássicos romances de guerra, nos quais, após narrativas de terríveis batalhas, as personagens terminam as estórias discutindo o futuro, recordando os que ficaram pelo caminho, tecendo novamente os fios pequeninos de sua existência, rompidos pelos acontecimentos. Embora não soubesse exatamente como seriam as coisas daí em diante, sentia perfeitamente que se abria um novo capítulo da minha vida e fechava-se outro, doloroso, traumático, mas do qual eu levaria para sempre inúmeras lições. Como na guerra. Expectativas O processo contra os ativistas pode ser desmembrado em vários capítulos, todos eles repletos de ilegalidades cometidas por aqueles que aprisionaram nossos corpos, exatamente por não poderem deter nossas ideias. Um dos capítulos mais duros foi a briga pela nossa liberdade, especialmente nesta segunda prisão preventiva que atingia, além de mim, as companheiras Elisa e Karlayne. De dezembro de 2014 até abril de 2015, não tivemos absolutamente nenhuma vitória concreta nessa frente. Mesmo parecendo óbvio que ninguém possa ser impedido de manifestar-se politicamente – muito menos enviado para uma masmorra por conta disso –, foram necessários quase sete meses para que o caráter arbitrário da nossa prisão fosse reconhecido pelo Poder Judiciário. Em março, a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Maria Thereza de Assis Moura negou liminarmente o pedido de liberdade formulado em nosso HC, assinado pelo escritório do Dr. Nilo Batista. A peça produzida pela nossa defesa era realmente brilhante, não deixando pedra sobre pedra das acusações que nos eram feitas. Na sua decisão, a ministra determinou que o Ministério Público Federal (MPF) desse seu parecer sobre o caso. Esse parecer veio à luz no dia 10 de abril de 2015, assinado por Aurea Maria Etelvina Lustosa Pierre, Subprocuradora Geral da República. Seu conteúdo representou verdadeiro libelo contra as ilegalidades que embasaram a decretação de nossa prisão. Posicionando-se a favor da concessão do Habeas Corpus , dizia o MPF: É de se assinalar proibir a participação em ‘manifestação’ ou mesmo em ‘protesto’ não se configura adequado no Estado democrático de direito... Melhor será considerar a Liberdade de Manifestação de Pensamento como direito constitucional, não podendo ser objeto de restrição pelo Legislador – nem pelo Poder Judiciário. E, mais à frente, repisando o direito constitucional de livre manifestação:
Nessa medida – o ato de se apresentarem amordaçadas as pessoas não faz maior ou menor o ato de se manifestar – que não pode ser impedido – se não há incitamento a crime; prática de crime. O direito democrático de livre manifestação deve ser defendido.... Como se vê, o MPF não argumentava pela concessão do HC apenas por ser desproporcional a medida de prisão em relação às acusações que nos eram impetradas, embora tal desproporcionalidade fosse flagrante. Atacava diretamente o cerne do problema, considerando inconstitucional a própria decisão que nos impedia exercer plenamente os nossos direitos políticos. Lembro-me de ler avidamente cada uma daquelas palavras e depois esconder os papeis embaixo do colchão, com medo de perdê-los em uma revista. A realidade vinha lembrar que, apesar do alento, eu continuava preso. Na verdade, passado o efeito imediato, esse “alento” converteu-se em “tormento”. Aumentava, sem dúvida, nossa esperança de vitória junto ao STJ, na votação do mérito da questão. Mas também a ansiedade de todos os envolvidos, a cada semana que passava e o assunto não era colocado em pauta. Nessa expectativa sempre frustrada, passei os meses de abril, maio e junho, que foram seguramente o período mais difícil na prisão. A rotina da cadeia, o desgaste do convívio e das pequenas complexidades que marcam o dia-a-dia ali, a esperança adiada de sair do inferno, tudo isso tornava muito mais penoso manter o equilíbrio, a paz interior, o sono. No dia 19 de maio, acordei com os presos gritando meu nome na grade: – Aí, Igor, deu na Globo mais cedo, o Siro Darlan liberou vocês! Como? Passei o dia todo procurando a notícia, mudando de um canal para o outro. S., querendo me animar, repetia “é claro que é verdade”, o que só tornava as coisas mais difíceis para mim. A noite caiu, o confere passou e ninguém veio me chamar para nada. Recolhi-me a um canto, desanimado. Sabia que nossa eventual liberdade seria tema certo nos telejornais, que cobriram até mesmo episódios secundários do processo. E que, uma vez determinada, meus advogados não perderiam tempo em vir me dar a boa nova, tão aguardada. Claramente, tratava-se, então, de um alarme falso. Só de pensar em como seria quando isso acontecesse de verdade, meu coração doía, apertado de revolta e de saudade. Meu pai me perguntou, um dia: – Como você quer sair daqui? – Olha, pai, no início eu pensava muito nessas coisas, agora prefiro nem imaginar. A única coisa que sei é que faço questão de ir andando, com a cabeça erguida. Respirar o ar puro. Conhecer o lugar onde morei por tanto tempo.
Ouso dizer que nada, nada mesmo, pode ser mais difícil e mais perigoso para o preso que a expectativa frustrada de liberdade. Pior que isso, creio, somente o abandono das pessoas queridas, experiência que felizmente não sofri, pelo contrário. O que aconteceu naquela oportunidade foi que, a 18 de maio, o desembargador Siro Darlan, relator do nosso processo na 7ª Câmara Criminal do TJRJ, suspendeu a Ação Penal movida contra nós. Sua decisão foi motivada pelo fato de o Ministério Público do Rio, nas suas Alegações Finais, pedir a condenação dos ativistas por um crime que não constava na denúncia original. Não é o caso de entrarmos no mérito jurídico dessa questão. Quero apenas que o leitor entenda qual era minha situação em meados de maio: havia sido concluída, desde março, a fase da instrução processual, não havendo mais quaisquer depoimentos ou provas a serem colhidos; em Brasília, o MPF pedia minha liberdade; aqui, no Tribunal, o processo estava suspenso. Apesar de tudo isso, eu acordava e dormia em uma cela em Bangu e a cada visita encontrava meus advogados mais fatigados pela luta árdua, interminável. Possivelmente eles, me olhando através do vidro, pensassem o mesmo. – Estamos atravessando o deserto, negão – dizia-me amiúde o Dr. Marino, no seu jeito todo particular, animado e comovido ao mesmo tempo. Ele próprio, além de se preocupar com a nossa causa, a qual dedicava suas melhores energias, tinha que se defender de diferentes processos movidos pelo juiz da 27ª Vara Criminal contra a sua pessoa. Foi necessário mais um mês (que eu passei em completa insônia) para que o STJ, na figura de novo relator, o ministro Sebastião Reis Junior, ditasse a ordem libertadora. Era uma segunda-feira de muito frio em Bangu, dia 22 de junho de 2015. Três dias depois, a 25 de junho, a “travessia do deserto” finalmente acabaria. Será? Soube da notícia na terça-feira de manhã, quando Luciano “chamou minha atenção” na grade: – Igor, chega aí! Ainda não ocorrera o confere da manhã. Após mais uma noite de insônia, eu me remexia na comarca . “Não desanime!”, falei para mim mesmo enquanto me dirigia à porta da B6, minha cela: – Fala aí, Luciano! – Igor, olha só, acabou de dar na TV que você, a Sininho e a outra moça ganharam o HC. Foi concedido ontem pelo STJ! Dessa vez, não me deixaria contagiar por novo alarme falso. Como São Tomé, só acreditaria vendo. – Tem certeza que é isso mesmo? Qual o nome do Ministro?
– Acho que é Sebastião Reis, sexta turma do STJ. Pode acreditar, você vai sair! O nome do ministro era exato, assim como a turma do STJ preventa do nosso caso. Luciano não sabia isso de cabeça. Será verdade? Passou o confere . Tudo normal. Pendurei, no barbante de náilon improvisado como varal, as roupas deixadas de molho na noite anterior – duas camisetas brancas e uma bermuda jeans. Perto do horário do almoço, o “amigo” que estava na ligação me avisou: – O guarda vai vir te tirar, parece que o diretor quer falar contigo. Será verdade? Cumprimentei os amigos na galeria B, depois, na “Avenida Brasil”. Waldemar me disse, com um sorriso solidário: – Vi na Globo, você vai sair! Será verdade? Atravessei a cortina que separa o interior da cadeia da parte administrativa, e os faxinas vieram me cumprimentar, comentando sobre as boas novas. Naquele pequeno universo de seres confinados, as informações correm incrivelmente rápido, absorvidas como oxigênio em um mar de monotonia. Começava a acreditar que algo tinha mesmo acontecido. Abriu-se à minha frente a pequena salinha da direção. Sentado em sua mesa, Seu Walace me perguntou: – Já tá sabendo? – Me disseram que o STJ concedeu a nossa liberdade, mas eu mesmo não vi nada... – Olha aqui. Mostrou-me, então, seu computador aberto em uma página onde li, em letras que me pareceram garrafais: “STJ concede habeas-corpus para Sininho e mais dois ativistas”. Passei os olhos rapidamente pelas letras, me sentindo estranhamente culpado por navegar na internet. Então, é verdade! Mantive-me calmo, entretanto, como não imaginei que conseguisse quando chegasse o momento tão aguardado. O hábito de represar as emoções,
adquirido à força, fundamental para atravessar os momentos mais difíceis, enraizara-se mesmo em mim. 204 dias “Prender é rápido, já soltar...”. Quantas vezes ouvi isso, da boca de presos mais velhos, e quantas vezes disse isso para novatos que lamentavam a “falta de sorte”! Todos os detentos, ou quase todos, querem crer que no seu caso será diferente, que no seu caso, por algum milagre, a Justiça será rápida e magnânima. O resultado é sempre a decepção. Os presos primários que entram no sistema costumam perguntar para seus interlocutores: “você acha que no meu caso eu saio logo?”. Diante dessa questão, eu preferia não enganá-los, alertando-os para que se preparassem para o pior. A maioria repetia, logo em seguida, a mesma pergunta para outro, até encontrar alguém disposto a dizer o que queriam ouvir. Aprendi na cadeia que o ser humano pode suportar tudo, menos a falta de esperança. Ao longo dos duzentos e quatro dias em que estive preso, de 3 de dezembro de 2014 a 25 de junho de 2015, conto nos dedos os presos que vi deixarem a penitenciária rumo à liberdade. Transferências e mudanças de regime vi muitas. Ingressos, então, nem se fala: um dia, no José Frederico Marques (Bangu 10), cheguei a contar 130 novos detentos. Mas liberdade... Como poderia mentir para consolar alguém, se eu era a prova viva do cotidiano de morosidade e injustiças do Poder Judiciário? Se todo o medievalismo, a superlotação e os maus-tratos que vemos naqueles subsolos têm também a sua (grande) responsabilidade? ⁵⁵ No Brasil “redemocratizado”, pós-1988, fui mantido quase sete meses encarcerado em presídios de segurança máxima por ter tomado a palavra em um evento cultural na Praça Cinelândia. Assisti, dentro de uma cela, a então presidente Dilma Rousseff dizer que em nosso país ninguém mais sofre consequências por manifestar suas opiniões ⁵⁶ . Logo da minha detenção, ninguém supunha que esta pudesse ser mantida mais do que alguns dias – e, quando finalmente veio a ordem libertadora, eu mal pude acreditar. Por diversas vezes, fui perguntado “qual era o meu crime”, seja por guardas, seja por presos. Respondia, invariavelmente, ser preso político, manifestante. Normalmente, da parte dos presos, recebia como réplica alguma exclamação de apoio à luta e olhares admirados frente a um black bloc de verdade (até explicar-lhes que não era black bloc era necessário um tempo de conversa, coisa da qual nem sempre dispúnhamos). Dos carcereiros, ouvia alguma reclamação – já disse que muitos se sentiam ofendidos quando me dizia preso político – ou simplesmente olhares incrédulos, como se não fosse possível eu estar preso “só” por aquilo. Do ponto de vista estritamente jurídico, a acusação que me imputavam (associação criminosa, artigo 288 do Código Penal), aliada à minha condição de réu primário, tornavam muito improvável que, mesmo em caso de condenação, eu tivesse que cumprir pena em regime fechado. Não conheci, nas minhas andanças a caminho do Fórum e nas prisões pelas quais passei –
três presídios diferentes em alguns meses –, ninguém em condições análogas às minhas. Ocorre que, nem o processo contra os 23, nem a minha prisão, podem ser entendidos num âmbito estritamente jurídico. Trata-se, indiscutivelmente, de perseguição política, verdadeiro acerto de contas do Estado com aqueles considerados típicos representantes da juventude que tomou as ruas a partir das jornadas de junho em 2013. Apesar de o sistema penitenciário encontrar-se absolutamente superlotado, parece que os burocratas responsáveis pelos papéis de entrada e saída sentem-se frustrados toda vez que alguém é libertado. Com ordem de liberdade assinada a 22 de junho, uma segunda-feira, passei a terça e a quarta aguardando a chegada de um oficial de justiça. Roubaram-me mais duas noites “gratuitas” na prisão, noites não dormidas, naturalmente. Fazia um frio de doer em Bangu e pelos carcereiros soube que havia companheiros de vigília na entrada do presídio. A rotina de confere pela manhã e no fim da tarde, estar cercado de grades por todos os lados, trancado como um animal, a comida sem um grama de sal, tudo aquilo que, após um longo e doloroso processo de adaptação, havia se tornado “normal”, voltou a me parecer como realmente é: desnecessário e completamente absurdo. Ter de suportar tudo aquilo, dias, semanas e meses a fio, quando não havia escolha, era diferente de fazê-lo sabendo que me esperavam os abraços calorosos das pessoas amadas, dos companheiros e companheiras de luta, em vigília na entrada do complexo prisional. Mesmo quando o Oficial de Justiça finalmente chegou a Bangu, por volta de meio-dia daquele cinzento 25 de junho, ainda demorei a sair: o diretor tinha ordens de avisar a secretaria de comunicação da SEAP antes de me liberar. Assinei a papelada e fiquei no pátio, conversando com alguns faxinas, tomando meu derradeiro café na cantina, que dessa vez não me foi cobrado. O carcereiro que me levou até o portão de ferro tinha a cara fechada. Chegando lá, outros dois agentes da portaria, ainda mais carrancudos, me perguntaram: – Qual a sua bronca? – Sou manifestante, preso político. E, como tantas vezes anteriormente, ouvi a resposta conhecida: – Preso político é o caralho! Dessa vez, no entanto, ninguém me ordenou que baixasse a cabeça, nem pôs algemas nos meus punhos. Pude também elevar meu tom de voz: – Vamos ver o que dirá a História... – História nada, quem sabe das coisas é o guarda!
Antes que eu pudesse responder, abriu-se o portão à minha frente, onde esperavam meus advogados, nos quais eu dei os primeiros longos abraços daquele dia. Os últimos passos Pude olhar pela primeira vez o lugar onde morei naqueles meses. O céu estava carregado, ameaçando chover. Ao meu redor, muros altos, enegrecidos, e por trás de tudo a serra, cujo verde parecia desbotado naquele princípio de inverno. Tudo parecia desolado naquele lugar, habitat de tristezas profundas. Apesar de ser dia de visitas, havia silêncio. No carro, tocava música, privilégio que eu não tinha desde que fora preso, e que muita falta me fez, muita falta... Preferia ter atravessado todo o complexo penitenciário a pé. Bangu 9 era o penúltimo presídio, localizado no final do imenso terreno. À minha frente, o último prédio, Bangu 10, o famigerado centro de torturas, a triagem masculina do sistema prisional. Batalhamos quarenta e cinco dias para que eu saísse de lá, caminhasse o equivalente a poucos passos, simplesmente atravessando a rua... Meus advogados, contudo, insistiram para que fôssemos até a cancela do complexo dentro do carro, a fim de evitar qualquer contratempo. Por eles, acedi. Fui com os olhos bem abertos, colados no vidro, atento aos nomes que apareciam nos prédios cinzentos ou pardos, duros, feios. Os nomes eram-me todos conhecidos, das idas e vindas do Fórum, quando o camburão estacionava e os presos, como bichos, entravam ou saíam algemados de cada uma daquelas cadeias. Aquele lugar me surgia exatamente como eu imaginava: imenso, perverso, doloroso. Sempre soube que mentiam os que me visitavam e respondiam à minha pergunta se fora muito difícil a entrada com um mal disfarçado “não, imagina”. Mas essa mentira carinhosa aparecia-me agora em toda sua clareza, pois sentia, talvez como eles, o coração mortificado diante da paisagem medonha, retorcida como os arames no alto dos muros. Imagina... Na última barreira, na cancela, de onde se vê já a rua, desci do automóvel. Com o alvará de soltura nas mãos, encararia pela última vez os agentes de preto. Apreensão. Ainda me sentia preso. Eles, provavelmente, me viam ainda como preso. Fora do presídio, ouvia as palavras-de-ordem conhecidas, podia ver as bandeiras vermelhas tremulando, aquecendo a minha vontade, aquecendo os corações daquela gente humilde que circula por ali, carente de quem olhe por elas; carente de esperanças, principalmente, como os seus que estão do lado de dentro da cancela. Antes de me reunir às bandeiras, cantar as consignas presas na garganta, fui abraçado por uma senhora de cabelos brancos, que jamais vira, mas bem podia ser minha mãe ou minha avó. Provavelmente esperava alguém querido sair da masmorra. Naquela tarde, as bandeiras tremulando aqueciam seu coração também. Abraçou-me com ternura, um abraço apertado, e falou no meu ouvido: – Parabéns, meu filho, parabéns pela luta. Vocês são um exemplo. – Obrigado, senhora, muito obrigado. Não pelas palavras, mas por resistir. A senhora também é uma sobrevivente.
Nos seus braços magros, nas suas palavras, senti toda a ternura e também toda a força inesgotável do nosso povo. Em cujo fatalismo há uma resignação estoica para suportar o sofrimento, o que se pode confundir com passividade, mas na maior parte das vezes é o mais puro heroísmo. Os pés estavam na rua, braços livres me atingiam por todos os lados, a garganta ardia na vontade de dizer. Livre . Livre para continuar a lutar, livre para viver, porque é tudo uma coisa só. Os meses vindouros denunciariam as transformações, nos de fora e em mim mesmo, que eu não poderia passar impune pelos muros de Bangu. Ninguém passa. Lembrei-me dos que lá ficaram; lembro-me deles até hoje. De certa forma, uma parte deles atravessou a cancela, aspirou o ar límpido da liberdade junto comigo. Há poucos dias, deitado na minha comarca , sublinhara a lápis uma frase num livro, e agora ela me vinha à cabeça, resumindo o que ficaria de tudo aquilo: Achamos que quando nos arrancam de nossas trilhas rotineiras tudo está perdido; mas é só então que começa algo novo e bom. Enquanto existe vida, existe felicidade. Há muita coisa pela frente, muita coisa. ⁵⁷ Há muita coisa pela frente, sim! Isso é muito bonito, e verdadeiro, sobretudo verdadeiro. 55 Às vezes Juízes e Promotores faziam visitas de “surpresa” para fiscalizar o presídio. A direção nos avisava dessas inspeções com, no mínimo, duas horas de antecedência (nunca nos dizia, entretanto, qual órgão em específico seria). Recebíamos ordens de deixar toda a cadeia limpa e bem arrumada, e era claro que haveriam sanções se essa determinação não fosse cumprida à risca. As autoridades sempre faziam as inspeções acompanhadas do pessoal da direção, o que, por si só, bastaria para que os presos receassem fazer qualquer denúncia. Jamais nos dirigiam a palavra, a não ser para desejar, magnanimamente, uma “boa tarde”. 56 “Nunca mais no Brasil nós vamos ver pessoas, ao manifestarem sua opinião, seja contra quem quer que seja, inclusive a Presidência da República, sofrerem quaisquer consequências (...) valeu a pena lutar pela liberdade. Valeu a pena lutar pela democracia. Este país está mais forte que nunca”. Discurso pronunciado em 16 de março de 2015. Eu morava na D7 nessa época. 57 Liev Tolstoi, Guerra e Paz .
EPÍLOGO Dezembro de 2016 A crise do estado do Rio atinge níveis inauditos, com atraso de salários, ameaça de greve das polícias, espiral de assassinatos nas favelas. Há poucos dias, Sérgio Cabral foi preso e eu assisti, pela TV, sua chegada a Gericinó. Passou por Bangu 10, onde permaneceu apenas dez minutos. Eike Batista também seria preso, permanecendo uma temporada, exatamente, em Bangu 9. Na manifestação convocada por servidores públicos, reparo que um homem, com bigodes que sobressaem no rosto sem barba, me olha fixamente. Veste a inconfundível camisa azul marinho, com distintivo amarelo, dos agentes penitenciários. Olho de volta e logo reconheço Seu Calazans, agora exsubdiretor do Bandeira Stampa. Vou em sua direção, cumprimentamo-nos. Pessoalmente, nada tenho contra ele. Digo-lhe, com uma leve ironia: – Quem diria, Seu Calazans... Agora, estamos do mesmo lado, hein? Ele me olha como se também espantasse a situação, mas responde sem demora: – Igor, nós sempre estivemos do mesmo lado. Comentamos, brevemente, sobre a prisão do Cabral, o imenso aparato policial mobilizado para uma manifestação que conta com adesão dos próprios funcionários da segurança pública: – Na última manifestação – diz-me –, vários colegas saíram feridos com bala de borracha. Agora mesmo, já veio um cara me enquadrando, querendo saber o que eu tenho na mochila, pode? Já estamos vivendo um militarismo, só que um militarismo disfarçado. Entrego-lhe um panfleto e nos despedimos. Seus gestos e forma de falar, a sua própria presença, me transportam para Bangu. Cadeia é uma coisa estranha mesmo: ela impregna, acho que definitivamente, todos os que têm contato com ela, como uma maldição da qual não podemos nos libertar. Ao me afastar não posso deixar de pensar que, dentro do complexo, naquele exato momento, provavelmente muitos presos batalham uma senha para falar com ele. Sua palavra basta para resolver algum problema, encaminhar uma visita-extra, determinar uma transferência. Aqui fora, ele é apenas um servidor mal-remunerado, um sindicalista que tem a mochila revistada, um rosto anônimo que encara o trem lotado no fim do dia. Julho de 2017 Na Central do Brasil, um grupo de mulheres se reúne para protestar contra as sucessivas mortes em decorrência de falta de atendimento médico no interior do sistema penitenciário do Rio. Dentro das cadeias, as doenças matam muito mais do que as rebeliões, mas não viram notícia: são mortes invisíveis, como a população de miseráveis que ela atinge. O protesto, divulgado por uma página no facebook chamada “Guerreiras do Rio” (na
qual avós, mães, esposas e irmãs de presos compartilham informações básicas e prestam solidariedade umas às outras), não reúne muitas pessoas. Mas elas não desanimam: sabem que todo começo é difícil, o importante é dar o primeiro passo. Na verdade, facilidade é coisa que desconhecem na sua vida dura. Os únicos homens presentes são, além de mim, um ativista que atua dentro do sistema penitenciário e um jornalista. Nada surpreendente. Em meio às mulheres, crianças correm de um lado para outro, provavelmente porque não têm com quem ficar em casa. Uma senhora com a face enrugada, já idosa, chama minha atenção em meio ao grupo. Pergunto seu nome. “Sara”, ela me responde, com voz doce e olhar firme. É pelos filhos que está ali: dois estão presos, e os cinco netos estão sob seus cuidados. – Meu menino era tudo pra mim – ela me diz. – Fazia tudo dentro de casa. Era filho, amigo, marido. Agora tá lá. Na última visita, ele falou pra mim: “mãe, as crianças não tão passando fome não, né?”. Disse pra ele que de jeito nenhum. Eu me viro, mas fome ninguém vai passar. É muito sofrimento, sabe. Enquanto o ato caminhava, seu neto pediu algo para comer. Ela parou em frente a uma barraquinha onde vendia um salgado mais em conta. Verificou o trocado que levava no bolso e pediu dois. Ofereci-me para segurar o dela enquanto o neto comia. Ela me respondeu: – Não, meu filho, não é pra mim não. É pra fulana, o menino dela também deve ‘tá’ com fome. Entrega lá pra ela, por favor. É com toda razão que se chamam “Guerreiras”. Com “G” maiúsculo. Hoje O livro tem imagens e opiniões fortes, que podem desagradar os que preferem uma literatura mais palatável, sem um lado definido. Respeito os que têm este ponto de vista, mas prefiro admitir francamente que nunca tive pretensões de imparcialidade. Como o velho compositor, penso que palavras são navalhas. Nem por um momento passou pela minha cabeça infundir temor em alguém. Pelo contrário, reafirmei sempre que tudo valeu – e vale, porque a luta continua – a pena. Contudo, qualquer crença em uma transformação indolor da sociedade brasileira, tão marcadamente desigual, tão concentradora de privilégios nas mãos de poucos, não encontra eco em nossa história. Quem queira trilhar o caminho da luta popular deve estar vacinado contra as consequências. Não obstante, qual outro caminho é possível? Apostar todas as fichas numa solução individual? Desistir das grandes mudanças, contentando-se apenas em remendar o casaco rasgado? ⁵⁸ Buscar abrigo sob o teto da indiferença, que mata o que há de melhor dentro de nós? Nos momentos mais duros, durante a estada em Bangu, me lembrava da força coletiva que levava milhares de pessoas a agirem como um só nas ruas, da atmosfera vibrante das grandes reuniões, das pessoas tristes e desesperançadas, que encontraram no ativismo uma nova razão para viver –
e voltava a me sentir feliz. Porque a felicidade não pode ser outra coisa do que viver coerentemente de acordo com o que se acredita. É inegável que a vida da imensa maioria do nosso povo se parece muito com um pesadelo. As calçadas das grandes cidades brasileiras viraram dormitórios, as favelas imensas prisões a céu aberto, as prisões odiosas câmaras de tortura. O trabalho precário converte os que o realizam em mercadorias mais baratas que os artigos que produzem. Mostrei no livro, entretanto, como até mesmo a pequena sociedade presidiária, tão fortemente controlada, é subvertida a cada dia, hora e minuto pelos laços de solidariedade e resistência que se formam espontaneamente no seu interior. Penso que também a sociedade “livre” vai abrindo os olhos para os tormentos que a cercam como se fossem grades. Depois de 2013, a luta popular ganhou formas novas, jamais voltando à aparente calmaria anterior. A grande contribuição das Jornadas de Junho foi justamente esta: aprendemos, como povo, a dizer NÃO. Daí, para acertarmos o caminho por onde andar, não falta muito. O pesadelo tem de acabar e acabará. Nenhuma lei divina nos condena a suportá-lo eternamente. Há um conto grego chamado “Caixa de Pandora”. Embora milenar, carrega uma lição completamente atual. Nessa estória, Júpiter, o deus dos deuses, ao fazer descer para a Terra a Mulher – criada por Vulcano, seu filho –, entrega por meio dela uma caixa dourada, ricamente ornamentada, como um presente para a Humanidade. Pandora, como se chamava a mulher, encantada com o maravilhoso presente, abre a caixa, desrespeitando a severa advertência feita por Júpiter para jamais fazê-lo. Para seu horror, saem de dentro da caixa, um a um, os terríveis males que até hoje assolam o mundo, como a Inveja, a Doença, a Crueldade e outros. Desesperada, Pandora consegue reunir forças e fechar novamente a caixa. No seu interior restava, contudo, uma última criatura: a Esperança. Carregando este valioso presente, ela se apresentou perante os Homens. Esperança é, de todas as palavras que compõem a nossa bela língua, a que eu considero mais bela. Ela aparece algumas vezes durante “A pequena prisão”, porque me acompanhou nas galerias de Bangu, como se um amuleto fosse. Essa esperança, para mim, não é outra coisa senão a certeza na vitória da causa que desde cedo abracei. Não tenho dúvidas de que os tempos de crise social aguda (como o que transitamos atualmente), ao mesmo tempo em que nos impõem tanto sofrimento, também nos obrigam a batalhar por mudanças – rompendo o comodismo –, a criar soluções para problemas novos, a redescobrirmos, individual e coletivamente, forças que pareciam mortas em nossa alma. Nessas épocas, hábitos e governos que pareciam sólidos desmoronam; atitudes e ideias frágeis, que existiam quase como um sonho, surgem potentes e irresistíveis, realizam-se na prática. A vida é isso mesmo: o que um dia foi forte, envelhece e morre; o que nasce frágil se fortalece e cresce dia após dia. Assim, ocorre com as sociedades; assim, ocorre com as gerações que se sucedem; assim, ocorre com as penas que se decretam e um dia terminam. Isso é válido até mesmo para uma pequenina folha que adentra em nossa casa, trazida pelo vento, quando esquecemos as janelas abertas.
58 “Não precisamos só do remendo, precisamos o casaco inteiro. Não precisamos de pedaços de pão, precisamos de pão verdadeiro. Não precisamos só do emprego, toda a fábrica precisamos”. Bertold Brecht, A canção do remendo e do casaco.
IGOR MENDES é graduando em geografia pela uerj, ativista político, escritor e botafoguense, não necessariamente nessa ordem. É um dos 23 processados, no Rio de Janeiro, por participar de manifestações durante a Copa do Mundo de 2014.