A Monstruosidade de Cristo [1 ed.]

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Slavoj Zizek

A Monstruosidade de Cristo Paradoxo ou Dialéctica? Tradução de M iguel Serras Pereira

Argumentos

G. K. C hesterton concluía «O O ráculo do Cão» com a defesa que o Padre B row n faz do senso com um da realidade: as coisas são sim ples­ m ente o que são, não portadoras de significações m ísticas, e o m ilagre da Encarnação de Cristo é a excepção que garante e sustenta essa realidade comum: As pessoas engolem de boa vontade afirmações sem provas disto, da­ quilo ou de outra coisa qualquer. É como um mar que avança e submerge todo o nosso velho racionalismo e cepticismo, é aquilo a que se chama su­ perstição. O primeiro efeito de não acreditarmos em Deus é perdermos o senso comum e deixarmos de ser capazes de ver as coisas como elas são. Qualquer coisa que qualquer pessoa diga, e declare coisa corrente, ganha uma extensão indefinida como um panorama de pesadelo. E um cão é um portento, e um gato é um mistério, e um porco é um emblema, e um esca­ ravelho é um deus, e temos de novo todo o jardim zoológico do politeís­ mo do Egipto e da velha índia; o Cão Anúbis e a Leoa Pachet e os clamo­ rosos Touros de Bashan; eis de regresso os deuses bestiais do início, que se confundem com elefantes e serpentes e crocodilos; e tudo isto, porque nos assustam as palavras que dizem: Ele fez-se Homem.1 Foi assim o seu cristianism o que fez com que C hesterton preferisse as explicações prosaicas a todos os recursos sum ários à m agia sobrenatural, com o vem os quando escreve as suas ficções policiais: a solução do rou­ bo de um a jó ia que se guardava fechada não é a telequinesia, m as a uti­ lização de um ím an potente ou de outro passe de prestidigitação; se um a pessoa desaparece inesperadam ente, deve existir um túnel secreto, e as­ sim por diante. É por isso que as explicações naturalistas são m ais m á­ gicas do que o recurso a um a intervenção sobrenatural: é m uito mais 1 G. K. Chesterton, The Complété Father Brown Stories, Ware, Wodsworth Editions, 2006, p. 394-395.

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«m ágica» a explicação fornecida pelo detective do ardil por m eio do qual o crim inoso consum ou o seu hom icídio num quarto fechado do que a afirm ação da sua capacidade sobrenatural de passar através das paredes! Sentim o-nos até tentados a dar um passo suplem entar e sugerir um a leitura diferente das últim as linhas de C hesterton — leitura sem dúvida não visada por Chesterton, mas em todo o caso ainda m ais próxim a de um a verdade desconcertante: quando as pessoas im aginam toda a espé­ cie de sentidos profundos porque as «assustam as palavras que dizem: Ele fez-se H om em », aquilo que na realidade receiam é perderem o Deus transcendente que garante o sentido do universo, D eus com o o senhor oculto que m ove os cordelinhos — em seu lugar encontram os um deus que abandona a sua posição transcendente e se precipita n a sua própria criação, com prom etendo-se com ela até à m orte, o que faz com que nós, seres hum anos, fiquem os sem qualquer Poder superior que olhe por nós, sem outra coisa que não seja o terrível fardo da liberdade e da responsa­ bilidade pelo destino da criação divina e, portanto, do próprio deus. Não continuarem os hoje a recear dem asiado assum ir todas as consequências dessas palavras? Não preferirão aqueles que se dizem «cristãos» guardar a im agem confortável de um Deus sentado lá em cim a, que observa b e­ nevolentem ente as nossas vidas, nos envia o seu filho com o sím bolo do seu am or, ou, ainda m ais confortavelm ente, com a simples im agem de um a F orça Superior im pessoal? O axiom a do presente ensaio é que só há um a filosofia que pensou até ao fim as consequências das quatro palavras: o idealism o de H egel — o que explica por que razão quase todos os filósofos se sentem igualmente assustados pelo idealism o absoluto de Hegel. O supremo argum ento anti-hegeliano é o facto da ruptura pós-hegeliana: nem o m ais fanático parti­ dário de H egel pode negar que algum a coisa m udou depois de Hegel, que se iniciou um a nova era do pensam ento da qual não é possível dar conta nos term os da m ediação conceptual absoluta de Hegel; trata-se de um a ruptura que ocorre de diferentes m aneiras — da afirm ação por parte de Schelling do abism o da Vontade pré-lógica (afirmação mais tarde vulga­ rizada por Schopenhauer) e da insistência de K ierkegaard na singularida­ de da fé e da subjectividade, passando pela afirm ação por M arx da efec­ tividade do processo vital em term os sociais e económ icos, e pela autonom ização com pleta das ciências naturais m atem atizadas, até ao m o­ tivo da «pulsão de m orte» com Freud, que vê nela um a repetição que in­ siste para além de toda a m ediação dialéctica. A lgum a coisa aqui aconte­ ceu, há um a ruptura clara entre um antes e um depois, e em bora se possa sustentar que H egel anuncia já essa ruptura, que é o últim o m etafísico

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idealista e o prim eiro historicista pós-m etafísico, não se pode de facto continuar a ser hegeliano depois de operada a ruptura em causa. O hege­ lianismo perdeu para sempre a sua inocencia. A gir hoje com o um hege­ liano é com o escrever m úsica tonal depois da revolução de Schoenberg. A estratégia hegeliana predom inante que em erge com o reacção a esta im agem de espantalho de H egel com o idealista absoluto é a im agem «re­ duzida» de um H egel desem baraçado de pressupostos ontológico-m etafísicos, lim itado ao ám bito de urna teoría geral do discurso, das possibilidades da argum entação. Esta perspectiva encontra a sua m elhor ilustração nos cham ados hegelianos de Pittsburgh (Brandom , M cDowell): não é de surpreender que Haberm as elogie B random , um a vez que ele próprio evita qualquer abordagem directa da «grande» questão onto­ lógica («serão REALMENTE os seres hum anos um a subespécie entre os anim ais, e será o darw inism o verdadeiro?»), a questão de Deus ou da N a­ tureza, do idealism o ou do m aterialism o. Seria fácil m ostrar que a es­ quiva neokantiana de Haberm as perante a tom ada de posição ontológica é, pelo seu lado, necessariam ente am bígua: em bora tratem o naturalism o com o o segredo obsceno que não deve ser publicam ente reconhecido («evidentem ente, o hom em desenvolveu-se a partir da natureza; eviden­ tem ente, D arw in tinha ra zão ...» ), este segredo obscuro é um a m entira, oculta a FORMA idealista do pensam ento (os transcendentais a priori da com unicação, que não podem ser deduzidos do existente natural). A ver­ dade está aqui na forma: tudo se passa com o no velho exem plo que M arx dá dos m onárquicos sob form a republicana, porque, em bora os haberm asianos pensem em segredo que são de facto m aterialistas, a verdade transparece na sua form a idealista de pensam ento. A im agem «reduzida» de Hegel não basta, e temos de abordar a ruptu­ ra pós-hegeliana em termos mais directos. É verdade que há um a ruptura, mas nesta ruptura, Hegel é o «m ediador desaparecido» entre o «antes» e o «depois», entre a m etafísica tradicional e o pensamento pós-m etafísico dos séculos XIX e XX. O que significa que acontece algum a coisa em Hegel, um a penetração num a dimensão única do pensam ento, que é obliterada, tom ada invisível na sua verdadeira dim ensão, pelo pensamento pós-metafísico. Esta obliteração deixa um espaço vazio que tem de ser preen­ chido a fim de que a continuidade do desenvolvimento da filosofia possa ser restabelecida — mas preenchido com quê? O indício desta obliteração é a imagem ridícula de Hegel como um «idealista absoluto» absurdo que «pretendia conhecer tudo», possuir o Saber Absoluto, ler no Espírito de Deus, deduzir a realidade com pleta do automovimento do (seu) Espírito — essa im agem que é um a ilustração perfeita daquilo a que Freud chamou

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um a Deck-Erinnerung (recordação ecrã), um a formação fantasm ática des­ tinada a encobrir um a verdade traumática. Neste sentido, a viragem pós-hegeliana em direcção à «realidade concreta, irredutível à mediação con­ ceptual», deveria ser lida sobretudo com o um a vingança póstum a desesperada da metafísica, um a tentativa de restauração da metafísica, em ­ bora sob a forma invertida do prim ado da realidade concreta. O outro argumento característico que se opõe à filosofia da religião de Hegel visa a sua estrutura teleológica: ela afirm a abertam ente o prim ado do cristianism o. O cristianism o com o a religião «verdadeira», o ponto fi­ nal do desenvolvim ento com pleto das religiões2. É fácil dem onstrar como a noção de «religiões m undiais», em bora inventada na Época Rom ântica durante o m ovim ento de abertura a outras religiões (não-europeias), propondo-se servir com o continente conceptual neutro que nos perm itiria conferir «dem ocraticam ente» igual dignidade espiritual a todas as «gran­ des» religiões (cristianism o, islão, hinduísm o, b udism o...), privilegia de facto o cristianismo: um relance breve basta para tom ar claro que o hin­ duísm o e especialm ente o budism o pura e sim plesmente não se adequam à ideia de «religião» im plícita na ideia de «religiões m undiais.» Todavia, que conclusão tirar daqui? Para um hegeliano, o facto nada tem de escan­ daloso: cada religião particular contém efectivam ente a sua própria ideia do que é a religião «em geral», pelo que não existe ideia universal neutra algum a de religião — cada um a dessas ideias é inflectida já no sentido de um a religião particular (colorida, hegem onizada por esta). O que, no en­ tanto, de modo nenhum acarreta um a desvalorização nominalista/historicista da universalidade; força-nos antes a passar da universalidade «abs­ tracta» à universalidade «concreta», ou seja, a analisar com o a passagem de um a religião particular a outra não é qualquer coisa que se refira so­ m ente ao particular, mas é sim ultaneam ente o «desenvolvim ento interior» da própria ideia universal, a sua «autodeterminação.» Os críticos pós-coloniais gostam de acusar o cristianism o pela sua «pureza» religiosa: o pretenso grau zero de norm alidade da religião «verdadeira», por referência à qual todas as outras religiões são varia­ ções ou distorções. Todavia, quando os ideólogos N ew Age actuais ino

Há um traço que pode fazer com que Hegel pareça pagão: para Hegel, a diferença en­ tre o cristianismo e as religiões «pagãs» pré-cristãs não é que as segundas sejam «falsas», que celebrem deuses ilusórios, ao passo que o deus cristão «existe realmente.» O desen­ volvimento das religiões desde o animismo primitivo, passando pelo politeísmo, até à úl­ tima tríade constituída pelo judaísmo, cristianismo e islão, é inerente à própria divinda­ de, é o autodesenvolvimento de Deus — uma ideia que, do ponto de vista do crente cristão, não pode deixar de parecer uma heresia, até mesmo uma blasfémia.

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sistem na diferença entre religião e espiritualidade (vêem -se a si m esm os com o ligados ao reino do espiritual, e não como partes de qualquer reli­ gião organizada), im põem silenciosam ente (e m uitas vezes não tão si­ lenciosam ente) um a via «pura» de m editação espiritual de tipo Z en, fa­ zendo dela a «pureza» da religião. A ideia é que todas as religiões pressupõem , assentam , exploram , m anipulam e assim por diante um m esm o núcleo de experiência m ística, e que só as form as «puras» de m e­ ditação do tipo das que encontram os no budism o Z en atingem directa­ m ente esse núcleo, dispensando as suas m ediações institucionais e dog­ m áticas. O facto de hoje a m editação espiritual, ao ser abstraída da religião institucionalizada, surgir com o o grau zero do núcleo da religião a salvo de distorções, assenta no facto de esse tipo de m editação ser a form a ideológica que m elhor se adapta ao capitalism o global actual.

O P ro b le m a d e C risto n a O r to d o x ia ... Não form arão as três principais versões do cristianism o um a espécie de tríade hegeliana? N a série ortodoxia, catolicism o e protestantism o cada novo term o é um a subdivisão, um a cisão de um a unidade anterior. Esta tríade do U niversal-Particular-Singular pode ser designada por três figu­ ras fundadoras que as representam (João, Pedro, Paulo), tal com o por três etnias (eslava, latina, germ ânica). N a O rtodoxia Oriental, tem os a unida­ de substancial do texto e do corpus dos crentes, e é por isso que os cren­ tes são autorizados a interpretar o Texto Sagrado, o Texto m ove-se e vive dentro deles, e não está fora da história viva com o um m odelo ou padrão independente — a substância da vida religiosa é a própria com unidade cristã. O catolicism o parte de um a alienação radical: a entidade que ope­ ra a m ediação entre o Texto fundador e sagrado e o corpus dos crentes, a Igreja, a Instituição Religiosa, readquire um a plena autonom ia. A autori­ dade superior reside na Igreja, e é por isso que à Igreja pertence o direito de interpretar o Texto; o Texto é lido durante a m issa em latim, um a lín­ gua que o com um dos crentes não com preendem , chegando a ser consi­ derado pecado a leitura directa do Texto levada a cabo por um simples crente, sem recurso à orientação sacerdotal. Para o protestantism o, final­ m ente, a única autoridade é o próprio Texto, e a parada consiste no con­ tacto directo por parte de cada crente com a Palavra de Deus tal com o o Texto a transm ite; o m ediador (o Particular) desaparece assim , reduz-se à insignificância, perm itindo ao crente adoptar a posição de um «Singular universal» — o indivíduo em contacto directo com a Universalidade di-

vina, dispensando o papel m ediador da Instituição particular. Esta recon­ ciliação, no entanto, só se tom a possível depois de a alienação ter sido le­ vada ao ponto extremo: em contraste com a ideia católica de um Deus atento e am ante com o qual podem os comunicar, e até m esm o negociar, o protestantism o parte da ideia de um Deus desprovido de qualquer «m e­ dida comum» que partilhe com o hom em , um Deus que é um Além im ­ penetrável, distribuindo a graça de m aneira totalm ente contingente. A divisão doutrinal fundam ental entre a O rtodoxia e o cristianism o ocidental (catolicism o e protestantism o) refere-se à procedência do E s­ pírito Santo: para os latinos, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, enquanto, para os ortodoxos, procede som ente do Pai. Por com paração com esta perspectiva da «m onarquia do Pai» enquanto fonte única das três «hipóstases» divinas (Pai, Filho, Espírito Santo), a ideia latina de um a dupla procedência introduz no interior de Deus um a lógica de rela­ ções inteiram ente racional: o Pai e o Filho são concebidos com o m an­ tendo um com o outro um a relação de oposição, e o Espírito Santo sur­ ge por conseguinte com o a sua reunião, NÃO propriam ente com o um a nova, terceira, Pessoa. Não tem os assim um a autêntica Trindade, mas um regresso da Díade ao U no, um a reabsorção da díade no interior do Uno. Deste m odo, um a vez que o princípio de uma exclusiva «m onarquia do Pai» é abandonado, a única m aneira de pensar a U nidade da tríade divi­ na consiste em despersonalizá-la, e por isso, no fim , chegam os ao Uno im pessoal, o Deus dos filósofos, da sua «teologia natural»3. A propósito desta controversa questão da origem do Espírito Santo, H egel incorreu num lapso significativo: o engano consistiu em afirm ar que, segundo a O rtodoxia, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, e para o cristianism o ocidental DO FILHO SOMENTE (da R essurreição de Cristo no interior da com unidade dos crentes); com o H egel escreve, a di­ vergência entre o Oriente e o Ocidente refere-se à questão de saber se o Espírito Santo procede do Filho, ou do Pai e do Filho, não sendo o Filho senão aquele que actualiza, que revela — assim só dele procedendo o Espírito.4

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Cf. Vladimir Lossky, In the Image and Likeness ofGod, Crestwood, St Vladimir's Seminary Press, 2001. Não adoptará aqui Lossky um ponto de vista demasiado limitado, ignorando o misticismo característico da espiritualidade católica? O Deus de Santa Tere­ sa definitivamente NÃO é o «Deus dos filósofos.» 4 G.W.F. Hegel, Lectures on the Philosophy o f Religión, III, Berkeley, University of Ca­ lifornia Press, 1987, p. 84.

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Para H egel, não é deste m odo sequer pensável que o Espirito Santo proceda som ente do Pai — e a nossa tese é que há um a verdade que se acoita neste lapso. A prem issa subjacente de H egel é que na C ruz não m orre apenas a representação-encam ada terrena de D eus, m as o próprio Deus do Além: Cristo é o «m ediador que desaparece» entre o D eus-em -Si-m esm o transcendente e substancial e Deus enquanto com unidade es­ piritual virtual. E sta «passagem do sujeito para o predicado» é evitada pela ortodoxia na qual Deus-Pai continua a ser quem m ove os cordéis, não se integrando efectivam ente no processo. A ortodoxia dá conta da Trindade das Pessoas divinas estabelecendo um a «diferença real» no próprio Deus: a diferença entre essência (ousia) e as suas «hipóstases» pessoais. Deus é uno quanto à essência, e triplo quanto à personalidade; todavia, as três Pessoas não estão sim plesm en­ te unidas na unidade substancial da essência divina, m as são unidas tam ­ bém pela «m onarquia do Pai» que, enquanto pessoa, é a origem das outras duas hipóstases. O Pai enquanto Pessoa não coincide com ple­ tam ente com a sua «essência», um a vez que pode partilhá-la (com unicá-la) com as duas outras Pessoas, pelo que as três são consubstanciais: ca­ da um a das pessoas divinas inclui em si própria a totalidade da natureza/substância divina, e esta substância não se divide em três par­ tes. E sta distinção entre a essência e as suas hipóstases é decisiva para a ideia ortodoxa da pessoa hum ana, um a vez que intervém tam bém no universo criado/caído. A pessoa não é a m esm a coisa que o indivíduo: com o «indivíduo», sou definido pela m inha natureza particular, pelas m inhas propriedades naturais, as m inhas qualidades corporais e psíqui­ cas. Sou aqui parte da realidade substancial, e sou o que sou a expensas dos outros, reclam ando o m eu quinhão de realidade. M as não é isso que faz de m im um a Pessoa única, o abism o insondável de «m im próprio». P or m ais que observe as m inhas propriedades, incluindo as m ais espiri­ tuais, nunca encontrarei um traço que faça de m im um a pessoa: «pessoa» significa a irredutibilidade do hom em à sua natureza — «irredutibilidade» e não «algum a coisa de irredutível» ou «algum a coisa que torna o hom em irredutível à sua natureza», precisam ente porque não pode tratar-se aqui de «algum a coisa» de distinto de «um a outra nature­ za», mas se trata de alguém que é distinto da sua própria natureza.5 5 Lossky, op. cit., p. 120.

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Só este vazio insondável dá conta da m inha liberdade, do m esm o m odo que da m inha singularidade única que m e distingue de todos os outros: o que m e distingue não são as m inhas idiossincrasias pessoais, os caprichos da m inha natureza particular, m as o abism o da m inha personalidade — e é por isso, é som ente no interior do E spírito S an ­ to, com o m em bro do corpo da Igreja, que posso alcançar a m inha sin ­ gularidade. E deste m odo que o hom em é feito «à im agem e sem e­ lh ança de D eus»: para além de todos os tem as enganadores das qualidades superiores ou até m esm o divinas do espírito hum ano, do ser hum ano enquanto cópia deficiente da divindade, da substância f i­ nita do hom em enquanto cópia da substância infinita divina, das an a­ logias do ser, e assim por diante, é só ao nível da pessoa, enquanto p essoa, enquanto abism o para além de todas as propriedades, que o hom em é «à im agem de D eus» — o que significa que o próprio D eus tem de ser tam bém não só um a substância essencial, m as tam bém um a pessoa*. L ossky associa esta distinção entre natureza (hum ana) e pessoa à dualidade do F ilho e do E spírito Santo, da redenção e da deificação: «A obra redentora do Filho liga-se à nossa natureza. A obra deificadora do E spírito Santo refere-se às nossas pessoas.»6 A dotação divina da h u ­ m anidade tem dois aspectos, negativo e positivo. O sacrifício de C ris­ to é só a pré-condição da nossa deificação: m uda a nossa natureza abrindo-a para a graça e tornando-a capaz de buscar a deificação. Em C risto, «Deus fez-se hom em Ele m esm o, para que o hom em pudesse tornar-se D eus»7, e assim «a obra redentora de C risto [...] m ostra-se directam ente ligada ao fim últim o das criaturas: conhecer a união com D eus»8. E nquanto tal, o sacrifício de C risto fornece apenas um a pré-condição do fim últim o, que é a deificação da hum anidade: «a ideia da nossa deificação últim a não pode exprim ir-se som ente num a base cristológica, m as requer do m esm o m odo um desenvolvim ento pneum atológico»9. A ortodoxia priva assim C risto do seu papel central, um a vez que a perspectiva final é a da deificação (devir-D eus) do hom em : o h o ­ m em pode tornar-se através da graça aquilo que deus é por natureza. E O duplo «também» destina-se a restituir aqui o duplo also do original inglês; não se de­ ve a um lapso: which means that God himself must also be not only an essential substance, but also a person. (TV. T.) 6 Op. cit., p. 109.

7 Santo Ireneu. citado por Lossky, op. cit.. p. 97. 8 Lossky, op. cit.. p. 97. 9 Op. cit., p. 103.

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p or isso que a «adoração da hum anidade de C risto é quase estranha à piedade o rtodoxa»10. De um ponto de vista cristão rigoroso, a reversão sim étrica da ortodo­ xia (Deus torna-se hom em e assim o hom em pode tornar-se Deus) falha o sentido da Encarnação: quando Deus se tom a hom em , não há um Deus a que possam os regressar ou em que possam os tornar-nos — e devería­ m os assim parafrasear as palavras de Ireneu: «Deus fez-se Ele m esm o hom em , para que o hom em pudesse tornar-se o Deus que se fe z Ele m es­ mo homem.» O sentido da Encarnação é que não podem os tornar-nos Deus — não porque Deus habita um A lém transcendente, mas porque Deus m orreu, e assim toda a ideia de aproxim ação visando o Deus trans­ cendente se torna irrelevante, a única identificação é a identificação com Cristo. Do ponto de vista ortodoxo, todavia, a «teologia exclusivam ente jurídica» do cristianism o ocidental falha o verdadeiro sentido do próprio sacrifício de Cristo, ao reduzi-lo à dim ensão jurídica de «pagam ento p e­ los nossos pecados»: «Ao entrar na realidade do m undo da queda, Ele quebrou o poder do pecado no interior da nossa natureza, e pela Sua m orte, que m anifesta o grau supremo do seu ingresso no nosso estado de queda, Ele triunfou sobre a m orte e sobre a corrupção.»11 A m ensagem do sacrifício de Cristo é «a vitória sobre a m orte, os prim eiros frutos da ressurreição geral, a libertação da natureza hum ana do cativeiro sob o diabo, e não só a justificação, m as tam bém a restauração da criação em C risto»12. Cristo quebra o dom ínio da natureza (caída) sobre nós, crian­ do assim as condições da nossa deificação; o seu gesto é negativo (rup­ tura com a natureza, superação da m orte), enquanto o lado positivo é as­ segurado pelo Espírito Santo. Por outras palavras, a fórm ula «C risto é o nosso Rei» deve ser tom ada no sentido hegeliano do m onarca com o ex­ cepção: o que os hum anos são pela graça, Ele é-o por N atureza — ser do acordo perfeito entre Ser e Dever-ser. O facto prim ordial é a U nidade de essência/substância e a Trindade das pessoas em D eus — esta Trindade não é deduzida e relacional, m as um m istério original insondável, no que contrasta claram ente com o D eus dos filósofos, que O vêem na sim plicidade prim ordial da C ausa. As antinom ias que há na nossa percepção de D eus devem sem m anti­ das, e D eus perm anece assim objecto de contem plação assom brada

10 Op. cit., p. 105. 1 * Op. cit., p. 104. 12 Op. cit., p. 102.

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dos seus m istérios, em vez de um objecto de análises racionalistas. A oposição entre a teologia positiva e a teologia negativa funda-se assim no próprio D eus, na distinção real que há em D eus entre a essência e as operações divinas de energia (a econom ia divina): «Se as energias descem em direcção a nós, a essência m antém -se absolutam ente in a­ cessív el.» 13 O m odo fundam ental desta descida da energia divina é a graça: Precisamente porque Deus é incognoscível naquilo que é, a teologia ortodoxa distingue entre a essência de Deus e as Suas energias, entre a natureza inacessível da Trindade Santa e as suas “procedências natu­ rais” . [...] A Bíblia, com a sua linguagem concreta, fala simplesmente de «energias» quando nos fala da «glória de Deus» — uma glória com inu­ meráveis nomes que rodeia o inacessível Ser de Deus, tornando-0 co­ nhecido fora de Si mesmo, embora escondendo o que Ele é em Si mes­ mo. [...] E quando falamos das energias divinas em relação aos seres humanos aos quais são comunicadas e dadas e pelos quais são apropria­ das, a esta realidade divina e incriada dentro de nós chamamos Graça.14 Esta distinção entre a essência incognoscível da Trindade e as suas «m anifestações energéticas» no exterior da essência corresponde à opo­ sição hegeliana entre Em -si e Para-nós: Independentemente da existência de criaturas, a Trindade manifesta-se na radiância da sua glória. Desde toda a eternidade, o Pai é «o Pai da gló­ ria», o Verbo é «o brilho da Sua glória», e o Espírito Santo é «o Espírito da glória.»15 Todavia, do ponto de vista hegeliano estrito, este lance é duplam ente problem ático: não será a própria essência do Filho perm itir a Deus m anifestar-se a Si m esm o e intervir na história hum ana? E , m ais ainda, não será o Espírito Santo a «personalidade» da própria com unidade, a sua substância espiritual? Lossky tem consciência do problem a: Se [...] o nome «Espírito Santo» exprime mais uma economia divina do que uma qualidade pessoal, é porque a Terceira Hipóstase é por exceS. Basílio, citado por Lossky, op. cit., p. 54. 14 Lossky, op. cit., pp. 89-90. 15 Op. cit., p. 94.

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lência a hipóstase da manifestação, a Pessoa na qual conhecemos Deus en­ quanto Trindade. A Sua Pessoa é-nos ocultada pela própria profusão da Divindade que Ele manifesta.16 O que permanece impensável nos termos desta perspectiva é o pleno en­ volvimento de Deus na história humana que culmina na figura do «Deus que sofre»: num a perspectiva propriamente cristã, este é o verdadeiro senti­ do da Trindade divina: a manifestação de Deus na história humana é parte da Sua própria essência. Deste m odo, Deus deixa de ser um monarca que habita eternamente ,na Sua transcendência absoluta — a própria diferença entre a essência etem a e a sua manifestação (a «economia» divina) deve de­ saparecer. O que encontramos na ortodoxia em vez deste pleno envolvi­ mento divino, em vez do Deus que vai até ao fim e se sacrifica a si mesmo pela redenção dos humanos, em vez da ideia da história da redenção hum a­ na como um a história na qual é decidido o destino do próprio Deus, é um Deus que reside na sua Trindade para além de toda a história e de toda a compreensão humanas, e na qual a Encarnação em Cristo enquanto plena­ mente ser humano mortal e o estabelecimento do Espírito Santo enquanto comunidade de crentes são apenas um eco, uma espécie de cópia platónica, da «etema» Trindade-em-si-mesma sem ligação com a história humana. A questão fundamental aqui é: com o se relaciona a distinção entre a es­ sência e a sua m anifestação (energia, economia) com a distinção entre a essência (enquanto natureza substancial) e a pessoa, entre a ousia e a hi­ póstase (em hegelês, com a distinção entre a substância e o sujeito)? O que a ortodoxia é incapaz de fazer é de identificar estas duas distinções: Deus é um a Pessoa precisam ente e só no Seu modo de m anifestação. A li­ ção da Encarnação Cristã (Deus tom a-se hom em ) é que falar das Pessoas divinas fora da Encarnação não tem sentido, não passa quando muito de um a rem iniscência do politeísm o pagão. É certo que a Bíblia diz: «Deus enviou e sacrificou o seu único Filho» — m as a m aneira correcta de o ler­ mos é: o Filho não estava presente em Deus antes da Encarnação, aí sen­ tado ao Seu lado. A Encarnação é o nascim ento de Cristo, e depois da sua m orte, não há Pai nem Filho, mas «só» o Espírito Santo, a substância es­ piritual da com unidade religiosa. Só neste sentido é o Espírito Santo a «síntese» do Pai e do Filho, da Substância e do Sujeito: Cristo representa o intervalo da negatividade, a singularidade subjectiva, e no Espírito San­ to a substância «renasceu» enquanto com unidade virtual de sujeitos sin­ gulares, persistindo somente no interior e através da sua actividade. 16 Op. cit., p. 92.

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A ortodoxia perde assim de vista o facto central do cristianism o, a al­ teração do equilíbrio global do universo que a Encarnação implica: a ideia de «deificação» do hom em pressupõe o Pai com o o ponto central de referência ao qual/a quem o hom em deve regressar — a ideia de Hegel segundo a qual o que m orre na cruz é o próprio Deus do além é aqui im pensável. E a ironia suprem a é que Lossky escreveu um a análise m i­ nuciosa de M eister Eckhart, em bora a sua ortodoxia seja decididam ente oposta à doutrina fundam ental de Eckhart: a ex-centricidade do próprio D eus, que explica que o próprio D eus tenha necessidade do hom em a fim de chegar a si m esm o, de se alcançar a si m esm o, de se actualizar a si m esm o, e que assim D eus tenha nascido do hom em e que o hom em seja a causa de Deus. O que os une é todavia a recusa (ou incapacidade) de aceitarem a ple­ na hum anidade de Cristo: ambos reduzem Cristo a um ser etéreo estra­ nho à realidade terrena. A lém disso, o que têm em com um Lossky e E c­ khart é a insistência na via negativa, a aproxim ação de Deus através da negação de todos os predicados que nos sejam acessíveis e, consequen­ tem ente, a afirm ação da sua transcendência absoluta.

... e e m M e is te r E c k h a r t O que tom a M eister Eckhart tão insuportável para toda a teologia tra­ dicional é que, na sua obra, «é feito em pedaços o dualism o mais funda­ m ental, o dualism o entre Deus e a sua criatura, o si-próprio, o “eu”» 17. Esta ruptura do dualism o deve ser literalm ente entendida, para além das banalidades sobre o Deus que se tom a hom em , e assim por diante: não se trata sim plesm ente de Deus dar origem — criar — o hom em , nem sim­ plesm ente de só através do hom em e no hom em , Deus se tom ar plena­ m ente Deus; muito m ais radicalm ente, é o próprio hom em que dá origem a D eus. Deus não é nada fora do hom em — em bora este nada não seja um simples nada, mas o abism o da Divindade antes de D eus, e neste abism o, a própria diferença entre Deus e o hom em seja aniquilada-obliterada. D e­ vem os ser extrem am ente precisos aqui, no que se refere a esta oposição entre Deus e Divindade: não se trata da oposição entre dois tipos/espécies, m as entre Deus enquanto A lgum a Coisa e D ivindade enquanto Nada:

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David Appelbaum, «Foreword», in Reiner Schurmann, Wandering Joy, Great Barrington, Lindisfarne Books, 2001, p. IX.

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Falamos habitualmente de Deus por oposição ao «mundo» ou ao «ho­ mem»: «Deus» opõe-se a «não-Deus». Na Divindade toda a oposição se apaga.18

E m term os kantianos, a relação entre Deus e a D ivindade im plica o ju ízo indefinido (e não negativo): não se trata de a D ivindade «não ser D eus» — m as é que a D ivindade é um não-D eus, um «Indeus» (no m es­ m o sentido em que poderíam os cham ar «indefunto» ao que não está vi­ vo nem m orto, mas m orto vivo). Tal não significa que a assim etria entre Deus e o hom em seja abolida, que am bos se encontrem ao m esm o nível perante o abism o «im pessoal» da Divindade: no entanto, da sua assim e­ tria decorre um ponto fundam ental — é D eus que tem necessidade do hom em para chegar a Si m esm o, para nascer enquanto Deus: Deus tem uma necessidade de nos buscar tal, que é justamente como se a sua Divindade dependesse disso, como de facto depende. Deus não po­ de dispensar-nos do mesmo modo que nós não podemos dispensá-lo. Ain­ da que fosse possível que nos afastássemos de Deus, Deus nunca poderia afastar-se de nós.19

O que isto significa é que, do m esm o m odo que, para H eidegger, o ser hum ano é D asein, o «aí» do próprio Ser, o (único) lugar da sua revela­ ção, para Eckhart, eu sou o único «aí» (lugar) de Deus: No meu [eterno] nascimento nasceram todas as coisas, e eu fui causa de mim mesmo bem como de todas as coisas. Se o tivesse querido, nem eu nem todas as coisas seriam. E se eu mesmo não fosse, também Deus não seria: que Deus seja Deus. disso sou eu a causa. Se eu não fosse, Deus não seria Deus. Não há, todavia, necessidade alguma de se entender isto.20

(Observe-se a reserva final!) Ou, nos termos em que Reiner Schurmann recapitula concisamente a tese de Eckhart: «Não reflicto Deus, não o repro­ duzo, declaro-o.»21 («Declaro», evidentemente, mantém aqui toda a sua for­ ça performativa.) O que este paradoxo implica é a intuição fundamental de Eckhart: «enquanto o nosso ser [humano] tem um centro fora de si mesmo,

18 Schurmann, op. cit., p. 70. 19 Op. cit., p. 56. 20 Op. cit., p. 215. 21 Op. cit., p. 113.

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em Deus, Deus [o ser de Deus] tem também um a excentricidade correspon­ dente»22. Isto significa que o carácter excêntrico do homem, o facto de ele ter o seu Centro fora de si mesmo, em Deus, não deve ser compreendido co­ mo a relação entre um a substância perfeita/incriada e um a substância imper­ feita/criada, entre o Sol e os seus planetas que circulam em seu redor; esta excentricidade des-centra o próprio Deus, e é por referência a esta Alteridade (Divindade) dentro do próprio Deus que o homem e Deus se relacionam: o próprio Deus só pode entrar em relação consigo mesmo através do homem, e é por isso que a «diferença entre Deus e não-Deus é um a fissura que cinde o mais fundo do homem»23. As duas cisões sobrepõem-se, portanto: o ho­ mem é excêntrico em relação a Deus, mas o próprio Deus é excêntrico em relação ao seu próprio fundamento, o abismo da Divindade, e é só através da separação do hom em entre todas as criaturas que o próprio Deus chega a si mesmo: «não só a graça faz com que o Filho nasça dentro de nós na sua di­ vindade, mas o ser humano engendra também o Filho no interior de Deus»24. Um a vez mais, toma-se decisivo observar a assimetria que aqui en­ contramos: na medida em que consideremos Deus e o homem como duas substâncias, a perfeita-infinita-incriada e a imperfeita-finita-criada, não pode haver relação de identidade entre as duas, somente um a relação externa (de analogia, de causa e efeito ...); é só por referência à Divindade, ao «não-deus» [Unding]* em Deus, que o homem pode ser idêntico a Deus. Há, todavia, um a am biguidade decisiva (e, talvez, estruturalmente ne­ cessária) em Eckhart no que se refere ao nascim ento de Deus dentro do hom em — para a form ularm os em termos brutalm ente simplificados: quem /o quê tem origem aqui, Deus ou a D ivindade? R egressará Deus, através do «abandono» (Gelassenheit) do homem**, ao vazio da Divinda-

22 Op.cit., p. XIII. 23 Op. cit., p. 85. 24 Op. cit.. p. 26. :fc Unding, literalmente «não-coisa.» Traduzido, por vezes, também por «não-entidade».. É usado mais correntemente para significar «absurdo», «quimera», «contra-senso», «im­ possibilidade»... (N. T.). O termo alemão é, muitas vezes, sobretudo quando remete para a filosofia de Heidegger, traduzido por «serenidade» (significando «igualdade da alma perante as coisas» que acontecem, «abertura de espírito ao secreto» e caracterizando uma maneira de estar-ser no mundo, oposta à que tem, em termos de pensamento, no «calculável» o seu cri­ tério e paradigma). Mas, embora Heidegger vá buscar a Eckhart a sua Gelassenheit, es­ ta em Eckhart, não deixando de incluir a «serenidade», deixa traduzir-se por «abandono» (no sentido de deixar-ser aquiescente, entrega, entrega confiante, etc.), opção que a pre­ sente tradução adopta por corresponder melhor do que «serenidade» ao releasement pro­ posto por S. Z. para traduzir a palavra para o inglês. (N. T.)

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de, ou terá o Verbo-Deus nascido do abism o da D ivindade? Com parem -se estas duas passagens da m esm a página do livro de Schurmann: — A glória de Deus é que o homem «irrompe» para além do Criador. Portanto o Filho nasceu no coração do Pai. e o homem encontra o seu Deus, a D ivindade.25 — Deus nada é enquanto falta ao homem a irrupção na Divindade. Se não consentirmos no abandono, Deus perderá a sua Divindade, e o homem perder-se-á a si m esm o.26

De que se trata, então? Para elucidarm os este ponto do qual tudo de­ pende, devem os inquirir de m ais perto o que entende efectivam ente Eckhart por D eus e Divindade. A sua relação não é a que existe entre Substância e Sujeito, ou seja, não é que a D ivindade seja a substância/na­ tureza caótica im pessoal e Deus um a Pessoa: Deus é a (única) Coisa, ein D inc, é «tudo o que é». Eis o que explica a estranha leitura que Eckhart propõe do sentido em que Deus sofreu por nós: a única pobreza de espírito é a de concebermos tão claramente Deus e todas as nossas obras que quando Deus quer agir no nosso espírito, ele mesmo é o lugar onde quer agir — e assim lhe apraz fazer. Porque quan­ do Deus encontra esta pobreza no homem, opera a sua própria obra e o ho­ mem sofre Deus nele, e o próprio Deus é o lugar da operação, uma vez que Deus é um agente que age no interior de si m esm o.27 [...] quem sofre sem se prender ao seu sofrimento tem Deus a suportar o seu fardo, tornando-o ligeiro e brando para si. Desprendermo-nos da nossa própria dor significa não a considerarmos nossa, mas assumida pe­ lo próprio D eus.28 O ser humano que seja um a «esposa» devolve a Deus o sofrimento que lhe adveio.29 A radicalidade desta reinterpretação do sofrim ento de Deus por nós é inédita. Deus (não a D ivindade) deve ser apreendido com o o deus sive natura espinosiano: um a Substância na qual têm lugar toda a actividade

25 Op. cit., p. 80. 26 Op. cit.. ibid. 27 Op. cit., p. 214. 28 Op. cit., p. 40. 29 Ibid.

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e passividade, todo o criar e ser-criado, toda a alegria e sofrim ento, todo o amor, angústia e m edo. Com o tal, ao contrário da aparência enganado­ ra engendrada pela palavra «D eus», D eus N Ã O é um a pessoa, ainda que lhe possam os atribuir sentim entos e desejos. N ão há liberdade nele, nem escolha, som ente necessidade — D eus enquanto C riador faz o que tem de fazer. Portanto é Deus, e não a D ivindade, que/quem é a substância im pessoal. E Deus só alcança a D ivindade, só a actualiza, no hom em e através do hom em . M as — e aqui surge a verdadeira ruptura de Eckhart, o m ovimento que nele aponta para além de Espinosa para o idealism o alemão — isto não é «tudo o que é»: o que reside no exterior da Substância é o próprio N ada, a D ivindade enquanto abismo da Unding. Não há, em Eckhart, um a pala­ vra acerca do sofrim ento divino com o preço que Deus pague pelos nossos pecados, acerca de todo esse aspecto judicial e penal dos Passos da Cruz. E sim plesmente que, um a vez que Deus é (não com o Tomás de A quino e Co. pensaram , a Substância Suprem a, m as) a única Substância, tudo, to­ das as criaturas e as suas relações, tom am lugar nele. A ssim , quando, atra­ vés do abandono, nos desprendem os da nossa condição de criaturas, da realidade da queda, e nos identificam os com o abismo da Divindade, dei­ xamos de sofrer, todo o sofrim ento perm anece onde sempre esteve, na Substância divina, mas é sim plesm ente que nós já aí não estam os. D esta ideia de Deus enquanto substância apanhada na sua própria ne­ cessidade, Eckhart extrai a conclusão radical que é inevitável: não há na­ da por que devam os estar gratos a Deus: «N unca agradecerei a Deus que ele m e am e, porque ele não pode fazer de outra m aneira, quer o deseje ou não; a sua natureza força-o a tanto.»30 U m a vez que D eus é sim ples­ m ente um a coisa (dinc), não só não tenho por que lhe pedir ou solicitar coisa algum a, m as na m edida em que regresso à pobreza original do abism o que sou, posso até ordenar-lha: «O hom em hum ilde não solicita (bitten) coisa algum a [de D eus], m as pode na verdade ordenar-lha (gebieten).»31 Q uando E ckhart escreve que quem queira receber Jesus deve tom ar-se livre de todas as representações «tal com o era quando ainda não era», antes do seu nascim ento na terra, está, evidentem ente, a referir-se a P la­ tão, à ideia platónica da alm a anterior à sua residência corporal; todavia, ao contrário de Platão, esta preexistência não im plica um a alm a que, in­ contam inada pelas im agens das coisas sensoriais, contem pla ideias eter30 Op. cit., p. 115. 31 Op. cit., p. 117.

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nas, m as antes um a alm a que se purifica a si m esm a de todas as «coisas», incluindo nestas as ideias (e o próprio D eus enquanto Coisa) — antes um a espécie de tabula rasa, receptivam ente vazia. Só neste estado de pu­ ra receptividade que nada é em si m esm o e pode ser assim potencial­ m ente (lugar de) todas as coisas, sou verdadeiram ente livre, ledic, «vir­ gem » de todas as im agens. É assim que Eckhart interpreta a virgindade de M aria: só um a virgem (um a alm a purificada de todas as coisas que são criaturas) está aberta a receber/conceber (empfangen) e fazer portan­ to nascer o Verbo-Jesus. Para introduzirm os aqui m ais um a distinção, a liberdade é para Eckhart tanto «liberdade de» com o «liberdade para»; li­ berdade de todas as im agens de criaturas e, por isso, liberdade para con­ ceber e fazer nascer Deus: « [...] estava cheio de nada com o um a m ulher de um a criança. N esse nada D eus nasceu. Foi o fruto do nada. Deus nas­ ceu no interior do nada»32. H á assim um a liberdade que não é sim plesm ente a «necessidade con­ cebida» espinosiana: quando m e reúno ao abism o da D ivindade, tom o-m e livre. A qui, no entanto, chegam os ao fundo do problem a: que rela­ ção h á entre os dois N adas, o abism o da D ivindade, a O rigem -Fonte de todas as coisas, e o abism o da pobreza do hom em ? A ssim quando Schurm ann escreve que, no desprendim ento, «a nuda essentia anim ae se une à nuda essentia dei»33, com o devem os entender esta afirm ação? D eve­ rem os identificar sim plesm ente os dois vazios? A assim etria é aqui cla­ ra: se os identificarm os, então um deles — o abism o da D ivindade, o N a­ da no N ão-D eus — terá prioridade, e o que acontece no desprendim ento é que, realizando a «pobreza» suprem a, o hom em se une ao abism o di­ vino. Com o pensarem os, pois, a diferença entre os dois abism os? Só o poderem os fazer distinguindo entre o N ada do abism o prim ordial («D i­ vindade») e o N ada do m ovim ento prim ordial de contracção (aquilo a que Schelling cham ava Zusam m enziehung), o m ovim ento do egotism o suprem o, da retirada da realidade e da redução de nós m esm os a um Si m esm o pontual. (Na tradição m ística, foi Jakob Bõhm e quem deu este decisivo passo em frente.) Este refúgio-em -si-m esm o é a form a prim or­ dial do M al, pelo que podem os dizer que Eckhart ainda não é capaz de pensar o aspecto de M al do divino. E há um a necessidade nesta passa­ gem do N ada enquanto abism o da D ivindade ao N ada com o vazio do Si m esm o, que é a necessidade da passagem da potencialidade à actualida­ de: o mundo divino é pura potencialidade, que só se pode actualizar sob 32 Op. cit., p. 123. 33 Op. cit., p. 162.

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a fo rm a da pontualidade do M al — e fazer nascer o Verbo-Filho é a via de passar além desse M al. A este aspecto liga-se um a outra incapacidade de Eckhart, a incapaci­ dade de pensar o encontro com um a C oisa que não seja sim plesm ente o encontro com um a substância/objecto criada. N este sentido preciso, E c­ khart falha efectivam ente «o traço central da tradição judaico-cristã, na qual o encontro do hom em com a divindade não é o resultado de um re­ fúgio na profundidade do meu Si m esm o interior e a realização conse­ quente da identidade do núcleo do Si m esm o e do núcleo da D ivindade (atman — brahaman no hinduísm o, etc.). É aqui que assenta a tese irre­ sistível de um laço íntim o entre o judaísm o e a psicanálise: nos dois ca­ sos, a tónica fundam ental insiste no encontro traum ático com o abismo do Outro desejante — o encontro do povo judeu com o seu Deus cujo C ham am ento im penetrável faz sair dos trilhos costum ados da rotina a existência hum ana desperta; o encontro da criança com o enigm a da jouissance do Outro. Este traço parece distinguir o «paradigm a» judaico-psicanalítico não só de qualquer versão do paganism o e do gnosticism o (com a sua insistência na autopurificação espiritual interior, na virtude com o realização das nossas potencialidades m ais íntim as), mas não m e­ nos tam bém do cristianism o — ou não «superará» este últim o a Alteridade do Deus judaico através do princípio do Am or, da reconciliação/uni­ ficação de D eus e do Hom em no devir-hom em de D eus? Quanto à distinção fundam ental entre o paganism o e a ruptura judaica, assenta em bases precisas: o paganism o e o gnosticism o (a re-inscrição da posição judaico-cristã no paganism o) sublinham a «jornada interior» da autopu­ rificação espiritual, o regresso ao Si m esm o interior, a «redescoberta» de si m esm o, num contraste claro com a ideia judaico-cristã de um encontro traum ático com o exterior (o C ham am ento divino para o povo judeu, o cham am ento que Deus dirige a A braão, a G raça insondável — sendo tu­ do isto totalm ente incom patível com as nossas qualidades «inerentes», ou até m esm o com a nossa ética «natural» inata). K ierkegaard tem razão neste ponto: estam os perante Sócrates contra Jesus, a jornada interior da rem iniscência contra o renascim ento através do choque de um encontro com o exterior. E aqui que reside tam bém o fosso últim o que separa d e­ finitivam ente Freud de Jung: enquanto a intuição original de Freud se re ­ fere ao encontro traum ático e no exterior da C oisa que encarna a jo u is­ sance, Jung re-inscreve o tem a do inconsciente na problem ática gnóstica canónica da jornada espiritual interior da autodescoberta. C om o cristianism o, no entanto, as coisas com plicam -se. N a sua «teo­ ria geral da sedução», Jean Laplanche proporcionou-nos a form ulação

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m ais consum ada do encontro com a A lteridade insondável enquanto fac­ to fundam ental da experiência psicanalítica34. No entanto, é o próprio Laplanche que insiste aqui na absoluta necessidade da passagem do enigm a de ao enigm a em — clara variação em tom o da célebre fórm ula de H egel quando nos diz da Esfinge que «Os enigm as dos egípcios anti­ gos eram enigm as tam bém para os próprios egípcios»: quando falamos, para retomarmos os termos de Freud, do enigma da feminidade (o que é a mulher?), proponho com Freud passar à função do enigma na feminidade (o que quer uma mulher?). Do mesmo modo (mas Freud não procede a este movimento), aquilo a que ele chama o enigma do tabu remete para a função do enigma no tabu. E mais ainda, sempre do mesmo modo, o enigma do luto remete-nos para a função do enigma no luto: o que quer a pessoa morta? O que quer ela de mim? O que quer dizer-me? O enigma remete-nos, portanto, para a alteridade do outro; e a alterida­ de do outro é a sua resposta ao seu inconsciente, quer dizer, à sua alteri­ dade para si mesmo.35

N ã o será. à e c \s\\o lam b ém pTOceàemvos a este moNimswto açto çó sv to da noção de D eus obscuro, do Deus evasivo e im penetrável — esse Deus im penetrável para m im e para Si m esm o? N ão terá de ter um lado obscuro, um a alteridade interior a Si m esm o, qualquer coisa que é em Si m esm o m ais do que Si m esm o? Talvez tenham os aqui um a explicação da passagem do judaísm o ao cristianism o: o judaísm o m antém -se ao nível do enigm a DE D eus, enquanto o cristianism o passa ao enigm a EM Deus. L onge de se oporem à ideia do logos enquanto R evelação no e através do Verbo, a Revelação e o enigm a em Deus são estritam ente correlati­ vos, dois aspectos de um e m esm o m ovim ento. O que significa que é pre­ cisam ente porque D eus é um enigm a tam bém em e para si m esm o, por­ que tem um a alteridade insondável no interior de Si m esm o, que Cristo teve de em ergir para revelar D eus não só à hum anidade, m as ao próprio D eu s: é só através de Cristo que Deus se actualiza plenam ente enquanto D eus. N a m esm a ordem de ideias, deveríam os tam bém opor-nos à tese em voga segundo a qual a nossa intolerância perante o Outro (étnico, se­ xual, religioso) exterior é a expressão de um a supostam ente «m ais pro­ 34 Jean Laplanche, New Foundations fo r Psychoanalysis, Oxford, Basil Blackwell, 1989. 35 Jean Laplanche, Essays on Otherness, Londres, Routledge, 1999, p. 255.

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funda» intolerância relativa à A lteridade reprim ida ou denegada em nós m esm os: odiam os ou atacam os os estrangeiros porque não som os capa­ zes de nos entender com o estrangeiro que h á dentro de n ó s... C ontra es­ te m otivo (que, à m aneira de Jung, «interioriza» a relação traum ática com o Outro na incapacidade por parte do sujeito de com pletar a sua «viagem interior» até se reconciliar plenam ente consigo próprio), deve­ m os sublinhar que a alteridade verdadeiram ente radical não é a alterida­ de em nós próprios, o «estrangeiro no nosso coração», m as a A lteridade do próprio O utro para si m esm o (the O therness o f the Other itself to itself). E só no interior deste m ovim ento que o am or propriam ente cristão pode emergir: com o Lacan sublinhou um a e outra vez, o am or é sem pre am or pelo Outro na m edida em que qualquer coisa lhe falta — am am os o Outro p o r causa da sua lim itação. A conclusão radical a tirar daqui é que, para ser am ado, Deus deve ser im perfeito, inconsistente em Si m es­ m o, e tem de ter algum a coisa «em Si m esm o m ais do que Si m esm o.» E isto que Eckhart se m ostra incapaz de pensar: D eus com o C oisa trau­ m ática que não pode ser reduzida a A lgum a C oisa da ordem das criatu­ ras — para ele, «qualquer coisa de alheio desce no m eu espírito com ca­ da coisa que ele aprende do exterior»36. Schurm ann form ula esta am biguidade em term os precisos: a «irrup­ ção» que Eckhart se esforça por form ular é «um a irrupção para além de toda a coisa que tem nom e», ou é o m om ento m ais alto do desprendi­ m ento a fim de «deixar o Filho de Deus nascer em nós»?37 A solução de Schurm ann é a processualidade do acontecim ento38. H á um duplo m o­ vim ento em Eckhart: prim eiro, das entidades substanciais para o proces­ so, para o acontecim ento, para o devir (na interacção entre professor e aluno, a única verdadeira realidade é o acontecim ento do despertar do Conhecim ento, quer dizer: a fusão de duas entidades, professor e aluno — ou Deus e hom em — não é substancial, m as da ordem do aconteci­ m ento); depois, a passagem do m ovim ento, do processo de devir, ao re­ pouso, m as ao repouso deste processo enquanto tal. É isso que a Gelassenheit é: não um a espécie de parte acim a do fluxo dos acontecim entos, m as parte neste e deste fluxo, ele próprio39. A identidade tom a-se iden­

36 Schurmann, op. cit., p. 123. 37 Op. cit., p. 156 38 Op. cit., p. 159. OQ Esta dimensão de acontecimento está já presente em Aristóteles: a substância não é uma «coisa», mas aquilo que para sempre, continuamente, persiste no tempo, ou seja: a diferença entre substância (ousia) e acidente é interna ao acontecimento. Há também, no

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tificação, o nada torna-se aniquilação — e entra aqui em cena a dim en­ são «ética»: tenho de m e esforçar por m e tom ar aquilo que fui sem pre40. E sta solução é, todavia, insuficiente. Quando Schurm ann escreve: «A irrupção por um lado e o nascim ento por outro reconciliam -se na itinerância do hom em desprendido»41, a alternativa perm anece: sob a preva­ lência de Q U A L dos dois se reconciliam um a e outro? Schurm ann for­ nece um a resposta clara: «A união com o Filho está subordinada à união com a D ivindade. A prim eira união é a preparação e a m otivação da se­ gunda. O vocabulário e a aprendizagem cristãos aparecem com o um exercício, um a exercitatio anim i, em vista da irrupção.»42 Será possível im aginar a prevalência do outro pólo, de tal m aneira que a irrupção (rea­ lizando a «pobreza») se preencha fazendo nascer Cristo? Era por isso que G. K . C hesterton se opunha a todas as afirm ações de um a «alegada identidade espiritual do budism o e do cristianism o»: O amor deseja a personalidade; portanto o amor deseja a divisão. É um instinto do cristianismo alegrar-se pelo facto de Deus ter repartido o uni­ verso em pequenas partes [...]. É este o abismo intelectual que existe en­ tre o budismo e o cristianismo: para o budista ou para o teósofo, a perso­ nalidade é a queda do homem; para o cristão, ela é o propósito de Deus, o ponto fundamental da sua ideia cósmica. A alma-mundo dos teósofos re­ clama ao homem que a ame tendo apenas em vista que o homem se preci­ pite nela. Mas o centro divino do cristianismo precipitou efectivamente o homem fora dele para que o homem possa amá-lo. [...] todas as filosofias modernas são encadeamentos que ligam e acorrentam; o cristianismo é uma espada que separa e liberta. Nenhuma outra filosofia faz com que Deus efectivamente se compraza na separação do universo em almas vi­ vas.43 outro extremo da história ocidental, um outro paralelo entre Eckhart e a física quântica. Nesta última, ocorre uma passagem na relação entre as partículas e as suas interacções: num momento inicial, é como se em primeiro lugar (ontologicamente. pelo menos) exis­ tissem partículas em interacção através de ondas, oscilações, etc.; depois, num segundo momento, somos forçados a assumir uma mudança radical de perspectiva — o facto on­ tológico primitivo são as próprias ondas ("trajectórias, oscilações), e as partículas não são mais do que os pontos nodais em que as diferentes ondas se interceptam. De modo aná­ logo, em Eckhart, o Acontecimento é primeiro uma interacção entre entidades (Deus, ho­ mem. ..); depois, passa a ser este processo a única realidade verdadeira. 40 Op. cit., pp. 164-165. 41 Op. cit., p. 161. 42 Op. cit., ibid. 43 G. K. Chesterton, Orthodoxy, San Francisco, Ignatius Press, 1995, p. 139.

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E C hesterton tem plena consciência de que não é suficiente que Deus separe o hom em de Si m esm o de m odo a que a hum anidade O am e — esta separação tem de se reflectir retrospectivam ente no próprio Deus, sendo D eus abandonado p o r si m esm o. A ssim não basta alcançarm os a identidade de acontecim ento de Deus e do hom em no abism o da D ivin­ dade; deste ponto zero, tem os de regressar a C risto, ou seja, o abism o da D ivindade tinha de fazer nascer Cristo na sua hum anidade singulair. Eckhart evita a m onstruosidade da Encarnação de C risto, é incapaz de acei­ tar a plena hum anidade de Cristo: «Quando Eckhart fala de C risto, su­ blinha quase sem pre a sua divindade à custa da sua hum anidade. Até m esm o nos textos escriturários que claram ente descrevem a hum anidade de Jesus, ele continua a arranjar m aneira de ler a sua natureza divina.»44 P or exem plo, quando interpreta o «Deus enviou ao m undo o seu filho único» de João (João, 1 ,4 -9 ), descobre m aneira de m obilizar o velho jo ­ go de palavras entre m undus (m undo) e m undum (puro): «Enviou-o ao mundo»: num dos seus usos mundum significa «puro». Observemos que nenhum lugar é mais adequado para Deus do que um co­ ração puro e um espírito puro; aqui o Pai engendra o seu Filho tal como o engendra na eternidade, nem mais nem menos. O que é então um coração puro? E puro o coração que está separado e desprendido de todas as cria­ turas, porque todas as criaturas contaminam, uma vez que são um nada. O nada é queda, e contamina o espírito.4^ M as não é a Encarnação precisam ente a descida de Cristo entre as criaturas, o seu nascim ento com o parte do «nada» sujeita à corrupção? Não é, pois, de adm irar que o seja aqui o próprio am or a desaparecer: Quando o espírito experimenta amor ou angústia sabe de onde vêm. Mas quando o espírito deixa de regressar a estas coisas exteriores, chegou a sua casa e vive na sua simples e pura luz. Não tem então nem amor, nem angústia, nem medo.4^ D e um m odo que antecipa W alter B enjam in, Eckhart distingue entre o tem po contínuo ou a duração e o tem po descontínuo ou o instante: quan­ do o espírito se retira da realidade criada e atinge a «pobreza», «entra na 44 Schurmann, op. cit., p. 155. 45 Op. cit., p. 87. 46 Op. cit., p. 124.

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plenitude o instante, que é a eternidade»47. A eternidade não é assim «o tem po todo», m as é som ente experim entada através da redução da dura­ ção do tem po ao instante (ao que B enjam in cham ava Jetzt-Zeit). E , um a vez m ais, o que Eckhart não pode pensar é a eternidade que é um m o­ m ento pontual, um A gora plenam ente no tem po. A arm adilha a evitar no que se refere a Eckhart é a de introduzirm os a diferença entre o núcleo inefável da experiência m ística e aquilo a que D. T. Suzuki cham ou «todas as espécies de parafernália m ística» na tra­ dição cristã: «Tal com o o concebo, o Zen é o facto últim o de toda a filo­ sofia e religião. [...] O que torna todas estas religiões e filosofias vitais e inspiradoras deve-se à presença nelas daquilo a que poderei cham ar o elem ento Zen.»48 De m odo diferente, Schurm ann procede exactam ente ao m esm o m ovim ento, quando distingue entre o núcleo da m ensagem de Eckhart e o m odo com o este a form ula em term os inadequados tom ados de em préstim o às tradições filosófica e teológica ao seu dispor (Platão, A ristóteles, Plotino, A q u in o ...); mais ainda, Schurm ann designa o filó­ sofo que, séculos m ais tarde, seria finalm ente capaz de fornecer um a for­ m ulação adequada ao que Eckhart se esforçava por dizer — Heidegger: «Eckhart chegou cedo de m ais com o seu ousado desígnio. N ão é um fi­ lósofo m oderno. M as a sua com preensão do ser com o abandono prepara o cam inho da filosofia m oderna.»49 Não obliterará isto, todavia, a verdadeira ruptura de Eckhart, a sua ten­ tativa de pensar a cristologia (o nascim ento de D eus no interior da ordem da finitude, a Encarnação) a partir de um a perspectiva m ística? H á um a solução para este im passe: que se passará se o que Schurm ann diz é ver­ dade, com a reserva de o «filósofo m oderno» ser não H eidegger, mas H egel? O propósito de Eckhart é a retirada da realidade criada das enti­ dades particulares para o «deserto» da natureza divina, da D ivindade, da negação de toda a realidade substancial, retirada para o Uno-Vazio pri­ m ordial para além do Verbo. A tarefa de H egel é exactam ente a oposta: não de Deus para a D ivindade, m as da D ivindade para D eus, quer dizer, o m odo com o, a partir do abism o da D ivindade, em erge D eus enquanto Pessoa, com o nasce nela um Verbo. A negação deve virar-se sobre si pró­ p ria e trazer-nos de regresso à realidade determ inada (finita, tem poral). O m esm o vale para Freud a propósito do Édipo: a verdadeira tarefa não é descobrir a textura prim itiva pré-edipiana das pulsões anterior à ordem

47 Op. cit., p. 32. 48 Op. cit., p. 220. 49 Op. cit., p. 209.

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edipiana da Lei, m as, pelo contrário, explicar com o, a partir deste caos prim ordial de virtualidades pré-ontológicas, o Verbo (a Lei sim bólica) em erge. N ão regressam os, portanto, onde já estávam os, um a vez que, neste regresso, o próprio Édipo é «desedipianizado»: na linguagem de Kierkegaard, passam os do ser-do-Édipo (Édipo enquanto horizonte da­ do) ao Édipo-em -devir; passam os do horizonte dado do Verbo ao próprio nascim ento do Verbo — só neste ponto, quando regressam os ao Verbo, m as por assim dizer do lado oposto da banda de M oebius, efectivam en­ te o «superam os.» O passo decisivo na direcção de Deus enquanto pes­ soa absoluta som ente por Jakob Bõhm e de Deus enquanto pessoa abso­ luta som ente por Jakob B õhm e foi consum ado — eis a form ulação precisa que nos fornece H enry Corbin da diferença entre Eckhart e B õh­ m e, que viu a necessidade da passagem à pessoa absoluta, «absolvida da indeterm inação do Absoluto original, do A bsconditum »50: Em ambos encontramos decerto o mesmo sentimento profundo da Di­ vindade mística enquanto Absoluto indeterminado, imóvel e imutável na sua eternidade. A partir daqui, todavia, os dois mestres divergem. Para Meister Eckhart, a Deitas (Gottheit) transcende o Deus pessoal, e o se­ gundo tem de ser transcendido porque é o correlato da alma humana, do mundo e da criatura. O Deus pessoal, portanto, é apenas um passo na via do místico porque este Deus pessoal é afectado pela limitação e pela negatividade, pelo não-ser e pelo devir: «Devém e não-devém» (Er wird und entwird). A alma «eckhartiana» esforça-se por se libertar a fim de escapar aos limites do ser, do nihil da finitude e de todas as coisas que a possam fixar. Portanto, tem de escapar de si própria a fim de mergulhar no abismo da divindade, num Abgrund cujo fundo (Grund) nunca pode alcançar. A concepção e a atitude de Jakob Bõhme são completamente diferentes. Pro­ cura a libertação na afirmação do si-próprio, na realização do verdadeiro si-próprio, da sua «ideia» eterna [...]. Portanto, tudo muda: não é o Deus pessoal que é um passo na direcção da Deitas, o Absoluto indeterminado. Pelo contrário, este Absoluto é um passo a caminho do engendramento, do nascimento eterno do Deus pessoal.51 Eckhart era ainda incapaz de ver que «o Absoluto ao ser absolvido de toda a determ inação continua ainda por absolver desta determ inação»52. 50 Henry Corbin, «Apophatic Theology as Antidote to Nihilism», Umbr(a), 2007, p. 71. 51 Corbin, op. cit., p. 72. 52 Op. cit., p. 71.

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D e certo m odo, tudo gira em torno da tensão interior do «nada.» H á urna velha anedota judaica, cara a D errida, sobre um grupo de judeus que nu­ m a sinagoga reconhecem publicam ente a sua nulidade aos olhos de D eus. Prim eiro, um rabi levanta-se e diz: «O D eus, sou indigno, não sou nada!» A seguir, um rico hom em de negócios levanta-se e diz, batendo com a m ão no peito: «O D eus, tam bém eu sou indigno, com a m inha obsessão pela riqueza m aterial, não sou nada!» N a continuação da cena, um judeu com um e pobre levanta-se igualm ente e igualm ente proclam a: «O Deus, não sou n ad a ...» O hom em de negócios rico puxa o rabi pela m anga e segreda-lhe ao ouvido com desprezo: «Que insolência! Q uem julga que é este tipo que se atreve a proclam ar que tam bém ele não é nada?» H á as­ sim um nada «positivo» que abre espaço para a criatividade, e residir nes­ te nada — «sê-lo — é mais do que ser algum a coisa. N a tradição oci­ dental, esta tensão com eçou por ser claram ente form ulada na cabala, em tom o de dois term os que significam «nada», ayin e afisah. N um a pri­ m eira aproxim ação, o nada nom eia «a barreira que se opõe à faculdade intelectual hum ana quando esta atinge os limites da sua capacidade [...] há um reino que nenhum ser criado pode com preender intelectualm ente, e que, portanto, só pode ser definido enquanto “nada”»53. No entanto, es­ ta simples ideia do nada enquanto designação negativa da transcendência absoluta de deus é depois desenvolvida de modo m uito m ais inquietante; em prim eiro lugar, baseando-se neste conceito, a doutrina tradicional da creatio ex nihilo é transform ada num a «teoria m ística que afirm a preci­ sam ente o oposto do que parece ser o sentido literal da expressão»54. No seu sentido tradicional, a creatio ex nihilo im plica que Deus criou a rea­ lidade de m odo radical: não se lim itou a transform ar ou a (re)organizar um a espécie de estofo preexistente, m as estabeleceu efectivam ente o universo criado «a partir de lado nenhum », sem se apoiar em qualquer realidade preexistente. Segundo o novo sentido, significa «precisam ente o oposto»: «a em ergência de todas as coisas a partir do nada absoluto de D eus»55. O «nada» é o nada do — daquilo que é o — próprio deus, o que quer dizer que a creatio ex nihilo im plica que um a coisa aparece «a par­ tir de lado nenhum », e que não é causada por qualquer fundam ento iden­ tificável. (Neste sentido, o m ilagre da creatio ex nihilo acontece tam bém na nossa realidade habitual, quando um objecto bem conhecido de toda a gente adquire de súbito «a partir de lado nenhum » um a nova dim ensão.) 53 Gershom Scholem, Kabbalah, Nova York, Meridian Books, 1978, p. 94. 54 Op. cit., ibid. 55 Op. cit., p. 95.

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M as há m ais. A prem issa subjacente à ideia do «nada» enquanto pri­ m eiro acto da (auto)m anifestação divina é que, «um a vez que na reali­ dade não há diferenciação algum a no prim eiro passo de D eus no sentido da m anifestação, este passo não pode ser definido seja em que term os qualitativos for e só pode por isso ser descrito com o “nada”»56. Estam os perante um a intuição extrem am ente elaborada: antes de se diferenciar das suas criaturas, antes de estabelecer as entidades criadas com o distin­ tas de si m esm o, deus tem de abrir um vazio em si m esm o, ou seja, de criar um espaço para a criação: por outras palavras, antes da determ ina­ ção das diferenças, tem de haver (aquilo a que G ilíes D eleuze cham ou) um a diferença pura, um a diferença de intensidade pura que não pode ser reduzida a qualquer distinção entre qualidades ou propriedades. Para fa­ zerm os um a ideia do que se trata, lem brem os a experiência com um da m aneira com o — por exem plo, quando nos apaixonam os — o objecto pode sofrer m isteriosam ente um a transubstanciação radical: «nada é já a m esm a coisa», em bora o objecto perm aneça exactam ente o m esm o em term os em píricos. Este je ne sais quoi que «m uda todas as coisas» é obje t p e tit a lacaniano. O que tudo isto significa é que há um a inversão dialéctica a operar aqui: a oposição inicial — o «nada» com o m odo do aparecim ento (para nós, espíritos finitos) da actualidade infinita do poder criador de D eus, quer dizer, com o o «para-nós» do divino insondável Em -Si — deve so­ frer um a reviravolta com pleta, de m aneira a que D eus enquanto C riador suprem o, enquanto ser superior, seja, pelo contrário, o m odo que o «na­ da» tem de nos aparecer a nós, espíritos finitos. N esta perspectiva, é an­ tes o nada que representa o divino Em -Si, e a m iragem de D eus com o Ser Suprem o representa Deus no seu m odo de aparecer, no seu «para-nós».

(U m p r o b le m a m a is o b scu ro e m a is te r rív e l...x Q ual é, então, esse «problem a m ais obscuro e m ais terrível», com o es­ creve C hesterton, que nem a ortodoxia nem E ckhart são capazes de en­ frentar? Viremo-nos para o próprio C hesterton, para o seu rom ance poli­ cial religioso O H om em Que Era Q uinta-feira. O rom ance conta a história de Gabriel Sym e, um jovem inglês que faz a descoberta chestertoniana arquetípica de que a ordem é o m aior dos m ilagres e a ortodoxia

56 Op. cit., p. 94.

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a m aior de todas as revoltas. A figura nuclear do rom ance não é o pró­ prio Sym e, m as o chefe m isterioso de departam ento supersecreto da Scotland Yard que está convencido de que «um a conspiração puram ente in­ telectual em breve am eaçará a própria existência da civilização»: Tem a certeza de que os mundos científico e artístico estão silenciosa­ mente empenhados numa cruzada contra a Familia e o Estado. Formou, portanto, um corpo especial de polícias, polícias que são também filóso­ fos. A sua tarefa é seguirem os inícios dessa conspiração, num sentido não meramente criminal, mas também de discussão. [...] O trabalho do polí­ cia filosófico [...] é ao mesmo tempo mais pesado e mais subtil do que o do detective comum. O detective comum vai às tabernas prender ladrões; nós vamos aos chás artísticos para detectar pessimistas. O detective co­ mum descobre a partir de um livro de contas ou de um diário que foi co­ metido um crime. Nós descobrimos a partir de um livro de sonetos que um crime será cometido. Temos de traçar a origem desses pensamentos horrí­ veis que acabam por levar os homens ao fanatismo intelectual e ao crime intelectual.57

Como diriam hoje os conservadores em m atéria de cultura, os filóso­ fos desconstrucionistas são m uito m ais perigosos do que os terroristas efectivos: enquanto os segundos querem m inar a nossa ordem ético-política a fim de im porem a sua própria ordem religioso-política, os des­ construcionistas querem m inar a ordem enquanto tal: Dizemos que hoje o mais perigoso dos criminosos é o filósofo moder­ no inteiramente sem lei. Por comparação com ele, os vigaristas e os bíga­ mos são homens essencialmente morais; o meu coração acompanha-os. Aceitam o ideal essencial do homem; acontece simplesmente que o bus­ cam de modo errado. Os ladrões respeitam a propriedade. Desejam sim­ plesmente que a propriedade se torne sua para que a possam respeitar na perfeição. Mas os filósofos detestam a propriedade enquanto propriedade; desejam destruir a própria ideia de posse pessoal. Os bígamos respeitam o casamento, caso contrário não se entregariam às formalidades altamente cerimoniais e até mesmo rituais da bigamia. Mas os filósofos desprezam o casamento enquanto casamento. Os homicidas respeitam a vida huma­ na; desejam simplesmente atingir uma maior plenitude da vida humana em 57 G. K. Chesterton, The Man Who Was Thursday, Harmondsworth, Penguin Books, 19B6, pp. 44-45.

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Slavoj Zizek si próprios por meio do sacrifício do que entendem ser vidas menores. Mas os filósofos odeiam a própria vida, tanto a deles como a das outras pessoas. [...] O criminoso comum é um homem mau, mas é pelo menos, por assim dizer, um homem bom condicional. Diz que se um certo e úni­ co obstáculo for removido — digamos, um tio rico —, estará pronto a aceitar o universo e a louvar Deus. É um reformador, mas não um anar­ quista. Deseja limpar o edifício, mas não destruí-lo. Mas o filósofo malé­ volo não está a tentar alterar as coisas, mas a aniquilá-las.58

Esta análise provocatória dem onstra as limitações de C hesterton, o facto de não ser suficientem ente hegeliano: o que não com preende é que o crime universal(izado) deixa de ser um crim e — supera-se (negase!ultrapassa-se) enquanto crime e passa da transgressão à integração num a nova ordem. A certa ao afirm ar que, por com paração com o filóso­ fo «inteiram ente sem lei», os vigaristas, os bígam os e até m esm o os ho­ m icidas, são essencialm ente morais: um ladrão é «condicionalm ente um hom em bom », não nega a propriedade ENQUANTO TAL, quer sim ples­ m ente m ais propriedade para si e está depois m uito disposto a respeitá-la. Todavia, a conclusão a tirar de tudo isto é que O CRIME É ENQUANTO TAL «ESSENCIALMENTE MORAL», que quer sim plesm ente um reordenam ento particular ilegal da ordem m oral global que deve ser m antida. E, num espírito verdadeiram ente hegeliano, deveríam os levar esta proposi­ ção (afirm ando a «m oralidade essencial» do crim e) até à sua inversão dialéctica: não só o crim e é «essencialm ente m oral» (em hegelês: um m om ento inerente ao desenvolvim ento dos antagonism os e «contradi­ ções» internos da própria ideia de ordem m oral, e não algum a coisa que perturba a ordem m oral a partir do exterior, com o um a intrusão aciden­ tal); mas a própria m oralidade é essencialm ente crim inosa — um a vez m ais, não só no sentido em que a ordem m oral universal necessariam en­ te «se nega a si própria» nos crim es particulares, m as, m ais radicalm en­ te, no sentido em que o m odo como a m oralidade (no caso do roubo, a propriedade) se afirm a é j á um crime em si m esm o — «a propriedade É o roubo», com o costum ava dizer-se no século XIX. O que significa que devem os passar do roubo com o violação crim inosa particular da form a universal de propriedade a esta form a em si m esm a com o violação cri­ m inosa: o que C hesterton não consegue com preender é que o «crim e uni­ versalizado» que projecta na «filosofia sem lei m oderna» e o seu equi­ valente político, o m ovim ento «anarquista» que visa destruir a totalidade 58 Chesterton, op. cit., 45-46.

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da vida civilizada, é já realizado sob a fornia do reino da lei existente, de tal m aneira que o antagonism o entre Lei e crim e se revela com o ine­ rente ao crim e, com o antagonism o entre crim e universal e crim e parti­ cular. No entanto, quando continuam os a ler o rom ance, torna-se claro que esta posição de Sym e é sim plesm ente o seu ponto de partida: no final do rom ance, a m ensagem é precisam ente a da identidade do crim e e da lei, a do facto de que o m aior crim e é a própria lei, ou seja, o final do ro ­ m ance ESTABELECE explicitam ente a identidade entre a Lei e o crim e universalizado/absoluto — é nisso que reside o rem ate últim o de Quinta-Feira, quando «D om ingo», o todo-poderoso líder anarquista arquicrim inoso, se revela com o sendo a pessoa do m isterioso chefe do departa­ m ento supersecreto da polícia que m obiliza Sym e para a luta contra os anarquistas (ou seja, contra si MESMO). A ssim , continuem os a nossa b re­ ve análise do rom ance e vejam os com o, num a cena digna da M issão Im ­ p ossível, Sym e é recrutado por esse chefe m isterioso reduzido a um a voz no escuro, a fim de se tom ar um dos referidos «polícias filosóficos.» Antes quase de saber o que estava a fazer, passou pelas mãos de uns quatro oficiais de categoria intermédia, e viu-se subitamente enfiado nu­ ma divisão, cuja escuridão abrupta o estonteou como um clarão luminoso. Não se tratava da escuridão corrente, dentro da qual se podem traçar va­ gamente formas; era como ter ficado de súbito absolutamente cego. — É você o novo recruta? — perguntou uma voz pesada. E de alguma maneira estranha, embora não houvesse a sombra de uma forma na obscuridade, Syme soube duas coisas: primeiro, que a voz vinha de um homem de estatura esmagadora, e, segundo, que o homem estava de costas voltadas para ele. — É você o novo recruta? — disse o chefe invisível, que parecia infor­ mado de tudo sobre o assunto. — Muito bem. Está alistado. Syme, consideravelmente abalado, opôs-se uma fraca resistência àque­ las palavras irrevogáveis. — A verdade é que não tenho a mínima experiência — começou a di­ zer. — Ninguém tem a mínima experiência — disse o outro — da Batalha de Armagedão. — Mas eu estou realmente impreparado. — Tem vontade, e isso basta — disse o desconhecido. — Bem, a verdade — disse Syme — é que não conheço uma profissão que seja em que a vontade seja o critério decisivo.

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Slavoj Zizek — Conheço eu — disse o outro. — Os mártires. Estou a condená-lo à morte. Bom dia.59

A prim eira m issão de Syme é penetrar no «Conselho Central A nar­ quista» com posto por sete m em bros, o organism o que governa um a orga­ nização secreta superpoderosa que visa destruir a nossa civilização. Para assegurarem o secretism o, os m em bros do Conselho só se conhecem uns aos outros por m eio, cada um deles, do nom e de um dia da semana; gra­ ças a um a m anipulação hábil, Syme é eleito na qualidade de «Quinta-Feira». Durante a sua prim eira reunião no C onselho, conhece «Dom in­ go», o descom unal presidente do Conselho Central Anarquista, um hom em grande e de um a autoridade incrível, acom panhada por um a iro­ nia trocista e por um a rudeza jovial. Ao longo de sucessivas aventuras, Syme descobre que todos os outros cinco m em bros regulares do conselho são tam bém agentes secretos, m em bros do m esm o departam ento secreto que ele, recrutados pelo m esm o chefe invisível cuja voz ouviram ; juntam assim as suas forças e, finalm ente, num sum ptuoso baile de m áscaras, en­ frentam Dom ingo. Aqui, o rom ance passa da literatura de m istério à co­ m édia m etafísica: descobrim os duas coisas surpreendentes. Em prim eiro lugar, que Dom ingo, presidente do Conselho A narquista, é a m esm a pes­ soa que o m isterioso e sem pre invisível chefe que recrutou Syme (e os ou­ tros detectives de elite) para o com bate contra os anarquistas; em segun­ do lugar, o chefe é nada m enos do que o próprio Deus. Estas descobertas, evidentem ente, detonam um a série de reflexões perplexas em Syme e nos outros agentes. A prim eira reflexão de Syme refere-se à estranha dualida­ de que observou quando se encontrou pela prim eira vez com Domingo: visto de costas, parece feio e m alévolo, enquanto, quando visto de frente, face a face, parece belo e bondoso. Com o deverem os ler então esta dupla natureza de D eus, esta insondável unidade que há n ’Ele de B em e de M al? Poderem os explicar o lado m au com o sendo sim plesm ente condicionado pela nossa visão lim itada, parcial, ou — visão teológica atroz — serão as Suas costas a Sua face real, «um horrível rosto sem olhos fixado em m im », sendo o rosto jovial e bom um a m áscara enganadora? Quando vi pela primeira vez Domingo [...] vi só as suas costas; e quan­ do vi as suas costas, soube que ele era o pior homem do mundo. O seu pes­ coço e os seus ombros eram brutais, como os de um deus simiesco. A sua cabeça tinha uma curvatura que dificilmente se diria humana, como a cur59 Op. cit., pp. 48-49.

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vatura da cabeça de um boi. De facto, tive no mesmo instante a fantasia re­ pugnante de que ele de maneira nenhuma podia ser um homem, mas era uma fera disfarçada com roupas de homem. [...] E foi então que o mais es­ tranho aconteceu. Eu vira as suas costas da rua, enquanto ele estava senta­ do na varanda. Depois entrei no hotel, e ao ficar diante do seu outro lado, vi o seu rosto à luz do Sol. O rosto assustou-me, como assustava toda a gen­ te; mas não por ser brutal, não por ser maldoso. Pelo contrário, assustou-me porque era extremamente belo, porque era extremamente bondoso. [...] Quando vejo a sua horrível imagem de costas, tenho a certeza de que o ros­ to nobre não passa de uma máscara. Quando, por um instante só que seja, vejo o seu rosto, sei que a imagem de costas não passa de uma brincadeira. O mal é tão mau que só podemos pensar no bem como um acidente; o bem é tão bom, que temos a certeza de que o mal pode ser explicado. Subitamente possuiu-me a ideia de que a parte de trás cega, vazia da sua cabeça era a sua face real — um horrível rosto sem olhos fixado em mim! E imaginei que a figura que corria à minha frente era na realidade uma figura que corria para trás, e que dançava enquanto corria.60

Se, todavia, a prim eira versão, m ais reconfortante, for a verdadeira, então «só conhecem os as traseiras do m undo»; «Vemos todas as coisas por de trás, e tudo parece brutal. Isto não é um a árvore, m as a parte de trás de um a árvore. Isto não é um a nuvem , m as a parte de trás de um a nuvem . N ão serem os capazes de ver que tudo se curva e esconde um ros­ to? Se ao m enos pudéssem os ver as coisas pelo lado da fre n te ...» 61 No entanto, as coisas são ainda m ais com plicadas: a própria bondade essencial de Deus vira-se contra ele. Q uando, interrogado sobre quem é na realidade, D om ingo responde que é o Deus do Sabbath, da paz, um dos detectives acusa-o com furor de que «é isso exactam ente que eu não posso perdoar-lhe. Sei que é satisfação, optim ism o, o que lhe quiserem cham ar, reconciliação últim a. Pois bem , eu não estou reconciliado. Se você era o hom em da sala escura, porque era tam bém D om ingo, um a ofensa à luz do Sol? Se era desde o princípio nosso pai e nosso am igo, porque era tam bém o nosso m aior inim igo? Nós chorám os, fugim os de pavor; recebem os o aço nas alm as — e você é a paz de Deus! Oh, eu sou capaz de perdoar a D eus a Sua cólera, ainda que isso destrua nações; mas não posso perdoar-Lhe a Sua paz»62. 60 Op. cit., pp. 168-170. 61 Op. cit., p. 170. 62 Op. cit., p. 180.

Com o outro dos detectives faz notar num a observação lacónica m uito ao gosto inglés: «Parece tão estúpido que você tenha estado dos dois la­ dos e a lutar contra si m esm o63». Se algum a vez existiu um hegelianis­ mo británico, é o que aqui encontram os — nesta transposição literal da tese fundam ental de H egel, segundo a qual, ao lutar com a substância alienada, o sujeito luta contra a sua própria essência. O herói do rom an­ ce, Sym e, acaba por saltar a pés juntos e, excitado com o um louco, enun­ cia o mistério: Vejo todas as coisas, todas as coisas que existem. Porque luta cada urna das coisas da térra contra uma outra coisa? Porque tem cada urna das pe­ queñas coisas do mundo de lutar contra o próprio mundo? Porque tem urna mosca de lutar contra todo o universo? Porque tem um dente-de-leão de lutar contra todo o universo? Pela mesma razão que faz com que eu tenha de estar só no terrível Conselho dos Dias. Assim cada urna das coisas que obedece à lei terá a gloria e o isolamento do anarquista. Assim cada ho­ mem que luta pela ordem será tão bravo e bom como o bombista. Assim a mentira real de Satanás poderá ser devolvida ao blasfemo, assim através das lágrimas e dos tormentos poderemos conquistar o direito de dizer a es­ se homem: «Tu mentes!» Nenhum sofrimento é grande de mais quando nos vale o direito de dizermos ao acusador: «Nós também sofremos.»64 A solução descoberta está, pois, na fórmula: «A ssim cada urna das coisas que obedece à lei terá a gloria e o isolam ento do anarquista.» A s­ sim a L ei é a m aior transgressão, o defensor da Lei o m aior dos rebeldes. E contudo, onde fica o lim ite desta dialéctica? v a l e r á ELATAMBÉM PA­ RA O PRÓPRIO DEUS? Será Ele, a encarnação da ordem e da harm onia cósm icas, TAMBÉM o rebelde suprem o, ou será um a autoridade benigna que observa de um L á no A lto tranquilo com um a sabedoria perplexa as loucuras dos hom ens m ortais em luta uns com os outros? Eis a réplica de D eus quando Sym e se vira para ele e lhe pergunta: «A lgum a vez so­ freu?»: Enquanto [Syme] a fitava, o grande rosto alcançou uma dimensão as­ sustadora, tomou-se maior do que a colossal máscara de Memnon, que o fazia chorar quando era pequeno. Tomou-se maior, cada vez maior, até en­ cher o céu todo; então tudo se tomou negro. Só na escuridão, antes de esta 63 Ibid. 64 Op. cit., pp. 182-183.

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destruir o seu cérebro, pareceu-lhe ouvir uma voz distante que dizia um texto banal que já ouvira algures: «Podes tu beber da taça que eu bebo?» 65

Esta revelação final — de que o próprio Deus sofre ainda m ais do que nós, m ortais, conduz-nos à fundam ental intuição da O rtodoxia, a obra-prim a teológica de C hesterton (que pertence ao m esm o período: a Or­ todoxia foi publicada um ano depois de Quinta-Feira)·, não só à intuição do m odo com o a ortodoxia é a m aior transgressão, a m ais rebelde e aven­ turosa de todas as coisas, m as a um a outra intuição m uito m ais tenebro­ sa do m istério central do cristianism o: O mundo tremeu e o céu apagou-se no céu, não no momento da cruci­ ficação, mas no do grito lançado da cruz: o grito que confessava que Deus fora abandonado por Deus. E deixemos agora os revolucionários escolhe­ rem um credo entre todos os credos e um deus entre todos os deuses do mundo, comparando cuidadosamente todos os deuses de inevitável recor­ rência e de poder inalterável. Não encontrarão outro deus que, pelo seu la­ do, se tenha revoltado. Não (a questão toma-se demasiado difícil para a linguagem humana), mas deixemos que os ateus escolham eles mesmos um deus. Não encontrarão mais do que uma divindade que proclama o seu isolamento; não mais do que uma religião na qual por um instante Deus parece ser ateu.66

D evido a esta coincidência entre o isolam ento do hom em em relação a Deus e o isolam ento de D eus em relação a si m esm o, o cristianism o é «terrivelm ente revolucionário. Que um hom em bom se veja encostado à parede é coisa que já sabemos que acontece; m as que D eus possa ver-Se encostado à parede é um m otivo de orgulho definitivo para todos os in­ surgentes . O cristianism o é a única religião da terra que sentiu que a om ­ nipotência tom ava D eus incom pleto. Só o cristianism o sentiu que D eus, para ser inteiram ente D eus, tinha de ser tanto um rebelde com o um rei»67. C hesterton tem perfeita consciência de que abordam os aqui um problem a m ais obscuro e m ais terrível do que fácil de discutir « [...] uma questão que justificadam ente os m aiores santos e os m aiores pensadores recearam abordar. M as na descrição aterradora da Paixão é nítida a su­ gestão em ocional de que o autor de todas as coisas (de um ou de outro 65 Op. cit., p. 183. 66 G. K. Chesterton, Orthodoxy, San Francisco, lgnatius Press, 1995, p. 145. 67 Ibid.

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m odo inconcebível) conheceu não só a agonia, mas tam bém a dúvida»68. Segundo a form a estabelecida do ateísm o, Deus m orre para os hom ens que deixam de crer n ’Ele; segundo o cristianism o, Deus m orre para si próprio 69. Peter Sloterdijk70 teve razão ao fazer notar que todo o ateísm o traz a m arca da religião através de cuja negação se formou: há um ateísm o das Luzes especificam ente judaico que vem os ser praticado por grandes fi­ guras de judeus, de Espinosa a Freud; há o ateísm o protestante da res­ ponsabilidade autêntica e da assunção por cada um do seu próprio desti­ no caracterizado pela consciência angustiada da inexistência de garantias exteriores de sucesso (de Frederico o Grande ao H eidegger de Sein und Zeit); há um ateísm o católico à la M aurras; há um ateísm o m uçulm ano (os m uçulm anos usam para designar o ateísm o um a palavra m aravilho­ sa, que significa «os que não crêem em nada»), e assim por diante. N a m edida em que as religiões continuem a ser religiões, não há paz ecu­ m énica entre elas — um a tal paz só pode desenvolver-se entre os seus duplos ateus. Todavia, o cristianism o é sob este aspecto um a excepção: faz entrar em cena um a reversão reflexiva da dúvida do ateu no próprio Deus. No seu «Pai, porque m e abandonaste?», o próprio Cristo com ete o que é o pecado suprem o aos olhos de um cristão: vacila na sua Fé. E m ­ bora, em todas as outras religiões, haja pessoas que não acreditam em D eus, é só no cristianism o que Deus não acredita em Si m esm o. Este «problem a m ais obscuro e m ais terrível do que fácil de discutir» é nar­ rativam ente apresentado com o a identidade do m isterioso chefe da Scotland Yard e presidente dos anarquistas em Q uinta-Feira. A oposição úl­ tim a refere-se assim em C hesterton ao locus do antagonism o: será D eus a «unidade dos contrários» no sentido de um a form a que integra os an­ tagonism os do m undo e garante a sua reconciliação final, de tal modo que, do ponto de vista da eternidade divina, todas as lutas são m om entos de um Todo superior e a sua cacofonia aparente um aspecto subordinado de um a harm onia om nienglobante — em sum a, elevar-se-á Deus acim a da confusão e das lutas do m undo nos term os em que Goethe o descreve:

68 Ibid. 69 Para uma análise mais detida das implicações filosóficas da Ortodoxia de Chesterton. ver os capítulos 1 e 2 de Slavoj Zizek, The Puppet and the Dwarf, Cambridge, MIT Press, 2003. 70 Cf. Alain Finkelkraut e Peter Sloterdijk, Les battements du monde, Paris, Fayard, 2003,p . 131.

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E toda a discórdia nossa de cada dia, e pena nossa, é p a z eterna em Deus Senhor7 1

— ou estará o antagonism o inscrito no próprio coração do próprio D eus, ou seja: será o seu «Absoluto» o nom e de um a contradição que re­ m ove a própria unidade do Tudo? Por outras palavras, quando D eus sur­ ge sim ultaneam ente com o o com andante em chefe da polícia que com ­ bate o crim e e o principal crim inoso, surgirá esta divisão sim plesm ente da nossa perspectiva finita (sendo Deus «em Si m esm o» o Uno absoluto e sem divisão), ou, pelo contrário, os detectives serão surpreendidos ao verem a divisão em D eus porque, segundo a sua perspectiva finita, es­ peram ver um Uno puro e acim a de todos os conflitos, quando Deus em Si m esm o É a autodivisão absoluta? N a esteira de C hesterton, devemos conceber esta ideia de D eus, o Deus que diz: «Podes tu beber da taça que eu bebo?», com o caso exem plar da relação propriam ente dialéctica en ­ tre o U niversal e o Particular: a diferença não está do lado do conteúdo particular (como a differentia specifica tradicional), m as do lado do U ni­ versal. O U niversal não é o continente englobante do conteúdo particu­ lar, o m eio-quadro de fundo do conflito das particularidades; o U niver­ sal «enquanto tal» é o lugar de um antagonism o insuportável, de um a autocontradição, e as suas espécies particulares (m últiplas) são em últi­ m a instância não m ais do que outras tantas tentativas visando obscure­ cer/reconciliar/dom inar o antagonism o. Por outras palavras, o Universal nom eia o lugar de um Problem a-sem -Saída, de um a questão incandes­ cente, e os Particulares são respostas ensaiadas m as falhadas perante es­ se Problem a. Por exem plo, o conceito de Estado nom eia um certo pro­ blem a: com o conter o antagonism o de classes de um a sociedade? Todas as form as particulares de Estado são outras tantas tentativas (falhadas) que propõem um a solução para o problem a. A ssim , não é que «os E sta­ dos particulares realm ente existentes» sejam outras tantas tentativas fa­ lhadas de actualização de um ideal (m odelo) que resolveria o antagonis­ mo inscrito na própria ideia do Estado. Para o dizerm os ainda m ais ostensivam ente: D eus não só não é a «uni­ dade dos contrários» no sentido (pagão) de m anter o equilíbrio entre princípios cósm icos opostos, deslocando o peso de um dos pólos, quan­ do este se torna dem asiado forte, no sentido oposto; Deus não só não é a «unidade dos contrários» no sentido de um dos pólos (o Uno bom ) inte­ grar o seu oposto, usando o m al, o conflito, a diferença em geral como 71 Und alles Draengen, alles Ringen / Ist ewig Ruh' im Gott den Herrn.

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m eios de realçar a harm onia e a riqueza do Todo; e tam bém não basta di­ zerm os que é a «unidade dos contrários» no sentido de estar ele próprio «dilacerado» entre forças opostas. Hegel está a falar de qualquer coisa de m uito m ais radical: a «unidade dos contrários» significa que, num curto-circuito auto-reflexivo, Deus se inclui na sua própria criação, que, co­ m o a proverbial serpente, de certo m odo se devora/com e a si m esm o pe­ la sua própria cauda. Em resum o, a «unidade dos contrários» não significa que Deus jogue consigo m esm o o jogo da (auto-)alienação, per­ m itindo a oposição do m al a fim de a superar e de assim afirm ar a sua força m oral, etc.; significa que «Deus» é um a m áscara (um disfarce) do «D iabo», que a diferença entre o B em e o M al é interna ao M al72.

D e J o b a C risto O que esta identidade chestertoniana do bom Senhor e do R ebelde anarquista põe em cena é a lógica do carnaval social levado ao extrem o da auto-reflexão: os surtos anarquistas não são um a transgressão da Lei e da Ordem ; nas nossas sociedades, o anarquism o ESTA já no poder pondo a m áscara da Lei e da O rdem — a nossa Justiça é o disfarce da Justiça, o espectáculo da Lei e da O rdem é um carnaval obsceno — , te­ se que se firm a explicitam ente naquele que pode ser considerado o m aior poem a político escrito em inglês, «The M ask o f A narchy», de Percy B isshe Shelley, descrevendo o desfile obsceno das figuras do poder: E muito mais Destruições se viam na grande mascarada sombria, todas sob disfarce enganador — bispos, juristas, espias, senhores.

72 Na mesma linha de pensamento, já Schelling concebia a queda de Deus no tempo, a sua saída da eternidade, não como uma queda propriamente dita, mas como a resolução da contradição suprema, da loucura divina, a superação do divino auto-encerramento claus­ trofóbico na Abertura do tempo: Deus criou o universo temporal para se salvar a si próprio da sua própria loucura. Em homología estrita com o antagonismo universal inerente à mo­ dernidade capitalista, por referência à qual as formas particulares de modernidade são ou­ tras tantas tentativas de resolver esse antagonismo, o Deus anterior à criação (anterior ao logos) é um Deus presa de um sofrimento infinito, e todos os (possíveis) mundos particu­ lares são outras tantas-tentativas por parte de Deus de encontrar paz consigo e em si mes­ mo, de criar uma entidade que pudesse servir de suporte à sua estabilidade. Deus não é pri­ mariamente a Reconciliação, mas o sofrimento infinito da autodilaceração-separação.

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Vinha no fim a Anarquia: montando um corcel branco, sujo de sangue; . Do rosto, pálida a superficie, como o da Morte no Apocalipse. E trazia uma coroa na cabeça, e o ceptro na sua mão da realeza; e na fronte, eis o que divisei: - SOU DEUS, SOU O REI E SOU A LEI!

Em bora hoje faça parte das regras feministas do Politicam ente Correc­ to exaltar M ary, a m ulher de Percy, por ter interpretado m ais profunda­ m ente do que o seu m arido o potencial destrutivo da m odernidade, no seu F rankenstein, a verdade é que ela se detém perante esta identidade radi­ cal dos contrários. H á um dilem a com que deparam m uitos dos intérpre­ tes de F rankenstein — o dilem a que se refere ao paralelism o evidente que existe entre Victor e Deus, por um lado, e o m onstro e A dão, pelo outro: nos dois casos, estam os perante um só progenitor que engendra um a des­ cendência m asculina por um a via não-sexual; nos dois casos, segue-se a criação de um a noiva, de um a com panheira do sexo fem inino. O parale­ lism o em causa é indicado claram ente pela epígrafe do rom ance, a quei­ xa que A dão endereça a Deus: «Pedi-te eu, ó Criador, que o m eu barro m oldasses /D e M im fazendo um hom em ? Supliquei-te / Que à treva me arrancasses?» (Paradise Lost, X , 743-745). E fácil fazer notar a natureza problem ática do paralelo assim traçado: se Victor é associado a D eus, co­ m o pode ser tam bém o rebelde prom etaico contra Deus (lem brem os que o subtítulo do rom ance é ...ou O M oderno Prometeu)? N a perspectiva de C hesterton, a resposta é simples: não há aqui qualquer problem a, Victor é «como Deus» precisam ente ao com eter a transgressão crim inosa suprem a e ao confrontar-se com o horror das suas consequências, um a vez que D eus É também o m aior Rebelde — contra si próprio, em últim a instân­ cia. O Rei do universo é o supremo A narquista crim inoso. Como Victor, ao criar o hom em , Deus com eteu o suprem o crim e ao visar dem asiado al­ to — ao criar um a criatura «à sua própria im agem », um a nova vida espi­ ritual, precisam ente como os cientistas hoje sonham criar um ser vivo ar­ tificialm ente dotado de inteligência: não é de adm irar que a sua criatura escape ao seu controlo e se volte contra ele. E se a m orte de Cristo (de Si m esm o) for o preço que Deus tem de pagar pelo seu crime? M ary Shelley recua desta identidade dos opostos para um a posição conservadora: são m uito num erosos os casos de recuo a partir de um a

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posição esquerdista «radical.» É exem plar aqui o caso de V fo r Vendetta, um film e cuja acção decorre num futuro próxim o em que a G rã-B retanha é governada por um partido totalitário cham ado N orsefire; os principais opositores no film e são um guarda m ascarado conhecido com o «V» e A dam Sutler, o dirigente do país. Em bora V fo r Vendetta tenha sido elo­ giado (nada m enos do que por Toni N egri, entre outros) e, ainda m ais, criticado pelas suas posições «radicais» — ou até m esm o pró-terroristas — , não leva as coisas às últim as consequências: recua no m om ento de ti­ rar todas as consequências dos paralelism os existentes entre V e Sutler73. O partido N orsefire é, com o acabam os por saber, o instigador do terro­ rism o que com bate — m as que m ais dizer da identidade entre Sutler e V? Em am bos os casos, nunca vem os o seu rosto natural (excepto o de Sutler desfigurado, no final do film e, à beira da morte): só vem os Sutler nos ecrãs de televisão, e V é especialista na m anipulação do ecrã. A lém disso, o corpo m orto de V é colocado num com boio cheio de explosivos, num a espécie de funeral viking que evoca curiosam ente o nom e do par­ tido governante: Norsefire"'. A ssim , quando Evey — a jovem que se une a V — é aprisionada e torturada p or V a fim de aprender a vencer o m e­ do e a ser livre, é visível o paralelism o com aquilo que Sutler faz a toda a população inglesa, aterrorizando os seus m em bros para que estes se tornem livres e rebeldes. U m a vez que o m odelo de V é Guy Fawkes (usa a m áscara de G uy), é ainda m ais estranho que o film e se recuse a extrair a óbvia conclusão chestertoniana da sua intriga: a identidade últim a en­ tre V e Sutler74. Por outras palavras, falta no film e um a cena em que, quando Evey tira a m áscara ao V m oribundo, vejam os por de trás da m áscara o rosto de Sutler75. -7 0

Há uma outra coincidência irónica dos contrários no papel de Sutler: o ditador Sutler é representado pelo mesmo John Hurt que, na mais recente versão para cinema de 1984, desempenhava o papel de Winston Smith, a vítima por excelência de um regime ditato­ rial... % Nome composto pelas palavras «fogo»/fire e (língua ou país) «nórdico»Inorse. (N. T.) 74 Há um breve indício nesse sentido a meio do filme; mas a pista fica por explorar. 75 Uma incapacidade análoga de dar 0 mesmo passo decisivo era a que encontrávamos na quinta aventura da série 24, que esteve muito perto da redenção aos olhos dos es­ querdistas: quando se tomou claro que o poder negativo por de trás da intriga terrorista era o do próprio presidente dos EUA, muitos de nós estávamos ansiosos por saber se Jack Bauer aplicaria ao presidente — o «mais poderoso homem do mundo, o líder do mundo livre» (entre outros seus títulos kim-yonguescos) — o seu processo habitual de lidar com os terroristas que não querem divulgar um segredo que poderia salvar milhares... em su­ ma, se torturaria o presidente. Por desgraça, os autores não arriscaram esse passo re­ dentor: quando Bauer está prestes a matar 0 presidente corrupto, o respeito que sente pe­ la função presidencial impede-o de o fazer.

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N o entanto, o leitor atento já adivinhou que não estam os perante um a sim ples dualidade, m as perante um a trindade de traços/rostos de Deus: todo o sentido das últim as páginas do rom ance é que, à oposição entre o Deus benevolente da paz e da harm onia cósm icas e o D eus m aldoso com o seu furor assassino, devem os acrescentar um a terceira figura, a do Deus sofredor. É por isso que C hesterton acertava ao desvalorizar Q uinta-Feira com o um livro fundam entalm ente pré-cristão: a intuição da identidade especulativa do B em e do M al, a ideia dos dois lados de Deus — harm onia pacífica e furor destrutivo — , ou seja, a tese de que, ao com bater o M al, o B om D eus está a com bater contra si m esm o (num conflito interno), pertence ainda à (suprem a) intuição pagã. Só o tercei­ ro traço, o sofrim ento de D eus, resolve, ao em ergir subitam ente, esta tensão entre as duas faces de D eus, conduzindo-nos assim ao cristianis­ m o propriam ente dito: porque é um Deus sofredor assim que o paganis­ mo não pode im aginar. Com o é evidente, este sofrim ento conduz-nos ao Livro de Job, celebrado por C hesterton, na sua pequena e m aravilhosa «Introdução ao Livro de Job», considerado «o m ais interessante dos li­ vros antigos. E quase podem os dizer do livro de Job que é o m ais inte­ ressante dos livros m odernos»76. E sta «m odernidade» é decidida pelo m odo com o O Livro de Job fere um a corda dissonante no Antigo Testa­ mento: Em todos os outros lugares, portanto, o Antigo Testamento regozija-se positivamente com a obliteração do homem no seu confronto com os de­ sígnios divinos. O livro de Job é um caso isolado e distinto porque põe cla­ ramente a pergunta: «Mas o que são os desígnios de Deus? Justificarão al­ guma vez o sacrifício da nossa miserável humanidade? Sem dúvida, é bastante fácil pormos de parte as nossas vontades mesquinhas por amor de uma vontade superior e mais amável. Mas tratar-se-á de uma vontade su­ perior e mais amável? Que Deus use os Seus instrumentos; que Deus que­ bre os Seus instrumentos. Mas que está Ele a fazer e está a quebrá-los pa­ ra quê?» É devido a esta pergunta que temos de atacar como um enigma filosófico o enigma do livro de Job.

Todavia, a verdadeira surpresa é que o final do Livro de Job não for­ nece um a resposta satisfatória ao enigma:

76 G. K. Chesterton, «Introduction to Book of Job», www.chesterton.org/gkc/theologian/job.htm

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Slavoj Zizek «não conclui de modo convencionalmente satisfatório. Não é dito a Job que as suas desgraças ficaram a dever-se aos seus pecados ou que faziam parte de qualquer plano visando um seu maior aperfeiçoamento. [...] Deus aparece no final, não para responder a enigmas, mas para os propor». E a «grande surpresa» é que o livro de Job «mostra Job subitamente satisfeito com a simples apresentação que lhe é feita de qualquer coisa de impene­ trável. Em termos verbais, os enigmas de Jeová parecem mais obscuros e mais desolados do que os enigmas de Job; e contudo Job sentia-se incon­ solável antes do discurso de Jeová e sente-se consolado depois. Nada lhe foi dito, mas ele sente a terrível e exasperante atmosfera de qualquer coisa que é demasiado boa para ser dita. A recusa por parte de Deus de explicar os seus desígnios é, em si própria, um indício ardente dos Seus desígnios. Os enigmas de Deus são mais satisfatórios do que as soluções do homem».

E m sum a, D eus efectua aqui aquilo a que L acan cham a um p o in t de capiton: resolve o enigm a suplantando-o por m eio de um enigm a ainda mais radical, redobrando o enigm a, transpondo o enigm a do espírito de Job para «a coisa m esm a.» O próprio Deus chega a com partilhar do as­ som bro de Job perante a loucura caótica do universo criado: «Job adian­ ta um ponto de interrogação; Deus responde-lhe com um ponto de ex­ clam ação. Em vez de m ostrar a Job um m undo explicável, insiste em que se trata de um m undo m uito mais estranho do que Job algum a vez pen­ sou.» R esponder à interrogação do sujeito com um a exclam ação: não se­ rá essa a definição m ais sucinta do que o analista deve fazer na cura? A s­ sim , em vez de fornecer respostas a partir do seu saber com pleto, Deus opera um a intervenção propriam ente analítica, introduzindo um a sim ­ ples acentuação form al, a m arca de um a articulação. As im plicações ontológicas desta réplica são verdadeiram ente devas­ tadoras. D epois de Job ser ferido pelas calam idades, os seus am igos teo­ lógicos intervêm , oferecendo interpretações que tornam as calam idades dotadas de sentido (quando m ais tarde Deus entra em cena, dá razão a Job contra os defensores teológicos da fé). A estrutura é aqui exacta­ m ente a m esm a que encontram os no sonho da injecção a Irm a de Freud, que com eça por um a conversa entre Freud e a sua paciente Irm a acerca do fracasso do tratam ento desta por causa de um a seringa infectada; no decorrer da conversa, Freud põe-se m ais perto dela, aproxim a-se do seu rosto e exam ina-lhe o fundo da boca, deparando com a im agem horrível de um a carne viva em sangue. N este ponto de horror intolerável, a tona­ lidade do sonho m uda, o horror passa de repente a comédia: aparecem três m édicos, am igos de Freud, que, num a gíria ridícula pseudoprofis-

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sional, enum eram m últiplas (e m utuam ente exclusivas) razões que fa­ ziam com que a intoxicação de Irm a pela seringa infectada não fosse da culpa de ninguém (não havia seringa, a seringa estava lim pa...)· Assim há um prim eiro encontro traum ático (a vista da carne ferida da garganta de Irm a), que é seguido pela súbita transição para a com édia, para um a troca de opiniões entre três m édicos ridículos, o que perm ite ao sonha­ dor evitar o encontro com o verdadeiro traum a. A função dos três m édi­ cos é a m esm a que desem penham os três am igos teológicos na história de Job: obscurecer o im pacto do traum a por m eio de um a analogia sim ­ bólica. E sta resistência ao sentido é decisiva quando nos confrontam os com catástrofes potenciais ou actuais, da SID A e dos desastres ecológicos ao H olocausto: não têm «sentido m ais profundo.» D aí o fracasso das duas produções de H ollyw ood efectuadas para assinalar o quinto aniversário do 11 de Setem bro — United 93 de Paul Greengrass e World Trade Center de O liver Stone. A prim eira coisa que salta aos olhos é que os dois film es tentam ser o m ais anti-hollyw oodianos possível; am bos subli­ nham a coragem das pessoas com uns, sem estrelas sedutoras, sem efei­ tos especiais, sem gestos heróicos grandiloqüentes, lim itando-se a um a representação concisam ente realista de gente com um em circunstâncias fora do com um . Todavia, ambos os film es com portam um a notável ex­ cepção formal: m om entos em que violam o estilo concisam ente realista que tom am por base. U nited 93 com eça com os seqüestradores aéreos num quarto de m otel, rezando e preparando-se; têm um ar austero, com o que de um a espécie de anjos da m orte — e a prim eira cena depois da lis­ ta dos créditos confirm a esta im pressão: é um a im agem panorâm ica so­ bre M anhattan durante a noite, acom panhada pelo som das orações dos seqüestradores, com o se os seqüestradores vagueassem no ar sobre a ci­ dade, preparando-se para descerem à terra e fazerem a sua co lh eita... De m odo sem elhante, não há im agens directas dos aviões chocando com as torres em WTC; tudo o que vem os, segundos antes da catástrofe, quando um dos polícias se encontra num a rua m ovim entada e apinhada de gen­ te, é um a som bra am eaçadora que passa rapidam ente por cim a da rua — a som bra do prim eiro avião. (Mais ainda, significativam ente, depois de os polícias-heróis se encontrarem no meio dos destroços, a câm ara, num m ovim ento hitchcockiano, volta a ganhar altura e sobe no ar para nos fornecer um «ponto de vista de Deus» do conjunto de N ew York City.) E sta passagem directa da vida quotidiana ao rés da terra a um a visão to­ m ada do alto confere aos dois film es um a estranha reverberação teológi­ ca — com o se os ataques fossem um a espécie de intervenção divina.

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O que significa tudo isto? Lem brem os a prim eira reacção de Jerry Falw ell e de Pat R obertson aos atentados do 11 de Setem bro, quando p er­ ceberam neles um sinal de que Deus retirara a sua protecção aos Estados Unidos devido à vida pecam inosa dos am ericanos, acusando o m ateria­ lism o hedonista, o liberalism o, a sexualidade invasora, e declarando que a A m érica recebera o que m erecia. O facto de exactam ente a m esm a con­ denação da A m érica «liberal» ser feita pelo Outro M uçulm ano e surgir do coração da «A m érica profunda» deveria dar-nos que pensar. Em term os velados, United 93 e WTC tendem a fazer o contrário: a ler a catástrofe do 11 de Setem bro com o um a bênção disfarçada, com o um a intervenção divina vinda do alto para nos despertar do nosso sono moral e apelar para o que há de m elhor em nós. W TC term ina com as palavras em v o z -o ff que nos deixam a seguinte m ensagem : os acontecim entos ter­ ríveis com o a destruição das Twin Towers despertam nas pessoas o pior E o m elhor — coragem , solidariedade, sacrifício pela com unidade. As pessoas revelam -se capazes de fazer coisas das quais nunca teriam im a­ ginado sê-lo. E , com efeito, esta perspectiva utópica é um a das correntes subterrâneas que alim entam o nosso fascínio pelos film es catastróficos: é com o se as nossas sociedades tivessem necessidade de um a catástrofe m aior para que nelas ressuscitasse o espírito solidário da com unidade. Este aspecto, um a vez m ais, torna os dois film es parte da série que esta­ m os a analisar: não tratam de facto da G uerra contra o Terrorism o, m as da perda de solidariedade e coragem nas nossas sociedades perm issivas de capitalism o tardio. A herança de Job proíbe-nos esta atitude de buscar refúgio na fig u ­ ra transcendente e estabelecida de D eus com o Senhor secreto que co ­ nhece o sentido do que nos parece a nós um a catástrofe sem sentido — o D eus que vê o quadro com pleto, no qual aquilo que vem os com o um a m ancha contribui para a harm onia global. Q uando estam os perante um acontecim ento com o o H olocausto ou a m orte de m ilhões de seres h u ­ m anos no C ongo durante estes últim os anos, não será obsceno afir­ m arm os que estas m anchas têm um sentido m ais profundo na m edida em que contribuem para a harm onia do Todo? H averá um Todo que p ossa ju stificar teologicam ente e, por isso, redim ir/superar um aconte­ cim ento com o o H olocausto? A m orte de C risto na cruz significa assim que devem os desfazer-nos sem reservas da ideia de D eus enquanto ze­ lador transcendente garantindo o feliz desfecho dos nossos actos, e n ­ quanto garante de um a teleología histórica: a m orte de C risto na cruz é a m orte deste D eus, repete a atitude de Job, recusa qualquer «senti­ do m ais profundo» que obscureça o real brutal das catástrofes históri-

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c a s77. É isto ta m b é m q u e n o s p e rm ite a p re se n ta rm o s a ú n ic a re sp o sta c ristã c o n siste n te à e te rn a in te rro g a ç ã o crítica: H a v ia D e u s em A usch w itz ? C o m o p o d e ria E le te r p e rm itid o u m so frim e n to tão im e n so ? P o rq u e n ão in te rv e io p a ra o im p e d ir? A re sp o sta n ã o é que d ev em o s a p re n d e r a a fa sta r-n o s d as n o ssa s v ic issitu d e s te rre n a s e a id e n tifi­ ca rm o -n o s c o m a p a z a b e n ç o a d a de D eu s que h a b ita a c im a dos n o sso s in fo rtú n io s, to m a n d o c o n s c iê n c ia da n u lid a d e ú ltim a das n o ssa s p re o ­ cu p a ç õ e s h u m a n a s (re sp o sta p a g ã típ ic a ), n e m que D eus sabe o que e s ­ tá a fa z e r e de a lg u m m o d o n o s c o m p e n sa rá do n o sso so frim e n to , s a ­ ra rá as n o ssa s fe rid a s e p u n irá os c u lp a d o s (re sp o sta te o ló g ic a típ ic a). A re s p o s ta e n c o n tra -s e , p o r e x e m p lo , n a c e n a fin a l de Shooting Dogs, u m film e so b re o g e n o c íd io do R u a n d a , n a q u al v em o s u m g ru p o de T u tsi re fu g ia d o s n u m a e sc o la c ristã , sa b en d o que e m b re v e serão c h a ­ cin a d o s p o r u m a tu rb a H u tu ; u m jo v e m p ro fe sso r b ritâ n ic o d a e sco la so ç o b ra n o d e se sp e ro e p e rg u n ta a u m a fig u ra p a te rn a , o sa ce rd o te m ais v e lh o (p a p e l de Jo h n H u rt), o n d e está ag o ra C risto p a ra im p e d ir o m a ssa c re ; a re s p o s ta do p a d re m ais v elh o é: C risto e stá a g o ra m ais do q u e n u n c a a q u i p re se n te . E stá aqui a so fre r c o n n o s c o ... E o p ró p rio te rm o « p re se n ç a » q u e d ev e ser lid o c o n tra este p a n o de fu ndo: a p re ­ se n ç a é , n a su a d im e n sã o m ais ra d ic a l, a p re se n ç a de u m objecto a e s­ p e c tra l q u e se so m a aos o b je c to s q u e aq u i estã o n a re alid ad e: q u a n d o u m c ristã o se v ê a p a n h a d o n u m a situ a ç ã o co m o a do film e , os o b jec to s da re a lid a d e q u e o ro d e ia estã o presentes , m as a presença é a de C ris­ to . E p o r isso q u e , a p e sa r d a d ife re n ç a fu n d a m e n ta l que m e sep ara de C a p u to e V attim o , c o m p a rtilh o p le n a m e n te a id e ia , c o m u m a am b o s, de C risto co m o D e u s fra c o , u m D e u s re d u z id o a o b se rv a r co m p a d e c id o a m isé ria h u m a n a , in c a p a z de in te rv ir e de so c o rre r (d ev e m o s sim p le s­ m en te te r o c u id a d o d e d istin g u ir rig o ro sa m e n te e sta id e ia d a n o ção de « p e n sa m e n to fra c o » ). N ã o p o d e m o s d e ix a r de c o n c o rd a r c o m a d e s c ri­ ção a q u e C a p u to p ro c e d e do que aco n te ce n a C ruz: É uma mistificação pensar que existe aqui a intervenção de uma tran­ sacção com os céus, um acerto de contas entre a divindade e a humanida­ de, como se a morte fosse a amortização de uma dívida de longa data e di­ mensões portentosas. Não se trata aqui da liquidação de uma dívida nossa, m as. quando muito, de uma responsabilidade que nos é imposta.78 77 Devemos ter presente que a história de Job desempenha também um papel de primeira importância no islão, a cujos olhos Job é o compêndio do puro crente. 78 Op. cit., p. 66.

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E se tiv e r sido ISTO o q u e Job co m p reen d eu e o fez g u ard ar o silêncio? Job p e rm an eceu silen cio so não p o r ser esm agado p e la p re sen ç a a v assa­ lad o ra de D eu s, n em p o r q u erer c o n tin u ar a m arcar u m a resistê n cia m a n ­ tid a , ou seja, o facto de D eu s ev itar resp o n d er à p erg u n ta de Jo b , m as p o rq u e este, assu m in d o u m a atitu de de so lid ariedade silen cio sa, se ter d ado co n ta d a im p o tên cia divina. D eu s não é ju sto n em in ju sto , m as sim ­ p lesm en te im p o ten te. O que Job co m p reen d eu de súbito é que não era

ele, m as o próprio D eus que as calamidades sofridas p o r Job punham à prova, sendo q u e D eus fra c a ssa ra m iserav elm en te n a sua p restação de p ro v as. M ais claram en te ain d a, sentim os aqui a ten tação de a rriscar um a leitu ra rad ical e anacrónica: Job p rev ia o fu tu ro sofrim en to do p róprio D eus: «H oje sou e u , am an h ã será o teu p ró p rio filh o , e não h a v erá n in ­ g u ém p a ra in te rv ir p o r ELE. O que vês agora em m im é a p refig u ração da tu a p ró p ria p a ix ã o !» 79 E d ev em o s in tro d u zir aqui u m a d ificu ld ad e suplem entar. V oltem os à in terro g ação fu n d am en tal de Freud: po rq u e so n h am o s, de facto ? A re s­ p o sta de F reu d é e n g an ad o ram en te sim ples: a fu n ção do so n h o , em ú lti­ m a in stâ n c ia , é p e rm itir ao so n h ad o r que p ro lo n g u e o seu sono. O que é h ab itu alm en te in terp retad o co m o u m a re sp o sta p ro v a d a pelos sonhos q ue tem o s im ed iatam en te antes de d esp ertar, quan d o u m a pertu rb ação e x tern a (um ru íd o ) am eaça aco rd ar-nos. N u m a situação d este tip o , o so­ n h a d o r im ag in a rap id a m e n te (sob a fo rm a de u m sonho) u m a situação q ue in te g ra o estím u lo e x te m o em cau sa e lo gra assim p ro lo n g a r o sono p o r m ais alg u m tem p o ; q u an d o o estím u lo ex te m o se to rn a dem asiad o fo rte, o so n h ad o r acab a p o r d e s p e rta r... C o n tu d o , serão as coisas tão cla ­ ras? N u m outro sonho de A Interpretação dos Sonhos ace rc a do d esp e r­ tar, u m p a i ex ten u ad o que p a ssa ra a n o ite a v elar o caixão do seu jo v e m filh o , ad o rm ece e so n h a que o seu filho se ap ro x im a dele en v o lto em ch am as, d irig in d o -lh e e sta acu sação atroz: «P ai, não vês que esto u a ar­ der?» P o u co d e p o is, o p ai aco rd a e desco b re q u e, d ev id o a u m a v e la que c aíra, as ro u p as do seu filh o m o rto efectiv am en te tin h a m co m eçado a q u eim ar-se — o fu m o cujo cheiro o p a i sen tira fora in teg rad o no sonho do filh o em ch am as p erm itin d o ao pai p ro lo n g ar o s o n o . O pai terá aco r­ d ad o , p o rta n to , q u an d o o estím u lo ex te m o (o fum o) se to m a ra d e m asia ­ do fo rte p a ra p o d e r ser co n tid o no quadro do sonho? O u terá sido o con-

79 Há uma pergunta estúpida que deveria pôr-se aqui: porque não considera Deus a pos­ sibilidade de dizer a verdade a Job — que tudo o que se passou se destinava a pôr à pro­ va a fé de Job, e que, desta prova. Job saíra vencedor e o Diabo vencido?

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trário: o pai com eçara por construir o sonho a fim de prolongar o seu so­ no — ou seja, para evitar a desagradável situação do despertar; no en­ tanto, aquilo com que deparara no sonho — a questão literalm ente es­ caldante, o arrepiante espectro do filho que o acusa — era m uito mais insuportável do que a realidade externa, fazendo com que o pai acordas­ se e procurasse escapar através da realidade exterior. Porquê? Para con­ tinuar a sonhar, para evitar o traum a insuportável da sua própria culpa perante a dolorosa m orte do filho. Para nos darm os conta de toda a densidade deste paradoxo, terem os de com parar este sonho com o da injecção de Irm a. Nos dois sonhos, há um confronto traum ático (a visão da carne viva da garganta de Irma; a visão do filho em cham as); todavia, no segundo sonho, o sonhador desperta nesse m om ento, enquanto no prim eiro sonho, o horror é substituído p e­ lo espectáculo inócuo das desculpas profissionais. Encontram os neste paralelo a chave decisiva da teoria dos sonhos de Freud: o despertar no segundo sonho (o pai desperta no interior da realidade para escapar ao horror do sonho) tem a m esm a função do que a súbita transform ação em com édia, a troca de opiniões entre os três m édicos ridículos, no prim ei­ ro sonho — quer dizer: a nossa realidade habitual tem precisam ente a es­ trutura de um a conversa inócua que nos perm ite que evitem os confrontar-nos com o verdadeiro traum a. A partir daqui, regressem os agora a Cristo: não será o «Pai, porque me abandonaste?» de Cristo a versão cristã do «Pai, não vês que estou a ar­ der?» de Freud? E não se dirigirá esta interpelação precisam ente ao Pai-Deus que m anobra os cordelinhos por de trás do palco e justifica teleologicam ente (garante o sentido) de todas as nossas vicissitudes terrenas? A ssum indo por sua conta (não os pecados, m as) o sofrim ento da hum a­ nidade, confronta o Pai com a falta de sentido de tudo.

A d u p la k e n o sis O term o teológico para esta identidade de Job e de Cristo é dupla ke­ nosis: a auto-alienação de Deus sobrepõe-se com a alienação de Deus por parte do indivíduo que se experim enta a si próprio só e num univer­ so sem D eus, abandonado por Deus que reside num A lém inacessível e transcendente. Para H egel, a co-dependência dos dois aspectos da keno­ sis atinge a sua tensão m áxim a no protestantism o. A crítica por parte do protestantism o e das Luzes das superstições religiosas são o verso e o re­ verso da m esm a m oeda. O ponto de partida de todo este m ovim ento é o

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pensam ento católico m edieval com o se exprim e em alguém com o Tomás de A quino, segundo o qual a filosofia devia ser a serva da fé: a fé e o co­ nhecim ento, a teologia e a filosofia, com pletam -se m utuam ente nos ter­ mos de um a distinção harm oniosa e não-conflitual no interior (e sob o prim ado) da teologia. Em bora D eus continue a ser em si próprio um m is­ tério insondável para as nossas capacidades cognitivas lim itadas, a razão pode tam bém guiar-nos na Sua direcção perm itindo-nos reconhecer os traços de Deus na realidade criada — é aqui que se situa a prem issa das cinco versões da prova da existência de D eus de Tomás de Aquino (a ob­ servação racional de um a realidade m aterial cuja textura de causas e efei­ tos que nos conduz à intuição necessária segundo a qual não pode deixar de haver um a C ausa prim eira de todas as coisas, etc.). Com o protestan­ tism o, esta unidade quebra-se: tem os por um lado o universo sem deus, objecto adequado da nossa razão, e o insondável A lém divino dele sepa­ rado p or um hiato. Q uando nos confrontam os com esta ruptura, podem os fazer duas coisas: ou negam os todo o sentido a um A lém ultram undano, desprezando-o com o ilusão supersticiosa, ou m antem o-nos religiosos e desligam os a nossa fé do dom ínio da razão, concebendo-a com o um ac­ to, precisam ente, de pura fé (autêntico sentim ento interior, etc.). O que interessa aqui a H egel é o m odo com o esta tensão entre filosofia (pensa­ mento racional esclarecido) e religião se conclui pelos seus «corrupção e abastardam ento m útuos». N um prim eiro m ovim ento, a R azão parece estar na ofensiva e a religião na defensiva, tentando desesperadam ente definir um lugar próprio fora do dom ínio e do controlo da Razão: sob a pressão da crítica das Luzes e do avanço das ciências, a religião retira-se hum ildem ente para o espaço interior dos sentim entos autênticos. Toda­ via, o preço m aior, é a própria Razão esclarecida a pagá-lo, e assim , na conclusão do conjunto do lance, o fosso entre a fé e o conhecim ento rea­ parece, m as transposto para o próprio cam po do conhecim ento (ou da Razão): Depois desta batalha com a religião, o melhor que a razão podia conse­ guir era examinar-se a si própria e tomar consciência de si. A razão, ao tornar-se deste modo simples entendimento, reconhece a sua própria nuli­ dade ao colocar o que é melhor do que ela numa fé que se situa fora e aci­ ma dela, enquanto Além que é objecto da crença. Eis o que aconteceu nas filosofias de Kant, Jacobi e Fichte. A filosofia tomou-se uma vez mais ser­ va de uma fé.80 G. W. F. Hegel, Fciith and Knowledge, Albany, STJNY Press. 19 . pp. 55-56.

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A m b o s os p ó lo s se degradam : a R azão to m a-se u m sim ples « en ten d i­ m en to » , u m a ferram en ta que m an e ja o bjectos em p írico s, um sim ples in s­ tru m en to p rag m ático do anim al h u m an o , e a religião to m a-se u m senti­ m en to in te rio r im p o te n te , que n u n c a ch eg a a p o d er actu alizar-se p le n a m e n te , u m a vez que a p a rtir do m o m en to em que ten tam o s transpô-la n a realid ad e ex terio r, reg red im o s n o sentido d a id o latria c a tó lica que fetich iza o b jecto s n atu rais co n tin g en tes. E ste d esen v o lv im en to tem o seu ep íto m e n a filo so fia de K ant: K an t co m eço u enq u an to grande dem olidor, co m a sua im p lacáv el c rític a d a teo lo g ia, e acabou — nos seus próprios term os — p o r lim ita r o h o rizo n te d a R azão p a ra c ria r u m espaço p a ra a fé. O q u e aqui nos é m o strad o e x em p larm en te é o m odo com o a a cu sa ­ ção e a lim itação im p lacáv eis a que as L u zes pro ced em do seu inim igo e x te rio r (a fé, à q u al é n e g a d a q u alq u er estatuto cognitivo — a religião é u m sen tim en to sem q u a lq u e r v a lo r co g n itivo) se in v ertem n u m a auto-acu sação e au to lim itação d a R azão (a R azão só p o d e trata r le g itim a­ m en te dos o b jecto s da ex p e riê n c ia fe n o m en al, a verd ad eira R ealid ad e é-lhe in acessív el). A in sistên cia p ro testan te n a fé p o r si só, em que os v erd ad eiro s altares e tem p lo s de D eus d ev erão ser con stru íd o s no co ra­ ção do in d iv íd u o , e não n a realid ad e e x te rn a é u m a in dicação do m odo co m o a atitu d e an ti-relig io sa das L u zes não po d e reso lv er «o seu próprio p ro b le m a , o p ro b le m a d a su b jectiv id ad e to m a d a p re sa d a solidão ab so ­ lu ta » 81. O resu ltad o últim o das L uzes é assim a ab so lu ta sin g u larid ad e d o su jeito d esap o ssad o de to d o o co n teú d o sub stan cial, red u zid o ao lu ­ g ar v azio de u m a n eg ativ id ad e a u to -referen cial, um a subjectividade to ­ talm en te alien ad a do c o n teú d o su b stan tiv o , in clu in d o -se aqui o seu p ró ­ p rio co n teú d o . E , p a ra H e g e l, a p assa g e m p o r este p o n to -ze ro é um a p assa g e m n ecessária, u m a v ez q u e n ão h á solução fo rn ecid a p o r q u a l­ q u er esp écie de sín tese re n o v a d a ou de re c o n ciliação entre a F é e a R a ­ zão: com o ad v en to da m o d ern id ad e, a m ag ia do u n iv erso en cantado p e rd e -se p a ra sem p re, a realid ad e que aqui tem o s está d estin ad a a p e r­ m an e c e r cin zen ta. A ú n ic a solução é, co m o já v im o s, o p róprio red o b rar d a alie n a ç ão , a in tu ição do m o d o com o a m in h a alienação do A bsoluto co rresp o n d e à au to -alien ação do absoluto: E sto u «em » D eus no in terio r da m in h a p ró p ria d istân cia em relação a e le . O p ro b le m a d ecisiv o é o seguinte: com o devem os p en sar a ligação e n ­ tre estas duas « alien açõ es» , a do h o m em m o d e m o em relação a D eus (que é red u zid o a u m E m -S i-m esm o in co g n o scív el, ausente do m undo

81 Catherine Malabou, The Future o f Hegel, Nova York. Routledge, 2005, p. 110.

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su b m etid o a leis m ecâ n ic as), e a que aliena D eu s de Si m esm o (na e n ­ carn ação de C risto )? A s duas são a m esm a, em b o ra não sim etricam en te, m as en q u an to sujeito e o b jecto . P ara que a su b jectividade (hum ana) em irja da p erso n a lid a d e su b stan tiv a do anim al h u m a n o , co rtan d o as li­ gaçõ es co n sig o m esm a e afirm an d o -se co m o E u = E u desp o jad o de todo o co n teú d o su b stan cial, co m o a n eg a tiv id a d e au to -referen cial de u m a sin g u larid ad e v a z ia , o próprio Deus , S u b stân c ia U n iv ersal, te m de se «hum ilhai·», de c a ir n o in te rio r d a sua c ria çã o , de se « o b jectiv ar» de m o ­ do a ap a re c er co m o u m m iseráv el ind iv íd u o h u m an o sin g u lar em to d a a sua ab jecção — ou seja, abandonado por Deus. A d istân c ia do h o m em em relação a D eu s é assim a d istân cia de D eus em relação a Si m esm o: O sofrimento de Deus e o sofrimento da subjectividade humana priva­ da de Deus deve ser analisado como o direito e o avesso do mesmo acon­ tecimento. Há uma relação fundamental entre a kenosis divina e a tendên­ cia da razão moderna a estabelecer um além que permanece inacessível. A Enciclopédia tom a visível esta relação apresentando a Morte de Deus ao mesmo tempo como a Paixão do Filho que «morre na dor da negativida­ de» e como o sentimento humano de nada podermos conhecer de D e u s . 8 2 E sta d u p la kenosis é aquilo que a crítica m arx ista h ab itu al d a religião en quanto au to -alien ação d a h u m an id ad e d eixa escapar: «a filo so fia m o ­ dern a n ão teria o seu p ró p rio sujeito se não tivesse ocorrido o sacrifício de D e u s» 83. Para que a subjectiv idade em irja — não com o sim ples epi­ fen ó m en o d a o rd e m o n to ló g ica substancial glo b al, m as com o S ubstância essen cial e la p ró p ria — , a cisão, a n eg ativ id ad e, a p articu larização , a au to -alien ação , tem de ser estab elecid a com o alg u m a co isa que tem lugar no p ró p rio co ração da S u b stân cia div in a — ou seja, o m o v im en to da S u b stân cia p ara o S ujeito te m de o co rrer no in terior do p róprio D eus. E m resu m o , a alienação do h o m em em relação a D eus (o facto de D eus lhe aparecer com o um in acessív el E m -si, com o um puro A lém tra n scen d en ­ te) te m de co in cid ir co m a alienação de D eus em relação a D eus (cuja ex­ p ressão m ais p u n g en te é, sem d ú v id a, o «P ai, P ai, porque m e aban d o n as­ te?» d a cruz): a « co n sciên cia [hum ana finita] só rep resen ta D eus porque D eus se re-p resen ta a si m esm o ; a consciência só se encontra a u m a dis­ tân cia de D eus p o rq u e o p ró p rio D eus se distancia de si m esm o»84.

82 Malabou, op. cit., p. 103. 83 Op. cit., p. 111. 84 Op. cit., p. 112.

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O m otivo da kenosis divina, do esvaziam ento de Deus no m undo, é decisivo para um a com preensão adequada da ideia crista de am or divi­ no. Alguns teólogos, reflectindo sobre o m istério da distribuição divina da graça, foram levados a aproxim ar-se da fórm ula lacaniana do amor: a prova últim a de que D eus nos am a é que «dá o que não tem »85. Para apreenderm os bem o ponto que esta tese afirm a, devem os opor ter e ser: Deus não dá o que tem , dá o que é, o seu próprio ser. O que significa que é errado im aginar a dádiva divina com o actividade de um sujeito rico, tão abundantem ente rico que poderia perm itir-se ceder a outros um a par­ te das suas posses. D e um a perspectiva propriam ente teológica, D eus é o m ais pobre entre todos: só «tem» o seu ser para dar. Toda a sua rique­ za está já no exterior de si, na criação. É por isso que a filosofia m arxista corrente oscila entre a ontologia do «m aterialism o dialéctico» que reduz a subjectividade hum ana a um a es­ fera ontológica particular (não é surpreendente que Georgi Plekhanov, o criador do term o «m aterialism o dialéctico», tivesse cham ado tam bém ao m arxism o um «espinosism o tornado dinâm ico»), e a filosofia da praxis, que, com o jovem Georg Lukács e depois dele, tom a com o seu ponto de partida e horizonte a subjectividade colectiva que estabelece/m ediatiza toda a objectividade, e é portanto incapaz de pensar a sua génese a par­ tir da ordem substancial, a partir da explosão ontológica, do B ig Bang, que lhe dá origem . — A ssim se a m orte de Cristo é «ao m esm o tem po a m orte do hom em -D eus e a M orte da abstracção inicial e im ediata do ser divino que ainda não se pôs com o para-Si»86, tal significa, com o Hegel assinalou, que aquilo que morre na Cruz não é som ente o representante finito-terreno de D eus, m as o próprio Deus, o próprio D eus transcen­ dente do Além . Os dois term os da oposição, Pai e Filho, o D eus substan­ tivo enquanto Em -si absoluto e o Deus para-nós, que nos foi revelado, m orrem e são superados no interior do Espirito Santo. A leitura habitual desta superação — Cristo «m orre» (é superado) en­ quanto representação im ediata de D eus, enquanto D eus sob a form a de pessoa hum ana finita, a fim de renascer enquanto Espírito universal / /atem poral — é dem asiado lim itada. E sta leitura deixa escapar a lição m aior que devem os aprender da Encarnação divina: a existência finita dos seres hum anos m ortais é o único lugar do Espirito, o lugar onde o Espirito consum a a sua actualidade. O que isto significa é que, a despei85 Jean-Louis Chretien, «Le Bien donne ce qu’il n’a pas», Archives de philosophie 2 (1980). 8^ Op. cit., p. 107.

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to de todo o seu poder crescente, o Espírito é um a entidade virtual no sentido em que o seu estatuto é o de um pressuposto subjectivo: só exis­ te na m edida em que os sujeitos ajam como se existisse. Este estatuto é sem elhante ao de um a causa ideológica com o o com unism o ou a nação: é a substância dos indivíduos que se reconhecem neles, é a base de toda a sua existência, o ponto de referência que proporciona às suas vidas o horizonte do sentido últim o, qualquer coisa que faz com que os indiví­ duos se disponham a dar por ela as suas vidas — e contudo a única coi­ sa realm ente existente são aqui esses m esm os indivíduos e a sua activi­ dade, de tal m aneira a substância da causa só é real na m edida em que os indivíduos acreditem nela e ajam em consequência. O erro fundam ental a evitar aqui é, portanto, o de interpretarm os o Espírito hegeliano com o um a espécie de m eta-Sujeito, um a M ente, m uito m ais vasta do que a m ente hum ana individual, consciente de si própria: quando assim proce­ dem os, H egel não pode deixar de parecer um espiritualista obscurantis­ ta ridículo, afirm ando que há um a espécie de m ega-Espírito a controlar a nossa história. Contra este cliché do «Espírito hegeliano», devem os su­ blinhar com o H egel está plenam ente consciente de que «é na consciên­ cia finita que o processo do conhecim ento da essência do espírito tom a lugar e que assim em erge a autoconsciência divina. Do efervescente fer­ m ento da finitude, em erge a fragrância do espírito»87. O que vale m uito especialm ente para o Espírito Santo: a nossa consciência, a (a u to c o n s­ ciência dos seres hum anos finitos, é o seu único lugar efectivo — ou se­ ja, o Espírito Santo tam bém surde da «efervescente ferm entação da fini­ tude.» Em L ’Otage, de C laudel, Badillon diz: «Dieu ne p eu t rien sans nous» [Deus nada pode sem nós]. É o que H egel tem aqui em m ente: em ­ bora Deus seja a substância de todo o nosso ser (hum ano), é im potente sem nós, age apenas em e através de nós — é estabelecido através da nossa actividade com o seu pressuposto. É por isso que Cristo é im passí­ vel, etéreo, frágil: um simples observador anim ado de sim patia, m as im ­ potente por si só. Podem os ver a propósito deste caso com o a superação (Aufhebung) não é directam ente a superação da alteridade, o seu regresso ao interior do m esm o, a sua recuperação pelo Uno (ou seja, no caso que nos ocupa, os indivíduos finitos/m ortais voltariam a unir-se com D eus, regressariam à sua inclusão). C om a Encarnação de C risto, a exteriorização/auto-alienação da divindade, a passagem do Deus transcendente aos indiví­ duos finitos/m ortais é um fa it accom pli, não há voltar atrás, tudo o que 87 G. W. F. Hegel, Lectures on the Philosophy of Religión, op. cit., p. 233.

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é, tudo o que «realm ente existe» são doravante indivíduos, não há Ideias platónicas ou Substâncias cuja existência seja de algum m odo «mais real.» O que é superado no m ovim ento que leva do Filho ao Espírito Santo é assim o próprio Deus: depois da crucificação, da m orte do Deus encarnado, o Deus universal regressa enquanto um Espírito da com uni­ dade dos crentes — quer dizer: ELE é o que passa de ser um a R ealida­ de substancial transcendente a um a entidade ideal/virtual que só existe com o «pressuposto» dos indivíduos agentes. A percepção com um de H egel com o um holista organicista que pensa que os indivíduos real­ m ente existentes são apenas «predicados» de um Todo substancial «su­ perior», epifenóm enos do Espírito enquanto m ega-Sujeito que efectiva­ m ente dirige o espectáculo, perde com pletam ente de vista este aspecto decisivo. O que é, então, «superado» no caso do cristianism o? Não é a realida­ de finita que é superada (negada — m antida — levada a um nível m ais elevado) no interior de um m om ento da totalidade ideal; é, pelo contrá­

rio, a própria Substância divina (Deus enquanto Coisa-em-si) que é su­ perada: negada (o que morre na cruz é afigura substancial do Deus transcendente), mas simultaneamente mantida na forma transubstanciada do Espírito Santo, a comunidade dos crentes que só existe como pres­ suposto virtual da actividade dos indivíduos finitos.

C risto e W agner E sta ordem virtual da espiritualidade colectiva (aquilo a que Hegel cham ou o «espírito objectivo» e a que Lacan cham ou o «grande Outro») está, todavia, já claram ente presente no judaísm o. E m que consiste pois a inflexão específica que o cristianism o lhe im põe? Tentemos procurar um a resposta para esta questão fundam ental em duas obras-prim as de A lfred H itchcock, um católico britânico, tal com o C hesterton. Nos tem pos pré-digitais, quando eu era adolescente, lem bro-m e de ver um a m á cópia de Vértigo [ou A Mulher Que Viveu Duas Vezes]: os últim os segundos tinham pura e sim plesm ente sido om itidos, o que fa­ zia parecer que o film e tinha um happy ending — Scottie reconciliava-se com Judy, perdoava-lhe e aceitava-a com o com panheira, no m o­ m ento em que os dois se beijavam apaixonadam ente... A m inha tese é que um tal final não é tão artificial com o poderia parecer: é antes no fi­ nal efectivo do film e que o súbito aparecim ento da M adre Superiora em ergindo das escadas funciona com o um a espécie de deus ex machina

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negativo, com o um a intrusão súbita que de m odo algum se baseia fir­ m em ente na lógica narrativa, im pedindo o final feliz. D e onde aparece a freira? Do m esm o reino das som bras pré-ontológico a partir do qual o próprio Scottie observa em segredo M adeleine na loja de flores. E é aqui que devem os situar a continuidade oculta que existe entre Vertigo e Psycho: a M adre Superiora aparece do m esm o vazio do qual — «de par­ te nenhum a» — , N orm an aparece na sequência do assassínio no chuvei­ ro de P sycho, atacando brutalm ente M arion, interrom pendo o ritual de reconciliação da lavagem 88. E deverem os seguir até ao fim nesta direcção: num a estranha hom ologia estrutural com a dim ensão entre-dois-enquadram entos de um a obra de pintura, m uitos film es de H itchcock parecem assentar num a dim ensão entre-duas-narrativas. Eis um a experiência m ental sim ples a que pode­ m os proceder com duas das obras-prim as tardias de Hitchcock: que di­ ríam os se Vertigo acabasse depois do suicídio de M adeleine, com um Scottie destroçado a ouvir M ozart num a casa de saúde? E que diríam os se Psycho acabasse segundos antes do assassínio no chuveiro, com M a­ rion rebrilhante de jorros de água, purificando-se? Em am bos os casos, o resultado teria sido um breve film e coerente. No caso de Vertigo, seria o dram a da destruição causada pelo desejo m asculino violentam ente ob­ sessivo: é a própria natureza excessiva-possessiva do desejo m asculino que o tom a destrutivo em relação ao seu objecto — o am or (m asculino) é um assassínio, com o Otto W eininger sabia há já m uito tem po. Quanto a Psycho, seria um conto moral sobre um a catástrofe evitada no últim o m inuto: M arion com ete um delito m enor, ao fugir com o dinheiro rou­ bado para se juntar ao am ante; pelo cam inho, encontra N orm an que é com o que um a figura de alerta m oral, tom ando visível a M arion o que a espera no fim da jornada caso enverede pelo trilho errado; essa visão as­ sustadora desperta-a, e ela vai para o quarto, planeia o regresso e tom a um duche, com o que para se lavar da sua sujidade m o ra l... N os dois ca­ sos, portanto, aquilo que som os levados de início a considerar um a his­ tória com pleta é subitam ente deslocado, re-enquadrado, ressituado ou suplem entado por um a outra história, de certo m odo de acordo com a ideia que Borges encara no conto inicial de Ficções, culm inando na prooo

00 No subestimado A Cortina Rasgada (Tom Curtain), este mundo das trevas é a RDA

comunista. O motivo do fogo (durante a lista dos créditos e na sequência do bailado) in­ dica o inferno, e a narrativa do filme encena uma viagem ao outro lado da cortina (que divide a nossa realidade do mundo das trevas) até ao mundo das trevas. Não será, por­ tanto, o Professor Lindt, objectivo da viagem, uma figura de amável Diabo?

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p osição: «Un libro que no encierra su contra-libro es considerado in­ completo» (« U m liv ro q u e n ão co n ten h a o seu co n tra-livro é co n sid era­ do in co m p leto » ). N o seu sem in ário de 2 0 0 5 -2 0 0 6 , Ja cq u e s-A la in M iller trab alh o u e sta id eia, referin d o -se a u m tex to de R icard o P ig lia 89. P ig lia citav a co m o ilu stração da tese de B orges u m conto de M ich ael T chekhov cujo n ú cleo p o d em o s re su m ir assim : « U m h o m em vai ao casin o de M o n ­ te C ario , g an h a u m m ilh ão , v o lta p a ra casa e com ete suicídio»: Se é este o núcleo da história, devemos, para a contar, dividir a sua in­ triga retorcida em duas histórias: por um lado, a história do jogo; por ou­ tro, a do suicídio. Temos assim a primeira tese de Piglia: uma história tem sempre uma dupla característica e conta sempre duas histórias ao mesmo tempo, o que introduz a oportunidade de distinguirmos a história que apa­ rece no primeiro plano da história número 2, codificada nos interstícios da história número 1. Devemos notar que a história número 2 só aparece na conclusão da história, e que tem um efeito de surpresa. O que reúne as duas histórias é o facto de os elementos, os acontecimentos, se inscreve­ rem em dois registos narrativos que são ao mesmo tempo distintos, simul­ tâneos e antagónicos, e de a própria construção da história ser suportada pela junção das duas histórias. As peripécias que parecem supérfluas no desenvolvimento da história número 1 tom am -se pelo contrário essenciais na intriga da história número 2. [...] Há um a moderna forma da história que transforma esta estrutura omi­ tindo a surpresa do final sem fechar a estrutura da história, o que deixa o traço de um a narrativa, enquanto a tensão das duas histórias nunca chega a resolver-se. Eis o que consideramos como caracteristicamente moderno: a subtracção do ponto de ancoragem final que permite que as duas histó­ rias continuem numa tensão não-resolvida. É o que se passa, diz Piglia, com Hemingway, que levou a elipse ao seu ponto mais elevado de tal modo que a história secreta se mantém hermé­ tica. Damo-nos simplesmente conta de que há uma outra história que se­ ria necessário contar, mas que permanece ausente. Há um buraco. Se mo­ dificássemos a descrição de Tchekhov à maneira de Hemingway, aquela não narraria o suicídio, mas o texto articular-se-ia antes de tal maneira que poderíamos pensar que o leitor já o conhecia. Kafka representa uma outra destas variantes. Narra com extrema simplicidade, nos seus romances, a história mais secreta, uma história secreta que aparece no primeiro plano, 89 O texto de Piglia que Miller cita sem apresentar referências explícitas é «Tesis sobre el cuento». Revista Brasileira de Literatura Comparada, vol. 1 (1991), pp. 22-25.

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Slavoj Zizek contada como que por si só, e codifica a história que deveria ser visível, mas se tom a, pelo contrário, enigmática e o c u lta .^

Voltando aos film es Vertigo e Psycho de H itchcock, não estará preci­ sam ente a estrutura da narrativa distorcida/cortada nos dois film es? Em ambos os casos, a história núm ero 2 (a viragem m arcada por Judy e por N orm an) só aparece quando a história parece concluída, e tem decerto um efeito de surpresa; nos dois casos, os dois registos narrativos são ao m esm o tem po distintos, sim ultâneos e antagónicos, e a própria constru­ ção da história é suportada pela junção entre as duas histórias. As peri­ pécias que parecem supérfluas no desenvolvim ento da história núm ero 1 (como a intrusão totalm ente contingente do m onstro assassino em P sycho), tom am -se essenciais na intriga da história núm ero 2. Podem os assim im aginar perfeitam ente, nestes term os, Psycho num a versão de H em ingw ay ou de Kafka. O m odo de proceder de H em ingway aparece exem plarm ente em «Killers», o seu conto m ais conhecido, que, em dez páginas som ente, relata num estilo conciso a chegada de dois as­ sassinos a um a pequena cidade de província; instalam -se num snack, à es­ pera de encontrarem o m isterioso «Swede» que têm por objectivo matar. O jovem amigo de Swede escapa-se do snack e inform a aquele de que há dois assassinos que se preparam para o matar, mas Swede está tão deses­ perado e resignado que m anda o rapaz ir-se em bora e fica calm am ente à espera dos dois hom ens. A «segunda história», a explicação do enigm a (do que aconteceu a Swede que fica assim calm am ente à espera da m or­ te), nunca é contada. (O film e de série negra clássico que se baseia nesta história, tenta preencher o vazio: por meio de sucessivos flashbacks, a «segunda história», a traição de u m afem m e fa ta le , é contada em porm e­ nor.) N a versão de Hemingway, a história de N orm an perm aneceria her­ mética: o espectador dar-se-ia sim plesm ente conta de que há um a outra história (de N orm an) por contar, m as que se m antém ausente — há um buraco. N a versão de K afka, a história de N orm an apareceria em pri­ m eiro plano, contada com o que por si só: o universo insólito de Norm an seria directam ente narrado, enquanto a história de M arion apareceria em código e enquadrada pelo horizonte de N orm an, narrada em term os enig­ m áticos e oculta. Im aginem os sim plesm ente a conversa entre M arion e N orm an nos aposentos privados deste, antes do assassínio no chuveiro: tal com o a tem os de facto, o nosso ponto de identificação é M arion, e N orm an surge com o um a presença bizarra e am eaçadora. Que se passa­ 90 Jacques-Alain Miller, «Profane Illuminations», lacanian ink 28, pp. 12-13.

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ria se a ce n a fo sse re fe ita to m an d o N o rm a n com o n o sso po n to de id en ti­ fic a ç ã o , de tal m an eira que as p erg u n tas « com uns» de M arió n surgissem co m o aq u ilo que m u itas vezes co m efeito são — in trusões in sen sív eis e cru éis no m u n d o de N o rm an ? N ão é de ad m irar que B orges g o stasse de ro m ances p o liciais, género que ex em p lific a a d u p la h istória: tu d o o q u e im p o rta n a investig ação do d etectiv e é q u e ele, no fin al, seja capaz de c o n tar u m a c o n tra -h istó ria («o que realm en te aco n teceu » ) sobre a h istó ria co n fu sa d a o co rrên cia do h o ­ m icíd io . São e sp ecialm en te in teressan tes aqui as histó rias policiais que ele v a m este p ro ced im en to a um n ív el au to -reflex iv o do segundo grau, co m o aco n tece co m O Caso do Papagaio Perjuro [The Case o fth e Perju red Parrot ] de E rle S tan ley G ard n er, o nde o p ró p rio fin al é o b jecto de u m red o b ram en to : P erry M aso n c o m eça p o r o ferec er u m a ex p licação (a n arrativ a do que « realm en te a c o n te c e u » ), e a seguir, não satisfeito com ela, acab a p o r p ô -la de p arte e ap resen tar u m a seg u n d a solução, co rrec­ ta. A g ath a C h ristie o ferece-n o s u m a v arian te do m esm o jo g o q u an d o , nas duas v ersõ es, a do ro m a n c e e a d a p e ç a de te atro , de M orte entre as R u í­ nas [The A ppointem ent with D eath ], a p resen ta u m d esen lace diferente p a ra a m e sm a h istó ria. A g a th a C h ristie atinge de u m m o d o geral o m e ­ lh o r dos seus recu rso s q u an d o ex p lo ra to d as as p o ssib ilid ad es form ais de d esen lace de um policial: assim , o assassin o po d e ser o grupo co m pleto dos su sp eito s (em Um Crime no Expresso do Oriente — sendo a co n se ­ q u ên cia id eo ló g ica n ec e ssá ria d esta solu ção q u e, u m a vez que a so cied a­ de e n q u an to ta l n ão p ode ser c u lp ad a, a v ítim a d e v erá co in cid ir co m o assassin o , o v e rd ad eiro crim in o so , o q u e tran sfo rm a a sua m o rte v io le n ­ ta n ão n u m h o m ic íd io , m as n u m castig o ju stific ad o ); ou o assassino p o ­ de ser a p ró p ria p e sso a q u e d esco b re o crim e (A D iabólica Casa Isola­ da! Peril at the E nd H ousé)\ o u p o d e ser o pró p rio P o iro t (em O Último Caso de Poirot, ou C urtain, co m o su g estiv am en te se lê no títu lo o rig i­ n al, e, de n o v o , c o m u m a v ariação sobre o m o tiv o do Expresso do O rien­ te de u m a v ítim a q u e é o v erd ad eiro crim in oso); P o iro t pode ig u alm ente in v e stig a r u m crim e em p re p a ra çã o , im p ed in d o -o no ú ltim o m o m e n to , e salv an d o assim a alm a de u m tipo sim pático q u e, n u m a situação d e ses­ p erad a, p la n e ia u m h o m icíd io (Poirot Salva o C rim inoso/W asp’s Nest)\ e, p o r fim , o assassin o p ode ser o p ró p rio n a rrad o r ingénuo d a histó ria, u m a im ag em v iv a d a d ecê n c ia co rren te (em O A ssassinato de R oger Ackroyd/The M urder o f R oger A ckroyd) . A este p ro p ó sito , dev eríam o s m e n ­ c io n ar aq u i Wh o Killecl R oger A ckroyd? . o excelen te en saio literário de P ierre B a y a rd , q u e, p o r m eio das arm as d a ló g ica e da p sica n álise , d e ­ m o n stra co n clu d en tem en te q u e a solução a p resen tad a p o r P o iro t é falsa,

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que Poirot se torna vítim a da sua própria paranóia e im põe um a constru­ ção que deixa num erosos indícios por explorar91. A solução de B ayard é que o verdadeiro assassino é a irm ã do narrador, um a solteirona que co­ nhece todos os segredos da pequena cidade — a explicação segundo a qual o narrador confessa o crim e a fim de proteger a irm ã (sabendo que ela com eteu o crim e para o ajudar e saldando assim a sua dívida para com ela) e a seguir se envenena dá m uito m ais efectivam ente conta do conjunto dos dados disponíveis. (A hipótese de B ayard não diz que esta am biguidade seja um efeito produzido pelos m ecanism os inconscientes de A gatha C hristie, m as sustenta que a autora tinha perfeita consciência do que estava a fazer, escrevendo o rom ance com o um a arm adilha, ou um desafio destinado aos leitores realm ente atentos.) O que Bayard nos proporciona é, portanto, um a vez m ais, a contra-história da história ofi­ cial do rom ance. N o seu m ais recente L ’affaire du chien des Baskerville92, B ayard apli­ ca o m esm o m étodo de critique policière (crítica literária de detective) ao clássico de C onan Doyle: dem onstra que, aceitando na íntegra o con­ teúdo do rom ance, há um a solução para o m istério m uito m elhor do que a proposta p or Sherlock Holm es no final: o assassino não é Jack Stapleton, m as a sua esposa B eryl, e o verdadeiro hom icídio é o do próprio Jack (que desaparece no pântano), e não os de C harles B askerville e Selden, que são sim ples acidentes inteligentem ente utilizados por B eryl p a­ ra se vingar do seu m arido infiel. Bayard com para O Cão dos Baskervil­ le/The Houncl o f Baskerville com Contagem Até Zero/Towards Zero, rom ance no qual Nevile Strange, tenista profissional, m ata a sua velha tia Lady Tressilian, e dispõe depois na cena do crim e duas séries de in­ dícios: a prim eira (e bastante óbvia) im plica-o no crim e, enquanto a se­ gunda (m uito m ais subtil) acusa a sua ex-m ulher A udrey, que é então de­ tida não só pelo assassinato de Lady Tressilian, m as tam bém por tentativa de incrim inação do seu ex-m arido. Pouco antes do seu enforca­ m ento, o superintendente B attle descobre a verdade: o hom icídio de Lady Tressilian era, por si só, insignificante, um a vez que o verdadeiro propósito do assassino era m atar a sua ex-m ulher Audrey, para o que n e­ cessitava da investigação policial que conduzisse à sua detenção e en­ forcam ento. O m esm o vale para O Cão dos Baskerville, em bora com um a dupla torção: os hom icídios supérfluos anteriores não têm lugar, a assassina sim plesm ente consegue im por a H olm es a leitura dos factos no 91 Pierre Bayard, Who Killed Roger Ackroyd?, Nova York, The New Press, 2000. 9^ Pierre Bayard, L ’affaire du chien des Baskerville, Paris, Éditions de Minuit, 2008.

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sentido de inculparem o seu m arido; a assassina é bem -sucedida no seu plano, Holm es é ludibriado... M as com o funciona, ao certo, esta m ano­ bra? O (aspecto do) prim eiro hom icídio é exibido de m odo a atrair as atenções do investigador ou da polícia, e daí o erro fundam ental de H ol­ m es, m ais grave do que a sua m á leitura dos indícios: Holm es esquece-se de se incluir a Si p r ó p r i o , o seu próprio investim ento de investiga­ dor, no quadro do crim e — quer dizer: não vê que a aparência de um crime fo i posta em cena para atrair o seu olhar, a fim de o envolver no caso (e assim , conform e o assassino esperava, ele acabará por acusar co­ m o causadora da m orte a pessoa errada). Estam os aqui perante um redobram ento reflexivo: aquilo que o detective vê com o um a realidade a des­ cobrir, com o m istério a explicar, é já um a história que foi contada para atrair o seu interesse. Eis com o, a partir de um a perspectiva adequadam ente hegelo-lacaniana, podem os subverter a narrativa linear convencional fechada sobre si própria: não por m eio da dispersão pós-m odem a por um a m ul­ tiplicidade de narrativas locais, m as por m eio do seu redobram ento nu­ m a contranarrativa escondida. (É por isso que o rom ance policial clássi­ co se assem elha tanto ao processo psicanalítico: tam bém nele, os dois registos narrativos — a história visível da descoberta do crim e e a sua in­ vestigação pelo detective, e a história oculta daquilo que na realidade aconteceu — são «ao m esm o tem po distintos, sim ultâneos e antagóni­ cos, e a própria construção da história é suportada pela junção entre as duas histórias».) E um a das m aneiras de conceptualizar a luta de classes não será tam bém esta divisão entre as duas narrativas que são «ao m es­ m o tem po distintas, sim ultâneas e antagónicas, e a própria construção da história é suportada pela junção entre as duas histórias»? Se com eçarm os por contar a história do ponto de vista da classe dom inante, m ais cedo ou m ais tarde chegam os a um a lacuna, a um ponto no qual em erge qualquer coisa que não faz sentido no interior do horizonte dessa história, qual­ quer coisa que experim entam os com o um a brutalidade sem sentido, qualquer coisa de sem elhante à intrusão inesperada da figura assassina na cena do chuveiro de Psycho. E m 1922, o governo soviético organizou a expulsão forçada de intelectuais anticom unistas destacados, de filóso­ fos e teólogos a econom istas e historiadores. Partiram da R ússia para a A lem anha a bordo de um navio conhecido pelo nom e de Vapor da Filo­ sofia. A ntes da expulsão, N ikolai Lossky, um dos intelectuais forçados a exilar, gozava com a sua fam ília de um a existência confortável de alta burguesia, assistida por criados e am as de crianças. A ssim ,

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Slavoj Zizek era simplesmente incapaz de compreender quem queria destruir o seu mo­ do de vida. Que tinham feito os Losskys e os seus congéneres? Os seus fi­ lhos e os seus amigos, tendo herdado o melhor do que a Rússia tinha para oferecer, contribuíam para encher o mundo de discursos sobre a literatura e a música, e viviam amenamente. Que mal havia nisso?93

Para darm os conta do elem ento estranho que intervém aqui, terem os de passar à «história núm ero 2», a história do ponto de vista dos explorados. Para o m arxism o, a luta de classes não é a narrativa om nienglobante da nossa história, é um em bate irredutível de narrativas. — E não acontece­ rá o m esm o com o Israel de hoje? M uitos israelitas amigos da paz con­ fessam a sua perplexidade: tudo o que querem é a paz e um a vida parti­ lhada com os palestinianos, estão dispostos a fazer concessões, mas porque os odeiam tanto os palestinianos, porquê os atentados suicidas que m atam mulheres e crianças inocentes? O que há a fazer aqui é, evidente­ m ente, com pletar esta história através da sua contra-história, a história do que significa ser-se palestiniano nos territórios ocupados, estar-se subm e­ tido às centenas de regulam entos da m icrofísica burocrática do poder — por exem plo, o agricultor palestiniano só pode abrir um poço na terra pa­ ra procurar água cuja profundidade não exceda os três pés, enquanto um agricultor judeu pode cavar o poço até à profundidade que entender. Encontram os um em bate de narrativas sem elhante no núcleo central do cristianism o. U m a das poucas publicações efectivam ente progressis­ tas que subsistem nos EU A , Weekly World N ew s, referia-se a um a pro­ digiosa descoberta recente94: tinham sido encontrados por arqueólogos dez m andam entos adicionais, bem com o sete «conselhos» de Jeová ao seu povo; uns e outros são suprim idos pelo judaísm o e pelo cristianism o estabelecidos porque são um claro incitam ento ao com bate progressista de hoje, m ostrando sem m argem para dúvidas que Deus tom a partido nas nossas lutas políticas. Por exem plo, o X I m andam ento é: «Tolerarás a fé dos outros com o desejarias que tolerassem a tua» (na origem , este m andam ento destinava-se aos judeus que se opunham a que os escravos egípcios que se haviam juntado ao Êxodo continuassem a praticar a sua religião). O m andam ento XIV («Não inalarás folhas incandescentes nu-

93 Lesley Chamberlain, The Philosophy Steamer, Londres, Atlantic Books, 2006,pp. 23-24. Para evitar mal-entendidos, gostaria de declarar expressamente que considero a de­ cisão de expulsar os intelectuais antibolcheviques inteiramente justificada. 94 «The Ten Commandments Were Just the Beginning...», Weekly World News, 6 de No­ vembro de 2006, pp. 24-26.

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m a casa de repasto onde o fum o poderá lesar a respiração de outrem ») sustenta claram ente a proibição de fum ar em lugares públicos; o m an­ dam ento X V III («Não erguerás um tem plo de jogo no deserto, onde to­ da a vontade se tornará lasciva») previne contra Las Vegas, em bora ori­ ginalm ente visasse as pessoas que organizavam jogos no deserto nas proxim idades do acam pam ento dos judeus itinerantes; o m andam ento X IX («O teu corpo é sagrado e não deves alterar a todo o m om ento o teu rosto ou o teu peito. Se o teu nariz te ofende, deixa-o intacto») alerta contra a vaidade da cirurgia plástica, enquanto o alvo do X V I m anda­ m ento («Não elegerás um louco para te guiar. Se o elegeres duas vezes, o teu castigo será a m orte por lapidação») é nitidam ente a reeleição do presidente B ush. M ais eloquentes ainda são alguns dos conselhos; o se­ gundo conselho («Não procures a guerra nas M inhas Terras Santas, por­ que elas se hão-de m ultiplicar e de afligir toda a civilização») prevê com lucidez as am eaças globais do conflito do M édio O riente, e o terceiro conselho («Evita a dependência dos negros óleos espessos do solo, por­ que eles vêm do reino de Satanás») é um a defesa das form as de energia lim pa. Estarem os nós dispostos a ouvir a palavra de Deus e a obedecer-lhe? H á um a questão fundam ental que deve ser levantada aqui, para além da satisfação irónica que os gracejos acim a transcritos nos possam pro­ porcionar: não será a busca de m andam entos suplem entares um a outra versão da busca do contralivro sem o qual o livro principal perm anece incom pleto? E na m edida em que o Livro a suplem entar é em últim a aná­ lise o A ntigo Testam ento, o seu contralivro não será sim plesm ente o N o­ vo Testam ento? Tal seria um a m aneira de dar conta da estranha coexis­ tência de dois livros sagrados no cristianism o: o Antigo Testam ento, O L ivro partilhado pelas três «religiões do livro», e o N ovo Testam ento, o contralivro que define o cristianism o e (deste ponto de vista, evidente­ m ente) com pleta o Livro, de tal m aneira que podem os com efeito dizer que «a própria construção da B íblia é suportada pela junção entre os dois T estam entos»... Esta operação am bígua de suplem entar-com pletar está sobretudo im plícita nos versículos sobre a observância da L ei do Serm ão da M ontanha, quando vem os Jesus radicalizar os M andam entos (M ateus, 5, 17-48): Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição. Porque em verdade vos digo: Até que passem o céu e a terra, não passará um só jota ou um só ápice da Lei, sem que tudo se cumpra.

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Slavoj Zizek Portanto, se alguém violar um destes preceitos mais pequenos, e ensi­ nar assim aos homens, será o menor no Reino do Céu. Mas aquele que os praticar e ensinar, esse será grande no Reino do Céu. Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não superar a dos doutores da Lei e dos fariseus, não en­ trareis no Reino do Céu.

[■■.] Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás. Aquele que matar te­ rá de responder em juízo. Eu, porém, digo-vos: Quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o tribunal.

[■■·] Ouvistes o que foi dito: Não cometerás adultério. Eu, porém, digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adul­ tério com ela no seu coração. Portanto, se a tua vista direita for para ti origem de pecado, arranca-a e lança-a fora, pois é melhor perder-se um dos teus órgãos do que todo o teu corpo ser lançado à Geena. E se a tua mão direita for para ti origem de pe­ cado, corta-a e lança-a fora, porque é melhor perder-se um só dos teus membros do que todo o teu corpo ser lançado à Geena. ?Também foi dito: Aquele que se divorciar da sua mulher, dê-lhe do­ cumento de divórcio. Eu, porém, digo-vos: Aquele que se divorciar da sua mulher — excepto em caso de união ilegal — expõe-a a adultério, e quem casar com a divorciada comete adultério. ?Do mesmo modo, ouvistes o que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás diante do Senhor os teus juramentos. Eu, porém, digo-vos: Não jureis de maneira nenhuma: nem pelo Céu, que é o trono de Deus, nem pela Terra, que é o estrado dos seus pés, nem por Jerusalém, que é a cidade do grande Rei. Não jures pela tua cabeça, porque não tens poder de tornar um só dos teus cabelos branco ou preto. Seja este o vosso modo de falar: Sim, sim; não, não. Tudo o que for além disto procede do espírito do mal. ?Ouvistes o que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, digo-vos: Não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na fa­ ce direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém quiser litigar contigo pa­ ra te tirar a túnica, dá-lhe também a capa. E se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas a quem te pedir emprestado. ?Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimi­ go. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos

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perseguem. Fazendo assim, tomar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E, se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraor­ dinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste.*

A interpretação católica oficial desta série de preceitos suplem entares é a de um a Perspectiva de Critério D uplo, que divide os ensinam entos do Serm ão em preceitos de ordem geral e conselhos específicos: a obe­ diência aos preceitos gerais é essencial para a salvação, m as a obediên­ cia aos conselhos som ente é necessária para a perfeição, ou, com o es­ creve S. Tomás de A quino (D id . 6,2): «Porque se fores capaz de suportar todo o jugo do Senhor, serás perfeito; m as se não fores capaz de tanto, faz aquilo que puderes.» Em resum o, a Lei é para todos, enquanto o seu suplem ento é apenas para os perfeitos. M artinho Lutero rejeitou esta abordagem católica e propôs um sistem a de dois níveis diferentes, a que se cham ou a Perspectiva dos D ois R ein o s, dividindo o m undo nos reinos religioso e secular, e afirm ando que o Serm ão se aplica apenas no dom í­ nio espiritual: no m undo tem poral, as obrigações para com a fam ília, os patrões e o país forçam os crentes ao com prom isso; assim , um ju iz de­ verá seguir as suas obrigações seculares ao condenar um crim inoso, m as deverá lam entar tam bém o destino do crim inoso. É m anifesto que estas duas versões resolvem a tensão introduzindo um a ruptura entre os dois dom ínios e lim itando as injunções m ais severas ao segundo dom ínio. Com o seria de esperar, no caso do catolicism o, esta ruptura m anifesta-se exteriorm ente na distinção entre dois tipos de pes­ soas, as pessoas com uns e os perfeitos (santos, m o n g es...), enquanto no Protestantism o, a ruptura é interiorizada entre o m odo de agir em relação aos outros na esfera secular e o m odo de relação interior com eles. Serão, todavia, estas as duas únicas leituras possíveis da operação em causa? U m a referência (talvez surpreendente) a R ichard W agner talvez nos pos­ sa aqui ajudar — um a referência ao seu esboço de um a peça cham ada Je­ sus de N azaré, escrita algures entre os finais de 1848 e os com eços de 1849. Juntam ente com o libretto A Sarracena (D ie Sarazenin, escrito em 1843, entre O H olandês Errante e Tannhauser), o esboço docum enta um * Bíblia Sagrada, Fátima, Difusora Bíblica, s.d. (N. T.)

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aspecto fundam ental do desenvolvim ento de Wagner: cada um dos dois textos indica um a via que poderia ter sido seguida, m as que foi abando­ nada — ou seja, aponta para a conjectura de um W agner alternativo, e recorda-nos assim o carácter aberto da história. A Sarracena é, depois de W agner ter descoberto a sua voz no Holandês, o últim o contra-ataque do Gr and Opera, um a repetição de Rienzi — se W agner tivesse m usicado o texto e se a ópera tivesse conhecido um triunfo com o o de Rienzi, é pos­ sível que W agner tivesse sucum bido a esta últim a tentação meyerbeeriana e se tivesse transform ado num com positor com pletam ente diferente. De m odo análogo, um par de anos mais tarde, depois de ter esgotado o seu potencial no que se refere à ópera rom ântica com Lohengrin e ter co­ m eçado a procurar outro cam inho, a peça Jesus volta a representar um a via que difere em profundidade da dos dramas m usicais e do seu univer­ so «pagão»: Jesus é qualquer coisa com o um Parsifal que tivesse sido di­ rectam ente descrito, sem o longo rodeio do Ring. O que, entre outras coi­ sas, W agner propõe com Jesus — o que W agner atribui no texto a Jesus — é um a série de alternativas destinadas a suplem entar os M andamentos: O mandamento diz: Não cometerás adultério! Mas eu digo-te: Não ca­ sarás sem amor. Um casamento sem amor quebra-se assim que começa, e quem prometeu sem amor, quebrou já o casamento. Se seguires o meu mandamento, como o quebrarás, se ele te ordena que faças o que o teu co­ ração e a tua alma desejam? — Mas se casares sem amor, faltarás ao amor de Deus, e pecarás contra Deus casando; e esse pecado castigar-te-á pondo-te depois contra a lei humana, porque te fará quebrar as promessas do casamento.95 A inflexão im posta às palavras de Jesus é aqui decisiva: Jesus «inte­ rioriza» a proibição, tornando-a m uito m ais severa (a Lei proíbe o adul­ tério consum ado, enquanto eu digo que quem cobiça sim plesm ente a m ulher de outrem no seu pensam ento, já com eteu adultério, etc.); W ag­ ner tam bém a interioriza, m as de m odo diferente — a dim ensão interior que ele invoca não é a da intenção, m as a do am or que deve acom panhar a Lei (o casam ento). O verdadeiro adultério não é a copulação fora do casam ento, m as a copulação sem am or no interior do casam ento: o sim ­ ples adultério não faz m ais do que violar a Lei do lado de fora, enquan­ to o casam ento sem am or a destrói por dentro, virando a letra da L ei con95 Richard Wagner, Jesus o f Nazareth and Other Writings, Lincoln e Londres, University of Nebraska Press, 1995, p. 303.

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tra o seu espírito. A ssim , para parafrasearm os B recht um a vez mais: o que é um simples adultério com parado com o casam ento (que sem am or se tom a adultério)! Não é por acaso que a fórm ula subjacente de W agner — «o casam ento é o adultério» — evoca «a propriedade é o roubo» de Proudhon: na tem pestade dos acontecim entos de 1848, W agner era não só um feuerbachiano que celebrava o am or sexual, m as tam bém um re­ volucionário proudhoniano que reclam ava a abolição da propriedade pri­ vada; não é assim de adm irar que, um pouco adiante na m esm a página, W agner atribua ao preceito de Jesus «Não roubarás» um suplem ento proudhoniano: Também esta é uma boa lei: Não roubarás, nem cobiçarás os bens de outro homem. Quem vai contra ela, peca: mas eu preservo-te desse peca­ do, pois que te ensino: Ama o teu próximo como a ti mesmo, o que tam­ bém quer dizer: Não reserves tesouros para ti, roubando o teu próximo e matando-o de fome: pois quando tens os teus bens protegidos pela lei do homem, provocas o teu próximo a pecar contra a lei .96

É assim que o «suplem ento» cristão ao Livro deveria ser concebido: com o um a «negação da negação» propriam ente hegeliana, que consiste na passagem decisiva da distorção de uma ideia a um a distorção consti­ tutiva dessa ideia — quer dizer: a essa ideia enquanto distorção-em -si. Lem brem o-nos da velha divisa dialéctica de Proudhon: «a propriedade é o roubo»: a «negação da negação» é aqui a passagem do roubo enquan­ to distorção («negação», violação) da propriedade à dim ensão de roubo inscrita na própria ideia de propriedade (ninguém tem o direito a dispor de m eios de produção exclusivam ente seus, a natureza dos m eios de pro­ dução é colectiva por inerência, por isso a pretensão «Isto é m eu» é ile­ gítim a) . O m esm o vale para o crim e e para a L e i, para a passagem do cri­ m e enquanto distorção («negação») da lei ao crim e que sustenta a própria lei — quer dizer: à ideia da própria Lei enquanto crim e univer­ salizado. D evem os notar que, nesta ideia de «negação da negação», a unidade englobante dos dois term os opostos é a «inferior», a «transgressiva»: não é o crim e que é um m om ento da autom ediação da lei (ou o roubo que é um m om ento da autom ediação da propriedade); a oposição do crim e e da lei é inerente ao crim e, a lei é um a subespécie do crim e, a negação auto-referencial do crim e (do m esm o modo que a propriedade é a negação auto-referencial do roubo). E não se passará a m esm a coisa, 96 Wagner, op. cit., pp. 303-304.

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em últim a instância, com a própria natureza? A qui, a «negação da nega­ ção» é a passagem da ideia de que estam os a violar um a ordem natural equilibrada à ideia de que im porm os ao R eal essa noção de ordem equi­ librada é em si m esm a a m aior das violações... e é por isso que a pre­ m issa, ou até o prim eiro axiom a, de toda a ecologia radical só pode ser: «não há N atureza». Estas linhas não podem deixar de evocar as célebres passagens do M a­ nifesto Comunista que respondem à acusação burguesa de que os com u­ nistas querem abolir a liberdade, a propriedade e a fam ília: é a própria li­ berdade capitalista que é efectivam ente a liberdade de com prar e vender no m ercado e por isso a própria form a da não-liberdade para os que não têm m ais do que a sua própria força de trabalho para vender; é a própria propriedade capitalista que significa a «abolição» da propriedade para os que não possuem m eios de produção; é o próprio casam ento burguês que é a prostituição organizada... em todos estes casos, a oposição exterior é interiorizada, de tal m odo que um dos contrários se torna a form a apa­ rente do outro (a liberdade burguesa é a form a aparente da não-liberdade da m aioria, etc.). Todavia, para M arx, pelo m enos no caso da liberdade, isto significa que o com unism o não abolirá a liberdade, m as, através da abolição da escravatura capitalista, trará a liberdade efectiva, a liberdade que deixará de ser a form a aparente do seu contrário. N ão é portanto a própria liberdade que é a form a aparente do seu contrário, m as som ente a falsa liberdade, a liberdade distorcida pelas relações de dom inação. N ão é, assim , que, subjacente à dialéctica da «negação da negação», se im ponha im ediatam ente aqui um a aproxim ação «norm ativa» haberm asiana: com o podem os falar do crim e se não tiverm os um a ideia anterior da ordem legal que a transgressão crim inosa viola? P or outras palavras, não será a ideia de lei enquanto crim e universalizado/autonegado autodestrutiva? E precisam ente isto o que um a abordagem verdadeiram ente dialéctica rejeita: o que existe antes da transgressão é um sim ples estado de coisas neutro, nem bom nem m au (nem propriedade nem roubo, nem lei nem crim e); o equilíbrio deste estado de coisas é depois violado, e a norm a positiva (Lei, propriedade) em erge com o um m ovim ento deriva­ do, um a tentativa de contrariar e conter a transgressão. Em term os de dialéctica da liberdade, isto significa que é a própria liberdade «burgue­ sa, alienada» que cria as condições e abre o espaço à liberdade «efecti­ va». E sta lógica hegeliana opera no universo de W agner, e a m ensagem fi­ nal do Parsifal é um a m ensagem profundam ente hegeliana: A ferida só pode ser sarada pela lança que a rasgou (Die Wunde schliesst der Speer

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nur der Sier schlug). H egel diz a m esm a coisa, em bora ponha a tónica na direcção oposta: o Espírito é ele próprio a ferida que tenta sarar — o que significa que a ferida é um a ferida auto-infligida97. M as o que é o «Es­ pírito» ao seu nível m ais elem entar senão a «ferida» da natureza? O su­ jeito é o poder im enso — absoluto — da negatividade, introduzindo um a lacuna/corte na unidade substantiva im ediatam ente dada; é o poder de diferenciar, de «abstrair», de cindir e tratar com o auto-subsistente aqui­ lo que é na realidade parte de um a unidade orgânica. E por isso que a ideia da «auto-alienação» do Espírito (do Espírito que se perde na sua alteridade, na sua objectivação, no seu resultado) é m ais paradoxal do que pode parecer: deve ser lida em ligação com a afirm ação que H egel adian­ te do carácter radicalm ente não-substancial do Espírito: não há res cogitans, não há coisa que (a título de exercer um a propriedade sua) tam bém pense, o espírito nada é para além do processo de superação do im edia­ to natural, do cultivo deste im ediato, do seu refugiar-se-em -si-m esm o ou do seu «arrancar-se» de si, do seu - porque não? — alienar-se. O para­ doxo é assim que não existe Sujeito que preceda a «auto-alienação» do Espírito: é o próprio processo de alienação que cria/engendra o «Si-m esm o» do qual o Espírito se aliena e ao qual retom a. [Hegel inverte aqui a ideia estabelecida segundo a qual um a versão falhada de X pres­ supõe X com o sua norm a (medida): só através de repetidas tentativas de o alcançar, X é aqui criado e traçado o seu espaço.] A auto-alienação do Espírito é a m esm a alienação, coincide plenam ente com a alienação, que o aliena do seu Outro (a natureza), porque o Espírito se constitui a si m esm o através do seu «regresso a si» a partir da sua im ersão na Alteridade natural. P or outras palavras, o «regresso a si» do Espírito cria a pró­ pria dim ensão à qual o Espírito regressa. (O que vale para todos os «re­ gressos às origens»: quando, a partir do século XIX, se com eçaram a constituir Estados-nação na Europa C entral e de Leste, era a sua desco­ berta e regresso às «velhas raízes étnicas» que engendrava essas raízes.) O que isto significa é que a «negação da negação», o «regresso a si» a partir da alienação, não acontece onde parece acontecer: na «negação da negação», a negatividade do Espírito não é relativizada, subsum ida por um a positividade englobante; é, pelo contrário, a «negação sim ples» que se m antém ligada à positividade pressuposta que nega, à A lteridade pres­ suposta da qual se aliena, e a «negação da negação» não é m ais do que a negação do carácter substancial desta A lteridade, a plena aceitação do abism o da auto-referência do Espírito que estabelece retrospectivam ente 97 G. W. F. Hegel, Aesthetics, Volume 1, Oxford, Oxford University Press, 1998, p. 98.

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todos os seus pressupostos. Por outras palavras, um a vez que entrám os na negatividade, nunca m ais a deixam os, e não voltam os a recuperar a inocência perdida das Origens; pelo contrário, é só na «negação da ne­ gação» que as Origens verdadeiram ente se perdem , que a sua própria perda é perdida, que elas são privadas do estatuto substantivo do que foi perdido. O Espírito sara as suas feridas não por m eio de um a cura direc­ ta, m as desem baraçando-se do próprio C orpo com pleto e são no qual se rasgou a ferida. É um pouco com o (a versão de certo m au gosto) do «prim eiro as m ás notícias, depois as boas notícias» da anedota do m édi­ co que diz: «As m ás notícias são que descobrim os que tem um Alzheim er grave. As boas notícias são as m esm as: um a vez que tem A lzheim er, já se terá esquecido das m ás notícias quando voltar para casa.» N a teologia cristã, o suplem ento introduzido por Cristo (o repetido «M as eu d ig o ...» ) é m uitas vezes tom ado com o a «antítese» da Tese da Lei — a ironia é que, num a abordagem hegeliana adequada, esta antíte­ se é a própria síntese em toda a sua pureza. Por outras palavras, o que Cristo faz ao «com pletar» a Lei não será a A ufhebung da Lei no rigoro­ so sentido hegeliano do term o? No suplem ento introduzido, o M anda­ m ento é ao m esm o tem po negado e m antido através da sua elevação/transposição para um outro nível (superior). É por isso que de­ vem os rejeitar o lugar-com um da acusação com que não podem os deixar de deparar aqui: não será, do ponto de vista hegeliano, a «segunda his­ tória» — esse suplem ento que desloca a «prim eira história» — , m ais do que um a sim ples negação, um a divisão em dois, que deverá ser negada por seu turno a fim de dar lugar à «síntese» dos contrários? O que acon­ tece na passagem da «antítese» à «síntese» não é que seja acrescentada outra história, que reúna as duas prim eiras (nem que regressem os à pri­ m eira história, agora m ais «rica», dotada de um fundo que a sustenta): tudo o que acontece é um a passagem puram ente form al através da qual com preendem os que a «antítese» E JÁ a «síntese.» Voltemos ao exem ­ plo da luta de classes: não há necessidade de disporm os de um a narrati­ va global inclusiva que forneça o enquadram ento das duas narrativas opostas: a segunda narrativa (a história contada do ponto de vista dos oprim idos) É JÁ a história do ponto de vista da totalidade social — por­ quê? As duas histórias não são simétricas: só a segunda história restitui o antagonism o, o fosso que separa as duas histórias, e este antagonism o é a «verdade» da totalidade do cam po. Em bora, para C hesterton, H egel fosse o pior dos «filósofos alem ães» niilistas m odernos, a proxim idade existente entre os seus paradoxos teo­ lógicos e a dialéctica hegeliana não pode deixar de saltar aos olhos. Exa-

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m inem os esta proxim idade a partir do outro lado (o lado de H egel), con­ siderando a questão fundam ental da cristologia hegeliana: porque é que a ideia de R econciliação entre Deus e o hom em (o conteúdo fundam en­ tal do cristianism o) tem de aparecer num indivíduo único, sob a form a de um a pessoa de carne e osso exterior e contingente (C risto, o deus-hom em )? H egel apresenta a resposta m ais concisa a esta pergunta na sua filosofia da religião: Não pode o próprio sujeito introduzir esta reconciliação, por meio dos seus esforços e da sua actividade próprios — de modo a pôr através da sua piedade e da sua devoção a sua [vida] interior em conformidade com a ideia divina, exprimindo através dos seus actos esta conformidade? E, mais ainda, não estará isto ao alcance [não simplesmente] de um sujeito individual, mas de todo um povo que autenticamente assuma no seu seio a lei divina, fazendo assim com que o céu exista na terra e com que o Es­ pírito esteja presente na realidade e habite a sua comunidade?98

O bserve-se aqui o rigor de Hegel: a sua questão é dupla. Prim eiro, a divinização individual, a perfeição espiritual; depois, a realização colec­ tiva da com unidade divina enquanto «céu na terra», sob a form a de um a com unidade que vive plenam ente em concordância com a lei divina. Por outras palavras, a hipótese aqui m antida por H egel corresponde a um a posição m arxista canónica: porque não poderem os conceber um a passa­ gem directa do Em -si ao Para-si, de D eus enquanto Substância plena existente em si, para além da história hum ana, ao Espírito Santo en­ quanto substância virtual-espiritual, enquanto substância que só existe na m edida em que é «m antida em vida» pela actividade incessante dos indivíduos? Porque não teria lugar esta desalienação directa, através da qual os indivíduos reconhecem em D eus enquanto substância transcen­ dente o resultado «reificado» da sua própria actividade? Porque não, portanto? A resposta de Hegel assenta na dialéctica da po­ sição e da pressuposição: se o sujeito pudesse fazê-lo por si só, através do seu próprio agir, isso seria então sim plesm ente posto por ele — mas acontece que a posição é sem pre, por si só, unilateral, assentando num a pressuposição: «A unidade da subjectividade e da objectividade — esta

98 G. W. F. Hegel. Theologian ofthe Spirit, Peter C. Hogdson, org., Minneapolis, Forrest Press, 1997, p. 237. Uma vez que esta tradução de alguns capítulos das lições de He­ gel sobre a filosofia da religião é pouco fiável e fragmentária, torna-se necessário, em to­ dos os casos, confrontá-la com o original alemão.

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u n id ad e d iv in a — é u m p ressu p o sto necessário da m in h a p o siç ão .» 99 E C risto e n q u an to h o m em -D eu s é a U n id ad e/R eco n ciliação e x terio r­ m en te p ressu p o sta: p rim eiro a u n id ad e im ediata; d ep o is, a u n id ad e m e ­ d iatizad a sob a fo rm a do E sp írito S anto — p assam o s de C risto cujo p re ­ d icad o é o am o r ao p ró p rio am o r enq u an to sujeito (no E sp írito Santo: « E sto u o n d e vós v os am ais u ns aos o u tro s ...» ). M as ta m b é m aqui p o d e rá p a re c e r p o ssív el o p orm os a H eg el o próprio H egel: n ã o será este círcu lo de p o sição -p ressu p o sição o p ró p rio círculo su jeito -su b stân cia, do E sp írito S an to e n q u an to su b stân cia esp iritu al que só a activ id ad e dos in d iv íd u o s viv o s m an tém v iva, efectiv am en te e x is­ ten te, ad v in d a n a su a realid ad e actual? O estatu to d a su b stân cia e sp iri­ tu al h e g e lia n a é p ro p ria m e n te virtual: só ex iste n a m e d id a em q u e os su ­ je ito s ag em co m o se ela ex istisse. O seu estatu to é sem elh an te ao de u m a c au sa id e o ló g ic a co m o o C o m u n ism o ou a M in h a N ação: é a « su b stâ n ­ c ia esp iritu al» d os in d iv íd u o s q u e n e la se re co n h ec em , o solo em que as­ sen ta to d a a sua e x istê n c ia , o p o n to de re fe rê n cia que o ferece o h o rizo n ­ te ú ltim o de sen tid o às suas v id a s, q u a lq u er co isa p ela qual os indivíduos estão d isp o sto s a d arem as suas vidas — e c o n tu d o , a ú n ica co isa que «existe realm en te» são esses in d iv íd u o s e a sua ac tiv id ad e, p elo que a su b stân cia só se a ctu aliza n a m ed id a em que os in d iv íd u o s «acred itam n ela» e ag em e m c o n seq u ên cia. P o rtan to , u m a vez m ais, p o rq u e não p o ­ d erem o s p a ssa r d irectam en te d a S u b stân cia esp iritu al enq u an to p re ssu ­ p o sta (a id e ia in g é n u a do E sp írito o u de D eus enq u an to ex isten tes em si p ró p rio s, in d e p e n d e n te m en te d a hu m an id ad e) à sua m ed iação su b jectiv a, à co n sciên cia de q u e a su a p ró p ria p ressu p o sição é re tro sp ectiv am en te « posta» p e la activ id ad e dos in d iv íd uos? C h eg am o s aqui à in tu ição fu n d am en tal de H egel: a R eco n ciliaç ão não p o d e ser d irecta, p rim eiro te rá de g e ra r u m (a p arecer num ) monstro — H eg el u sa duas v ezes n a m e sm a p ág in a e sta p ala v ra in esp erad am en te fo rte , « m o n stru o sid ad e» , p a ra in d icar a p rim eira fig u ra d a R e co n cilia­ ção , o ap arecim en to de D eu s n a carne fin ita de um ind iv íd u o hum ano: «Tal é o m o n stru o so [das Ungeheure ] cu ja n e cessid ad e v im o s.» 100 O in ­ d iv íd u o h u m an o frág il e fin ito é « in ap ropriado» p a ra rep re se n tar D eu s, é «die Unangemessenheit ueberhaupt t a im p ro p ried ad e e m g eral, en q u an ­ to ta l» 101 — terem o s nós c o n sciên cia do parad o x o p ro p ria m en te d ialéc­ tico q u e H eg el aqui afirm a? A p ró p ria ten tativ a de rec o n ciliaçã o , num 99 Hegel, op. cit., p. 237. 100 Hegel, op. cit., pp. 238-239. 101 G. W. F. Hegel, Werke 17, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1969, p. 272.

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p rim eiro lan c e , p ro d u z um m o n stro , u m a g ro tesca «im p ro p ried ad e e n ­ q u an to tal» ? P o rta n to , u m a vez m a is, p o rq u ê esta b iza rra in tru sã o , e p o r­ q u e n ão u m a p a ssa g e m d irecta do FOSSO (judeu) en tre D eus e o h o m em à re c o n c ilia çã o (cristã), através de u m a sim ples tran sfo rm ação de «D eus» de A lé m em E sp írito im an en te d a C o m u n id ad e? O p rim eiro p ro b le m a aq u i é q u e, de certo m o d o , os ju d e u s já o tin h am feito: se ex istiu a lg u m a v ez u m a relig ião d a co m u n id ad e esp iritu al, ela é o ju d a ísm o , e ssa relig ião que n ão d iz m u ita co isa sobre a v id a depois da m o rte , o u se q u e i a c e rc a à a c re n ç a « in terior» e m D e u s , m a s q u e se c en ­ tra n u m m o d o de v id a p re sc rito , n a o b ed iên cia às re g ra s com unitárias: D eu s « está v iv o » n a c o m u n id ad e dos crentes. O D eu s ju d a ic o é as duas c o isa s, p o rta n to , ao m esm o tem po: u m U n o su b stancial tran scen d en te e o U n o v irtu al d a su b stân cia esp iritu al. E n tão , com o difere e sta c o m u n i­ d ad e ju d a ic a de cren tes d a co m u n id ad e d e cren tes cristã, ou do E spírito S an to ? P a ra resp o n d erm o s a p ro p riad am en te [properly ] a e sta q u estão d ec isi­ v a , d ev em o s te r p resen te a relação p ro p ria m en te [properly ] h eg elian a e n ­ tre n ecessid ad e e co n tin g ên cia. N u m a p rim eira ab o rd ag em , a su a u n id a ­ d e e n g lo b an te p arece ser a n ecessid ad e — ou seja, que é a p ró p ria n ec e ssid a d e que p õ e e m e d ia tiz a a c o n tin g ên cia en q u an to cam p o e x terio r e m q u e ela p ró p ria se actu aliza e exprim e: a p ró p ria c o n tin g ên cia é n e ­ c e ssária, é o resu ltad o d a au to -ex terio rização e d a auto m ed iação da n e ­ cessid ad e co n cep tu al. T o davia, é e ssen cial su p lem en tar esta un id ad e com o seu c o n trá rio , atrav és d a c o n tin g ên cia enq u an to u n id ad e e n g lo b an te de si p ró p ria e d a n ecessid ad e: a p ró p ria em erg ên c ia de u m a n ecessid ad e no in te rio r do p rin cíp io estru tu ran te do cam po co n tin g en te d a m u ltip lic id a­ de é u m acto co n tin g e n te , e q u ase p o d eríam o s dizer: o desfech o de u m a lu ta co n tin g en te (« ab erta» ) p e la h eg em o n ia. E sta p assag e m co rresp o n d e à p a ssa g e m de S a S /, da su b stân cia ao su jeito . O p o n to de p artid a é um a m u ltip lic id a d e c o n tin g e n te ; a tra v é s d a su a a u to m e d ia ç ã o (« au to -o rg an ização e sp o n tâ n e a » ), a c o n tin g ên cia en g en d ra-p õ e a sua n ec essi­ d ad e im an en te, do m esm o m o d o que a E ssê n cia é o resu ltad o d a a u to ­ m ed iação d o Ser. U m a v ez q u e em erg e, a E ssê n cia retro sp ectiv a m en te « põe os seus p ró p rio s p ressu p o sto s» — q u e r dizer: su pera os seus p re s­ su p o sto s e m m o m en to s su b o rd in ad o s d a sua a u to -rep ro d u ção (o Ser tran su b stan cia-se e m A p arên cia); n o en tan to , esta p o sição é re tro sp ec ti­ va. E sta p a ssa g e m su b jacen te é aqui a p assag e m en tre p ô r pressuposições e pressupor a posição (v er o ú ltim o capítulo de O Objecto Sublim e da Ideologia): o lim ite d a ló g ic a feu erb ach ian o -m arx ista da desalien ação é

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o do pôr pressuposições: o sujeito supera a sua alienação reconhecendo-se com o agente activo que pôs ele próprio o que aparece com o sendo o seu pressuposto substancial. Em term os religiosos, tal equivaleria à (re)apropriação directa de Deus pela hum anidade: o m istério de Deus é o hom em , «Deus» não é m ais do que a versão reificada/substantivada da actividade colectiva hum ana, etc. O que falta aqui é o m ovim ento pro­ priam ente cristão: a fim de pôr o pressuposto («hum anizar» D eus, reduzi-lo a um resultado/expressão da actividade hum ana), a própria po­ sição (hum ana e subjectiva) deve ser «pressuposta», situada em Deus

enquanto fundamento-pressuposto do homem, enquanto seu próprio devir-humano/finito. A razão é a finitude constitutiva do sujeito: a posi­ ção plena dos pressupostos levaria o sujeito à plena posição/geração re­ trospectiva dos seus pressupostos — quer dizer: o sujeito seria absolutizado num a plena auto-origem . E p o r isso que a diferença entre Substância e Sujeito tem de se reflec­ tir/inscrever por seu turno na própria subjectividade enquanto fosso irre­ dutível que separa os sujeitos hum anos de C risto, o sujeito m onstruoso «mais hum ano do que o hum ano». E sta necessidade de C risto, o sujeito «absoluto» que se acrescenta à série dos sujeitos hum anos finitos en­ quanto o a suplem entar (S /+S /+S /+S /+S/...+ a) , é o que diferencia a po­ sição hegeliana da posição do jovem M arx e de Feuerbach do Grande Outro enquanto Substância virtual posta pela subjectividade colectiva, enquanto sua expressão alienada. Cristo assinala a sobreposição das duas kenosis: a alienação hum ana de/em Deus é sim ultaneam ente a alienação de Deus do próprio Deus em C risto. Portanto não é só que a hum anida­ de se torne consciente de si na figura alienada de D eus, m as tam bém : na religião hum ana, D eus tom a-se consciente de Si-m esm o. N ão basta di­ zer que as pessoas (os indivíduos) se auto-organizam no Espírito Santo (o Partido, a com unidade dos crentes): na hum anidade, há um «se» im ­ pessoal transubjectivo que se auto-organiza. A finitude da hum anidade, do sujeito hum ano (colectivo ou individual), é aqui m antida: Cristo é o excesso que proíbe o simples reconhecim ento do Sujeito colectivo na Substância, a redução do Espírito a um a entidade virtual/objectiva (pressu)posta pela hum anidade. Estas distinções precisas perm item -nos tam bém dar conta da passa­ gem daquilo a que H egel cham ou o «espírito objectivo» ao «espírito ab­ soluto»: é através da m ediação de Cristo que o EO se torna EA. Não há Espírito Santo à falta do corpo esm agado de um a ave (o cadáver m utila­ do de Cristo): os dois pólos, o U niversal [a infinidade/imortalidade vir­ tual do Espírito Santo (EO) e o Particular (a comunidade mortal/finita

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actual dos crentes (E S )], só p ela singularidade m o n stru o sa de C risto p o ­ dem ser m e d ia tiz a d o s. N ão p assam o s do E O ao E A através de u m a sim ples apro p riação su b ­ je c tiv a do E O « reificad o » p o r p arte d a su b jectiv id ad e h u m a n a co lectiv a (no b e m c o n h ecid o reg isto p se u d o -h e g elian o de F e u erb ach e do jo v e m M arx: «a su b jectiv id ad e re c o n h ece no E O o seu p ró p rio p ro d u to , a ex ­ p ressão re ific a d a do seu p ró p rio p o d er criad o r» ) — o que seria u m a sim ­ ples red u ção do E O ao esp írito su b jectivo (E S ). M as ta m b é m não c u m ­ p rim o s e ssa p assag em p o n d o p a ra além do E O u m a o u tra en tid ad e ab so lu ta , ain d a m ais E m -si, en g lo b an d o ao m esm o tem p o o E S e o E O . A p a ssa g e m do E O ao E A não reside senão n a m ed iação d ia léctic a entre E O e E S , n a in clu são a cim a in d ic ad a do fosso que sep ara o E O do ES n o in te rio r do E S , de ta l m o d o que o E O ap areça (seja ex p erim en tad o ) en q u an to tal, e n q u an to en tid ad e « reificada» o b jectiv a, ao (pelo) pró p rio E S (e n o re c o n h e c im en to in v erso de que, sem a refe rên cia s u b j e c t i v a a u m E m -si do E O , a p ró p ria su b jectiv id ad e se d e sin te g ra , soço b ra no au tism o p sic ó tic o ). [Do m esm o m o d o . no c ristian ism o , su peram os a o p o sição en tre D eu s en q u an to E m -si esp iritu al o b jectivo e a su b jec tiv i­ d ad e h u m a n a (do c re n te ), através da tran sp o sição do fosso p a ra o in te ­ rio r do p ró p rio D eu s: o cristian ism o é a « relig ião ab soluta» só e p re c i­ sa m e n te n a m e d id a e m q u e , n e le , a d istâ n c ia que sep a ra D eu s do h o m e m sep ara D eu s do p ró p rio D eu s (e o h o m em do h o m em , do que h á n ele de «inu m an o » ).] P o d em o s tam b ém d izê-lo nos seguintes term os: tudo o que acontece n a p a ssa g e m do E O ao E A é que nos dam os co n ta de que «não h á G rande O u tro » . O E A n ão é u m a entid ad e ab so lu ta «m ais forte» p o r com paração co m o E O , m as u m a entid ad e «m enos forte»: p ara chegarm os ao E A , p a s­ sam os d a S u b stân cia reificad a a u m a su bstância su b jectivizada v irtual. O E A ev ita assim dois im passes: nele, n em o ES é reduzido a u m elem ento sub o rd in ad o da au to m ed iação do E O , n em o E O é subjectivizado à m a ­ n eira de F eu erb ach e do jo v e m M arx (reduzido a u m a projecção-ex p ressão reific a d a do E S ). C h egam os ao E A quando deixam os de ser n ós (E S) o agen te do p ro cesso , quando «ele se auto-organiza» através de nós — m as não n o reg isto de u m a au to -in strum entalização perv ersa. E este o im p asse do estalinism o: n o estalin ism o , o G rande O utro existe, n ó s, co m u n istas, som os os seus in stru m en to s. N o lib eralism o , p elo c o n ­ trário , não h á G ran d e O u tro , som os nós so m en te, enquanto in d ivíduos, to d a a realid ad e (o u , co m o disse M arg aret T h atch er, a sociedade é u m a coisa que não ex iste). U m a análise dialéctica m o stra de que m odo estas duas p o siçõ es se b a se ia m u m a n a outra: a verdade do E O do estalinism o

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é o subjectivism o (nós — o Partido, o Sujeito estalinista — constituím os

0 G rande O utro, decidim os o que é a «necessidade objectiva» que pre­ tendem os realizar); a verdade do liberalism o é o Grande Outro sob a for­ m a da rede objectiva de regras que suportam a interacção dos indivíduos. Podem os dizê-lo tam bém nos term os da dialéctica da ontologia e da epistem ología: se a unidade englobante de necessidade e contingência é a necessidade, então a necessidade (gradualm ente descoberta pelo nosso conhecim ento com o a Ideia subjacente da m ultiplicidade fenom enal con­ tingente) tem de ter estado aí por todo o tem po à espera de ser descoberta pelo nosso conhecim ento — em resum o, neste caso, eis anulada a ideia central de H egel, form ulada claram ente pela prim eira vez na sua Intro­ dução à F enom enología do Espírito, segundo a qual o nosso cam inho em direcção à verdade é parte da própria verdade; o que significa que re­ gressam os à ideia m etafísica estabelecida da Verdade enquanto Em -si substancial, independente do sujeito que dela se aproxim a. Só se a uni­ dade englobante for a contingência, poderem os sustentar que a desco­ berta por parte do sujeito da verdade necessária é sim ultaneam ente a constituição (contingente) da própria verdade, ou seja: que, para para­ frasear H egel, o próprio regresso à (redescoberta da) Verdade eterna en­ gendra essa Verdade. É aqui que reside a inversão dialéctica da contin­ gência em necessidade, quer dizer, o m odo com o o desfecho de um processo contingente é o aparecim ento da necessidade: retrospectiva­ m ente, as coisas «terão sido» necessárias. Estam os perante a inversão excelentem ente descrita por Jean-Pierre Dupuy: O acontecimento catastrófico está inscrito no futuro enquanto destino, sem dúvida, mas também enquanto acidente contingente: poderia não ter tido lugar, ainda que, no futuro anterior, apareça como necessário. [...] quando tem lugar um acontecimento relevante, uma catástrofe, por exem­ plo, poderia não ter tido lugar, não é inevitável. É assim a realização ac­ tual do acontecimento — o facto de ter lugar — que cria retrospectiva­ mente a sua necessidade.102

D upuy fornece o exem plo das eleições presidenciais francesas em M aio de 1995; eis a previsão de Janeiro do principal instituto de sondagens fran­ cês: «Se, no próxim o dia 8 de M aio, M. Balladur for eleito, poderem os di­ zer que a eleição presidencial foi decidida ainda antes de ter lugar.» Se — acidentalmente — um acontecim ento tem lugar, cria o encadeam ento de 1 no

luz· Jean-Pierre Dupuy, Petite métaphysique des tsunami, Paris, Seuil, 2005, p. 19.

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precedentes que o faz aparecer com o inevitável, e é ISTO — e não os lugares-com uns sobre o modo com o a necessidade subjacente se exprim e em e através do jogo acidental das aparências — que está in nuce na dia­ léctica hegeliana da contingência e da necessidade. O m esm o vale para a Revolução de Outubro (um a vez tom ado o poder e consolidado o seu exercício pelos bolcheviques, a sua vitória apareceu com o o resultado e a expressão de um a necessidade histórica mais profunda), e até m esm o pa­ ra a m uito contestada prim eira vitória nas eleições presidenciais de Bush (depois da obtenção contingente e contestada da m aioria na Florida, a vi­ tória de Bush aparece retrospectivam ente com o a expressão de um a ten­ dência política mais profunda dos EUA). A escandalosa «objecção da pena de Krug à dialéctica» (Krug era um contem porâneo de H egel que o desafiara a deduzir dialécticam ente a pe­ na com que ele estava a escrever) — à qual, segundo Laclau, H egel res­ pondeu «com um desprezo ríspido que escondia m al o facto de não lhe poder responder» — com porta, por conseguinte, um duplo erro. Volta­ mos aqui à dialéctica da necessidade e da contingência: H egel não se li­ m ita (observando m uito coerentem ente as suas prem issas) a deduzir a necessidade da contingência, quer dizer, o m odo com o a Ideia se exte­ rioriza necessariam ente (adquire realidade) em fenóm enos que são au­ tenticam ente contingentes. A lém disso (e este aspecto é com frequência descurado por m uitos dos seus com entadores), desenvolve tam bém o as­ pecto oposto — e teoricam ente m uito m ais interessante — , que é o da contingência da necessidade. O que quer dizer que, quando H egel des­ creve o progresso que vai do Ser «exterior» contingente à sua Essência «interior» necessária, a qual «aparece» nele, a «auto-interiorização» da aparência através da auto-reflexão, não está a descrever, portanto, a des­ coberta de um a Essência interior preexistente, a penetração a cam inho de qualquer coisa que já lá estava (o que seria, justam ente, um a «reificação» da E ssência), m as um processo «perform ativo» de construção (form a­ ção) daquilo que é «descoberto.» O u, com o H egel afirm a na sua Lógica, no processo de reflexão, o próprio «regresso» ao Fundam ento perdido ou escondido produz aquilo a que regressa. O que isto significa é que não é só a necessidade interior que é a unidade dessa m esm a necessidade e da contingência enquanto seu contrário, estabelecendo necessariam ente a contingência enquanto m om ento seu. M as que é tam bém a contingência que é a unidade englobante de si m esm a e do seu contrário, a necessida­ de — quer dizer: o próprio processo através da qual a necessidade emerge da necessidade é um processo contingente. Se H egel quisesse efectivam ente «deduzir» a contingência a partir da necessidade, teria co-

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m eçado a sua lógica pela Essência, e não pelo Ser que é o dom ínio da pura m ultiplicidade contingente. O contra-argum ento corrente segundo o qual todo este processo de transições dialécticas é apesar de tudo neces­ sário, form ando um Sistem a fechado em si m esm o, deixa escapar tam ­ bém o m ais im portante: sim , o processo é necessário — m as esta neces­ sidade não é dada antecipadam ente, m as auto-engendra-se e autoform a-se a partir da contingência, e é por isso que só pode ser apreendida retrospectivam ente, depois de consum ados os factos. Se re­ duzirm os este processo gradual da em ergência da necessidade através da autom ediação da contingência a um processo de penetração para além da aparência enganadora das coisas e de descoberta da N ecessidade subja­ cente (de antem ão existente), estarem os a regressar a um a m etafísica substancialista pré-crítica — ou seja, estarem os em últim a análise a re­ duzir o Sujeito à Substância. U m dos pontos culm inantes da dialéctica da necessidade e da contingência é a escandalosa dedução a que H egel pro­ cede da necessidade racional da m onarquia hereditária: a cadeia buro­ crática do saber deve ser suplem entada pela decisão do R ei enquanto «objectividade plenam ente concreta da vontade», que reabsorve toda a particularidade no seu si-mesmo singular, abrevia o ponderar de prós e contras que a deixa numa oscilação perpétua entre ora isto e ora aquilo, e ao dizer «Eu quero», forma a sua decisão e assim ini­ cia toda a actividade e efectividade.10^

É por isso que «a concepção do m onarca» é «entre todas as concep­ ções a m ais árdua para o raciocínio, ou seja, para o m étodo de reflexão usado pelo E ntendim ento»104. N o parágrafo seguinte, H egel aprofunda esta necessidade especulativa do monarca: Este sujeito último no qual se concentra a vontade do Estado é, quando o tomamos assim abstractamente, um sujeito singular e, portanto, uma indivi­ dualidade imediata. Daqui que o seu carácter «natural» se encontre implícito na sua própria concepção. O monarca, portanto, é essencialmente caracteri­ zado enquanto este indivíduo, com abstracção de todas as suas outras carac­ terísticas, e este indivíduo é elevado à dignidade de monarca de modo ime­ diato e natural, quer dizer, através do seu nascimento no curso da natureza.

10^ G. W. F. Hegel, Elements ofthe Philosophy ofRight, Cambridge, Cambridge University Press, 1991, § 279. 104 Hegel,op. cit., ibid.

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Adenda: Alega-se com frequência contra a monarquia que toma o bem-estar do Estado dependente do acaso, porque, argumenta-se, o monarca pode ter sido mal educado, pode talvez ser indigno da posição mais ele­ vada do Estado, e é insensato sustentar que tal estado de coisas deve exis­ tir pela suposição de que é racional. Mas tudo isto assenta num pressu­ posto que é nulo, a saber: que tudo depende do carácter particular do monarca. Num Estado completamente organizado, o seu papel é apenas ser o ponto culminante da decisão formal (e um baluarte natural contra a paixão. É um erro, portanto, requerer qualidades objectivas no monarca); tem apenas de dizer «sim» e marcar a sua presença, porque a importância do trono não estará na conformação particular daquele que o ocupa. [...] Numa monarquia bem organizada, o aspecto objectivo pertence apenas ao direito, e o papel do monarca é simplesmente dotar o direito do «Eu que­ ro» subjectivo.105 O m om ento especulativo que o Entendim ento não é capaz de apreen­ der é «a transição do conceito de autodeterm inação pura para a imediatez do ser e, portanto, para o reino da natureza.» P or outras palavras, en­ quanto o Entendim ento é perfeitam ente capaz de apreender a m ediação universal de um a totalidade viva, o que não é capaz de apreender é que esta totalidade, a fim de se auto-realizar, tem de adquirir existência efec­ tiva sob a fo rm a de uma singularidade im ediata «natural» 106. O term o «natural» deve ser tom ado aqui com todo o seu peso: do m esm o modo que, no fim da Lógica, a própria autom ediação com pleta da Ideia im pli­ ca a N atureza, cai no im ediato exterior da N atureza, a autom ediação ra­ cional do Estado tem de adquirir existência efectiva num a vontade que é determ inada com o directam ente natural, não-m ediatizada, stricto sensu «irracional.» Ao ver N apoleão passar a cavalo nas ruas de Iena, depois da batalha de 1807, H egel observou que era com o se tivesse visto o Espírito M un­ dial m ontado num cavalo. As im plicações cristológicas desta observação são evidentes: o que aconteceu no caso de Cristo foi que o próprio D eus, o criador de todo o nosso universo, andou na rua com o um indivíduo co­ 105 Op. cit., § 280. 106 terão os marxistas, que a este propósito ridicularizaram Hegel, tido de pagar o preço da sua negligência sob a forma do Guia que, uma vez mais, não só encarnava di­ rectamente a totalidade racional, como a encarnava por completo, enquanto figura da ple­ nitude do Saber, e não só enquanto marca idiossincrática no ponto que completa um z? Por outras palavras, um dirigente estalinista não é um monarca, o que faz dele coisa mui­ to pior...

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m u m . E ste m istério d a en carn ação é iden tificáv el a d iferentes n ív e is, c o ­ m o no caso do ju íz o esp ecu lativ o dos pais a p ro p ó sito de u m filho: «O n o sso filho a n d a n a ru a!» — o que rep re sen ta a in v ersão do reflexo d e ­ te rm in ad o em d eterm in ação reflex iv a. E o m esm o se p assa co m u m rei, q u an d o os seus sú b d ito s o vêem p assear algures: «O nosso E stad o anda n a ru a.» A ev o cação p o r M arx d a d eterm in ação re fle x iv a (na sua fa m o ­ sa n o ta de ro d a p é do C ap ítu lo I do C apital 107) ta m b ém erra aqui o alvo: os in d iv íd u o s p e n sa m que tra ta m certa p e sso a com o u m rei p o rq u e essa p e sso a é o rei em p e sso a , q u a n d o , n a realid ad e, e ssa p e sso a só é o rei p o r­ que os outros assim a tra ta m co m o tal. T odavia, o p o n to decisivo é que e sta «reificação » de u m a relação social n u m a p e sso a não p o d e ser m e ­ n o sp rezad a co m o u m a sim p les « rep resen tação fe tich ista d isto rcid a» ; o q ue se p e rd e d e v ista p o n d o -a a ssim de lad o é q u a lq u er co isa a que p o ­ d eríam o s ch am ar, talv ez, o « p erfo rm ativ o h eg elian o » : sem dú v id a, u m rei é « em si m esm o » u m p o b re in d iv íd u o ; sem d ú v id a , só é rei n a m e d i­ d a em q u e os seus sú b d ito s o tra ta m com o tal; no en ta n to , a q u estão é que a « ilu são fetich ista» q u e su sten ta a n o ssa v en eração p eran te u m rei tem e n q u an to tal u m a d im en são p e rfo rm ativ a — a própria unidade do nosso Estado, «encam ada» no rei, só se actualiza nci pessoa do rei. E p o r isso qu e n ão b a sta in sistirm o s n a n ecessid ad e de ev itar a « arm ad ilh a fetic h is­ ta» e d istin g u irm o s en tre a p e sso a co n tin g en te do rei e aquilo que ele re ­ presen ta: aqu ilo q u e o rei rep re se n ta só co m eça a ser n a sua p e sso a, do m esm o m o d o q u e o a m o r de u m casal (pelo m en o s segundo u m a certa p e rsp e c tiv a trad icio n al) só se rea liza n a su a descen d ên cia. E , m utatis m utandis, é aq u i q u e resid e a m o n stru o sid a d e de C risto: n ão é só o ed ifício do E sta d o , m as não m en o s do q u e ele to d o o edifício d a realid ad e e stã o su sp en so s de u m a sin g u larid ad e co n tin g en te e só a tra­ vés d e la se to m a m re a lid a d e efectiv a. Q u ando C risto , esse p o b re in d iv í­ d u o , e sse re i-p alh aço rid ícu lo e e scarn ecid o , an d av a p o r aí, e ra com o se o u m b ig o do m u n d o , o nó que m an tin h a lig ad a e c o n ju n ta a tex tu ra da realid ad e (aquilo a que o L acan da ú ltim a fase ch am av a sinthom e), a n ­ dasse p o r a í fo ra do seu lugar. T udo o que resta da realid ad e sem C risto é o V azio da m u ltip lic id a d e sem sentido do R eal. A sua m on stru o sid ad e é o p reço a p a g a r p e la in tro d u ção do A b so lu to no m eio d a re-p resen tação ex terio r (Vorstellung), q u e é o m eio d a religião. N a tríade da arte, da religião e da ciência (filosofía), a religião é decisiva enquanto lugar de u m a lacuna, de um desequilíbrio entre form a e conteúdo. N a arte, e exem plarm ente na arte grega da A ntiguidade, h á unidade orgâni107 Karl Marx, Capital, Volume 1, Londres, Penguin Books, 1990, p. 144.

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ca e harmonia entre a forma (a bela «individualidade plástica») e o conteú­ do universal - ou seja, a bela individualidade é um modelo que tom a di­ rectamente presente a dimensão universal. Com a religião, esta harmonia imediata é perturbada, passa a existir um fosso entre o conteúdo sensorial (a narrativa de acontecimentos da vida real) e o sentido autêntico, sendo por isso que a unidade orgânica é substituída pela alegoria — ou seja, pela re­ presentação exterior (Vorstellung). [Na ciência filosófica, a unidade de for­ m a e de conteúdo é restabelecida, um a vez que o conteúdo conceptual é di­ rectam ente articulado na sua form a (conceptual) adequada.108] Esta contradição que é própria da ordem da re-presentação alcança em Cristo o seu extremo. No que se refere a Cristo, Hegel efectivamente antecipa alguns dos temas de Kierkegaard (a diferença entre o génio e o apóstolo, o carác­ ter de acontecimento singular de Cristo), especialmente através da insistên­ cia com que sublinha a diferença entre Sócrates e Cristo. Cristo não é como a «individualidade plástica» grega através de cujos traços particulares o con­ teúdo universal/substantivo transparece directamente (exemplar é aqui o ca­ so de Alexandre). O que isto significa é que embora Cristo seja Deus-Homem, a identidade directa dos dois termos, esta identidade implica também um a contradição absoluta: nada há de «divino» no que se refere a Cristo, nem sequer qualquer coisa de excepcional — se observarmos os seus traços, achá-lo-emos indistinguível de qualquer outro indivíduo humano: Se considerarmos Cristo apenas por referência aos seus talentos, o seu carácter e a sua moralidade, como mestre, etc., estamos a pô-lo no mesmo plano que Sócrates e outros, ainda que o situemos mais alto do ponto de vista moral. [...] Se Cristo for apenas tomado como um indivíduo excep­ cionalmente delicado, ainda que sem pecado, estamos a ignorar a repre­ sentação da ideia especulativa, a sua verdade absoluta.109

Estas linhas assentam num a base conceptual m uito precisa. Não é que Cristo seja «m ais» do que outras figuras m odelares de sabedoria religio­ sa, filosófica ou ética, reais ou m íticas (Buda, Sócrates, M oisés, M ao108 Uma outra maneira de exprimir a diferença entre arte e religião é referi-la à oposi­ ção entre tempo e espaço: a religião está para a arte como o tempo está para o espaço, a autonegação do conteúdo representacional imediato que é reduzido a uma mera RE-presentação do sentido. A arte transmite/apresenta o seu conteúdo na presença espacial/sensorial, enquanto a religião re-presenta o seu conteúdo sob a forma sequencial de uma narrativa que procede no tempo. 109 G. W. F. Hegel, Lectures on the Philosophy ofHistory, Nova York, Dover Publications, 1956, p. 325.

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m é), que seja «divino» no sentido da ausência de im perfeições hum a­ n a s110. C om C risto, transform a-se a própria relação entre o conteúdo di­ vino substancial e a sua representação: Cristo não representa o seu con­ teúdo divino substancial, D eus, mas é directam ente D eus, e é por isso que já não tem de parecer Deus, de se esforçar por ser perfeito e «como Deus». Lem brem os a propósito a clássica anedota dos Irm ãos M arx: « — Você é parecido com o Em m anuel R avelli. — M as eu sou o Em m anuel Ravelli. — Então, não é para adm irar que se pareça consigo m esm o!» A prem issa subjacente a esta anedota é que esta sobreposição do ser e do parecer é im possível, porque entre um e outro há sem pre um fosso que os separa. Buda, Sócrates, e t c parecem deuses, enquanto Cristo é deus. Por isso quando o Deus cristão «aparece aos outros hom ens com o um hom em individual, exclusivo e singular [...] com o um hom em que ex­ clui todos os outros»111, estam os perante a singularidade de um puro acontecim ento, perante a contingência levada ao extrem o — só assim , excluindo todo o esforço de se aproxim ar da perfeição universal. Deus pode encarnar-se. Esta ausência de quaisquer características positivas, esta plena identidade de D eus e do hom em ao nível das propriedades, só pode ocorrer porque um a outra diferença, m ais radical, torna todos os traços distintivos positivo? irrelevantes. E sta transform ação pode ser muito apropriadam ente descrita com o a passagem do m ovim ento ascen­ dente do devir-essencial do acidente ao m ovim ento descendente do devir-acidental da essência112: o herói grego, esse «indivíduo exem ­ plar», eleva os seus traços pessoais acidentais a um caso paradigm ático da universalidade essencial, enquanto na lógica cristã da Encarnação, a Essência universal encarna num indivíduo acidental. Ou, para o dizer de outro m odo, os deuses gregos aparecem aos hum a­ nos sob forma hum ana, enquanto o Deus cristão aparece com o hum ano a si próprio. E este o ponto decisivo: a Encarnação é para Hegel não um m o­ vim ento através do qual Deus se tom a visível/acessível aos seres hum a­ nos, m as um m ovimento através do qual Deus se olha a si mesmo de uma perspectiva humana (distorcida ): «Quando Deus se m anifesta ao seu pró­ prio olhar, a apresentação especular divide o divino de si m esm o, ofere110 A propósito da ausência de imperfeições, há uma bela anedota acerca do que suce­ deu quando Cristo, diante de um público alargado, ao proclamar o seu célebre: «Que aquele que for sem pecado atire a primeira pedra!», foi imediatamente atingido por uma pedrada: Cristo virou-se para o lado de onde a pedra fora lançada e exclamou em tom re­ provador: «Mãe! Tinha-te dito que ficasses em casa!» 111 Lectures on the Philosophy o f Religión III, p. 142. 112 Sobre esta distinção, cf. Malabou, op. cit., p. 119.

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cendo ao divino a visão em persp ectiv a da sua própria au topresença.»113 O u, em term os lacaniano-freudianos: C risto é o «objecto parcial» de D eus, u m órgão autonom izado e sem corpo, com o se D eus tivesse extraído o seu olho da sua cab eça e do exterior o virasse para si. P odem os intuir m elhor agora p o r que razão H egel insistia na monstruosidade de C risto. É p o rtan to d ecisiv o ter aqui p resen te que a m o d alid ad e cristã de «D eus q u e se vê a S i-m esm o » n a d a tem a ver co m o anel fechado e h a r­ m o n io so do « v ejo -m e v er» , ou de u m O lho que se vê a si m esm o e se co m p raz n essa v isão de um au to -reflex o e sp ecu lar perfeito: aqui o olho que se v ira p ara o «seu» corpo p re ssu p õ e u m olho separado do co rp o , e aqu ilo q u e v ejo p o r m eio do m eu olho a u to n o m izad o /ex terio rizad o é u m a im ag em e m p e rsp e c tiv a , an am ó rficam en te d isto rcid a de m im : C ris­ to é u m a an am o rfo se de D e u s 114. A lib erd ad e h u m an a só n esta m o n stru o sidade de C risto se funda, e, ao n ív el m ais p ro fu n d o , não é sob a fo rm a de u m pag ar pelos nossos p ec a­ dos, n e m sob a fo rm a de u m resg ate leg alista, que o sacrifício de C risto nos lib erta, m as fá-lo d eso b stru in d o -n o s o cam inho. Q uando tem em os al­ gu m a co isa (e o m edo da m orte é o m edo suprem o que nos to rn a escra­ v o s), u m verdad eiro am igo diz-nos q u alq u er coisa com o o seguinte: «N ão tenhas m ed o , o lh a, eu v ou fazer isso, isso que te faz tanto m edo, e vou fazê-lo g ratu itam en te, não p o rq u e ten h a de o fazer, m as p o r am or de ti, eu não ten h o m ed o !» F á-lo e torna-nos liv res, dem onstrando in actu que IS­ SO PODE SER FEITO, q u e tam b ém nós p o d em os fazê-lo, que não som os es­ c ra v o s ... L em b rem o -n o s da descrição , em The Fountainhead de Ayn R an d , do im pacto m o m en tân eo que H o w ard R o ark pro d u z sobre os m em ­ bros da au d iên cia n a sala do tribunal quan do com parece em juízo: Roark compareceu diante deles como um homem comparece perante a sua inocência íntima. Mas Roark compareceu assim diante de uma multi­ dão hostil — e eles souberam de repente que não era possível odiá-lo. No clarão de um instante, compreenderam a maneira de ser da sua consciência.

113 Malabou, op. cit., p. 118. 114 Uma outra indicação desta exterioridade de Deus em relação a Si mesmo é referida por G. K. Chesterton no seu «The Meaning of the Crusade», quando cita aprovadoramente a descrição que uma criança lhe fez em Jerusalém do Monte das Oliveiras: «Uma criança de uma das aldeias disse-me, num inglês estropiado, que aquele era o lugar em que Deus rezara. Por mim, não seria capaz de pedir uma afirmação mais lúcida e provo­ cante de tudo o que separa o cristão do muçulmano ou do judeu.» Se nas outras religiões rezamos a Deus, só no cristianismo Deus se reza a Si mesmo, o que significa que ende­ reça a palavra a uma autoridade exterior insondável.

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Slavoj Zizek Cada um deles perguntou de si para si: Precisarei da aprovação de alguém? Terá isso importância? Estarei amarrado? E por esse instante, cada um de­ les foi livre — suficientemente livre para sentir benevolência para com ca­ da um dos outros homens presentes na sala. Por um momento apenas — um momento de silêncio enquanto Roark se preparava para falar.11^

É d este m o d o que C risto traz a liberdade: quan d o nos co n frontam os co m e le , to m a m o -n o s co n scien tes d a n o ssa p ró p ria lib erd ad e. A questão fu n d am en tal é a seguinte: E m que esp écie de u n iv erso é a lib erd ad e p o s­ sív el? Q u e o n to lo g ia im p lica a lib erdade?

P a r a u m a te o lo g ia m a te ria lista E m S etem b ro de 2 0 0 6 , o p a p a B ento X V I cau so u u m a v ag a de p ro ­ testo s p o r p a rte de círcu lo s m u çu lm an o s ao c ita r as palav ras e sca n d alo ­ sas de u m im p e ra d o r bizan tin o do século XIV: «M o stra-m e tam b ém o que tro u x e de n o v o M a o m é , e en co n trarás apenas coisas m ás e d esum anas tais co m o o seu p receito d e p ro p a g ar p e la e sp a d a a fé que p reg av a.» A l­ g u n s c o m en tad o res d e fe n d e ram a in terv en ção do pap a, su stentando que se d estin av a a a b rir u m d iálo g o teo ló g ico sério entre o cristian ism o e o islão. E is o ex certo de um tex to de J e ff Israely que elo g ia a « in telig ên cia co rtan te» d o p a p a ao red efin ir os termos de um debate que tem sido dominado por truismos senti­ mentais, complexos de vitimização ou confrontos cheios de ódio. [O pa­ pa] Procurou delinear antes o que considera ser uma diferença fundamen­ tal entre a concepção cristã segundo a qual Deus está intrinsecamente vinculado à razão (à ideia grega do Logos) e a concepção islâmica segun­ do a qual «Deus é absolutamente transcendente.» Bento disse que o islão ensina que, em Deus, «a vontade não é limita­ da por nenhuma das nossas categorias, nem pela própria categoria da ra­ cionalidade». O risco que considera implícito nesta ideia do divino é que a irracionalidade da violência possa parecer assim justificada por quem creia que tal seja a vontade de Deus. A questão essencial, segundo disse, é a seguinte: «É ou não a convicção de que agir irracionalmente contradiz a natureza de Deus [...] sempre e intrinsecamente verdadeira?»1^ ^ Ayn Rand, The Fountainhead, Nova York, Signet, 1992, p. 677. ^lo Jeff Israely, «The Pontiff Has a Point», Time, 25 de Setembro de 2006, p. 33.

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N o m esm o lance, o papa condenou tam bém o «secularism o sem D eus» do O cidente, para o qual o uso crítico da razão «se corrom peu nu­ m a doutrina absoluta». A conclusão é clara: a razão e a fé devem «fazer juntas um novo cam inho», descobrindo o seu fundam ento com um no Logos divino, e «é à busca deste grande L ogos, a este alargam ento da razão, que convidam os os nossos parceiros no diálogo das culturas»117. Q uando alguém propõe um a solução inspirada em term os tão sim ­ plistas na via m édia aristotélica, apresentada com o evitando os dois ex trem os, qualquer p essoa fam iliarizada com a ideia estalinista d a li­ nha do P artido com o ju sta via entre o desvio direitista (no caso do p a­ pa: o irracionalism o m uçulm ano) e o desvio esquerdista (o secularis­ m o sem D eus) terá de reagir com a m áxim a desconfiança — e, assim , há pelo m enos duas coisas a acrescentar. Em prim eiro lugar, as obser­ vações do papa que suscitaram indignação entre os m uçulm anos de­ vem ser lidas tendo presente outras suas observações, expendidas um a sem ana antes, sobre a «irracionalidade do darw inism o». O papa afas­ tou o padre G eorge C oyne da sua posição de responsável do O bserva­ tório A stronóm ico do V aticano, depois de o sacerdote jesu íta se ter re ­ petidam ente oposto à adopção pelo p ap a da teoria do «propósito inteligente» (intelligent design), que sustenta no essencial um a ideia do tipo «A dão e E va» da criação. O papa acolhe favoravelm ente a teo­ ria do propósito inteligente, que afirm a que D eus dirige o processo evolutivo, contra a teoria original de C harles D arw in que sustenta que as espécies evoluem através de um processo estocástico e não planea­ do de m utação genética e de sobrevivência do m ais apto. O padre C oy­ ne, pelo contrário, é um destacado adepto da teoria de D arw in, defen­ dendo a sua com patibilidade com o cristianism o. O papa escreveu em Verdade e Tolerância: A questão é a de saber se a realidade teve origem a partir do acaso e da necessidade e, portanto, do irracional; ou seja, se a razão, sendo um pro­ duto derivado ocasional da irracionalidade e flutuando num oceano de ir­ racionalidade, é em última análise desprovida de sentido; ou se o princí­ pio que representa a convicção fundamental da fé cristã e da sua filosofia se mantém verdadeiro — In principio erat Verbum: no princípio de todas as coisas está o poder criador da razão. Hoje como no passado, a fé cristã representa a opção em favor da prioridade da razão e da racionalidade.

117 Op. cit., ibid.

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Tal é, p o rta n to , a p rim e ira re se rv a que devem os introduzir: a «razão» de que o p a p a fa la é u m a R azão p ara a q u al a teo ria d a ev o lu ção de D arw in (e, em ú ltim a in stân cia, a p ró p ria ciên cia m o d ern a, p a ra a q u al a afir­ m ação d a co n tin g ê n c ia do u n iv e rso , a ru p tu ra co m a teleo lo g ía a risto té­ lica, é u m a x io m a co n stitu tiv o ) é « irracional.» A «razão» de que o papa fa la é a R azão te le o ló g ic a p ré -m o d e m a , a co n cep ção do un iv erso com o u m Todo h arm o n io so no q ual todas e cada u m a das coisas serv em u m p ro p ó sito m ais elev ad o . (E é p o r isso q u e, p a ra d o x alm en te, as o b serv a ­ ções do p a p a su b estim am o p ap el d ecisivo d a te o lo g ia cristã no n a sc i­ m en to da ciên cia m oderna: o q u e e stab eleceu o cam in h o d a ciên cia m o ­ d ern a fo i p recisam en te a id e ia « v o lu n tarista» elab o rad a, entre o u tro s, p o r D u n s E sco to e D e sc a rte s, de q u e D eus não está v in cu lad o p o r q u aisq u er v erd ad es eternas da razão . O q u e sig n ifica q u e, em b o ra a p ercep ção e n ­ g an ad o ra do d iscu rso cien tífico veja n ele u m d iscu rso de p u ra descrição d a fa c ticid a d e, o p arad o x o resid e n a c o in cid ên cia entre a facticid ad e nua e o v o lu n tarism o radical: só é p o ssív el su sten tar que a facticid ad e não tem sen tid o , q u e é q u a lq u e r co isa q u e «é só com o é» , se a facticid ad e for secretam en te su sten tad a p o r u m a v o n tade d iv in a arb itrária. É p o r isso que D escartes é a fig u ra fu n d ad o ra d a ciên cia m o d ern a precisam en te quan d o to rn a até m esm o os factos m atem ático s m ais elem en tares com o 2+ 2 = 4 dep en d en tes da v o n ta d e d iv in a arbitrária: dois e dois são quatro p o rq u e D eu s quis que assim fo sse, sem q u alq u e r o b scuro encad eam en to d e razõ es su b jacen tes. N as p ró p rias m ate m ática s, este vo lu n tarism o in ­ co n d icio n al é d isc e m ív e l no carácter axio m ático daquelas: co m eçam os p o r estab elecer arb itrariam en te u m a série de ax io m as, a p a rtir dos quais tu d o o resto su pom os que se seguirá.) S e g u n d a reserva: m as será o islão realm en te tão « irra c io n a l» , c eleb rará de facto u m D eus to talm en te tra n s­ cen d en te/irracio n al acim a da razão ? N a m esm a e d ição d a rev ista Time e m que Israely p u b lic a v a o seu elogio do p ap a , ap arecia u m a in te ressan ­ te en tre v ista co m o p resid en te iran ian o M ah m o u d A h m a d in ejad , que d e ­ fende ex actam en te a m e sm a u n id ad e entre a razão (a lógica) e a e sp iri­ tu alid ad e. A o ser in terro g ad o sobre a p erg u n ta que faria a B u sh num deb ate p ú b lico en tre os d o is, com o o que ele p ró p rio p ro p u sera, A h m a ­ d in ejad respondeu: Perguntar-lhe-ia: Serão o racionalismo, a espiritualidade e o humanita­ rismo e a lógica, serão coisas más para os seres humanos? Porquê mais conflitos? Porque teríamos de abrir hostilidades entre nós? Para que have­ ríamos de desenvolver armas de destruição de massa? Todos nos podemos amar uns aos outros. [...] Eu disse que poderíamos conduzir o mundo se-

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gundo a lógica. [...] Os problemas não podem ser resolvidos por meio de bombas. As bombas de nada nos servem hoje. Precisamos de lógica.118 E , cora efeito , seg u n d o a p e rsp e c tiv a do islão, é o cristian ism o e n ­ q u an to relig ião do am o r q u e não é su ficien tem ente «racional»: o seu centram en to no a m o r to rn a D eu s d em asiad o h u m an o , distorce a sua c o n ­ ce p ç ã o , n a fig u ra de C risto que in terv ém n a criação com o u m a figura co m p ro m etid a e co m b a tiv a , p erm itin d o q ue a sua paix ão se sobreponha à ló g ica do criad o r e sen h o r do u n iv erso . O D eus m u çu lm an o , pelo c o n ­ trário , é o v erd ad eiro D eu s d a R azão ; é c o m p letam en te tran scen d en te — não no sentido de u m a irracio n alid ad e frív o la, m as no sentido de ser o C ria d o r su p rem o que co n h ece e d irig e todas as coisas e p o r isso não tem n ecessid ad e alg u m a de se en v o lv e r n os acidentes terren o s co m um a p a i­ xão p arcial. M o h a m m ad B o u y e ri, o isla m ita que m ato u o rea liz ad o r de cin em a h o lan d és T h eo van G o g h , esc re v e u n a sua carta d e stin a d a a H irsh i A li, e c rav ad a p o r u m a faca no corpo de Van G ogh: Como fundamentalista infiel, é evidente que não acreditas que existe um Poder Superior que governa o universo. Não acreditas no teu coração, que se recusou à verdade, que tens de bater à porta e de pedir o consenti­ mento desse Poder Superior. Não acreditas que a tua língua, com que re­ jeitas o Governo desse Poder Superior, obedece às Suas leis.119 E sta id eia, segundo a q u al os n o sso s p ró p rio s actos de oposição a D eus são g o v ern ado s p o r D eu s, é in co n ceb ív el no cristian ism o . N ão é p o r is­ so su rp reen d en te que o islão co n sid ere m u ito m ais fácil aceitar os re su l­ tad o s (para o n o sso senso co m u m ) p arad o x ais d a física contem porânea: a id e ia de u m a o rd e m racio n al co m p letam en te en g lo b an te que faz parte do n o sso senso co m u m . N ão é su rp reen d en te que, aos olhos de m uitos h isto riad o res d a relig ião o cid en tais, o islão seja um problem a: com o p o ­ de o islão te r em erg id o depois do cristian ism o , a religião do fim de todas as relig iõ es? A su a p ró p ria lo calização g eo g ráfica desm ente os este re ó ti­ pos do o rien talism o : m u ito m ais do que p e rten c er ao O riente, a lo ca liz a­ ção do islão to m a -o u m o b stácu lo fatal a u m a v erd ad e ira união entre o O rien te e o O cid en te — é o que C laude L év i-S trau ss fo rm u la ex em p lar­ m ente:

118 «We Do Not Need Attacks», op. cit.. pp. 24-25. 119 Texto disponível em http://www.militantislammonitor.org/article/id/320

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Slavoj Zizek Hoje, é para além do islão que contemplo a índia; a índia de Buda, an­ terior a Maomé que — para mim enquanto europeu e porque sou europeu — se interpõe entre o nosso reflexo e os ensinamentos que dela são mais próximos [...] as mãos do Oriente e do Ocidente, predestinadas a unirem-se, são separadas por ele. [...] O Ocidente deve regressar às origens da sua condição dilacerada: interpondo-se entre o budismo e o cristianismo, o islão islamizou-nos quando, durante as Cruzadas, o Ocidente se deixou capturar pela oposição a ele e assim começou a assemelhar-se-lhe, em vez de se entregar — co­ mo no caso do islão não existir — à lenta osmose com o budismo que nos teria cristianizado ainda mais, no sentido em que teríamos sido tanto mais cristãos quanto mais nos elevássemos para além do próprio cristianismo. Foi então que o Ocidente perdeu a sua oportunidade de continuar a ser mu­ lher.120

E sta p a ssa g e m das ú ltim as p ág in as dos Tristes Trópicos e n u n c ia o so­ n ho de u m a c o m u n icação e de u m a re co n c ilia çã o directas en tre o O c i­ d en te e o O rien te, o cristian ism o e o b u d ism o , os prin cíp io s m ascu lin o e fem in in o . C o m o u m a rela ç ã o sex ual h a rm o n io sa, este co n tacto directo teria sido p a ra a E u ro p a u m a o p o rtu n id ad e d e se to m a r fem in in a. O islão fu n cio n o u co m o u m a b a rre ira q u e se interpôs entre os dois p ó lo s, im p e­ d in d o a e m erg ên cia de u m a civ ilização m u n d ial h e rm afro d ita h arm o n io ­ sa — d ev id o a e sta in te rp o siç ã o , o O cid en te p erd eu a sua ú ltim a o p o rtu ­ n id ad e de « co n tin u ar a ser m u lh er» . (C om o dentro e m brev e v e re m o s, o que e sta p e rsp e c tiv a p erd e de v ista é o facto d e o p ró p rio islão se fu n d ar n u m a fe m in ida.de d en eg ad a, te n tan d o desem b araçar-se do co rdão u m b i­ lical que o lig a ao fem in in o .) O islão fu n cio n a assim com o aq uilo a que F re u d c h am o u Liebesstoerer. o in tru so /o b stá cu lo que p ertu rb a a relação sexual h a rm o n io sa. E sta rela ç ã o h a rm o n io sa teria, sem d ú v id a, a que ex istiria sob o p rim ad o d a fem inidade: o O cid en te m ascu lin o ter-se-ia u n id o ao O rien te fem in in o p o d en d o assim « co n tin u ar a ser m u lh er» , situ an d o -se n o in te rio r d a fem in id ad e. F ran ço is R eg n au lt d efin iu os ju d e u s com o «o n o sso objecto a» — m as não serão os m u çu lm an o s esse « o bjecto parcial» assexual? F alam os g e ­ ralm en te da civ ilização ju d a ic o -c ristã — m as talvez te n h a chegado o m o ­ m en to , sobretu d o ten d o e m co n ta o co n flito no M éd io O rien te, de fa la r­ m os d a civilização judaico-muçulmana co m o de u m eixo que se opõe ao cristian ism o . (L em b rem o -n o s de u m ind ício su rpreendente d esta so lid a­ 120 Claude Lévi-Strauss, Tristes tropiques, Paris, Plon, 1955. pp. 472-473.

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ried ad e profunda: dep o is de F reu d ter p u b licad o , em 1938, o seu ensaio sobre M o isés, p riv an d o os ju d e u s d a sua fig u ra fu n d ad o ra, as reacções m ais fero zes fo ram as dos in telectu ais m u çulm anos do E gipto!) N ão se­ ria j á e sta p ista a d etectad a p o r H eg el co m a sua intuição sobre a id en ti­ d ad e esp e c u la tiv a do ju d a ísm o e do islão? S eg undo u m lu g ar-co m u m , o ju d a ísm o (com o o islão) é u m m o n o teísm o « puro», enquanto o c ristia­ n ism o , c o m a su a T rin d ad e, é u m co m p ro m isso co m o p o liteísm o ; H egel ia ao p o n to de ch am ar ao islão A «religião d a sublim idade» no seu grau m ais p u ro , en q u an to u n iv ersalização do m o n o teísm o judaico: No maometismo o princípio limitado dos judeus é alargado à universa­ lidade e por isso superado. Aqui, Deus já não é, como entre os asiáticos, considerado enquanto existente em termos sensoriais imediatos, mas apreendido enquanto Poder infinito sublime e uno para além de toda a multiplicidade do mundo. O maometismo é, portanto, no sentido mais es­ trito do termo, a religião da sublimidade.121 T alvez isto ex p liq u e p o rq u e ex iste um tão g ran d e anti-sem itism o no islão: d ev id o à e x tre m a proximidade das d uas relig iõ e s. E m h e g eiês, é a SI MESMO que o islão e n c o n tra n o ju d a ísm o n a sua «determ in ação p o r o p o sição » , no m o d o d a p a rtic u la rid ad e . A d iferen ça en tre ju d a ísm o e is ­ lão é , p o rta n to , e m ú ltim a in stâ n c ia , n ão su b stan cial, m as p u ram en te fo r­ m al: são a MESMA relig ião n u m m o d o fo rm al diferen te (no sentido em que E sp in o sa afirm a que o cão re a l e a id e ia de um cão são su b stan cial­ m en te u m a e a m e sm a c o isa , só q u e n u m m odo d ife re n te )122. — C o ntra isto , d ev em o s arg u m en tar q u e é o ju d a ísm o q u e é u m a «neg ação abs­ tracta» do p o liteísm o e q u e co n tin u a , e n q u an to ta l, obcecad o p o r ele (há u m a série de p istas q u e a p o n tam n e sta direcção: «Jeová» é u m su b stan ­ tiv o co lectiv o ; n u m dos seus m a n d a m e n to s, D eus pro íb e aos ju d e u s que celeb rem o u tro s d eu ses « d ian te de m im » , e não quan d o lo n g e d a sua v is­ ta; e tc .), ao p asso que o cristian ism o é o ú n ico m o n o teísm o v erd ad eiro , u m a v ez que in clu i a au to d iferen ciação no in terio r do U n o — a sua lição é q u e, p a ra term o s realm en te U m , p recisam o s d e te r TRÊS. 121 G. W. F. Hegel, Philosophy ofM ind, Oxford, Clarendon Press. 1971, p. 44. 122 A própria lógica triádica de Hegel parece aqui deparar com um beco: a tríade que pa­ rece oferecer-se obviamente, mas Hegel não pode, sem dúvida, admitir tanto, é a do judaísmo-cristianismo-islão: primeiro, o monoteísmo imediato/abstracto que, como pre­ ço a pagar pelo seu carácter imediato, tem de encarnar num grupo étnico particular (sen­ do por isso que os judeus renunciam a qualquer forma de proselitismo); depois, o cris­ tianismo com a sua trindade; por fim, o islão, o monoteísmo verdadeiramente universal.

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T alvez, en tão , d ev am o s pro p o r, num reg isto h eg elia n o , u m a n o v a tría ­ de de m o n o teísm o s: p rim e iro , o ju d a ísm o , o m o n o teísm o sob a su a fo r­ m a « im ed iata» (particu lar, trib al-g en ealó g ica); d ep o is, o islão com o sua n eg ação a b stracta d irecta, a afirm ação im ed iata d a u n iv ersalid ad e. Se o ju d a ísm o m o stra u m a p e rsistê n c ia ex trao rd in ária, m as num reg isto p a rti­ cu larista, o islão é u n iv ersalista, m as sem p o d e r su sten tar m ais do que brev es ex p lo sõ es ex p an sio n istas, a seg u ir às quais p erd e o seu ím p eto e recai de novo n o in terio r de si p ró p rio , à fa lta d e u m a en erg ia que tra n s­ p o n h a o seu ím p eto n u m a fo rm a p erm a n en te . O cristian ism o é po rtan to a « síntese» d ialéctica das duas re lig iõ e s, o ú n ico m o n o teísm o v e rd a d ei­ ro p o r co n traste co m as duas ab stracções que são o ju d a ísm o e o islão. A ló g ica su b jacen te do islão é a de um a racio n alid ad e que po d e ser b i­ za rra , m as não p erm ite ex cep ção , en q u an to a ló g ica su b jacente do c ris­ tian ism o é a de q u e u m a ex cep ção « irracional» (u m m istério divino in ­ sondável) su sten ta a n o ssa racio n alid ad e — ou seja, nos term o s de G . K . C h esterto n , a d o u trin a c ristã « não só d esco b riu a lei, co m o p re v iu as e x ­ c e p ç õ e s» 123: só a ex cep ção n os p erm ite co m p reen d erm o s o m ilagre da re g ra u n iv ersal. E , p a ra C h esterto n , o m esm o vale p ara o n o sso e n te n d i­ m en to ra c io n a l d o universo: Todo o segredo do misticismo é este: que um homem possa compreender todas as coisas graças ao que não compreende. O lógico doentio tenta tomar todas as coisas transparentes, e o resultado é que toma tudo misterioso. O mís­ tico permite que uma coisa seja misteriosa, e todas as coisas se tomam trans­ parentes. [...] A única coisa criada que não podemos ver é aquela a cuja luz vemos todas as coisas. Como o sol ao meio-dia, o misticismo explica todas as restantes coisas pelo esplendor da sua própria invisibilidade vitoriosa.124 O o b jectiv o de C h esterto n é assim salvar a razão mantendo a sua ex­ cepção fundadora: p riv a d a d esta, a razão d eg en era n u m cep ticism o c e ­ go e au to -d estru tiv o , ou , e m re su m o , no irracionalismo total — ou ain ­ d a, com o C h esterto n g o sta v a de repetir: se não acreditarm os em D eus, em b rev e p assarem o s a acred itar seja no que for, inclu siv am en te nas h is ­ tó rias de m ilag res m ais d isp aratad as e m ais su p e rstic io sa s... A co n vicção e in tu ição fu n d am en tais de C h esterto n eram que o irracio n alism o de fi­ nais do século XIX re p re se n ta v a u m a co n seq u ên cia n ec essá ria d a o fe n si­ v a das L u zes c o n tra a religião:

123 Chesterton. Orthodoxy, p. 105. 124 Chesterton, op. cit., p. 33.

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Os credos e as cruzadas, as hierarquias e as perseguições horríveis não foram organizadas, como se tem dito ignorando a realidade, para suprimir a razão. Foram organizadas em vista da difícil defesa da razão. Sabia-se, por um instinto cego, que se as coisas começassem a ser selvaticamente postas em causa, seria possível sobretudo pôr em causa a razão. A autori­ dade de absolvição dos sacerdotes, a autoridade de definição da autorida­ de dos papas, a própria autoridade de terror dos inquisidores, tudo isso eram simplesmente meios de defesa sombrios edificados em tomo de uma autoridade central, mais indemonstrável, mais sobrenatural do que todas as outras coisas — a autoridade do pensamento do homem. [...] Nessa medida, uma vez que a religião desaparece, desaparece a razão.125

A qui, todavia, deparam os com a lim itação fatal de C hesterton, um a lim itação que ele próprio superaria quando, no seu m aravilhoso texto sobre o Livro de Job, m ostra com o D eus acabava por rejeitar os seus próprios defensores, os «m ecânicos e presunçosos consoladores · de Job»: O optimista mecânico trata de justificar o universo a partir manifesta­ mente da ideia de que este é uma form a racional e causal. Afirma que aquilo que o universo tem de bom é que tudo nele pode ser explicado. E acerca deste ponto, se assim me posso exprimir, que Deus, em contrapar­ tida, é explícito até à violência. Deus diz, com efeito, que se há um a coi­ sa boa no mundo, na medida em que isso interesse ao homem, é que o mundo não pode ser explicado. Deus insiste na inexplicabilidade de todas as coisas. «Tem a chuva um pai? ... De que ventre nasceu o gelo?» (Job 38, 28 e segs.). Vai ainda mais longe e insiste na desrazão positiva e tan­ gível das coisas: «Fizeste chover sobre o deserto que nenhum homem ha­ bita, e sobre o ermo que o homem não habita?» (38. 26) [...] Para sur­ preender o homem, Deus torna-se por um instante blasfemo: quase podemos dizer que Deus se tom a por instante ateu. Desenrola diante dos olhos de Job o longo quadro das coisas criadas, o cavalo, a águia, o cor­ vo, o onagro, o pavão, a avestruz, o crocodilo. Descreve cada uma destas coisas como se cada uma delas fosse um monstro que se move à luz do Sol. O conjunto é uma espécie de salmo ou rapsódia do sentimento de es­ panto. O criador de todas as coisas maravilha-se perante as coisas que criou.126 125 O p. cit., p. 39.

126 G. K. Chesterton, «Introduction to Book of Job», op. cit.

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Deus aqui já não é a excepção m ilagrosa que garante a norm alidade do universo, o X inexplicável que nos perm ite explicar todas as restan­ tes coisas; pelo contrário, m ostra-se a Si m esm o subm erso pelo m ilagre mais do que transbordante da sua Criação. A um exam e m ais atento, n a­ da há de norm al no nosso universo — cada um a de todas as coisas que existem é um a excepção m ilagrosa; vista segundo um a perspectiva cor­ recta, cada coisa norm al é um a m onstruosidade. Por exem plo, não deve­ ríam os considerar norm ais os cavalos e o unicórnio um a excepção m ila­ grosa — o próprio cavalo, a coisa m ais com um do m undo, é um m ilagre assom broso. Este Deus blasfem o é o Deus da ciência m oderna, um a vez que a ciência m oderna é suportada precisam ente por um a atitude de es­ panto desta espécie perante o que parece m ais óbvio. Em resum o, a ciên­ cia m oderna está do lado do «acreditar seja no que for»: um a das lições da teoria da relatividade e da física quântica não será que a ciência m o­ derna m ina as nossas atitudes naturais m ais elem entares e nos obriga a acreditar (a consentir) nas coisas m ais «insensatas»? N a elucidação des­ te enigm a, a lógica do não-Todo de Lacan pode dar-nos aqui o seu con­ tributo127. Chesterton apoia-se evidentem ente no lado «m asculino» da universalidade e da sua excepção constitutiva: todas as coisas obedecem à causalidade natural — à excepção de D eus, o M istério central. A lógi­ ca da ciência m oderna é, pelo contrário, «feminina»: prim eiro, é m ate­ rialista, aceitando o axiom a de que nada escapa à causalidade natural, da qual a explicação racional nos perm ite dar conta; todavia, o outro lado deste axiom a m aterialista é que «nem tudo é racional, obedecendo a leis naturais» — não no sentido de que «há qualquer coisa de irracional, qualquer coisa que escapa à causalidade racional», m as no sentido em que é a própria «totalidade» da ordem causal racional que é inconsisten­ te, «irracional», não-toda. Só este não-Todo garante a adequada abertura do discurso científico às surpresas, às em ergências do «im pensável»: Q uem , no século XIX, poderia ter im aginado coisas com o a teoria da re­ latividade ou a física quântica? A Igreja C atólica esteve, portanto, regra geral, do lado do realism o do senso com um e da explicação natural, de C hesterton ao papa João Paulo II que aceitou o evolucionism o — excepto para o m om ento único em que D eus concede aos hom ens um a alm a im ortal — e a cosm ologia contem ­ porânea — excepto para o m om ento da singularidade insondável do B ig B a n g , o m om ento em que as leis naturais se suspendem (e foi por isso 127 Sobre a lógica do não-Todo, cf. Jacques Lacan, Seminar, Book XX: Encore, Nova York, Norton, 1998.

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que rogou aos cientistas que deixassem de parte o m istério do Big Bang). Não é pois surpreendente que num erosos neotom istas se dessem conta de um a estranha sem elhança entre a sua própria ontologia e a ontologia do m aterialism o dialéctico, defendendo um a e outra doutrina um a versão de realism o ingénuo (os objectos que percebem os existem de facto inde­ pendentem ente e fora da nossa percepção)128. É por isso que tanto o catolicism o com o o m aterialism o dialéctico ti­ veram tão grandes problem as com a ontologia «aberta» da m ecânica quântica. Q uer dizer: com o devem os interpretar o cham ado «princípio de incerteza» que nos proíbe de acedermos a um conhecim ento com pleto das partículas ao nível quântico (determ inar a velocidade e a posição de um a partícula)? Para Einstein, este princípio de incerteza prova que a fí­ sica quântica não fornece um a descrição com pleta da realidade, e que têm de existir alguns aspectos desconhecidos que o seu aparelho con­ ceptual não apreende. H eisenberg, B ohr e outros, pelo contrário, insisti­ ram em que esta incom pletude do nosso conhecim ento da realidade quântica indica um a estranha incom pletude da própria realidade quânti­ ca — tese que desem boca num a ontologia insólitam ente assom brosa. Q uando querem os sim ular a realidade no interior de um m eio artificial (virtual, digital), não tem os de ser exaustivos: basta que reproduzam os traços que tom em a im agem realista do ponto de vista do espectador. Por exem plo, se houver um a casa em plano de fundo, não tem os de construir através do program a o interior com pleto da casa, um a vez que esperam os que o participante não queira entrar dentro dessa casa; ou ainda, a cons­ trução de um a pessoa virtual no interior desse espaço poderá lim itar-se ao seu exterior — não terem os de nos preocupar com a construção dos seus órgãos internos, ossos, etc. B asta-nos instalar um program a que preencha rapidam ente a lacuna no caso de a actividade do participante o tornar necessário (por exem plo, no caso de ele querer abrir em profundi­ dade com um a lâm ina o corpo da pessoa virtual). E com o quando de­ senrolam os um texto longo no m onitor de um com putador: as páginas

128 A este propósito, até mesmo uma figura dominadora como Lenine NÃO era mate­ rialista: como já foi observado pelos seus críticos, quando, no seu Materialismo e Empirocriticismo, propõe como definição mínima do materialismo a afirmação de que a rea­ lidade «objectiva» exterior existindo independentemente dos nossos espíritos, deixa em aberto (como relevando do progresso científico e não da filosofia) a determinação su­ plementar dessa realidade. Todavia, segundo este critério, não será materialista o idea­ lismo de Platão, uma vez que as ideias em última instância existem independentemente dos nossos espíritos? É evidente que. para Lenine, a consciência que «reflecte» a reali­ dade exterior é a Excepção.

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anteriores e posteriores não preexistem à nossa visualização; do m esm o m odo, quando sim ulam os um universo virtual, a estrutura m icroscópica dos objectos pode ser deixada por preencher, e se as estrelas no horizon­ te aparecem toldadas, não tem os de nos preocupar em construir o modo de as fazer aparecer com o aparecem perante um olhar m ais próxim o, um a vez que ninguém subirá ao firm am ento para olhar assim para elas. A qui a ideia verdadeiram ente interessante é que a indeterm inação quân­ tica que encontram os quando investigam os as com ponentes mais finas do nosso universo podem ser lidas exactam ente do m esm o m odo, com o um traço da resolução lim itada do nosso m undo sim ulado — quer dizer: com o indício da incom pletude ontológica da própria realidade (ou do que experim entam os com o tal). Por exem plo, se im aginarm os um Deus que cria o m undo para nós, os seus habitantes hum anos, nele m orarm os, poderíam os dizer que a sua tarefa seria facilitada se fornecesse ao mundo apenas essas partes que os seus habitantes têm necessidade de conhecer. Por exemplo, a estrutura micros­ cópica do interior da Terra poderia ser deixada por preencher, pelo menos até ao momento em que alguém decidisse escavá-la mais profundamente, sendo que nesse caso os elementos em falta poderiam ser rapidamente preenchidos da maneira devida. Se as estrelas mais distantes aparecem tol­ dadas, ninguém se aproxima alguma vez deles o suficiente para dar pela falta de alguma coisa.12^

A ideia é que D eus que criou-«program ou» o nosso universo foi d e­ m asiado preguiçoso (ou, antes, subestim ou a nossa inteligência hum a­ na): pensou que nós, os seres hum anos, não seríam os bem -sucedidos investigando a estrutura da natureza para além do nível dos átom os, por isso program ou a M atriz do nosso universo sim plesm ente até ao nível da sua estrutura atóm ica — para além desse nível, deixou as coi­ sas im precisas, com o no interior de um a casa que um jo g o de com pu­ tador não p ro g ram a130. S erá, contudo, este m odo teológico-digital a única m aneira de lerm os o paradoxo? P odem os lê-lo com o indicando que vivem os já num universo sim ulado, m as tam bém com o indicando a incom pletude ontológica da própria realidade. N o prim eiro caso, a incom pletude ontológica é transposta para o terreno da epistem ología, 12^ Cf. Nicholas Feam, Philosophy. The Latest Answers To the Oldest Questions, Lon­ dres, Atlantic Books. 2005, p. 77. 130 Cf. Feam, op. cit., pp. 77-78.

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ou seja, a incom pletude é percebida com o o efeito do facto de que urna outra in stancia (secreta, m as plenam ente real) construiu a nossa reali­ dade com o universo sim ulado. A verdadeira dificuldade é a c e ita m o s a segunda alternativa, a da incom pletude ontológica da própria realida­ de. O u, dito de outro m odo, levanta-se aqui um a oposição m aciça do senso com um : com o pode essa incom pletude ontológica valer para a p rópria realidade? N ão será a realidade definida pela sua com pletude o n to ló g ica?131 Se a realidade «existe realm ente no exterior», TEM de ser com pleta «o tem po todo», de outro m odo estarem os a lidar som en­ te com um a ficção «suspensa no ar», com o as aparências que não são aparências de Q ualquer C oisa de substancial. É aqui, precisam ente, que intervém a física quântica, fornecendo um m odelo segundo o qual podem os pensar (ou, pelo m enos, im aginar) um a ontologia «aberta» deste tipo. A lain B adiou form ulou esta m esm a ideia no seu conceito de m ultiplicidade pura enquanto categoria ontológica últim a: a realidade é a m ultiplicidade das m ultiplicidades que não podem ser engendradas ou constituídas a partir de (ou reduzidas a) qualquer form a de U ns en­ quanto seus constituintes elem entares («atóm icos»). As m ultiplicida­ des não são m ultiplicações de U m , são m ultiplicidades irredutíveis, e é p or isso que o seu oposto não é o U m , m as o zero, o vazio ontológi­ co: p or m ais longe que levem os a nossa análise das m ultiplicidades, nunca alcançam os o grau zero dos seus constituintes sim ples — o úni­ co «antecedente» das m ultiplicidades é assim o zero, o v azio 132. É aqui que se situa a ruptura ontológica de B adiou: a oposição prim or­

131 A oposição a esta ideia de completude ontológica define o idealismo de Hegel: o seu núcleo reside na afirmação de que a realidade finita (positiva-substantiva, determinada) é em si mesma vazia, inconsistente, a auto-superar. No entanto, daqui não se segue que uma tal realidade seja apenas uma sombra, um reflexo secundário, etc., de uma realida­ de superior: não há nada senão esta realidade, e o «supra-sensível é aparência enquanto aparência» — quer dizer, o próprio momento de auto-superação desta realidade. Na rea­ lidade, passamos assim «de nada a nada através de nada»: o ponto de partida, a realida­ de imediata, desenrola o seu nada, auto-anula-se, nega-se, mas não há nada para além de­ la... E por isso que não podemos situar Hegel nos termos da oposição entre transcendência e imanência: a sua posição é a da imanência absoluta da transcendência. Por outras palavras, a sua posição só pode ser apreendida nos termos de um transição temporal: primeiro, afirmamos a transcendência (de modo apofático) — a realidade po­ sitiva imediata/imanente não é nada, tem de ser superada/negada; aponta para além de si mesma; depois, esta superação é posta como inteiramente imanente: o que está para além da realidade imediata não é outra realidade superior, mas o movimento da negação en­ quanto tal. 132 Cf. Alain Badiou, Being and Event, Londres, Continuum Books, 2006.

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dial não é a do U m e do Z ero, m as a do Zero e das m ultiplicidades, e 0 U m só em erge m ais tarde. P ara o form ularm os ainda m ais radical­ m ente, quando só o U m «existe na realidade» plenam ente, as m ultipli­ cidades e o Zero são a m esm a coisa (não uma e a m esm a coisa): o Zero «é» as m ultiplicidades sem os Uns que garantiriam a sua consis­ tência ontológica. H á aqui um porm enor que nos diz, talvez, muito sobre a diferença en­ tre a Europa e os EUA: na Europa, o rés-do-chão de um edifício é conta­ do com o 0, pelo que o piso superior é o «primeiro andar» — enquanto nos EUA, o «primeiro andar» é o piso ao nível da rua. Em resum o, os am eri­ canos com eçam a contar a partir de 1, enquanto os europeus sabem que o 1 é já um substituto do 0. Ou em termos mais históricos: os europeus têm consciência de que, antes de com eçarem a contar, tem de haver um «solo» de tradição, um solo sempre já dado e que, com o tal, não pode ser conta­ do — enquanto nos EUA, um a região sem tradição histórica pré-m odem a propriamente dita, este «solo» falta: as coisas com eçam directam ente com a liberdade autolegislada, o passado é rasurado (transposto para a Euro­ pa)133. Portanto, qual destas duas posições está mais perto da verdade? Nenhum a delas — só na Polónia parece ter sido descoberta a solução ade­ quada para esta alternativa: nos elevadores dos hotéis, salta-se p o r cima do 1 — quer dizer: com eça-se a contagem dos pisos pelo 0 e passa-se a seguir directamente para o 2. Quando, num hotel de Varsóvia, perguntei ao re­ cepcionista como era possível saltarmos directamente do 0 para o 2, fiquei desconcertado pela simples verdade da sua resposta. Depois de um m o­ mento de perplexidade, ele disse-me: «Bom, penso que no m om ento em que começamos a contar os pisos, o nível do solo tem de ser contado co­ mo u m ...» No que tinha razão: originalmente o «um» não é o núm ero que se segue ao zero, mas é o próprio zero que é contado como um — só as­ sim pode começai' a série dos «uns» contados (um Um , depois outro Um, etc., ad infinitum)·, a multiplicidade original, o correlato do Vazio, não de­ ve ser confundida com esta série de Uns. A solução aqui baseia-se portan­ to na intuição correcta que Badiou desenvolveu na sua ontologia: a reali1 oo

Talvez este traço possa dar conta de outro fenómeno bizarro: em (quase) todos os ho­ téis americanos instalados em edifícios com mais de 12 pisos, não há 13° andar (para evitar o azar. evidentemente), o que significa que saltemos directamente do 12.° para o 14.° andar. Para um europeu, este procedimento não tem sentido: Quem estamos a tentar enganar? Como se Deus não soubesse que o piso a que chamamos 14° andar é na reali­ dade o 13.°... Os americanos podem jogar o seu jogo precisamente porque o seu Deus é apenas um prolongamento dos nossos eus individuais, e não percebido como um verda­ deiro solo fundamental da existência.

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dade é um a multiplicidade em que o Vazio e o múltiplo coincidem — ou seja, o múltiplo não é composto por «uns», mas é prim ordial134. Devem os livrar-nos do m edo de, se afirm arm os que a realidade é o v a­ zio infinitam ente divisível, insubstancial, dentro de um vazio, vermos «a m atéria desaparecer.» O que a revolução digital da inform ação, a revo­ lução biogenética e a revolução quântica da física têm em com um é m ar­ carem a reem ergência daquilo a que, à falta de m elhor term o, nos senti­ mos tentados a cham ar um idealism o pós-m etafísico. É com o se a intuição de C hesterton do modo com o a luta m aterialista pela afirm ação plena da realidade, contra a sua subordinação a qualquer ordem m etafí­ sica «superior», culm inasse na perda da própria realidade: o que com e­ çou com o afirm ação da realidade m aterial acabou sob a form a do reino de puras fórm ulas da física quântica. Tal será, no entanto, um a form a de idealism o? Urna vez que a atitude m aterialista radical afirm a que não há M undo, que o M undo no seu Todo é o N ada, o m aterialism o nada tem a ver com a presença de um a m atéria húm ida, densa — as suas figuras m ais adequadas são, antes, constelações nas quais a m atéria parece «de­ saparecer», com o as puras oscilações das supercordas ou as vibrações quânticas. Pelo contrário, quando vem os na m atéria em bruto, inerte, mais do que um ecrã im aginário, é porque secretam ente continuam os a adoptar um a.espécie ou outra de espiritualism o, com o acontece no Sola­ ris de Tarkovsky, em que a m atéria plástica densa do planeta encarna di­ rectam ente o Espírito. Este «m aterialism o espectral» tem três form as di­ ferentes: na revolução da inform ação, a m atéria é reduzida ao m eio da inform ação puram ente digitalizada; na biogenética, o corpo biológico é reduzido ao m eio que veicula a reprodução do código genético; na físi­ ca quântica, a própria realidade, a densidade da m atéria, é reduzida ao colapso da virtualidade das oscilações de onda (ou, na teoria da relativi­ dade geral, a m atéria é reduzida a um efeito da curvatura do espaço). D e­ param os aqui com UM OUTRO aspecto decisivo da oposição m aterialis­ m o/idealism o: o m aterialism o não é a afirm ação da densidade m aterial inerte no seu peso húm ido — um «m aterialism o» QUE TAL poderá servir 134 Contrastando com este 0 que é contado como 1, há o 7 que é contado como 0: a tor­ ção sintomal de um mundo, a sua parte de não-parte. Enquanto o 0 que se conta é o pon­ to, o traço suturante, de um mundo, o 1 que se conta como zero é. pelo contrário, o seu lugar de acontecimento, o lugar a partir do qual podemos minar o mundo. Devemos as­ sim distinguir o Zero que é o correlato da multiplicidade ontológica do zero que é paite da não-parte de uma situação, «um zero (determinado)» de um mundo; os dois relacionam-se do mesmo modo que o Real pré-simbólico e o real do restante/remanes­ cente de uma ordem simbólica.

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sem pre de suporte ao obscurantism o espiritualista gnóstico. Em contras­ te com ele, o verdadeiro m aterialism o assum e alegrem ente o «desapare­ cim ento da m atéria», o facto de que existe apenas vazio. No seu Logique des m ondes, Badiou fornece um a definição sucinta do «m aterialism o dem ocrático» e do seu contrário, o «a dialéctica m ateria­ lista»: o axiom a que condensa o prim eiro term o é «Não há nada além de corpos e linguagens...», ao que a dialéctica m aterialista acrescenta: « ... à excepção das v e rd a d e s» ^ 5. Existe um a versão antropológica m ais restrita deste axioma: para o m aterialism o dem ocrático, «não há nada além cle indivíduos e de com unidades», ao que a dialéctica m aterialista acrescenta: «Na medida em que existe uma verdade, um sujeito auto- subtrai-se de toda a com unidade e destrói toda a individuação ,»136 A passagem do Dois ao Três é aqui decisiva, e devem os ter presente todo este avanço platónico, e propriam ente m etafísico, em direcção àquilo que, prim a facie, não pode deixar um a posição proto-idealista de afirm ar que a realidade m aterial não é tudo o que existe, que existe tam bém um outro nível de verdades incorpóreas. Badiou executa aqui o gesto filosófico paradoxal de defender, EN­ QUANTO m a t e r i a l i s t a , a autonom ia da ordem «im aterial» do A conte­ cim ento. Enquanto m aterialista, e para ser plenam ente m aterialista, B a­ diou centra-se no topos IDEALISTA por excelência: Com o pode um anim al hum ano abandonar a sua anim alidade e pôr a sua vida ao serviço de um a Verdade transcendente? Com o pode dar-se a «transubstanciação» da vida orientada para o prazer de um indivíduo em vida de um sujeito dedicado a um a Causa? Por outras palavras, com o é possível um acto li­ vre? Com o podem os rom per (com ) a rede de conexões causais da reali­ dade positiva e conceber um acto que com eça em e por si próprio? Em resum o, Badiou repete dentro de um quadro m aterialista o gesto ele­ m entar do anti-reducionism o idealista: a R azão hum ana não pode ser re­ duzida ao resultado da adaptação evolutiva; a arte não é som ente um m o­ do m ais elevado de obtenção de prazeres sensoriais, mas um m eio de com unicação da Verdade; e assim por diante. A dicionalm ente, contra a falsa aparência de que é este o m ovim ento visado tam bém pela psicaná­ lise (o conceito de «sublim ação» não sugere que as actividades hum anas «superiores» são apenas um m eio indirecto e «sublim ado» de realização de um fim «inferior»?), o sentido m ais im portante da psicanálise é o da sua tese segundo a qual a própria sexualidade, as pulsões sexuais do ani1«

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* Alain Badiou, Logique des mondes, Paris, Editions du Seuil, 2006. p. 9. 136 Alain Badiou, op. cit., pp. 9-17.

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m al hum ano, não podem ser explicadas em term os evolutivos. Eis com o devem os traçar a passagem do instinto biológico para a pulsão: o instin­ to faz sim plesm ente parte da física da v i d a anim al, enquanto a pulsão (pulsão de MORTE) introduz um a dim ensão m etafísica. Em M arx, encon­ tram os um a distinção im plícita hom óloga entre a classe trabalhadora e o proletariado: a «classe trabalhadora» é a categoria social em pírica, aces­ sível ao conhecim ento sociológico, enquanto o «proletariado» é o agente-sujeito da Verdade revolucionária. N a m esm a ordem de ideias, L acan sustenta que a pulsão é um a categoria ÉTICA. [No entanto, de um ponto de vista freudiano rigoroso, há um problem a nesta dualidade do anim al hum ano e do sujeito: para que o A contecim ento se possa inscre­ ver no corpo do anim al hum ano, é necessário que este anim al hum ano tenha sido já descarrilado/distorcido pela pulsão, por aquilo a que Eric S antner cham a a sua «dem asia» («too-m uchness»). M ais vincadam ente ainda, o que Badiou perde de vista é o sim ples facto de que não existe o anim al hum ano (governado pelo prazer — e pelo princípio de realidade, ligado à sobrevivência, etc.), porque, com a hum anidade propriam ente d ita, a an im alidade descarrila e sai do seu trilh o , os instintos transform am -se em pulsão, e só num anim al assim distorcido o A conte­ cim ento se pode inscrever.] Tom a-se deste m odo claro o que está em jogo no gesto de Badiou: p a­ ra que o m aterialism o triunfe verdadeiram ente sobre o idealism o, não basta assegurar o sucesso da abordagem «reducionista» e dem onstrar co­ m o o espírito, a consciência, etc., podem tam bém ser de um a m aneira ou de outra explicadas dentro do quadro positivista-evolucionista do m ate­ rialism o. Pelo contrário, a tese do m aterialista deve ser m uito m ais for­ te: s ó o m aterialism o pode explicar adequadam ente o próprio fenóm eno do espírito, da consciência, etc.; e é, inversam ente, o idealism o que é «vulgar», que «reifica» sem pre-já esses m esm os fenóm enos. H oje, são m últiplas as orientações que se reclam am do m aterialism o: o m aterialism o científico (darw inism o, ciências do cérebro); o m ateria­ lism o «discursivo» (a ideologia enquanto resultado de práticas discursi­ vas m ateriais), aquilo a que A lain B adiou cham a o «m aterialism o dem o­ crático» (o hedonism o igualitário espontâneo), etc., sem esquecerm os as tentativas de «teologia m aterialista.» Alguns destes m aterialism os são m utuam ente exclusivos: para os m aterialistas «discursivos», é o m ate­ rialism o científico que, na sua declaradam ente directa afirm ação «ingé­ nua» da realidade exterior, é «idealista» no sentido de não tom ar em con­ ta o papel da prática sim bólica «m aterial» na constituição do que nos

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aparece com o realidade; para o m aterialism o científico, o m aterialism o «discursivo» é um a confusão obscurantista que não pode ser levada a sé­ rio. Sentim o-nos tentados a propor que o m aterialism o discursivo e o m aterialism o científico são, no seu antagonism o precisam ente, o verso e o reverso da m esm a m oeda, prom ovendo um deles a culturalização radi­ cal (todas as coisas, incluindo as nossas concepções da natureza, são for­ m ações discursivas contingentes), e o outro a naturalização radical (to­ das as coisas, incluindo a nossa cultura, podem ser explicadas em term os de evolução biológica natural). (D evem os aqui observar com o esta dua­ lidade do m aterialism o naturalista e do m aterialism o discursivo ecoa a dualidade que, segundo B adiou, caracteriza o «m aterialism o dem ocráti­ co» para o qual existem apenas corpos e linguagens: o m aterialism o na­ turalista cobre os corpos, e o m aterialism o discursivo cobre as lingua­ gens.) Com esta m ultiplicidade entra em concorrência a m ultiplicidade das tendências espiritualistas: as versões do cristianism o, judaísm o e islão tradicionais são suplem entadas pelo cham ado pensam ento «pós-secular» (D errida, L evinas), pelo neobergsonism o (caso de D eleuze, para alguns), para já não falarm os das m últiplas form as da espiritualidade N ew Age, do «budism o ocidental» ao neo-paganism o. (Peter H allw ard tinha razão ao pôr a descoberto o núcleo idealista do pensam ento de Deleuze: a po­ lém ica de B adiou contra D eleuze pode ser tida por um a das últim as figuras do eterno com bate do m aterialism o contra o idealism o137.) No interior desta im agem com plexa, as relações entre o par m aterialis­ m o/idealism o e a luta política são m uitas vezes «sobredeterm inadas» — por exem plo, a recente popularidade dos ataques directos do m aterialis­ mo científico contra a religião (os bestsellers da troika Sam H arris, R i­ chard D awkins e D aniel Dennett) é decerto alim entada pela necessidade ideológica de m ostrar o Ocidente liberal com o a fortaleza da R azão con­ tra a insensatez m uçulm ana e outros fundam entalism os irracionais. A nossa posição é que só o m aterialism o do Vazio e da m ultiplicidade, in­ do muito para além da afirm ação de senso com um da realidade m aterial «exterior» com o única coisa que «realm ente existe», é o m aterialism o que, com o diria H egel, alcança o nível do seu conceito. A diferença entre as m ultiplicidades e o Vazio é assim um a diferença pura, não a diferença entre duas entidades ônticas, nem sequer entre Al-

137 Cf. Peter Hallward, Out ofThis World, Londres, Verso Books, 2006.

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gum a C oisa E N ada (com o se houvesse m últiplos A lgum a C oisa rodea­ dos pelo vazio do N ada, com o no atom ism o antigo), m as um a diferença «ontológica.» A diferença em relação a H eidegger é que a diferença on­ tológica de H eidegger é a diferença entre as entidades e o seu «m undo», o horizonte histórico do seu sentido que tom a lugar enquanto A conteci­ m ento epocal do des velam ento de um novo m undo. Somos assim tenta­ dos a dizer que a diferença entre a diferença ontológica de Badiou e de H eidegger é a que existe entre um a diferença «pura» e um a diferença «aplicada» (ou antes, «esquem atizada» no sentido kantiano do termo): a diferença heideggeriana é sem pre-já «esquem atizada» enquanto desvelam ento epocal particular do Ser. Nos term os de B adiou, a diferença onto­ lógica heideggeriana é um a diferença entre o que aparece e o seu apare­ cer enquanto tal, o M undo em cujo interior aparece. E sta abertura ontológica da m ultiplicidade sem -um tam bém nos per­ m ite que abordem os de m odo novo a segunda antinom ia da razão pura de K ant cuja tese é: «Toda a substância com posta no m undo se com põe de partes sim ples; e nada existe que não seja sim ples ou com posto de partes sim ples.»138 Eis a dem onstração de Kant: Com efeito, suponhamos que as substâncias compostas não se com ­ põem de partes simples; então, se toda a combinação ou composição for suprimida no pensamento, nenhuma parte composta, e (pois que, por su­ posição, não existem partes simples) também nenhuma parte simples exis­ tiria. Por conseguinte, não há substância, e, por conseguinte, nada have­ ria. Ou então, é impossível suprimir a composição no pensamento; ou, depois dessa supressão, tem de restar alguma coisa que subsista sem com­ posição, ou seja, alguma coisa que é uma parte simples. Mas no primeiro caso o composto não poderia consistir em substâncias, porque com as substâncias a composição não é mais do que uma relação contingente, fo­ ra da qual elas têm de continuar a existir enquanto seres auto-subsistentes. Ora, uma vez que este caso contradiz a suposição, o segundo tem de con­ ter a verdade — que o composto substancial no mundo consiste em partes simples. Segue-se, como inferência imediata, que as coisas no mundo são, sem excepção, seres simples — que a composição é somente uma condição ex­ terior que lhes pertence — e que, embora nunca possamos separar e isolar as substâncias elementares do estado de composição, a razão deve 138 Immanuel Kant, Critique o f Pure Reason, Londres, Everyman's Library, 1988, p. 264.

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considerá-las como primeiros sujeitos de toda a composição e, por conse­ guinte, anteriores a esta — e como simples substâncias.

Que se passa, todavia, se adm itirm os a conclusão de que, em últim a instância, «nada existe» (conclusão que, diga-se de passagem , é exacta­ m ente a m esm a que encontram os no Parm énides de Platão: «Não deve­ m os pois dizer, em resum o, falando acertadam ente, que se o um não é, nada é?»)? Este m ovim ento, em bora rejeitado por K ant com o um contra-senso evidente, não é tão não-kantiano com o pode parecer: é aqui que devem os aplicar um a vez m ais a distinção kantiana entre o juízo negati­ vo e o juízo infinito. A proposição «a realidade m aterial é tudo o que existe» pode ser negada de duas m aneiras, sob a form a «a realidade m a­ terial não é tudo o que é» e «a realidade m aterial é não-toda.» A prim ei­ ra negação (negação de um predicado) conduz-nos à m etafísica estabe­ lecida: a realidade m aterial não é tudo, há um a outra realidade superior, esp iritu al... Com o tal, esta negação é, segundo as fórm ulas lacanianas da sexuação, inerente à proposição positiva «a realidade m aterial é tudo o que é»: com o sua excepção constitutiva, funda a sua universalidade. Se, no entanto, afirm arm os um não-predicado e disserm os «a realidade m a­ terial é não-toda», tal afirm a apenas o não-Todo da realidade sem im pli­ car qualquer excepção — paradoxalm ente, devem os assim sustentar que «a realidade m aterial é não-toda», e NÃO «a realidade m aterial é tudo o que é», é a verdadeira fórm ula do m aterialism o. Não deverá esta «im precisão» ontológica da realidade perm itir-nos tam bém um a nova abordagem do m odernism o em pintura? Não são as «m anchas» que toldam a transparência de um a representação realista, que as im põe ENQUANTO m anchas, justam ente a indicação de que os contornos da realidade constituída se esbatem , de que nos aproxim am os do nível pré-ontológico de um a proto-realidade im precisa? É aqui que encontram os a passagem decisiva que o espectador deve levar a cabo: as m anchas não são obstáculos que im peçam o nosso acesso directo à rea­ lidade representada, são, pelo contrário, «mais reais do que a realidade», qualquer coisa que m ina a partir de dentro a consistência ontológica da realidade — ou, para o dizerm os em term os filosóficos fora de m oda, o seu estatuto não é epistem ológico mas ontológico. Lem brem os a figura transcendente convencional de Deus com o Senhor e M estre secreto que conhece o sentido do que nos aparece com o um a catástrofe sem sentido, o Deus que vê o quadro inteiro no qual aquilo que nós percebem os co139 Kant, op. cit., pp. 264-265.

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m o urna m ancha contribui para a harm onia global: devem os transpor es­ te fosso que separa a harm onia do quadro com pleto das m anchas que o com põem na direcção oposta — não passando das m anchas sem sentido à harm onia m aior, mas passando da aparência de harm onia global às m anchas que a com põem . A única verdadeira alternativa a esta im precisão ontológica é a ideia não m enos paradoxal de que, nalgum ponto, o progresso sem fim da di­ visão da realidade nos seus com ponentes se interrom pe quando a divisão deixa de ser a divisão em 2 (ou mais) partes/coisas, para se tom ar a divi­ são entre um a parte (algum a coisa) e nada. Tal seria a prova de term os al­ cançado o constituinte m ais elem entar da realidade: o m om ento em que um a coisa já só pode ser dividida entre algum a coisa e nada. — E não nos deverão rem eter de novo estas duas alternativas para as «fórmulas da sexuação» lacanianas, fazendo-nos ver a alternativa m ultiplicidade -irredutível com o «feminina» e a da divisão do term o últim o em algum a coisa e nada com o «m asculina»? De resto, não é verdade que, se puder­ mos atingir o ponto da últim a divisão (e assim o 1 últim o, o últim o cons­ tituinte da realidade), então deixa de haver «criação» propriam ente dita, e nada de novo realm ente em erge, em ergem apenas as (re)com binações dos elem entos existentes — ao passo que a «im precisão» fem inina da rea­ lidade abre o espaço à criação propriam ente dita? O problem a aqui sub­ jacente é o seguinte: com o passam os da m ultiplicidade-que-é-Zero à em ergência do U m ? Será o U m um m últiplo que «representa o nada»? Ou seja: os Uns existirão somente ao nível da re-presentação? Podem os sustentar que o ateísm o só é verdadeiram ente pensável no interior do m onoteísm o: é esta redução dos m uitos (deuses) ao um (deus) que nos perm ite que confrontem os directam ente o 1 e o 0 — ou seja, ra­ surar o l e assim obter o O140. Este facto foi m uitas vezes notado, mas foi considerado regra geral prova de que o ateísm o não se sustenta sobre as próprias pernas, que só pode vegetar à som bra do m onoteísm o cristão — ou, com o John Gray escreve: Os ateus dizem que querem um mundo secular, mas um mundo defini­ do pela ausência do deus cristão continua a ser um mundo cristão. O secularismo é, como a castidade, uma condição definida pelo que nega. Se o ateísmo tem ainda um futuro, este só pode ser uma revivescência cristã; mas de facto o cristianismo e o ateísmo declinam a par.141 140 Devo esta ideia a Stathis Gourgouris, Columbia University. 141 John Gray, Straw Dogs, Londres, Granta. 2003, pp. 126-127.

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Que se passa, todavia, se virarm os este argum ento ao contrário? Se a afinidade entre o m onoteísm o e o ateísm o dem onstrar não que o ateísm o depende do m onoteísm o, mas que é o próprio m onoteísm o a prefigurar o ateísm o no cam po da religião? Com efeito, o D eus do prim eiro é des­ de o seu início (judaico) mais recuado, um deus m orto, contrastando cla­ ram ente com os deuses pagãos que irradiam vitalidade cósm ica. N a m e­ dida em que o verdadeiro axiom a m aterialista é a afirm ação da m ultiplicidade prim ordial, o U m que precede esta m ultiplicidade só p o ­ de ser o próprio zero. N ão é, portanto, de adm irar que só no cristianism o — enquanto único m onoteísm o consequente — o próprio deus se tom e m om entaneam ente ateu. Por isso quando Gray sustenta que «o ateísm o contem porâneo é um a heresia cristã que difere das heresias anteriores nom eadam ente pela sua crueza intelectual»142, devem os aceitar a tese, mas lendo-a tam bém nos term os da reversão hegeliana entre sujeito e predicado, ou entre género e espécie: o ateísm o contem porâneo é um a espécie herética de cristianism o que retrospectivam ente redefine o seu próprio género, estabelecendo-o com o seu próprio pressuposto. Nas suas N otas para uma D efinição de C ultura, T. S. Eliot observava que há m o­ m entos em que a única alternativa é entre a heresia e a descrença, em que a única m aneira de m anter em vida um a religião é operar um a cisão sec­ tária sobre o seu cadáver. Foi exactam ente o que aconteceu com o cris­ tianism o: a «teologia da m orte de Deus» assinala o m om ento em que o único m eio de m anter a sua verdade viva era a cisão de um a heresia m a­ terialista do cadáver dom inante. O m aterialism o consequente nada tem assim a ver com a afirm ação da «plena existência da realidade exterior»; pelo contrário, a sua prem issa inicial é o «não-Todo» da realidade, a sua incom pletude ontológica. (Lem brem o-nos do im passe de Lenine quando, em M aterialism o e Empirocriticism o, propõe com o definição filosófica m ínim a do m aterialis­ mo a afirm ação de um a realidade objectiva que existe independente­ m ente do espírito hum ano, sem m ais qualificações: nesse sentido, o próprio Platão é m aterialista!) Tam bém nada tem a ver com qualquer de­ term inação positiva do conteúdo, do tipo «m atéria» versus «espírito», ou seja, com a substantivação da M atéria enquanto único A bsoluto (aqui a crítica de H egel é perfeitam ente justificada: a «m atéria» na sua abstrac­ ção é um a pura G edankending). Não devem os portanto recear a tantas vezes recrim inada «dissolução da m atéria num cam po de energias» na fí­ sica m oderna: um verdadeiro m aterialista deverá subscrevê-la sem re ­ 142 John Gray, Black Mass, Londres, Penguin Books, 2007. p. 189.

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servas. O m aterialism o nada tem a ver com a afirm ação da densidade inerte da m atéria; é, pelo contrário, um a posição que aceita o Vazio últi­ m o da realidade — a consequência da sua tese central sobre a m ultipli­ cidade prim eira é que não há «realidade substantiva», que a única «subs­ tância» da m ultiplicidade é o Vazio. (Neste sentido, a oposição entre D eleuze e Badiou é um a oposição entre idealism o e m aterialism o: em D eleuze, a Vida continua a ser a resposta ao «Porque há A lgum a C oisa e não N ada?», enquanto a resposta de B adiou é m ais sóbria, m ais próxim a do budism o e de HEGEL — Só o Nada É , e todos os processos têm lugar «a partir do N ada através do N ada para N ada», com o dizia Hegel.) É por isso que o contrário do verdadeiro m aterialism o não é tanto um idealis­ m o consequente, m as antes o «m aterialism o» idealista-vulgar de alguém com o D avid C halm ers que se propõe dar conta do «difícil problem a da consciência» postulando a «autoconsciência» com o um a força funda­ m ental adicional da natureza, ao lado da gravidade, do m agnetism o, etc. — enquanto, literalm ente, sua «quintessência» (ou «quinta-essência»). A tentação de «ver» o pensam ento com o um com ponente adicional da pró­ pria realidade natural/m aterial é o extrem o da vulgaridade. Nos seus Arabescos F ilosóficos, um a das obras m ais trágicas de toda a história da filosofia, um m anuscrito escrito em 1937, enquanto aguar­ dava a execução na prisão da Lubyanka, N ikolai Bukharine tenta inte­ grar pela últim a vez toda a sua experiência de vida no quadro de um edi­ fício filosófico consistente. A prim eira alternativa, a batalha decisiva, com que se confronta é a da escolha entre a afirm ação m aterialista da realidade do m undo exterior e aquilo a que ele cham a as «intrigas do solipsism o.» U m a vez vencida esta batalha, um a vez que a confiança vi­ talm ente afirm ativa 110 m undo real nos libertou do cárcere húm ido das nossas fantasias, podem os respirar livrem ente, e resta-nos apenas tirar todas as consequências deste prim eiro resultado fundam ental. O traço m isterioso do prim eiro capítulo do livro, no qual B ukharine se confron­ ta com este dilem a, é a sua tensão entre a form a e o conteúdo: em bora, ao nível do conteúdo, B ukharine negue inflexivelm ente que estejam os perante um a escolha entre duas crenças ou decisões existenciais prim ei­ ras, todo o capítulo se organiza com o um diálogo entre um saudável mas ingénuo m aterialista e M efistófeles, que representa o «dem ónio do solipsism o», um «espírito astucioso» que «enverga um a capa sedutora­ m ente cortada de lógica de aço, e ri, deixando ver a ponta da língua»143. 143 Nikolai Bukharin, Philosophical Arabesques, Londres, Pluto Press, 2005, p. 40.

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«Franzindo os lábios ironicam ente», M efistófeles tenta o m aterialista com a ideia segundo a qual, um a vez que todos tem os acesso directo às nossas sensações subjectivas, a única m aneira que tem os de poder pas­ sar delas à crença num a realidade exterior existindo independentem ente das nossas sensações é através de um salto da fé, «um salto vítale (por oposição a salto m oríale)» 144. Em sum a, o «dem ônio da lógica» de M e­ fistófeles tenta seduzir-nos a adm itir que a existência de um a realidade exterior independente é um a questão de fé, que a existência da «m atéria sagrada» é o dogm a fundam ental da «teologia» do m aterialism o dialéc­ tico. D epois de um a série de argum entos (que, devem os adm iti-lo, ainda que não inteiram ente desprovidos de interesse filosófico, exibem as m ar­ cas irrem ediáveis de um a ingenuidade pré-kantiana), Bukharine conclui o capítulo com a exclam ação irónica (que, todavia, não logra esconder o desespero subjacente): «Tem tento na língua, M efistófeles! Tem tento nessa tua língua dissoluta!»145 (A despeito deste exorcism o, o dem ónio continua a reaparecer ao longo do livro — com o vem os, por exem plo, na prim eira frase do Capítulo XII: «Depois de um longo intervalo, o dem ó­ nio da ironia aparece de novo.»146) U m m aterialista radical daria para­ doxalm ente crédito ao dem ónio, rejeitando a confiança ingénua na reali­ dade exterior com o um a form a de oposição m aterialista-vulgar ao idealism o. N a alternativa transm itida pelo título do Capítulo II do livro de Bukharine — «Aceitação e N ão-A ceitação do M undo» — , o dem ô­ nio o que faz não é tanto rejeitar o m undo com o, antes, incluir na sua tex­ tura a sua própria suspensão, aquilo a que os grandes m ísticos e H egel cham aram a «Noite do M undo», o eclipse da realidade constituída. B adiou executa aqui o gesto filosófico paradoxal de defender, EN­ QUANTO MATERIALISTA, a autonom ia da ordem «im aterial» do A conteci­ m ento. Enquanto m aterialista, e para ser plenam ente m aterialista, Badiou centra-se no topos IDEALISTA por excelência: Com o pode um anim al hu­ m ano abandonar a sua anim alidade e pôr a sua vida ao serviço de um a Verdade transcendente? Com o pode dar-se a «transubstanciação» da vi­ da orientada para o prazer de um indivíduo em vida de um sujeito dedi­ cado a um a C ausa? Por outras palavras, com o é possível um acto livre? Com o podem os rom per (com) a rede de conexões causais da realidade positiva e conceber um acto que com eça em e por si próprio? Em resu­ m o, B adiou repete dentro de um quadro materialista o gesto elem entar 144 Bukharin, op. cit., p. 41. 145 Op. cit., p. 46. 146 Op. cit., p. 131.

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do anti-reducionismo idealista', a Razão hum ana não pode ser reduzida ao resultado da adaptação evolutiva; a arte não é som ente um m odo mais elevado de obtenção de prazeres sensoriais, mas um meio de com unica­ ção da Verdade; e assim por diante. Adicionalm ente, contra a falsa apa­ rência de que é este o m ovim ento visado tam bém pela psicanálise (o con­ ceito de «sublim ação» não sugere que as actividades hum anas «superiores» são apenas um m eio indirecto e «sublim ado» de realização de um fim «inferior»?), o sentido m ais im portante da psicanálise é o da sua tese segundo a qual a própria sexualidade, as pulsões sexuais do ani­ mal hum ano, não podem ser explicadas em term os evolutivos147. Toma-se deste modo claro o que está em jogo no gesto de Badiou: para que o m aterialism o triunfe verdadeiram ente sobre o idealism o, não basta asse­ gurar o sucesso da abordagem «reducionista» e dem onstrar com o o espi­ rito, a consciência, etc., podem tam bém ser de um a m aneira ou de outra explicadas dentro do quadro positivista-evolucionista do m aterialism o. Pelo contrário, a tese do m aterialista deve ser muito m ais forte: SÓ o m a­ terialism o pode explicar adequadam ente o próprio fenóm eno do espírito, da consciência, etc.; e é, inversam ente, o idealism o que é «vulgar», que «reifica» sem pre-já esses m esm os fenóm enos. Q uando Badiou sublinha a indecidibilidade do R eal de um A conteci­ m ento, a sua posição é aqui radicalm ente diferente do conceito desconstrucionista estabelecido de indecidibilidade. Para B adiou, a indecidibili­ dade significa que não há critérios «objectivos» neutros para um Acontecim ento: um A contecim ento só aparece enquanto tal para os que se reconhecem no seu apelo, ou, nos term os de B adiou, um A conteci­ m ento é auto-referencial, inclui-se a si m esm o — a sua própria nom ea­ ção — nos seus com ponentes148. Em bora isto signifique que tem os de DECIDIR sobre um A contecim ento, esta decisão em últim a instância in­

147 Eis como devemos traçar a passagem do instinto biológico para a pulsão: o instinto faz simplesmente parte da física da VIDA animal, enquanto a pulsão (pulsão de MORTE) introduz uma dimensão metafísica, Em Marx, encontramos uma distinção implícita ho­ móloga entre a classe trabalhadora e o proletariado: a «classe trabalhadora» é a catego­ ria social empírica, acessível ao conhecimento sociológico, enquanto o «proletariado» é o agente-sujeito da Verdade revolucionária. Na mesma ordem de ideias, Lacan sustenta que a pulsão é uma categoria ÉTICA. ° Cf. Alain Badiou, L'étre et Vévènement, Paris, Éditions du Seuil, 1989. Badiou iden­ tifica quatro domínios possíveis em que pode ocorrer um Acontecimento-Verdade, qua­ tro domínios em que os sujeitos emergem como «operadores» de um procedimento de verdade: a ciência, a arte, a política e o amor. Não seguem os três primeiros procedi­ mentos de verdade (a ciência, a arte e a política) a lógica clássica da tríade do Verdadeiro-Belo-Bom? E que dizer, então, do quarto procedimento, o amor? Não se destaca este da

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fundada não é «indecidível» no sentido convencional; é antes estranha­ mente sem elhante ao processo dialéctico hegeliano no qual, com o Hegel já na Introdução da sua Fenom enología explicita claram ente, um a «figu­ ra da consciência» não é m edida por qualquer critério exterior de verda­ de, m as de m aneira absolutam ente im anente, através da distância entre si m esm a e a sua própria exem plificação/encenação. U m Acontecim ento é assim «não-todo» no preciso sentido lacaniano do termo: nunca é intei­ ram ente verificado precisam ente porque é infinito/ilim itado, ou seja, porque não há lim ite exterior que o circunscreva. E a conclusão a tirar daqui é que, pela m esm a razão, a «totalidade» hegeliana é tam bém «não-toda.» Noutros term os (tam bém de B adiou), um A contecim ento não é NADA MAIS DO QUE a sua própria inscrição na ordem do Ser, um corte/ruptura na ordem do Ser fazendo com que o Ser nunca possa for­ m ar um Todo consistente. Sem dúvida, Badiou — com o m aterialista que é — tem consciência do perigo idealista que aqui espreita: Temos de deixar claro que no que se refere ao seu material o aconteci­ mento não é um milagre. O que quero dizer é que aquilo que compõe um acontecimento é sempre extraído de uma situação, que remete sempre pa­ ra uma multiplicidade singular anterior, para o seu estado, para a lingua­ gem que lhe está ligada, etc. De facto, para não sucumbirmos a uma teo­ ria obscurantista da criação ex nihilo, devemos aceitar que um acontecimento nada mais é do que uma parte de uma situação dada, nada mais do que um fragm ento de s e r )^ 9 série, tomando-se de certo modo mais fundamental e mais universal? Não existem sim­ plesmente quatro procedimentos de verdade, mas três mais um — um facto que talvez não tenha sido suficientemente sublinhado por Badiou (embora, no que se refere à dife­ rença sexual, Badiou observe que as mulheres tendem a colorir através do amor os ou­ tros procedimentos de verdade). O que este quarto procedimento inclui não é somente o milagre do amor, mas também a psicanálise, a teologia e a própria filosofia (o AMOR da sabedoria). Não será, então, o amor o «modo de produção asiático» de Badiou — a ca­ tegoria na qual ele põe todos os procedimentos de verdade que não se ajustam às outras três modalidades? Este quarto procedimento funciona também como uma espécie de princípio ou matriz formal de todos os procedimentos (o que explica o facto de. embora Badiou negar à religião o estatuto de procedimento de verdade, afirmar todavia que Pau­ lo foi o primeiro a descrever a matriz formal própria do Acontecimento-Verdade). Além disso, não haverá uma outra diferença fundamental entre o amor e os outros procedi­ mentos de verdade, uma vez que, contrastando com os outros que tentam forçar o indi­ zível, no «amor verdadeiro» adoptamos/aceitamos o Outro amado DEVIDO AO X IN­ DIZÍVEL QUE LHE É PRÓPRIO? Por outras palavras, o «amor» designa o respeito do amante pelo que permanece indizível no amado — «sobre o que não podemos dizer, de­ vemos guardar o silêncio» é talvez a prescrição fundamental do amor. Alain Badiou, Theoretical Writings, Londres. Continuum (a publicar).

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Podem os, todavía, dar um passo mais para além do ponto até onde Badiou está disposto a avançar: não h á Para A lém do Ser que se inscreva na ordem do Ser — não há nada m ais do que ordem do Ser. D evem os re­ cordar aquí urna vez m ais o paradoxo da teoria da relatividade geral de Einstein, na qual a m atéria não curva o espaço, m as é um efeito da cur­ vatura do espaço: um A contecim ento não curva o espaço do Ser através da sua inscrição nele — pelo contrário, um acontecim ento não é n a d a m a is d o QUE essa curvatura do espaço do Ser. «Tudo o que é» é o in­ terstício, a não auto-coincidência do S er — quer dizer: a não-clausura ontológica da ordem do S er150. A «diferença m ínim a» que sustenta a p a­ raláctica é assim a diferença devido à qual as «m esm as» séries de ocor­ rências reais que, aos olhos de um observador neutro, são sim plesm ente parte da realidade com um , são aos olhos de um revolucionário com pro­ m etido, partes do Acontecim ento epocal da R evolução de O utubro. O que isto significa é que, na perspectiva lacaniana, os conceitos de dis­ tância paraláctica e de «diferença m ínim a» obedecem à lógica do não-Todo151. P or isso quando D avid Chalm ers propõe que a base da consciência de­ verá ser descoberta num a nova força da natureza, adicional e fundam en­ tal — prim ordial e irredutível — , com o a gravidade ou o electrom agne­ tism o, qualquer coisa com o um a auto-sensibilidade ou autoconsciência elem entar152, não fornecerá m ais um a dem onstração do m odo com o o idealism o coincide com o m aterialism o vulgar? N ão deixará escapar pre­ cisam ente a idealidade pura da (auto)consciência? E aqui que o tem a da finitude no seu sentido heideggeriano rigoroso deve ser m obilizado: se tentarm os conceber a consciência no interior de um cam po da realidade

15(1 É por isso que devemos pôr a questão fundamental: haverá um Ser sem Aconteci­ mento, simplesmente exterior a este, ou será Q U A L Q U E R ordem do Ser a denegação-obliteração de um Acontecimento fundador, um je sais bien, mais quand-même... «per­ verso», uma redução-reinscrição do Acontecimento na ordem causal do Ser? 151 O contra-argumento que Badiou dirige a Lacan (formulado, entre outros, por Bruno Boostels) é o de que aquilo que realmente conta não é o Acontecimento enquanto tal, o encontro com o Real, mas as suas consequências, a sua inscrição, a consistência do no­ vo discurso que emerge do Acontecimento. Sentimo-nos tentados a virar este contra-argumento contra o próprio Badiou. Quer dizer: contra a sua postura «oposicional» de advogar a meta impossível da presença pura sem estado de representação, sentimo-nos tentados a afirmar que temos de reunir as forças que nos levem a «vencer» e a assumir o poder, deixando de persistir apenas na segurança da postura oposicional. Se não estamos dispostos a fazê-lo, continuamos a depender do poder do Estado contra o qual definimos a nossa própria posição. 152 Cf. David Chalmers, The Conscious Mind, Oxford, Oxford University Press, 1996.

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plenam ente realizado em term os ontológicos, aquela só poderá aparecer com o um m om ento positivo adicional; m as que se passa se ligarm os a consciência à própria finitude, à incom pletude ontológica, do ser hum a­ no, ao seu ser originalm ente desam bientado, precipitado num a, exposto a, um a constelação avassaladora? É aqui que, a fim de especificarm os o que significa o m aterialism o, devem os aplicar as fórm ulas da sexuação de Lacan: há um a diferença fundam ental entre a proposição «todas as coisas são m atéria» (que as­ senta na sua excepção constitutiva — no caso de Lenine que, no seu M a ­ terialism o e Em pirocriticism o cai nesta arm adilha, a própria posição de enunciação do sujeito cujo espírito «reflecte» a m atéria) e a proposição «não há nada que não seja m atéria» (que, com o seu outro lado, «o não-Todo é m atéria», abre o espaço que nos perm ite considerar fenóm enos im ateriais). O que isto significa é que um m aterialism o verdadeiram ente radical é por definição não-reducionista: longe de afirm ar que «tudo é m atéria», confere aos fenóm enos «im ateriais» um não-ser positivo espe­ cífico. Quando, no seu argum ento contra a explicação redutora da consciên­ cia, Chalm ers escreve que «ainda que conhecêssem os até ao últim o por­ m enor a física do universo — a configuração, causação e evolução entre todos os cam pos e partículas da variedade espácio-tem poral — esta in­ form ação não bastaria para nos levar a postular a existência da expe­ riência consciente»153, com ete o erro kantiano com um : este conheci­ m ento total é estritam ente sem sentido, tanto epistem ológica COMO ontologicam ente. É o reverso da concepção determ inista vulgar, enun­ ciada, no interior do m arxism o, por N ikolai B ukharine, quando este es­ crevia que, se conhecêssem os a totalidade da realidade física, podería­ mos tam bém prever exactam ente a em ergência de um a revolução. Esta linha de raciocínio — a consciência com o um excesso, um excedente, adicionado à totalidade física — é enganadora, um a vez que se vê obri­ gada a evocar um a hipérbole sem sentido: quando im aginam os o Todo da realidade, deixa de haver lugar para a consciência (e para a subjecti­ vidade). H á aqui duas alternativas: ou a subjectividade é um a ilusão, ou a realidade é EM Si m e s m a (e não apenas epistem ológicam ente) não-Toda154.

153 David Chalmers, op. cit., p. 101. 154 Na mesma ordem de ideias, o que toma o argumento de Saul Kripke contra a teoria clássica da identidade (cf. Saul Kripke, «Identity and Necessity» in Identity and Individuation, ed. Milton K. Munitz, Nova York, New York University Press, 1971) tão inte-

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D everíam os assim , assum indo este ponto de partida radicalm ente m a­ terialista, pensar sem m edo as consequências da REJEIÇÃO da «realidade objectiva»: a realidade dissolve-se em fragm entos «subjectivos», mas estes fra g m en tos regressam p o r seu turno ao Ser anónim o, perdendo a sua consistência subjectiva. Fred Jam eson cham ou a atenção para o p a­ radoxo da rejeição pós-m odem a do Si-próprio consistente — o seu re­ sultado últim o é que perdem os o seu contrário, a própria realidade ob­ jectiva, que se transform a num conjunto de construções subjectivas contingentes. U m verdadeiro m aterialista deveria fazer o oposto: recusar-se a aceitar a «realidade objectiva» a fim de m inar a subjectivi­ dade consistente. No seu H um an Touch, M ichael Frayn assinalou a relatividade radical do nosso conceito de universo: quando falam os das m icrodim ensões da física quântica, tão pequenas que não podem os sequer im aginar o seu âm bito, ou da vastidão do universo, ignorando a nossa existência, tão vasto que nós, os seres hum anos, não som os nele m ais do que um im ­ perceptível grão — as ondas quânticas são pequenas e o universo é gran­ de por referência às nossas m édias. A lição é que QUALQUER conceito de «realidade objectiva» está vinculado a um ponto de vista subjectivo. Qual é, então, a característica própria da posição ateia? Não um a de­ sesperada luta contínua contra o teísm o, sem dúvida — m as tam bém não um a sim ples indiferença em relação à crença. O m esm o é perguntarm o-nos com o seria, se, num a espécie de negação da negação, o verdadeiro ateísm o devesse regressar à crença (fé?), afirm ando-a sem referência a deus, sendo que só os ateus podem crer verdadeiram ente, do m esm o m o­ do que a verdadeira crença é a crença sem qualquer apoio na autoridade de um a figura pressuposta do «G rande O utro». Tam bém podem os con­ ceber estas três posições (teísm o, ateísm o negativo e ateísm o positivo) nos term os da tríade kantiana do juízo positivo, negativo e infinito: en­ quanto a proposição positiva «Creio em deus» pode ser negada em «Não creio em deus», podem os tam bém im aginar um a espécie de negação «inressante e provocatório é a forte afirmação de que para refutarmos a identidade entre a experiência subjectiva e os processos cerebrais objectivos, basta-nos sermos capazes de IMAGINAR a possibilidade de uma experiência subjectiva (por exemplo, a dor) sem o seu correlato neuronal material. — Em termos mais gerais, é fundamental observarmos como toda a argumentação contra a identidade em causa segue Descartes ao recorrer à imaginação hiperbólica: é-me possível IMAGINAR que o meu espírito existe sem o meu corpo (ou, sob uma versão mais moderna: imaginar que, ainda que possa conhecer todas as coisas relativas aos processos que ocorrem no cérebro de uma pessoa, continuo ainda sem conhecer o que é a sua experiência subjectiva).

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finita», não tanto «Creio num in-deus» (próxim o da teologia negativa), m as, antes, qualquer coisa com o a «incrença», a form a pura da crença desprovida da sua substancialização — a «incrença» é ainda um a form a de crença, do m esm o modo que o indefunto, com o o m orto vivo, conti­ nua morto.

A N e c e s sid a d e d e u m F ra n g o No início do film e The Prestige (2006) de C hristopher N olan, quan­ do um ilusionista executa o passe de um pequeno pássaro que desapare­ ce num a gaiola em cim a de um a m esa, um rapazinho do público com e­ ça a chorar, afirm ando que o passarinho foi m orto. O ilusionista aproxim a-se dele e conclui o núm ero, fazendo delicadam ente sair um passarinho vivo da m ão — m as o rapaz não fica satisfeito, insistindo que deve ser outro pássaro, o irm ão do passarinho m orto. D epois da exibi­ ção, vem os o ilusionista no cam arim dos bastidores, transportando um a gaiola vazia e atirando um pássaro esm agado para um caixote do lixo — o rapaz tinha razão. O film e descreve os três passos de um núm ero de magia: o quadro, ou a «prom essa», em que o ilusionista m ostra à au­ diência um a coisa que parece com um , m as provavelm ente o não é, uti­ lizando a nossa distracção; a «viragem », por m eio do qual o ilusionista tom a insólito o acto com um ; o «passe», que produz o efeito da ilusão. Não é este triplo m ovim ento a tríade hegeliana sob a sua form a m ais pu­ ra? A tese (prom essa), a sua negação catastrófica (viragem ), a resolução m ágica da catástrofe (passe). E , com o H egel bem sabia, o problem a é que, para que o m ilagre do «passe» aconteça, tem de haver algures um pássaro m orto. Devem os adm itir sem m edo que há qualquer coisa de «m ágico bara­ to» em H egel, no truque da síntese, da A ufhebung. Em últim a instância, há apenas duas opções, duas m aneiras de dar conta deste truque, com o as duas versões da banal anedota de m édicos — «prim eiro as m ás notí­ cias, depois as boas notícias»: 1. as boas notícias são boas, m as dizem respeito a outro assunto («As m ás notícias são que você tem um cancro term inal e m orrerá dentro de um m ês. As boas notícias são: E stá a ver aquela bela enferm eira, ali? A ndava há m eses a tentar levá-la para a ca­ m a; finalm ente, ontem , ela disse que sim e fizem os am or a noite toda co­ m o loucos»); 2. as boas notícias são as m ás notícias, vistas sim plesm en­ te de um a perspectiva diferente («As más notícias são que descobrim os que você tem um A lzheim er grave. As boas notícias são as mesm as: co-

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mo tem Alzheim er, já terá esquecido as m ás notícias quando voltar para casa.»). A verdadeira «síntese» hegeliana é a síntese destas duas opções: as boas notícias são precisam ente as m ás noticias — mas para o verm os, tem os de considerar um agente diferente (do pássaro que m orre para o outro que o substitui: do paciente canceroso para o feliz m édico, de C ris­ to com o individuo para a com unidade dos crentes). Por outras palavras, o pássaro m orto continua morto; m orre REALMENTE, com o no caso de Cristo que renasceu enquanto OUTRA pessoa, com o Espírito Santo. H á, todavia, um a distinção fundam ental entre o corpo m orto de C ris­ to no cristianism o e o pássaro esm agado no truque do ilusionista: para que o truque seja eficaz, para que funcione com o um truque, o ilusionis­ ta tem de esconder o pássaro esm agado dos olhos do público, enquanto toda a im portância da C rucificação é que o corpo de Cristo é exposto à vista de toda a gente. É p or isso que o cristianism o (e o hegelianism o en­ quanto filosofia cristã) não é m agia barata: o despojo m aterial do corpo desfeito perm anece visível. (Em bora, sem dúvida, o corpo de Cristo de­ sapareça do sepulcro — é o elem ento de m agia barata ao qual a religião não pode re sistir...) A propósito do cristianism o e da sua superação, Jean-Luc Nancy pro­ põe duas grandes linhas de orientação: 1. «Só um cristianism o que enca­ re a possibilidade presente da sua negação pode ser hoje relevante.» 2. «Só um ateísm o que encare a realidade da sua proveniência cristã pode ser hoje relevante.»155 C om certas reservas, não podem os deixar de con­ cordar com estas orientações. A prim eira proposição im plica que hoje o cristianism o vive apenas nas práticas m aterialistas (ateias) que o negam (por exem plo, a com unidade de crentes de Paulo encontra-se hoje entre os grupos políticos radicais, e não nas igrejas); a segunda proposição im ­ plica que o verdadeiro m aterialism o não só afirm a que só a realidade m a­ terial «existe realm ente», com o deve assum ir todas as consequências da­ quilo a que Lacan cham ou a inexistência do G rande Outro — e só o cristianism o abriu um espaço que perm ite pensar essa inexistência, na m edida em que é a religião de um Deus que m orre. N ancy assinala tam bém que o cristianism o é a única entre todas as re­ ligiões que concebe o seu núcleo com o passagem e superação a partir de u m outro corpus religioso, facto palpável na dualidade dos seus textos sagrados, o A ntigo e o N ovo Testam ento. A única m aneira de dar conta deste traço é levá-lo ao seu extrem o auto-referencial: o cristianism o in155 Jean-Luc Nancy, «La déconstruction du Christianisme», Les Études philosophiques,

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clui em si a sua própria superação — quer dizer: a sua superação (nega­ ção) no quadro do ateísm o m oderno está inscrita no seu próprio núcleo enquanto necessidade interna. É por isso que os m ovim entos políticos radicais, com o seu im pulso elem entar no sentido da «superação» do seu herói m orto no espírito vivo da com unidade, evocam a tal ponto a res­ surreição cristológica — o que im porta aqui não é que funcionem com o um «cristianism o secularizado», m as, pelo contrário, que tenham com o seu precursor a ressurreição do próprio Cristo — a form a m ítica de qualquer coisa que acede à sua verdadeira form a na lógica de um colec­ tivo político apostado na em ancipação. Em W oodstock, em 1967, Joan B aez cantou Joe H ill, a célebre canção dos Wobblies* datada de 1925 (palavras de A lfred H ayes, m úsica de Earl Robinson) que fala do assas­ sinato judicial do sindicalista e cantor, nascido na Suécia, que dá o no­ me à canção, tendo esta vindo a transform ar-se, ao longo das décadas se­ guintes, num a verdadeira fo lk song, popularizada em todo o m undo por Paul R obeson. Eis (ligeiram ente abreviado) o texto da canção, que apre­ senta em term os sim ples, m as eficazes o aspecto cristológico do colec­ tivo que se bate pela em ancipação — um colectivo de com bate unido p e­ lo amor: Sonhei que vi o Joe Hill esta noite tão vivo como tu ou como eu. E disse-lhe: «Mas, Jce, há dez anos que morreste.» «Eu nunca morri», disse-me ele. «Os patrões dos chuis mataram-te, Joe, fuzilaram-te, Joe», disse eu. «As armas não bastam para matar um homem», disse o Joe, «e eu não morri.» E ali mesmo em tamanho natural, e com um sorriso nos olhos, o Joe disse: «O que eles se esqueceram de matar continua a organizar-se e a avançar.

' Designação familiar e coloquial dos membros da organização sindical IWW (Industrial Workers ofthe World), fundada nos Estados Unidos em 1905, que conheceu o seu auge no princípio da década de 1920. O sindicalismo dos Wobblies distingue-se pela insistên­ cia na democracia directa no local de trabalho e na organização das lutas, visando a au­ togestão generalizada. (TV. T.)

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«O Joe Hill não morreu», disse-me ele, «O Joe Hill nunca morreu. E onde os trabalhadores entram em greve têm o Joe Hill ao seu lado.»

A reviravolta subjectiva é aqui o fundam ental: o erro do narrador anónim o da canção que não acredita que Joe H ill continua vivo é que se esquece de se incluir na série, de incluir nela a sua própria posição subjectiva: Joe Hill não está vivo «fora», com o um fantasm a à parte, está vivo aqui, ju stam ente no espírito dos trabalhadores que o recordam e continuam a sua luta — está vivo no próprio olhar que (erradam ente) o procura fora daqui. O m esm o erro de «reificar» o objecto procurado é com etido pelos discípulos de C risto, e C risto corrige esse erro com as célebres palavras: «O nde vos am ardes uns aos outros, aí eu estarei.» — Q uando, no dia 18 de M aio de 1952, R obeson cantou Joe H ill no len­ dário concerto de Peach A rch, na presença de 40 000 pessoas reunidas na fronteira am ericano-canadiana no estado de W ashington (um a vez que o seu passaporte lhe fora retirado pelas autoridades am ericanas, não lhe era perm itido entrar no C anadá), m udou a passagem funda­ m ental que diz «o que eles se esqueceram de m a ta r...» para «O que eles nunca podem m atar continua a organizar-se e a avançar». A di­ m ensão im ortal no hom em , aquilo que as arm as não bastam p ara m atar num hom em , o E spírito, é o que se organiza e avança. N ão devem os desprezar o que aqui se diz com o um a m etáfora espiritualista-obscurantista — há nisso um a verdade subjectiva: quando os sujeitos que lutam pela em ancipação se auto-organizam , é o próprio «espírito» que se organiza através deles. A série do que o «isso» (das Es, ça) faz (no inconsciente, «isso fala», «isso goza»), deveríam os acrescentar: is­ so organiza-se (ça s ’organise — é aqui que reside o núcleo da «Ideia eterna» do P artido da em ancipação). A este propósito não devem os tam bém recear evocar a cena típica dos film es de terror de ficção cien­ tífica, em que o alien que assum e um a aparência hum ana (ou invadiu e colonizou um ser hum ano) é descoberto, vê destruída a sua form a h u ­ m ana, de tal m odo que tudo o que dele resta é um a viscosidade infor­ m e, com o um a pequena poça de m etal fundido; o herói sai de cena, sa­ tisfeito p or ter acabado com a am eaça — e todavia, pouco depois, a viscosidade inform e que o herói se esquece de m atar (ou que não pode m atar) com eça a m over-se, a auto-organizar-se lentam ente, e a velha fi­ gura am eaçadora em erge de n o v o ... Talvez seja nestes term os que de­ vem os 1er

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a prática cristã da eucaristia em que os participantes nesse banquete amo­ roso ou repasto sacrificial estabelecem a solidariedade uns com os outros tendo por meio de comunicação um corpo mutilado. Deste modo, com­ partilham ao nível do signo ou do sacramento a passagem sangrenta do próprio Cristo da fraqueza ao poder, da morte à vida transfigurada.156

N ão será o que nós, crentes, com em os na eucaristia, a carne de C ris­ to (pão) e o seu sangue (vinho), precisam ente o m esm o despojo infor­ m e, «o que [os soldados rom anos que o crucificaram ] nunca podem m atar», e que continua a avançar e a organizar-se com o um a com uni­ dade de crentes? N esta perspectiva, deveríam os reler no próprio Edipo um p recursor de C risto: contra aqueles — entre os quais se conta o p ró ­ prio L acan — que vêem em É dipo em C olona e em A ntígona figuras m ovidas por um a pulsão de m orte inegociavelm ente suicida, «inflexí­ vel até ao fim , reclam ando tudo, nada cedendo, absolutam ente irrecon­ ciliáv el» 157, Terry Eagleton tem razão ao assinalar que Edipo em C o­ lona [...] tom a-se a pedra angular de uma nova ordem política. O corpo poluí­ do de Edipo significa entre outras coisas o monstruoso terror que ronda as portas e no qual, se tiver a fortuna de sobreviver, a polis deverá reconhe­ cer a sua deformidade atroz. Esta dimensão profundamente política da tra­ gédia tem pouco lugar nas reflexões de Lacan. [...] Ao tornar-se não mais do que a escumalha e o objecto de repulsa da polis — as «fezes da terra», como São Paulo descreve os seguidores de Jesus, ou a «perda total de hu­ manidade» que Marx retrata no proletariado —, Édipo é despojado da sua identidade e autoridade e pode assim oferecer o seu corpo lacerado como pedra angular de uma nova ordem social. «Tomar-me-ei um homem na hora em que deixo de existir?» (ou talvez: «Passarei a contar alguma coi­ sa somente quando não sou nada / deixo de ser humano?», pergunta-se o rei mendigo em voz alta.15^

N ão nos fará isto pensar num rei-m endigo posterior, o próprio C ris­ to, que, pela sua m orte com o um ser nulo, um excluído abandonado p e­ los seus próprios discípulos, funda um a nova com unidade de crentes? U m e outro reem ergem atravessando o grau zero do ser reduzido a um

156 Terry Eagleton, Trouble With Strangers. 157 Jacques Lacan, The Ethics o f Psychoanalysis, Londres. Routledge, 2001, p. 176. 15®Terry Eagleton, op. cit.

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despojo excrem enticio. — E sta «transubstanciação», através da qual os nossos actos são experim entados com o extraindo a sua força do seu próprio resultado, não deve ser m enosprezada com o um a ilusão ideo­ lógica («de facto são só individuos que se organizam »). E is o m ais b re­ ve dos contos de fadas de Jacob e W ilhelm G rim m , «O M enino Tei­ m oso»: Era urna vez um menino que era teimoso e não fazia a vontade da mãe. Por isso Deus zangou-se com ele e fê-lo adoecer, e não houve doutor que pudesse ajudá-lo, e passado pouco tempo já ele estava no seu leito de mor­ te. Foi enterrado numa cova e coberto de terra, mas o seu bracinho saiu de repente da terra e apareceu cá fora, e de nada servia sepultá-lo outra vez e cobri-lo de terra, porque o braço voltava sempre a sair do chão. Por isso te­ ve a mãe de ir junto à cova e bater no bracinho com uma vara, e assim que o fez, o braço desceu, e o menino pôde enfim repousar de baixo da terra.

N ão será esta obstinação que persiste ainda para além da m orte a li­ berdade — a pulsão de m orte — sob a sua form a m ais elem entar? Em vez de a condenarm os, não deveríam os antes celebrá-la com o m ola su­ prem a da nossa resistência? O refrão de um a velha canção com unista alem ã da década de 1930 diz: D ie Freiheit hat Soldaten! / «A liberdade tem os seus soldados!» Pode parecer que esta identificação de um corpo particular com o instrum ento m ilitar da Liberdade é precisam ente a fór­ m ula da tentação «totalitária»: não com batem os sim plesm ente pela (nos­ sa interpretação da) liberdade, não servim os sim plesm ente a liberdade, é a liberdade que im ediatam ente dispõe de n ó s ... Parece aberto o cam inho para o terror: quem poderia perm itir-se contrariar a própria liberdade? Todavia, a identificação de um corpo m ilitar revolucionário com um ór­ gão directo da liberdade não pode ser desprezada rapidam ente com o um curto-circuito fetichista: em term os patéticos, isto É verdade para um a explosão revolucionária autêntica. O que acontece nesse tipo de expe­ riência «extática» é que o sujeito que age já não é um a pessoa, m as, pre­ cisam ente, um OBJECTO. E é precisam ente esta dim ensão da identifica­ ção com um objecto que justifica o em prego do term o «teologia» para descreverm os a situação: a «teologia» é aqui o nom e para aquilo que, num sujeito revolucionário, está para além da m era colecção de seres h u ­ m anos individuais que agem. Não será esta a m ensagem da ressurreição de Cristo? «Deus é amor» significa: «N inguém algum a vez viu Deus; m as se nos am arm os uns aos outros, Deus viverá em nós e o seu am or tom ar-se-á com pleto em nós»

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(João 4, 12). Ou: «Ninguém viu algum a vez Joe Hill depois da sua m or­ te; m as se os trabalhadores se organizarem na sua luta, ele viverá ne­ les. ..» — H á aqui um triplo m ovim ento de A ufhebung: 1. a pessoa sin­ gular de Cristo (Joe Hill) é superada na sua identidade ressurrecta enquanto Espírito (Amor) da com unidade dos crentes; 2. o m ilagre em ­ pírico é superado no «verdadeiro» m ilagre m aior (tem os aqui a bem co­ nhecida figura retórica: quando H egel fala dos m ilagres religiosos, afir­ m a que não podem os ter a certeza de existirem m ilagres físicos reais — um a m aneira delicada de dizerem que não são — , m as o verdadeiro m i­ lagre é o próprio pensam ento universal, o assom bro do pensam ento; ho­ j e ^ popular dizer que o verdadeiro m ilagre é um a vitória m oral, quan­ do, depois de um a luta interior difícil, alguém tom a a difícil decisão acertada — abandonar as drogas ou o crim e, sacrificar-se por um a boa causa; quanto ao cristianism o, o verdadeiro m ilagre não é que o Cristo m orto ande de um lado para o outro, m as o am or no colectivo dos cren­ tes); 3. o próprio cristianism o se supera em organização política. E, um a vez m ais, este m ilagre tem um preço: há algures o corpo esm agado de um pássaro — com o o de Cristo na C ruz, esse suprem o pássaro es­ m agado. E esta dim ensão decisiva do Espírito Santo enquanto espírito da co­ m unidade dos crentes, enquanto qualquer coisa que só está aqui na m e­ dida em que nós, crentes, NOS INCLUÍMOS NELA, que se perde na ideia «im anente» da Trindade que persiste independentem ente da «econom ia» divina, enquanto Em -si independente da Queda. O que se perde é a ideia de que o destino do próprio Deus está em jogo nas vicissitudes da his­ tória hum ana. É por isso que H egel é O filósofo cristão: o supremo exem plo da reversão dialéctica é o da Crucificação e R essurreição, que não devem os entender com o dois acontecim entos sucessivos, m as com o um a variante paraláctica puram ente form al de um e m esm o aconteci­ mento: a Crucificação E a R essurreição — para o verm os, basta que nos incluam os por nosso turno no quadro. Q uando os crentes se reúnem , chorando a m orte de C risto, o seu espírito com partilhado é o Cristo res­ suscitado. E devem os avançar aqui até ao fim (político): o m esm o vale para a própria revolução. Sob a sua form a m ais radical, a «reconciliação» re ­ volucionária não é um a transform ação da realidade, m as um a viragem paraláctica na m aneira de nos relacionarm os com ela — ou, com o Hegel escreve no seu Prefácio à Filosofia do D ireito, a tarefa especulativa m aior não é transform ar a Cruz da m iserável realidade contem porânea num novo jardim de rosas, m as «reconhecer a R osa na Cruz do presen-

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te» [die Rose im K reuz der gegenw art zu erkennen]159. E se regressás­ sem os propriam ente ao com eço de todo este caso, à cisão da escola hegeliana entre os «jovens hegelianos» revolucionários e os «velhos hegelianos» conservadores? Se tivéssem os de colocar o «pecado original» dos m ovim entos de em ancipação contem porâneos na rejeição pelos «jo­ vens hegelianos» da autoridade do estado e da alienação? E se — num m ovim ento sugerido por D om enico Losurdo — a esquerda actual de­ vesse reapropriar-se do topos «velho hegeliano» de um Estado forte as­ sente num a substância ética partilhada? M ilbank (m uito correctam ente) assinala que a perspectiva católica de C hesterton «perm itiu-lhe pensar na im portância das instituições m ediadoras (cooperativas, guildas e corpo­ rações) de um a m aneira que não se afasta m uito de Hegel» — na m inha perspectiva, o único problem a aqui é que hoje, com o avanço inaudito da «desterritorialização» capitalista, essa solução «corporativa» deixou de ser actual. M ilbank continua que, se rejeitarm os a solução «corporativa», «então, com o H egel viu, a única alternativa ao capitalism o liberal selva­ gem é um a austera ditadura socialista em que a proibição pela lei do de­ sejo fútil nos aliviará benignam ente da intim idade do am or condenado segundo os ditam es da lei autónom a da m oralidade». Sinto-m e tentado aqui a acrescentar: porque não abraçarem os esta alternativa? Porque não seria a nossa tarefa reconhecer a R osa na Cruz da «austera ditadura so­ cialista»? A relação entre a M orte e a Vida na figura de Cristo (a m orte exem ­ plar na cruz; a ressurreição na vida eterna dada a todos os que acreditem nele e decidam «viver em C risto») é tam bém puram ente paraláctica: não é a relação pseudodialéctica entre a extrem a perda/negação (m orte) e a sua inversão em vida absoluta — quer dizer, a m orte não é aufgehoben em vida, um a vez que, antes do m ais, a relação não é um a sucessão, mas um só e o m esm o acontecim ento visto de duas perspectivas. A Vida e a M orte não são aqui pólos opostos, contrários, no interior do m esm o To­ do global (cam po da realidade), m as a m esm a coisa vista segundo um a perspectiva GLOBAL diferente. A diferença não está na «vida» e na «m or­ te» enquanto conteúdo particular declarado da proposição, m as no pró­ prio horizonte universal a partir do qual este conteúdo é olhado; não es­ tam os perante a divisão entre particulares no interior de um quadro universal, m as perante a divisão entre dois universais que se referem ao m esm o particular. Para o dizerm os nos term os de K ierkegaard, a dife159 q w. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, Frankfurt, Fischer Verlag, 1968,p. 41.

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rença é a que há entre devir e ser: a m orte (tem poral) de Cristo é a sua própria vida (eterna) «em devir». (De m odo exactam ente hom ólogo, o «Venho trazer a espada e a divisão, e não o am or e a paz» de Cristo E o seu A m or em devir.) Hoje o catolicism o oficial não foge m enos desta intuição do que um vam piro do alho. O papa Bento X V I deu recentem ente sinais de que se prepara para adoptar um a interessante transform ação no dogm a católico: na concepção de «lim bo», a vida póstum a incom pleta das crianças que m orrem antes de serem baptizadas. O lim bo era concebido nos tem pos m edievais com o um lugar onde as crianças gozariam de felicidade eter­ na, m as estariam privadas da presença directa de D eus. A m udança em causa não significa, sem dúvida, que a Igreja vá regressar à sua posição original, form ulada por A gostinho, segundo a qual as crianças que não se tivessem unido a Cristo pelo baptism o iriam para o inferno; a ideia é, an­ tes, a de que vão im ediatam ente para o céu. N ão é surpreendente que, há cerca de um a década, o m esm o papa — então, ainda cardeal R atzinger — sustentasse que aqueles que verdadeiram ente procurem Deus e bus­ quem interiorm ente a sua união com Ele serão salvos ainda que não se­ jam baptizados160. Em bora esta ideia possa parecer am istosa e sim páti­ ca, é efectivam ente um a triste concessão à concepção N ew Age de um contacto interior directo com a divindade: o que se perde aqui de vista é o lugar central do baptism o enquanto inclusão do indivíduo no Espírito Santo, a com unidade dos crentes. E por isso profundam ente problem ática a leitura de A gam ben do lim ­ bo enquanto m odelo da felicidade. O que devem os questionar aqui é a distinção im plícita que A gam ben faz entre «bom » e «m au» homo sacer, em bora devesse persistir no ponto de não-decisão, num lim bo. Para Hitler, o âm bito dos hom ini sacer que podem ser m ortos com im punidade expande-se gradualm ente: prim eiro, os hom ini sacer são os judeus, de­ pois outras raças inferiores, e por fim os próprios alem ães que traíram H itler... N ão será a m esm a situação que encontram os com o anti-sem itism o que culm ina no anti-sem itism o sionista? Estaline teve de li­ dar com o m esm o problem a da expansão contínua do grupo dos traido­ res através de processos políticos cuja função era inventar ficções de traição que perm itissem ao regim e traçai' a linha de separação e decidir quem era o traidor excrem entício. H á um a espécie de m istério no facto de Agam ben nunca analisar o gulag estalinista cuja lógica não é a m es­ m a que encontram os nos cam pos nazis: em bora tam bém houvesse «mu160 Cf. David Van Biema. «Life After Limbo», Time, 9 de Janeiro de 2006. p. 48.

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çulm anos» no gulag, os prisioneiros do gulag não eram reduzidos à vi­ da nua, continuavam a ser sujeitos à doutrinação e ao ritual ideológicos. (A excepção parece ser a de certos cam pos actuais da C oreia do Norte.) O estado de lim bo com atoso anterior à decisão é precisam ente o opos­ to da com unidade dos crentes pauliniana; se elevarm os as crianças no estado de lim bo indeciso à condição de figura da em ancipação, não se­ rem os levados a incluir na série os fetos que ainda não nasceram ? Não será o feto a vida nua indecisa no seu estado m ais puro? N ão é de ad­ m irar que, para os que se opõem ao aborto nos E U A , dez m ilhões de abortos provocados sejam um crim e pior do que o holocausto, im pri­ m indo um indelével estigm a de pecado à nossa civilização. N ão é de ad­ m irar tam bém que o conceito im plícito de com unidade «positiva» de A gam ben evoque inquietantem ente o sonho de um «bom » cam po de concentração. E por isso que, no que se refere à oposição entre catolicism o e protes­ tantism o, estou efectivam ente do lado protestante. Lem brem os a dife­ rença entre o conceito liberal estabelecido de «privado» e o conceito pa­ radoxal de K ant de que o uso «privado» da razão é a religião: para os liberais, a religião e o Estado devem ser separados, a religião deve ser um a área de crenças privadas sem o poder de intervir directa e autoriza­ dam ente nos assuntos públicos, enquanto para K ant a religião é «priva­ da» precisam ente quando está organizada com o um a instituição estatal hierárquica exercendo jurisdição sobre assuntos públicos (tutela da edu­ cação, etc.). Para K ant, a religião está assim m uito m ais perto do uso p ú ­ blico da razão quando é praticada enquanto crença «privada» fora das instituições estatais: em tal caso, abre-se a via ao crente que lhe perm ite agir enquanto «universalidade singular», aceder directam ente ao dom í­ nio universal enquanto sujeito singular, contornando a igreja com o insti­ tuição. A diferença é aqui a que existe entre a universalidade abstracta e a universalidade concreta. A leitura estabelecida de H egel dir-nos-ia que o catolicism o representa a universalidade concreta (a igreja integra-se no seu contexto social particular), enquanto o protestantism o representa a universalidade abstracta (o indivíduo crente acede directam ente à universalidade, abstraindo da textura «concreta» da ordem social parti­ cular). M as a verdade é justam ente o oposto. O que faz com que a uni­ versalidade católica (inscrita no próprio term o «católico» — om nienglobante) seja abstracta é o próprio carácter da Igreja enquanto G rande C orpo de crentes que une todos eles num organism o hierárquico. O que to m a o protestantism o concretam ente universal não é o sim ples facto do

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curto-circuito directo entre o singular e o universal por si só, m as a na­ tureza precisa deste curto-circuito: nele, a universalidade aparece en­ quanto tal, na sua oposição à e na sua relação negativa com a ordem o r­ gânica particular, recorta o interior de cada com unidade particular, dividindo-a por dentro entre aqueles que seguem a Verdade universal e os que a não seguem . A universalidade abstracta é o m eio m udo que vei­ cula todo o conteúdo particular; a universalidade concreta desestabiliza a p a rtir de dentro a identidade do particular, é ela própria um a linha de divisão universal, atravessando toda a esfera do particular, dividindo-o de si próprio. A universalidade abstracta é unificadora; a universalidade concreta divisora. A universalidade abstracta é a fundação tranquila dos particulares, a universalidade concreta é o local da luta — traz a espada, e não o a m o r... Q uando Paulo diz que, de um ponto de vista cristão, «não há hom ens e m ulheres, nem judeus e gregos», afirm a que as raízes étnicas, a identi­ dade nacional, etc., não são uma categoria da verdade, ou, em term os kantianos precisos, quando reflectim os sobre as nossas raízes étnicas, entregam o-nos a um uso privado da razão, lim itado por pressuposições dogm áticas contingentes — quer dizer: agim os com o indivíduos «im a­ turos», não com o seres hum anos livres que habitam a dim ensão da uni­ versalidade da razão. A oposição entre K ant e R orty no que se refere a esta distinção entre público e privado é raram ente observada, m as nem por isso deixa de ser m enos decisiva: ambos distinguem nitidam ente os dois dom ínios, m as de m odos opostos. Para Rorty, o grande liberal con­ tem porâneo se tiverm os de nom ear um entre todos, o privado é o espaço das nossas idiossincrasias onde a criatividade e im aginação selvagem governam , e as considerações m orais são (quase) suspensas, enquanto o público é o espaço da interacção social onde devem os obedecer às regras de m odo a não lesarm os os outros; por outras palavras, o privado é o es­ paço da ironia, enquanto o público é o espaço da solidariedade. Para K ant, todavia, o espaço público da «sociedade civil m undial» designa o paradoxo da singularidade universal que, num a espécie de curto-circuito, contornando a m ediação do particular, participa directam ente no U ni­ versal. É isto o que K ant, na célebre passagem do seu «O Que São as L u­ zes?», entende por «público» por oposição a «privado»: o privado não é a nossa individualidade por oposição aos laços com unitários, m as a pró­ pria ordem institucional-com unitária da nossa identificação particular — enquanto o «público» é a universalidade transnacional do exercício da nossa Razão:

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O uso público da razão deve ser sempre livre, e só ele pode trazer con­ sigo as luzes aos homens. O uso privado da razão, por outro lado, poderá ser muitas vezes severamente limitado, sem que se ponham obstáculos particulares ao progresso das luzes. Por uso público da razão entendo o que alguém faz dela enquanto douto perante o mundo público dos leitores. Chamo uso privado ao que alguém pode fazer da razão no exercício de um cargo civil ou de um a função que lhe sejam confiados.161

O paradoxo da fórm ula de Kant: «Pensai livrem ente, m as obedecei!» (que, evidentem ente, põe por si só um a série de problem as, um a vez que assenta tam bém na distinção entre o nível «perform ativo» da autoridade social e o nível do pensam ento livre em que a perform atividade é sus­ pensa) é assim que participam os na dim ensão universal da esfera «pú­ blica» precisam ente enquanto cada um de nós é um indivíduo singular para sem pre extraído da — ou até oposto à — sua identificação com uni­ tária substancial: cada um de nós só é verdadeiram ente universal quan­ do radicalm ente singular, nos interstícios das identidades com unitárias. A qui é K ant que deve ser lido com o crítico de Rorty. N a sua visão do es­ paço público do exercício livre e não coagido da R azão, afirm a a di­ m ensão da universalidade em ancipatória fo ra dos confins da nossa iden­ tidade social, da nossa posição no interior da ordem do ser (social) — a dim ensão que falta em Rorty. Este espaço da universalidade singular é o que, dentro do cristianis­ m o, aparece com o «Espírito Santo», o espaço de um colectivo de cren­ tes subtraído do cam po das com unidades orgânicas, dos m undos da vi­ da particulares («nem gregos, nem judeus»). Por conseguinte, o «Pensai livrem ente, m as obedecei!» de K ant não será um a nova versão do «Dai a Deus o que é de D eus, e a C ésar o que é de C ésar»? «Dar a C ésar o que é de César», quer dizer: respeitar e obedecer ao m undo da vida particu­ lar da nossa com unidade, e «dar a Deus o que é de D eus», quer dizer: participai· no espaço universal da com unidade dos crentes — o colectivo pauliniano dos crentes é um protom odelo da «sociedade civil m undial» kantiana. O nde com eça, então, tudo isto? Talvez o prim eiro m ovim ento tenha sido cum prido pelo Livro de Job no A ntigo Testam ento. D epois de Job ser ferido pelas calam idades, os seus am igos teológicos intervêm , o fe­ recendo interpretações que tornam as calam idades dotadas de sentido 161 Immanuel Kant, «What is Enlightenment?», in Isaac Kramnic, The Portable Enlightenment Reader, Nova York, Penguin Books, 1995, p. 5.

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(quando m ais tarde D eus entra em cena, dá razão a Job contra os d e ­ fensores teológicos da fé) e a grandeza de Job é não tanto protestar a sua inocência com o insistir no sem -sentido das calam idades. A estrutu­ ra é aqui exactam ente a m esm a que encontram os no sonho da injecção a Irm a de F reud, que com eça por um a conversa entre F reud e a sua p a ­ ciente Irm a acerca do fracasso do tratam ento desta por causa de um a se­ ringa infectada; no decorrer da conversa, F reud põe-se m ais perto dela, aproxim a-se do seu rosto e exam ina-lhe o fundo da boca, deparando com a im agem horrível de um a carne viva em sangue. N este ponto de horror intolerável, a tonalidade do sonho m uda, o horror passa de re ­ pente a com édia: aparecem três m édicos, am igos de F reud, que, num a gíria ridícula pseudoprofissional, enum eram m últiplas (e m utuam ente exclusivas) razões que faziam com que a intoxicação de Irm a pela se­ ringa infectada não fosse da culpa de ninguém (não havia seringa, a se­ ringa estava lim p a ...). A ssim h á um prim eiro encontro traum ático (a vista da carne ferida da garganta de Irm a), que é seguido pela súbita transição para a com édia, para um a troca de opiniões entre três m édi­ cos rid ícu lo s, o que perm ite ao sonhador evitar o encontro com o v er­ dadeiro traum a. A função dos três m édicos é a m esm a que desem pe­ nham os três am igos teológicos na história de Job: obscurecer o im pacto do traum a por m eio de um a analogia sim bólica. E sta resistên­ cia ao sentido é decisiva quando nos confrontam os com catástrofes p o ­ tenciais ou actuais, da SID A e dos desastres ecológicos ao H olocausto: não têm «sentido m ais profundo». A herança de Job proíbe-nos esta ati­ tude de buscar refúgio na figura transcendente e estabelecida de D eus com o Senhor secreto que conhece o sentido do que nos parece a nós um a catástrofe sem sentido — o D eus que vê o quadro com pleto, no qual aquilo que vem os com o um a m ancha contribui para a harm onia global. Q uando estam os perante um acontecim ento com o o H olocausto ou a m orte de m ilhões de seres hum anos no Congo durante estes últi­ m os anos, não será obsceno afirm arm os que estas m anchas têm um sen­ tido m ais profundo na m edida em que contribuem para a harm onia do Todo? H averá um Todo que possa justificar teologicam ente e, por isso, redim ir/superar um acontecim ento com o o H olocausto? A m orte de Cristo na cruz significa assim que devem os desfazer-nos sem reservas da ideia de D eus enquanto zelador transcendente garantindo o feliz des­ fecho dos nossos actos, enquanto garante de um a teleologia histórica: a m orte de C risto na cruz é a m orte deste D eus, repete a atitude de Job, recusa qualquer «sentido m ais profundo» que obscureça o real brutal das catástrofes históricas.

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Voltemos, portanto, à «sociedade civil m undial» kantiana com o seu uso «público» da razão: os três amigos teológicos que chegam para as­ sediar Job são três representantes do uso «privado» da razão no sentido kantiano do term o, tentam re-inscrever a catástrofe que coube a Job na ideologia «privada» da sua com unidade; e a resistência de Job é um ges­ to m ínim o de auto-subtracção desse espaço com unitário. D eclarando a sua solidariedade com Job, Deus declara-se com o Deus «público» — facto que se consum a na revelação cristã. O que significa que quem m or­ re na C ruz é precisam ente o D eus «privado», o D eus do nosso «m odo de vida», o Deus que funda um a com unidade particular. A m ensagem sub­ jacente da m orte de Cristo é que um D eus «público» deixou de p oder ser um D eus vivo: tem de m orrer com o Deus (ou, com o no judaísm o, pode ser um Deus da L etra m orta) — o espaço público é por definição «ateu». O «Espírito Santo» é assim um Deus «público», o que resta de D eus no espaço público universal: o espaço virtual e radicalm ente des-substancializado do colectivo dos crentes. M as não haverá um contra-argum ento evidente a opor a esta teologia da m orte de Deus que se centra na passagem da m orte de Deus enquan­ to substância ao Espírito Santo enquanto com unidade dos crentes — um contra-argum ento conhecido por aqueles a quem N ietzsche é realm ente fam iliar? Q uando N ietzsche fala da m orte de D eus, não tem em m ente o Deus vivo pagão, mas precisam ente ESTE Deus enquanto Espírito Santo, a com unidade dos crentes. Em bora esta com unidade já não assente nu­ m a G arantia transcendente de um Grande Outro substantivo, o Grande O utro (e portanto a dim ensão teológica) continua a ser aqui o quadro vir­ tual de referência (por exem plo, no estalinism o sob a form a do Grande Outro da H istória que garante o sentido dos nossos actos. Não apontou o próprio Lacan na m esm a direcção quando, em 1956, propôs um a breve e clara definição do Espírito Santo: «O Espírito Santo é a entrada do sig­ nificante no m undo. Foi isso certam ente o que Freud nos trouxe sob o tí­ tulo de pulsão de m orte.»162 O que Lacan quer dizer, neste m om ento do seu pensam ento, é que o Espírito Santo representa a ordem sim bólica na m edida em que esta anula (ou, antes, suspende) todo o dom ínio da «vi­ da» — da experiência vivida, do fluxo libidinal, da profusão de em oções, ou, em term os kantianos, do «patológico»: quando nos situam os no inte­ rior do Espírito Santo, som os transubstanciados, entram os num a outra vida para além da biológica. 162 Jacques Lacan, Le séminaire, livre IV: La relation d ’objet, Paris, Éditions du Seuil, 1994, p. 48.

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M as será esta passagem dos deuses vivos do real ao Deus m orto da Lei que tem efectivam ente lugar no cristianism o? Não tom ará lugar esta passagem já no judaísm o, não podendo assim a m orte de Cristo repre­ sentar esta passagem , m as antes qualquer coisa de m uito m ais radical — precisam ente a m orte do próprio G rande O utro m orto-virtual? A questão fundam ental é então: será o Espírito Santo ainda um a figura do Grande Outro, ou será possível concebê-lo fora desse quadro? E aqui que se tor­ na decisiva a referência aos despojos indefuntos do Pai morto: para Lacan, a transm utação do pai m orto no Grande Outro virtual (da Lei sim ­ bólica) nunca se com pleta, a Lei tem de continuar a ser sustentada pelos despojos indefuntos (sob a form a do suplem ento superegóico obsceno da Lei). Só o cristianism o com pleta efectivam ente a Lei ao desem baraçar-se efectivam ente do resto indefunto — e, evidentem ente, esta consum a­ ção é a auto-superação da lei, a sua transm utação em Amor. O problem a do shofar — a voz do pai m orto restituída no ritual ju ­ daico pelo som baixo e inquietantem ente ressoante de um corno de so­ pro — é o da em ergência da Lei a partir da m orte do pai: a ideia de Lacan é que, para que a Lei possa em ergir, o pai não deve m orrer com pletam ente, m as um a parte sua deve sobreviver e sustentar a lei. E por isso que encontram os o shofar no judaísm o. A religião do Deus m orto — o m onoteísm o é ENQUANTO TAL a religião de um Deus m orto. O shofar não é um despojo pagão, um signo da m orte do D eus pagão, m as qualquer coisa de engendrado pela viragem m onoteísta. A passagem do judaísm o ao cristianism o é discem ível precisam ente na passagem do shofar — o grito do Pai-D eus m oribundo — ao «Pai, porque m e aban­ donaste?», o grito do FILHO m oribundo na Cruz. N o que se refere ao ateísm o, há um a transform ação radical entre o VII Sem inário de Lacan (1959-1960, sobre a ética da psicanálise) e o seu XI sem inário (1963-1964, sobre os quatro conceitos fundam entais da psica­ nálise): no seu V II Sem inário, Lacan extrai as consequências da propo­ sição «Deus está m orto», que é, para ele, o conteúdo ateu do m ito freu­ diano de Édipo, bem com o do legado judaico-cristão. A partir do XI S em inário, todavia, insiste em que a verdadeira fórm ula do ateísm o é não «Deus está m orto», m as «Deus é inconsciente», e isto tom a a questão do ateísm o m uito m ais difícil e com plexa: para se ser ateu, já não basta de­ clarar que «não se crê (em D eus)», um a vez que o verdadeiro lugar das m inhas crenças não são os meus actos conscientes, m as o inconsciente. O que, sem dúvida, não significa um dislate psicológico do tipo «ainda que tente negar D eus, no fundo de m im continuo a acreditar»: o incons­ ciente não é o «fundo de m im », está cá fora, encarnado nas m inhas prá-

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ticas, rituais, interacções. A inda que subjectivam ente não creia, creio «objectivam ente», em e através dos m eus actos e rituais sim bólicos. O que isto significa tam bém é que a religião, a crença religiosa, se enraíza m uito m ais profundam ente na «natureza hum ana» do que pode parecer: o seu suporte últim o é a ilusão do «Grande Outro» que é de certo modo consubstanciai da própria ordem sim bólica. A verdadeira fórm ula do ateísm o não é «Não creio», m as «Já não tenho de confiar num Grande Outro que acredita por mim»: a verdadeira fórm ula do ateísm o é «não há Grande Outro».

P a r a u m a É tic a A n tim o r a l Para concluir, gostaria de abordar directam ente a questão que ressoa co­ m o fundo de todos estes desenvolvimentos: dados todos os paradoxos da reinversão universalizada do mal em bem , etc., a que poderia assemelhar-se a posição ética que pressuponho? A prim eira coisa a sublinhar é que se trata de um a ética resoluta e ambiguam ente materialista, da qual não bas­ ta dizer que não se baseia em qualquer crença (religiosa) — devemos, com efeito, ser m uito m ais precisos e m ais radicais: em que cremos realm ente quando cremos? Não é que, ainda quando a nossa crença seja sincera e ín­ tima, simplesmente não creiamos na realidade directa do objecto da nossa crença; em termos muito mais elaborados, agarramo-nos a um a visão cujo estatuto é muito frágil, virtual, de tal m odo que a sua actualização di­ recta trairia de certo m odo o carácter sublime da crença. Só cremos em coi­ sas cujo estatuto está ontologicam ente suspenso, e é por isso que um am i­ go m eu, um devoto católico, ficou chocado quando o cardeal Joseph Ratzinger163 foi eleito como papa Bento XVI: «Este hom em acredita real­ mente no que d iz ...» — com o se fosse norm al NÃO crer, ou, parafrasean­ do os Irmãos Marx: «Este hom em apresenta-se e com porta-se como se acreditasse, mas isso não deve enganá-lo. Ele realm ente acredita.» (Não devemos esquecer que o m esm o vale para os ateus: «Este hom em com porta-se e apresenta-se com o se fosse ateu, mas isso não deve enganá-lo. Ele é realm ente ateu.») É por isso que Graham Greene não foi sufi­ cientemente longe quando, nalguns dos seus textos e rom ances (O N ó do

O rosto do papa Ratzinger é por si só uma provocação — como se, por de trás da su­ perfície sorridente, distinguíssemos, por meio das sobrancelhas escuras e outros traços, os contornos insólitos de um vampiro... Trata-se de uma verdadeira coincidência hegeliana dos contrários: o rasgado sorriso benevolente escondendo um Mal obsceno.

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Problema), analisou o im pacto traumático que se produz sobre um des­ crente quando é testem unha de um súbito m ilagre, um a intervenção divi­ na directa (geralmente o milagre que salva um hom em à beira da morte de um a m orte certa). H á um a volta suplem entar a introduzir aqui: o verda­ deiro paradoxo é que um milagre directo perturbe ainda mais um crente, com o em Leap o fF a ith (1992), em que Steve M artin desem penha o papel do reverendo Jonas Nightingale, um pregador revivalista com um show iti­ nerante de m úsica gospel, m ilagres e maravilhas. Trata-se de um escroque cínico que sabe ler nas pessoas dos outros e faz dinheiro servindo-se das suas vulnerabilidades, servindo-se de diversos truques para m anobrar as esperanças e sonhos de cada um. Vai ao ponto de m ontar um a estátua de Cristo em tam anho natural fazendo com que o rosto de Cristo se cubra de lágrimas. Todavia, no clímax do filme, quando Jonas se confronta com o desafio de curar o jovem irmão paralisado de um a m ulher que quer sedu­ zir, produz um verdadeiro milagre — o rapaz recupera a capacidade da marcha. Todo o universo de Jonas se desequilibra, e ele foge da cidade... Chesterton tinha razão: se não acreditarm os em D eus, estarem os dis­ postos a acreditar seja no que for. A crença em Deus é um a excepção constitutiva que nos perm ite afirm arm os a racionalidade dos factos do universo. Voltamos a encontrar aqui, um a vez m ais, a lógica lacaniana do não-Todo: Deus perm ite-m e não crer em m ilagres vulgares e aceitar a ra­ cionalidade de base do universo; sem essa excepção, nada há que eu não me disponha a crer. N um a espécie de inversão quase simétrica, o ateísmo é a secreta convic­ ção íntima dos crentes que manifestam exteriormente a sua crença, enquan­ to a crença é a secreta convicção íntima dos publicamente ateus. Foi por is­ so que Lacan disse que os teólogos eram os únicos verdadeiros materialistas — e é por isso, podemos nós acrescentar, que os materialistas são os únicos verdadeiros crentes. Umberto Eco tem razão a este propósito: «Encontro com frequência cientistas que, fora da sua disciplina estrita, são supersticio­ sos — de tal maneira que me parece por vezes que para se ser um descren­ te rigoroso hoje em dia, se tem de ser filósofo. Ou talvez sacerdote.»164 Es­ tas linhas não deixam de evocar o que um destacado intelectual católico conservador esloveno escreveu polemizando com a minha defesa do ateís­ mo:

164 Umberto Eco, «God isn't big enough for some people», Sunday Telegraph, 27 de Novembro de 2005, p. 20.

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Não há provas — nem pode haver seja que prova for — de que Deus não existe. O ateu é movido, não por provas, mas apenas pelo desejo de que Deus não exista. Tal é, no entanto, a melhor prova da existência de Deus, uma vez que só das coisas que existem podemos desejar que não existissem. O ateísmo é a melhor prova da existência de Deus.165 Não basta rirm os perante a natureza dem asiado evidentem ente circu­ lar desta extravagante «prova da existência de Deus»: os ateus não pre­ tendem apresentar um a prova positiva de que Deus não existe; o que fa­ zem é (entre outras coisas) tornar problem áticas as provas de que EXISTE; m ais ainda, não «desejam » que Deus não existisse — o que de­ sejam , ao m áxim o, é que a RELIGIÃO (a crença em D eus ilusória) não existisse. M uito m ais im portante é rejeitarm os a sua prem issa central, a saber: que «só das coisas que existem podem os desejar que NÃO exis­ tissem . A lição fundam ental da psicanálise é que podem os não só dese­ jar, m as até PROIBIR algum a coisa que não existe, e que essa proibição é um a estratégia astuciosa de fazer com que essa coisa (aparentem ente) exista. A proibição no seu grau m ais radical — a proibição do incesto — é a proibição de algum a coisa por si m esm a im possível166. Além disso, o argumento pode ser facilmente virado ao contrário: «Não há provas — nem pode haver seja que prova for — de que Deus existe. O crente é movido não por provas, mas apenas pelo desejo de que Deus exis­ ta. Tal é, no entanto, a m elhor prova da inexistência de Deus, um a vez que só das coisas que não existem podemos desejar que existissem. O teísmo é a m elhor prova da inexistência de Deus.» É isto, um a vez m ais, o que Lacan de facto afirma: os teólogos são os únicos verdadeiros ateus. A prem issa subjacente a este quebra-cabeças é que é impossível um a so­ lução directa — crer plena e directam ente, ou ser plena e directamente ateu. Com o se tivessem vergonha de declarar abertamente a sua crença, os

165 Janko Kos, «Islam in ateizem», in Demokracija, 13 de Abril de 2005 [em esloveno], 166 Segundo alguns antropólogos, na pré-história da humanidade, tal era muito literal­ mente certo: nessa época primitiva, os pais morriam geralmente muito antes de os seus filhos se tornarem sexualmente activos, pelo que a proibição do incesto entre pais e fi­ lhos era praticamente vazia de conteúdo. Podemos reconstruir o raciocínio que lhe sub­ jazia nos termos seguintes: «Para disciplinarmos as pessoas e as fazermos trabalhar mais, temos de proibir alguma coisa: mas somos já tão pobres que tudo o que temos é neces­ sário à sobrevivência e não temos excedente a que possamos renunciar; por isso façamos as coisas com segurança e proibamos alguma coisa que seja já por si mesma impossível — deste modo, instalaremos o espírito de sacrifício e da proibição sem na realidade per­ dermos seja o que for...»

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crentes refugiam -se em frases e rituais exteriores — se os interrogamos di­ rectam ente sobre as suas crenças, ficam corados e desviam os olhos. E o mesm o vale para a m aior parte dos ateus: ainda que publicam ente se de­ clarem ateus, quando os interrogamos directam ente sobre o assunto, co­ m eçam a balbuciar: «É claro que não acredito num Deus pessoal, ou na Igreja com o instituição, MAS talvez exista algum a espécie de poder supe­ rior, um a entidade espiritual...» Esta simetria, no entanto, não é perfeita, é até mesmo profundam ente enganadora, um a vez que ambos os lados crêem, só que a um nível diferente: cada um deles cobre um aspecto dife­ rente do Grande Outro. O ateu que oficialmente não crê, é, hoje, alguém que assiduam ente consulta o seu horóscopo no jornal, com um riso em ba­ raçado que assinala que «não leva aquilo a sério»; o crente observa o ritual exterior, diz as suas orações, baptiza os seus filhos, etc., convencido de que está apenas a m anifestar o seu respeito pela tradição... em suma, ambos se remetem ao Grande Outro. Para sermos verdadeiramente ateus, teremos de aceitar que o Grande Outro não existe e de agir em conformidade. A que se assem elha, então, um a ética m aterialista? Seja-m e perm itido com eçar com um texto167, B adener Lehrstück vom Einverständnis / A Peça D idáctica de B aden-Baden sobre o Acordo, em que B recht nos for­ nece a sua form ulação m ais pungente do m odo com o um ser hum ano em ancipado deveria enfrentar a m orte. Prim eiro, em term os dialéctica­ m ente penetrantes, form ula a perda do m orrer com o sendo o abandono não só de tudo o que sabemos ou tem os, m as tam bém do que não sabe­ m os nem tem os — não só da nossa riqueza, com o tam bém da nossa po­ breza: Aquele que morre sabe que abdica de tudo o que existe: o que deito fo­ ra é mais do que aquilo que tenho. Aquele que morre abdica da estrada que conhece e da que não conhece. Das riquezas que tem e das que não tem. Até da pobreza. Da própria mão. (137) O que isto significa é que aquilo que tem os de abandonar quando acei­ tam os m orrer não pode ser incluído sob a designação de «sacrifício.» No sacrifício, abandonam os o que tem os, enquanto aqui, tem os de abando­ nar o que SOMOS, um «ser» de extrem a pobreza, despojado de todo o nosso «ter» — em resum o, no verdadeiro gesto de abandonar, não sacri­ 167 Bertolt Brecht, Gesammelte Werke, 2, Frankfurt, Suhrkamp, 1967. [Utiliza-se aqui a excelente tradução de José Maria Vieira Mendes, cf. Bertolt Brecht, Teatro 3, Lisboa, Co­ tovia, 2005 — os números entre parênteses remetem para as páginas desta edição, (N. T.)]

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ficam os nada, porque já renunciám os a todo o conteúdo que poderíam os sacrificar: Para encorajar um homem a aceitar a morte, o pensador interveio [der eingreifend Denkende] pedindo-lhe que abdicasse dos seus bens. Depois de ter abdicado de todos os bens, ao homem só lhe restava a vida. Abdica de mais coisas, disse-lhe o pensador. Se o pensador superou a tempestade, foi por conhecer a tempestade e por estar de acordo [einverstande war] com ela. Por isso, se querem superar-a morte, só quando a conhecerem e estiverem de acordo com ela é que o vão conseguir. Quem, porém, quer estar de acordo, fica agarrado à pobreza. Não se agarra às coisas! As coisas podem ser-lhe tiradas, e então deixa de haver acordo. Também não se agarra à vida. A vida ser-lhe-á tirada, e então deixa de haver acordo. Também não se agarra aos pensamentos, os pensamentos também lhe podem ser tirados, e então deixa de haver acordo. (138) E ste «abdica (dá) m ais» é um a verdadeira resposta ética ao falso es­ pírito de sacrifício: atinge o olhar da satisfação narcísica fornecida p e­ lo sacrifício. A qui o verdadeiro alvo de B recht é o gesto patético do sa­ crifício, quando o sujeito encena um espectáculo que lhe perm ite obter um excedente de gozo a partir da sua própria renúncia. O verdadeira­ m en te d ifícil não é alcançarm os a jo u issa n c e im p o ssív e l, m as libertarm o-nos dela — ou seja, renunciar a ela de um a m aneira que não engendre por seu turno um excedente de gozo. O que devem os sacrifi­ car é o próprio sacrifício, ou, nos term os de B recht, antes de nos aban­ donarm os, devem os reduzir-nos ao ponto da «m enor dim ensão» — de tal m odo que nada tenham os para abandonar: assim , ninguém morre quando m orrem os. O CORO INSTRUÍDO Quem morre então com a vossa morte? OS TRÊS MECÂNICOS SINISTRADOS Ninguém O CORO INSTRUÍDO Agora já sabem: Ninguém Morre com a vossa morte. Eles atingiram assim A sua menor dimensão (142)

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Portanto, um a vez mais: que espécie de ética im plica um a sem elhante aceitação de «ser ninguém .» É a ética sem m oralidade — mas não no sentido nietzscheano de um a ética im oral, que nos exorta a perm anecer­ m os fiéis a nós próprios, a persistirm os na nossa escolha para além do bem e do m al. A m oral ocupa-se da sim etria das m inhas relações com os outros seres hum anos; o grau zero das suas regras é «não m e faças a m im o que não queres que eu te faça a ti»; a ética, pelo contrário, ocupa-se da m inha coerência de m im para m im , da m inha fidelidade ao m eu próprio desejo. H á, no entanto, um m odo totalm ente diferente de distinguirm os entre ética e moral: trata-se de estabelecerm os, nos term os de Friedrich Schiller, um a oposição entre o ingénuo e o sentim ental. A m oral é «sen­ tim ental», im plica os outros (apenas) no sentido em que, olhando-m e pe­ los olhos dos outros, gosto de ser bom ; a ética é, pelo contrário, ingénua — faço o que tenho de fazer porque isso tem de ser feito, não devido à m inha bondade. Esta ingenuidade não exclui a reflexividade — antes perm ite um a distância fria e cruel perante o que fazem os. A m elhor res­ tituição literária desta atitude ética é O C aderno Grande, o prim eiro vo­ lum e da trilogia de A gota K ristof (O Caderno Grande, A Prova e A Ter­ ceira M e n ti r a ) ^ * . Quando ouvi alguém falar pela prim eira vez de A gota K ristof, pensei que se tratava de um erro de pronúncia e que o no­ m e era um a deform ação europeia oriental do de A gatha Christie; m as em breve descobriria não só que A gota não é A gatha, m as que o horror de A gota é m uito m ais assustador do que o de Agatha. Em bora o seu uni­ verso seja «pós-m oderno» (os três livros são escritos em estilos com ple­ tam ente diferentes, e contradizem -se com frequência a propósito dos m esm os acontecim entos, apresentando diferentes versões de um a coisa «traum ática» que deve ter acontecido), a sua escrita é absolutam ente anti-pós-m oderna, com a sua clareza e sim plicidade, e as suas frases que evocam com posições escolares elem entares. A m biguidade em aberto pós-m oderna, mas estilo inteiram ente anti-pós-m oderno. A autora é um verdadeiro duplo húngaro: um a verdadeira m estra de horror. O Caderno Grande conta a história de dois jovens gém eos que vivem com a avó num a pequena cidade húngara durante os últim os anos da Se­ gunda G uerra M undial e os prim eiros anos do regim e com unista. (M ais

168 Agota Kristof, The Notebook — The Proof — The Third Lie, Nova York, Grove Press, 1997. Os números entre parênteses remetem para as páginas da edição citada por S.Z. ^ Cf. .C Agota Kristof, Trilogia da Cidade de K [reunião dos três títulos citados], Porto, Edi­ ções Asa, 1993. (TV. T.)

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tarde descobrim os que nunca é claro se estam os realm ente diante de dois gém eos, ou sim plesm ente de um que alucina o outro; m as a resposta lacaniana esclarece: são m ais do que um e m enos do que dois. Os gém eos são 1+a: um sujeito e o que nele há de m ais do que ele.) Os gém eos são com pletam ente im orais — m entem , fazem chantagem , m atam ... — ,m as ao m esm o tem po representam a autêntica ingenuidade ética no grau m ais puro. U m par de exem plos é quanto basta aqui. U m dia, encontram nu­ m a floresta um desertor fam into e levam -lhe algum as coisas que ele lhes pede: Quando voltamos com a comida e a manta, ele diz: — Vocês são muito simpáticos. Nós dizemos: — Não queremos ser simpáticos. Trouxemos-te estas coisas porque tu precisas absolutamente delas. É tudo. (43) Se existe um a atitude ética cristã, é esta: por m ais extravagante que o pedido do próxim o pareça, os gém eos tentam dar-lhe resposta. U m a noi­ te, estão deitados na m esm a cam a que um oficial alem ão, um m asoquis­ ta gay atorm entado. D e m anhã cedo, acordam e querem sair da cam a, mas o oficial fá-los ficarem: — Não se mexam. Continuem a dormir. — Queremos ir mijar. Temos de ir. — Não vão. Mijem aqui. Nós perguntamos: — Onde? — Em cima de mim. Sim. Não tenham medo. Mijem! Na minha cara. É o que fazemos, depois vamos para o jardim, porque a cama está toda molhada. (91) O bra de am or, entre todas! A am iga m ais próxim a dos gém eos é a ama do padre, um a jovem m ulher voluptuosa que os lava e lhes lava a roupa, jogando com eles jogos eróticos. A contece então qualquer coisa quando um cortejo de judeus fam intos atravessa a cidade a cam inho do campo de concentração: Precisamente à nossa frente, um braço magro sobressai da massa, estende-se uma mão suja, uma voz pede: — Pão.

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Slavoj Zizek

A ama sorri e finge preparar-se para dar o resto do seu pão; aproxima-o da mão estendida, e a seguir, com uma grande gargalhada, volta a levar à boca o bocado de pão, dá-lhe uma dentada, e diz: — Eu também tenho fome. (107)

Os rapazes decidem castigá-la: põem -lhe m unições no fogão da cozi­ nha, e por isso quando a m ulher acende o lume de m anhã, o fogão explo­ de e desfigura-a. N a m esm a ordem de ideias, é-me fácil im aginar um a si­ tuação em que m e disporia, sem quaisquer sobressaltos m orais, a m atar a sangue-frio alguém, ainda que sabendo que a pessoa em causa não matou ninguém directamente. Quando leio descrições das torturas praticadas pe­ los regimes militares latino-am ericanos, acho particularm ente repugnante a figura (recorrente) de um m édico que ajuda os torcionários directos a conduzirem a sua tarefa nos termos mais eficientes: exam ina a vítim a e su­ pervisiona o processo, comunicando aos torcionários o que a vítim a pode suportar, que espécie de tortura lhe infligirá mais sofrimento, etc. Devo ad­ mitir que se encontrasse um a pessoa assim , sabendo que seriam poucas as probabilidades de a fazer responder perante um tribunal e tendo um a opor­ tunidade de a assassinar discretam ente, o faria pura e simplesmente, qua­ se sem experim entar o m ínim o remorso pelo facto de estar a «fazer justi­ ça pelas m inhas próprias m ãos»... Decisivo em casos semelhantes é evitarmos o fascínio do M al que nos im pele a elevar os torcionários à con­ dição de transgressores «diabólicos» que têm a força de passar por cima das nossas considerações morais mesquinhas e de agir livremente. Os tor­ cionários não estão «para além» do B em e do M al, estão abaixo dessa al­ ternativa; não «transgridem heroicam ente» as nossas regras éticas com uns, têm simplesmente fa lta delas. — M as voltemos ao Caderno Grande: os dois irmãos tam bém fazem chantagem com o padre: ameaçam-no de con­ tar a toda a gente que m olestou sexualmente Harelip, um a rapariga que precisa de auxílio para sobreviver, exigindo do padre que lhe pague todas as semanas determ inada soma. O padre chocado pergunta-lhes: — É monstruoso. Têm uma ideia do que estão a fazer? — Sim, senhor. Chantagem. — Com a vossa idade... É lamentável. — Sim, é lamentável que sejamos forçados a fazê-lo. Mas a Harelip e a mãe precisam absolutamente desse dinheiro. (70)

Trata-se de um a chantagem que nada tem de pessoal: m ais tarde, os dois acabam por tornar-se am igos íntim os do padre. Q uando Harelip e a

A Monstruosidade de Cristo

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m ãe passam a ser capazes de sobreviver pelos seus próprios m eios, re­ cusam m ais dinheiro do padre: — Fique com ele. Já deu que chegue. Ficámos com o seu dinheiro quando era absolutamente necessário. Agora temos o suficiente para dar alguma coisa à Harelip. Também a ensinámos a trabalhar. (137)

O frio serviço que prestam aos outros estende-se a m atá-los quando é isso que lhes pedem : quando a avó lhes pede que ponham veneno na sua chávena de leite, eles dizem: — Não chores, Avó. Vamos fazer isso; se realmente é o que queres, nós fazemo-lo. (171)

Ingénua com o é, esta posição subjectiva de m odo nenhum exclui um a distância reflexiva m onstruosam ente fria. U m dia, vestem roupas velhas e põem -se a pedir; algum as m ulheres que passam dão-lhes m açãs, bola­ chas, etc., e um a delas chega a passar-lhes a m ão pelo cabelo. Depois um a outra m ulher oferece-lhes a possibilidade de se instalarem em casa dela e fazerem certos trabalhos, em troca do que ela os alim entará. Nós respondemos: — Não queremos trabalhar para si, minha senhora. Não queremos co­ mer a sua sopa ou o seu pão. Não temos fome. Ela pergunta: — Então porque estão a pedir? —- Para ver que efeito fazemos e observar as reacções das pessoas. Ela afasta-se, explodindo: — Pequenos vadios malcriados! E impertinente, ainda por cima! De regresso a casa, deitamos as maçãs, as bolachas, o chocolate e as moedas na erva alta da berma. E impossível deitar fora as festas que nos fizeram no cabelo. (34)

É esta a m inha posição — o m odo que gostaria que fosse o m eu m o­ do de ser: um m onstro ético sem em patia, fazendo o que há a fazer nu­ m a insólita coincidência entre espontaneidade cega e distância reflexiva, auxiliando os outros e evitando ao m esm o tem po a sua proxim idade re­ pulsiva. Com m ais gente assim , o m undo seria um lugar agradável no qual o sentim entalism o seria substituído por um a paixão cruel e fria.