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Portuguese Pages [54] Year 2021
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EDITORA ACADÊMICA DO BRASIL
François-David Sebbah
Conselho Editorial Diego
José
Baccin
Jacopo Paffarini Jandir Pauli Jean Von Hohendorff Marisa Basegio Carreta Diniz Nadiane Feldkercher Paulo César Carbonari Sidinei Cruz Sobrinho Valdevir Both Volmir José Brutscher
À ética do sobrevivente RE
Levinas, uma filosofia da derrocada
Tradução de Leonardo Meirelles Revisado por Marcelo Fabri
Passo Fundo Conhecer 2021
Título original em francês: L'éthique du survivant: Levinas, une phitosophie de la débâcle. Em francês; 1º edição 2018, Paris, Presses universitaires de Paris Nanterre.
Agradecimentos
Copyright O 2018 Presses universitaires de Paris Nanterre. Copyright da tradução O 2021 Leonardo Meirelles Ribeiro. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem autorização, por escrito, da editora. Edição: Editora Acadêmica do Brasil - EAB Editora Tradução: Leonardo Meirelles Ribeiro Revisão da tradução: Marcelo Fabri e Maria da Penha Villela-Petit Preparação dos originais: Diego Ecker Capa, projeto gráfico e diagramação: Diego Ecker
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte S443e
Sebbah, François-David Aética do sobrevivente Levinas, uma filosofia da derrocada / François-David Sebbah tradução de Leonardo Meirelles revisão de Marcelo Fabri. - Passo Fundo: Conhecer, 2021. 110p.;14x21 cm. :
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Título original: Léthique du survivant: Levinas, une philosophie débâcle, ISBN: 978-65-992706-2-8. 1.
Filosofia. 2. Ética. 3. Levinas. |. Meirelles, Leonardo, trad. trad, III. Título. IV. Título original.
Il. Fabri, Marcelo, rev,
CDD; 170
+
CDU: 17
Catalogação: Marina Miranda Fagundes
-
CRB 14/1707
2021
Direitos reservados, no Brasil, a Editora Acadêmica do Brasil - EAB Editora Rua Senador Pinheiro, 350, Sala 01 99070-220, Passo Fundo, RS www,.eabeditora.com.br
Agradeço ao Centro Brasileiro de Estudos Levinasianos (CEBEL), ao GT Levinas, e em particular ao Nilo Ribeiro, pelo convite que me foi feito para participar do seminário Levinas: justiça e amor, em 2017, em Belo Horizonte. Apresentei um trecho deste livro e recebi uma recepção calorosa e muito estimulante da comunidade de pesquisadores brasileiros engajados no estudo do pensamento de Levinas. Marcelo Fabri, Diego Ecker, Ozanan Carrara de várias maneiras facilitaram a publicação deste livro no Brasil e agradeço a eles calorosamente. Registro aqui meu agradecimento de modo especial ao Leonardo Meirelles pelo carinho e rigor demonstrados em seu trabalho de tradução, e também pela amizade. Maria Villela-Petit e Marcelo Fabri tiveram a gentileza de fazer uma revisão completa da tradução — a eles meu vivo agradecimento.
— Sumário
Prefácio à edição em língua
VLÁVISOS
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1.1. Primeiro aviso. 142. SegundofavisoL
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2. A derrocada ou o real sob redução: o palco de Alençontes 2X Primeira ocomrênel
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3.1. A reserva em relação ao fantasma e à lembrança.. 3.2. A culpabilidade do sobrevivente ..
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3.3. Observações finais 3.4. Post seriptum......
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4. Uma ética impiedosa.
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Epílogo...
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5.
Lista de referências
.
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Prefácio à edição em língua portuguesa
As notícias, de onde quer que venham, não têm sido boas. Tempos estranhos, e não basta dar-lhes as costas. Todo ser humano na Terra tem tido motivos para se preocupar — ainda, é claro, que alguns estejam mais imediatamente expostos: moradores de grandes extensões de terras em chamas, desertificadas ou submersas pela água; habitantes de Estados em que as demandas democráticas estão desmoronando, de Estados que voltam a ser autoritários ou cedem a esse impulso. Confiança erodida nas palavras das autoridades que deveriam ser legítimas (dentre elas, as autoridades do saber); novos vírus atacando corpos (e mentes), forçando parte do rosto a se cobrir; também circulando pelas redes de comunicação onde o significado tende a se perder. E já desde tanto tempo, no entanto, cada vez mais, aqueles e aquelas que são discriminados (venham eles “de fora” ou já sejam eles sempre um “fora de dentro” — chamados “indígenas”), a quem perseguimos, e/ou que simplesmente passam fome, caminhando por estradas com pesados obstáculos e refúgios incertos. Esta situação global — que é a nossa — tem sido tratada diretamente por muitos livros. Não é o caso do que será lido neste 9
A ética do sobrevivente
livro, que, de certa forma, se mostra de outro modo: para seu autor trata-se de, com a maior probidade possível, tentar partilhar o que conseguiu compreender nos últimos anos acerca do pensamento de Emmanuel Levinas, que já é estudado por ele há bastante tempo (e é sempre uma surpresa tomar consciência disso — a virtude de um pensamento verdadeiramente filosófico é ser inesgotável e tornar o seu leitor um eterno iniciante). Eis, neste livro, alguns percursos em uma leitura a ser compartilhada com aqueles e aquelas para quem este pensamento é importante. Porém, no fundo do comentário acadêmico, dos cuidados metódicos que tenta respeitar, ressoa, espero, o ensinamento de Levinas para todas e todos que vivem e sobrevivem hoje: o ensinamento desse pensamento que, terrível lucidez esgotando em si o outramente que si, desenvolve-se a partir da derrocada e como pensamento de sobrevivente — o que deverá ser entendido de uma forma muito singular — sem anular nem a felicidade nem o amor, nem mesmo a esperança, ao contrário. Talvez alguns dentre “nós” tenhamos que “sobreviver à catástrofe”, talvez seja preciso preparar-nos para o pior; é preciso também — e sem dúvida acima de tudo — compreender que nos encontramos todas e todos, sempre, na qualidade de “existentes” “humanos” (estes dois termos sendo então completamente renovados no seu significado), sobreviventes. Não se trata apenas, nem em primeiro lugar, de relembrar as horas mais sombrias do século XX no suicídio da Europa — que formam a situação do pensamento levinasiano sem determiná-lo de forma alguma. Não se trata de embarcar na contagem das múltiplas rupturas que os seres humanos viveram durante um século (os crimes ligados à colonização e a dureza das guerras de descolonização por tanto tempo negadas, por exemplo) ou que ameaçam ocorrer em um futuro mais ou menos próximo (crise climática... 10
Prefácio à edição em língua portuguesa
Tampouco se trata de qualificar esses cálculos e diagnósticos: tal época, percebida como feliz, talvez seja apenas proporcional às inevitáveis ilusões retrospectivas; tal época — a nossa? — talvez não seja tão aterrorizante em comparação com outras (apesar dos pródromos preocupantes, dos sinais sombrios, as sociedades ocidentais somente se preocupam com seu futuro quando consideram a questão de seu próprio conforto...). Esses relatos, esses diagnósticos, podem ser bem ou mal realizados, impregnados de lucidez ou de negações. O presente livro encontra-se em outro plano: ele aprende com Levinas que, a partir da derrocada, e sem garantia, a significância se abre; ela se abre no para-o-outro, isto é, a partir da morte do outro, a qual, ela somente, importa. Somente ela instaura a existência, o humano, o sentido verdadeiramente. É a partir dessa sobrevivência que o humano poderá sobreviver, tanto ontem quanto amanhã — não importa a singularidade inaudita das nuvens sombrias que talvez se anunciem. De minha parte, raramente experimentei, tanto quanto por ocasião deste livro, a coincidência quase perfeita entre, por um lado, o comentário sobre uma obra — o “impreparável” e a necessária preparação para o futuro — e, por outro lado, aquilo que se impõe, intimamente, como o que tenho que pensar, um pensamento pessoal se preferirmos — considerando que o mais íntimo nos leve de volta ao que é verdadeiramente compartilhado. Espero somente que os leitores que terão este livro nas mãos, em língua portuguesa, graças ao trabalho de Leonardo Meirelles e de tantos outros amigos, compartilhem algo dessa experiência. EFrançois-David Sebbah
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1. Avisos
Como podemos e devemos viver juntos hoje, nós que somos sobreviventes? Este será o propósito deste ensaio, exigido pela urgência e pela gravidade do momento em que estamos vivendo — e que se alimenta de uma leitura inédita de Levinas (baseada em seus Carnets e esboços de romances recentemente publicados). 1.1. Primeiro aviso Este livro não mencionará explicitamente Fukushima, um dos nomes da catástrofe tecnológica, da catástrofe inextricavelmente natural e técnica; nem o Antropoceno, nome contemporâneo para o que a marca deixada pelo humano tem de radical e aterrorizante sobre a terra que ainda o carrega. Tampouco abordará, pelo menos diretamente, o colapso de sentido que representam os genocídios dos séculos XX e XXI. Ele também não evocará imediatamente a contestação tão rápida, como acontece no dia a dia, de valores que pelo menos oficialmente pareciam evidentes e que agora já não parecem mais — enquanto grandes nações do mundo levam ao poder aqueles que não hesitam em contradizê13
A ética do sobrevivente
los —, e tudo
isso na câmara de eco! (já produtora?) do zumbido estrelado de uma globalização digital onde circulam mercadorias e pseudoinformações, e onde os seres humanos de carne e de
contraem em si mesmos — angústia de alguns, medo de outros. Mundo em que a fina película da civilização é rasgada pela angústia dos refugiados, pela loucura mortal dos ataques terroristas — e tantas outras feridas, tantas outras dilacerações. É claro que o mundo em que vivemos não é apenas isso — nada de pessimismo excessivo. Nem tudo o que nos chega promete exclusivamente destruição e deserto de sentido. Mas o mundo em que vivemos, enquanto escrevo, em 2017, permite que isto aflore com máxima evidência. Não nos juntarmos, de olhos fechados, ao círculo dos profetas do infortúnio não deve nos levar a nos unirmos, de olhos fechados, ao círculo dos avestruzes que fazem política. Este livro não lida explicitamente com nada “disto”, apenas fala sobre “isto”, Segundo informações recentes, alguns metafísicos contemporâneos pensam ter estabelecido o hipercaos de um mundo sem nós mesmos, ou então, de um mundo para além do ateísmo e da religião, a possibilidade de um Deus que não deixaria os “espectros essenciais”, as mortes horríveis do século, sem justiça.? Osso se
Oconceito de “câmara de eco” é empregado para designar os efeitos produzidos pelo consumo e disseminação de informações através das mídias socais na formação da opinião pública. Estudos apontam que as mídias sociais podem limitar a exposição dos usuários a opiniões diversas e favorecer a formação de grupos com ideias semelhantes, reforçando uma narrativa compartilhada, que se assemelha à ideia das câmaras de eco usadas para obter efeitos de reverberação sonora no âmbito da produção sonora (N. do T.). 2 Veraobrade Quentin Meillassoux, Aprês la finitude. Essai sur la nécessité de da contingence, Paris, Seuil, 2006 e Quentin Meillassoux, Deuil à venir, dieu à venir, Critique, Paris, v. 704-705, n. 1, p. 105-115, 2006, DOI: 10.3917/
1. Avisos
O mundo sem nós, e novamente a tese de que “Deus ainda não existe”, a chamada tese da “inexistência divina” (de um Deus possível, mas de maneira alguma previsível, que viria como a justiça ela própria), alivia. Quanto a mim, não compartilho desses consolos.
Este livro atesta que seu autor fala como um sobrevivente e a partir da experiência da derrocada — uma condição irreparável — ainda que essa experiência não tenha, biograficamente, sido diretamente a sua.º Em termos históricos, seu autor fala a partir da segunda metade do século XX, quando nasceu na França. Não se trata, contudo, de uma questão de sequência histórica e situada socialmente, mas da revelação de uma estrutura fundamental do existir humano, de um “existencial” se preferirmos; ainda mais: trata-se talvez mesmo da estrutura e da tonalidade fundamentais do existir humano como tal: o existir humano como “estar à beira do abismo”. Não estaríamos falando então nada menos que da verdade do humano. Esta verdade, no entanto, não é única e nem primeiramente melancólica, apesar de algumas aparências: a felicidade e o futuro nela se encontram.
1.2. Segundo aviso em plena retirada, ou melhor, no meio da derrocada, ou melhor, junto à derrocada, no meio dessa espécie de decomposição de [:--]
1
criti.704.0105. 214
tudo, como se, não um exército, mas o próprio mundo inteiro, e não apenas em sua realidade física, mas também na representação Diferentemente de A. Badiou que recomenda libertar o pensamento da época desta experiência, e ainda assim sem nada, como veremos, juntar um pensamento que faria do campo de concentração o “nomos da modernidade” (G. Agamben).
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A ética do sobrevivente que dele pode fazer nossa mente (mas talvez tenha sido também a falta de sono, o fato de que por dez dias nós praticamente não
dormíamos, sempre seguindo a cavalo), então, o mundo estivesse a ponto de se despojar, se desintegrar, desaparecer em pedaços, escorrer como água, em forma de nada, e duas ou três vezes alguém gritasse para ele não continuar (quantos, eu não sei, nem quem eles eram: imagino, feridos, ou escondidos nas casas ou numa vala, ou talvez estes civis que se obstinavam incompreensivelmente em vagar arrastando uma mala furada ou empurrando à frente deles carrinhos carregados de bagagem sem sentido (e até nem mesmo bagagem: coisas que provavelmente são inúteis, simplesmente para não vagarem com as mãos vazias, para terem a ilusão, a impressão, de carregarem consigo, de possuírem qualquer coisa desde que estivesse ali colada — ao travesseiro perfurado com o guarda-chuva ou à fotografia colorida dos avós — a noção arbitrária de preço, de
tesouro) como se o que importasse era andar, fosse numa direção ou noutra [...].
Estas linhas, Levinas não as escreveu. Elas vêm das mãos de Claude Simon, em La Route de Flandres". No entanto, os temas da derrocada, do mundo que se decompõe, que cai em pedaços, dos quase fantasmas vagando pelas estradas, carregados de bagagens absurdas, se encontram no interior dos Carnets de captivité e, sobretudo, nos romances inacabados de Levinas, levados ao conhecimento público por meio de publicações recentes.” Claude Simon, A estrada de Flandres, São Paulo, Nova Fronteira, 1986. Ver Emmanuel Levinas, Euvres complêtes - Carnets de captivité et autres inédits, Éd. Rodolphe Calin, Catherine Chalier, Paris, Grasset, 2009, tome 1 e Emmanuel Levinas, Euvres complêtes - Éros, littérature et Philosophie, Éd. Jean-Luc Nancy, Danielle Cohen-Levinas, Paris, Grasset, 2013, tome 3. Em particular Éros ou Triste opulence e la Dame de chez Wepler. 4
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1. Avisos
Levinas trabalhou por muito tempo num projeto de romance, nunca concluído, abandonado. Lendo os rascunhos recém-publicados, podemos razoavelmente supor que, na escrita literária, no romance, faltou a Levinas alguma coisa como a linguagem de Claude Simon. A linguagem da derrocada — genitivo subjetivo e objetivo — não chegou à sua pena. Alguma coisa como a linguagem de Patrick Modiano tampouco chegou até ele para descrever a vida dos sobreviventes no eco — a repercussão da derrocada — às vezes próxima, às vezes já perdida no nevoeiro do distante, mas ainda ali, obsessiva na vida dos sobreviventes —, entretanto, sem uma forma distinta. Os romances de Levinas desmentem em demasia a experiência de provação que querem traduzir: uma narrativa excessivamente clássica, exageradamente presa nos códigos do romance do século XIX, produzindo com pleno domínio uma narrativa eum mundo: um narrador dotado de capacidade criadora, um autor impecável, um mundo restaurado. A linguagem da derrocada está faltando. Vê-se, nesse ponto, reconstituir-se o sentido na atividade de um sujeito. À derrocada se encontra negada na escrita que procura expressá-la. Um dos personagens do romance, sobrevivente da derrocada, tenta atacar o “conferencista”, este personagem que sabe tão bem contar a história. Compreende-se. De certa forma, é o romancista Levinas que se levanta contra si mesmo: os romances não serão publicados. No entanto, aqueles que leram, fosse apenas uma página de um trabalho publicado de Levinas, sabem-no sem dúvida: Levinas é um escritor, mas a singularidade de sua linguagem chegará por caminho diverso de suas tentativas de escrita literária, chegará pela escrita dos livros de filosofia. A derrocada — exemplarmente manifestada no que Levinas chama de “meu palco de Alençon” —, esta é a nossa hipótese, fem 17
A ética do sobrevivente
valor de épochê levinasiana: ela suspende a tese da existência do mundo. Porém, essa épochê fenomenológica não é uma redução fenomenológica já que ela não /eva a nenhum fundamento sólido sobre o qual apoiar — e certamente não conduz a um “ego transcendental” absoluto, fonte e garantia de qualquer sentido. À suspensão descobre um colapso sem fundo, uma lacuna: ausência de sentido, ausência de valor, e até mesmo falta de qualquer “mundo”, uma vez que a percepção se esvai do “mundo” (como totalidade aberta nos seus horizontes). Portanto, experiência que não é apenas mais uma entre outras, isto considerando que a experiência pressuponha sempre uma atividade que já controla o que lhe acontece: ela é a provação da deserção do mundo. Desvelamento ainda bem mais vertiginoso do que aquele pelo qual o último Husserl, despindo o mundo de seu manto de idealidades matemáticas, o reconduz em direção às sínteses passivas e nunca concluídas por onde O ego se surpreende vendo-se irredutivelmente transbordado: esse “mundo da vida”, ali — Merleau-Ponty o pressentirá — é incoatividade”, fazendo-se promessa de ser e de sentido. À derrocada como épochê, no sentido levinasiano, não promete nada, não oferece nada. Ela nos deixa à beira do abismo: se as sínteses ainda estão presentes, é apenas na medida em que testemunhamos sua deserção. “Mundo quebrado”, dirá De Vexistence à existant, mais exatamente, experiência alucinante de uma decomposição do mundo.
TIncoatividade indica neste caso um modo de fazer filosofia que aparenta sempre estar em seu início, e que aparenta ser sempre inacabado. Segundo Merleau-Ponty isso não é problema, mas, sim, uma faceta do próprio fazer fenomenológico. A incoatividade é laboriosa ao buscar apreender o sentido do mundo ou da história em estado nascente (N. do T). 6
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1. Avisos
A partir desse “palco primitivo”, “sob a derrocada”, ou como os fenomenólogos a chamam, “sob a épochê”, toda a obra de Levinas se deixa clarificar por uma luz violenta, que até agora, porém, chamou pouco a atenção de seus leitores. Uma fisionomia desta filosofia, para não dizer — seríamos tentados
pensar — o seu rosto mais secreto, o mais significativo, vem à tona, ainda que não diga tudo sobre a obra em sua extensão se soubermos considerar que a épochê levinasiana é a derrocada. Ou o contrário. O capítulo 1 deste livro apresenta e sustenta tal hipótese de leitura. A partir do momento em que aceitamos acompanhar Levinas nessa vertiginosa épochê, na resistência contínua da derrocada, uma coisa fica certa: tudo acontece como se esta filosofia tivesse tirado as últimas consequências da provação que a inicia ao se desdobrar como uma filosofia de e do sobrevivente. Porém, fazer da filosofia de Levinas uma filosofia de sobrevivente ou do sobrevivente não é tão óbvio. Poderia se tratar de uma séria decisão, e que deve ser ponderada com cuidado, uma vez que o pensamento e a escrita do sobrevivente chegaram a saturar nosso contemporâneo pós-genocídio (exemplarmente, sem exclusividade ou privilégio, desde o Holocausto). Pensamos imediatamente no “dever de lembrar”? (e possíveis divergências da memória); testemunho ao mesmo tempo exigido e impossível... Como veremos, não só a filosofia de Levinas quase nunca aborda diretamente estas questões, mas também as elaborações originais que ela propõe nunca formularão as questões subjaa
O“deverdelembrar” é uma expressão usada nos anos 1990 sobre a Segunda Grande Guerra, que passou a ser empregada também em relação a outros eventos trágicos. Trata-se, de fato, de um dever moral que busca manter viva na lembrança a tragicidade de um certo momento histórico e de suas vítimas, cuja repetição deve ser evitada (N. do T),
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19
A ética do sobrevivente
centes nos termos teóricos disponíveis e mais partilhados (o “dever de lembrar” como reparação, justiça e prevenção eficaz
contra o ressurgimento do pior); elas nem se interrogarão sobre o estatuto epistemológico do testemunho dos sobreviventes, sobre as aporias aterradoras dolorosamente apontadas pela ignomínia negacionista do Holocausto na história. Aliás, veremos que Levinas tem uma grande reserva em recordar, reserva que se estende aos testemunhos na vida social (ao “comemorativo” que faz parte do mundo — que aparecem nos calendários e monumentos) e até, de certo modo, ao trabalho do historiador, e, no entanto, a ética do sobrevivente de Levinas diz respeito muito diretamente às feridas que assombram essas redes de questionamentos, que obcecam nossa contemporaneidade. Porém, ela se desenvolve de uma maneira completamente diferente, a partir de um axiomático completamente diferente, indicando assim um outro modo de assumi-los sem se afundar, até mesmo para tornar possível um futuro. Deve-se dizer, portanto, que a filosofia de Levinas deve ser lida como a filosofia de e do sobrevivente, que ela se esclarece singularmente a partir deste ponto de vista, e que nos diz algo original a este respeito, ainda que — ou melhor, por esta mesma razão que — não possa ser inscrita em nenhuma das problematizações já existentes que hoje circulam em torno deste “tema”. O existente que chamamos humano, além de sua existência empírica, seu pertencimento a uma espécie biologicamente determinada, não é o Dasein como Heidegger o descreve, ele é estrutural e eideticamente o “sobrevivente” — num sentido que, então, não se permite concentrar diretamente naqueles que nos foram legados pela tradição ou naqueles que envolvem de forma dominante o Holocausto, como período histórico: o capítulo 2 deste livro tenta mostrar isso. 20
1. Avisos
Uma vez descoberto o abismo, este nunca mais poderá ser coberto novamente; ou melhor, qualquer véu de civilização modestamente jogado de novo só pode trair a partir de então a natureza irrisória da comédia da qual participa: a sobrevivência é a verdade, agora revelada, daqueles que efetivamente à beira do abismo descobrem que eideticamente, ontologicamente, estão sempre à beira do abismo, que são “seres à beira do abismo”, Assim, a experiência crucial é a da morte de outrem, de outrem a quem sobrevivemos (infinitamente mais do que a própria morte a que só se pode esbarrar): é a partir dessa experiência que já se estabelece a relação com outrem. E nessa lucidez da sobrevivência, são os modos de se relacionar com outrem de “antes”, de antes da derrocada — empatia, simpatia, compaixão e piedade — que também são denunciados também como irrisórios. Levinas insiste nisso, a tentação compassiva faz eminentemente parte desta comédia.º Assim, a ética do cativo que passou pela derrocada desdobra-se numa coerência inelutável como ética do sobrevivente. É necessário completar. À ética do sobrevivente, assim que nós abraçamos a necessidade de seu movimento íntimo, revela-se
absolutamente impiedosa: impiedosa para com o sujeito que a assume e, também, impiedosa para com outrem (apesar do que se diz às vezes, de maneira excessivamente aproximativa, da ética levinasiana). O capítulo 3 deste livro pretende restituir esta ética, Enquanto escrevemos estas linhas, só podemos constatar o quanto a fina película da civilização que acaba de ser reconstituída já está sendo rasgada novamente, especialmente nos dias de hoje... Se a leitura de Levinas nos convida a não termos ilusões sobre a “comédia da compaixão”, ela também nos convida a desconfiarmos da denúncia desta última como parte da ideologia “bem pensante”, uma vez que esta denúncia em si parece trair afeições de egoísmo e talvez de ódio, prodígios de uma brutalização renovada da sociedade — retorno da derrocada, 8
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A ética do sobrevivente
esclarecendo o paradoxo que a habita: esta ética impiedosa, porém, não exclui de modo algum a felicidade, e, mais do que nunca, ela é ética do amor. E ainda: tal ética, da derrocada e da sobrevivên-
2. A derrocada ou o real sob redução: o “palco de Alençon”
cia, torna possível — mais do que qualquer outra talvez — pensar e descrever a coincidência absoluta da felicidade absoluta para o sujeito, e do amor absolutamente des-interessado (pelo outro).
Assim este livro compõe uma trajetória com um duplo significado. 1) Ele propõe uma feitura de Levinas. Para isso, interessa-se particularmente por dois momentos da obra, digamos, muito simplesmente e correndo o risco de uma ligeira simplificação, O início e o fim: da derrocada vivida pelo cativo (ver os textos do período de guerra — os Cahiers de captivité (Cadernos de cativeiro), os romances inacabados e De Vexistence à Vexistant) até o sobrevivente e sua ética impiedosa (ver os cursos e conferências no final da sua vida, nos anos 1970 e 1980). Ele procura identificar uma coerência que ainda não foi destacada na obra de Levinas e propor, a partir dela, uma hipótese de inteligibilidade de toda a obra (que, naturalmente, ocupará as grandes obras, Totalidade e Infinito e De outro modo que ser). 2) Através desta leitura, este livro procurará, sobretudo, mostrar uma filosofia tão pessimista quanto otimista, para nós, para nós os sobreviventes, que sobrevivemos, como as personagens de Modiano, à sombra do evento traumático da derrocada, e certamente também em meio à derrocada contínua, quando todas as recuperações permanecem irrisórias, uma vez que a experiência do desmoronamento ocorreu — a mesma que o próprio homem Levinas viveu — já diante de abismos insuspeitos, até então inimagináveis, de modo exemplar, na possibilidade efetiva do fim do mundo, do nosso mundo, por assim dizer, no sentido literal. 22
Ás cortinas que caem no meu palco de Alençon dizem respeito também a coisas. As coisas se decompõem, perdem seu sentido: as florestas se tornam árvores —
—
tudo
o que
significava floresta na literatura francesa
desaparece. Decomposição subsequente dos elementos
—
pedaços de
madeira que permanecem após a partida do circo ou no palco fee]: Porém, não quero simplesmente falar do fim das ilusões; mas, sim, do
Jim do sentido. (O sentido, ele próprio como uma ilusão.) Forma concreta dessa situação: as casas vazias e a permanência nessas casas. Queijo e champanhe às 5 horas da manhã.
[..] A pilhagem
de vitrines
—
pessoas que tiram o que não faz sentido: [..] Não é a situação da inversão de
um pacote de papel de carta
valores que quero descrever — da mudança de autoridade — mas da nudez humana da ausência de autoridade.
Emmanuel Levinas, Carnets de captivité et autres inédits,
op. cit.,
p. 136
“Em certo sentido, toda a filosofia de X aí está”: tal fórmula, incisiva, será sempre muito imprecisa — salvo se a compreendetentativa arriscada de se capturar no momento um mos como
a
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A ética do sobrevivente
gesto de pensamento e como uma decisão seminal. A hipótese que gostaríamos de defender aqui é precisamente a seguinte: a partir do que Levinas chama nos seus Carnefs de captivité o — ou “meu” — “palco de Alençon”, pode-se dizer que “em certo sentido toda a sua filosofia aí se encontra”. Esse palco é, ao mesmo tempo, uma situação vivida, um palco imaginário de um romance, e um palco da filosofia, nesse sentido minimalista que lhe ocorre, no decurso da obra levinasiana, de ser integrada em textos cujo pacto de leitura” que os une os apresenta explicitamente como textos de filosofia. Esclareçamos a hipótese: “toda a filosofia de Levinas se encontra aí” no sentido de que, de certa forma, ela é lida nesse palco como a operação de “redução”, no sentido fenomenológico do termo, que é de maneira original, a maneira de Levinas. Há “pensamentos-situações” escritos por Levinas acerca de Proust”, e ele oferece uma definição precisa a seu respeito: “Proust tem uma noção desse pensamento!" pela doença ou pelo envelhecimento que são um acesso positivo (e apropriado) para uma noção e sem o qual só podemos ter um conceito negativo."? “Assim, só acedemos ao sentido a partir da concretude, da facticidade da existência da situação. Como se sabe, tanto no seu comentário talmúdico quanto em sua prática da fenomenologia, Levinas nunca deixou de promover uma “dramática dos fenômenos” pela qual o conceito nunca deve ser desconectado da singularidade das situações, e pela qual, da mesma forma, 9 O pacto de leitura é um pacto estabelecido explícita ou implicitamente entre o leitor e o autor, uma espécie de reconhecimento e até conivência do leitor acerca das formas e maneiras empregadas pelo autor na sua narrativa, em que há uma suspensão da incredulidade do leitor; é um pacto de confiança (N. do T). 10 Emmanuel Levinas, Carnets de captivité et autres inódits, op. cit., p. 73. 11 Trata-se do pensamento da morte. 12 Téid,
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2. A derrocada ou o real sob redução: o “palco de Alençon”
os significados devem ser continuamente flexibilizados.”* Não se trata, portanto, de modo algum, de identificar objetivamente a “situação”, de restringi-la, assim, a uma ocorrência da vida social que possa ser identificada no espaço e no tempo objetivo.
O “pensamento-situação” encontra-se, pelo menos, tanto na obra, e sem dúvida mais ainda no romance ou ainda no texto reivindicado como filosófico, quanto na precisão objetiva dos fatos: além disso, como sabe, os Cahiers relatam muito poucos
se
fatos ou eventos “objetivos”... O “palco de Alençon”, palco presente no romance inacabado e não publicado por Levinas durante a sua vida, intitulado Tristes opulences e em seguida Éros*, é antes de mais nada uma situação desse tipo. Encontramos vestígios disso nos Cahiers: sejam esboços ou fragmentos desse palco, sejam explicitações acerca do seu sentido (como: “no meu palco de Alençon” isto significa aquilo...).”* Ele é um testemunho do estranho “evento”
da derrocada. Para dizer a verdade, não há muito o que contar: a princípio, o ronronar dos fatos e de gestos habituais do mundo prossegue como se tudo estivesse suspenso (ou seja, como se tudo estivesse suspenso à beira do abismo). Trata-se, precisamente, da calmaria antes da tempestade: as multidões não se lançaram ainda nas estradas — estamos na iminência, ou nas premissas, dessa convulsão que ainda não aconteceu. De certa forma, nada A esse respeito, ver Didier Franck, Dramatique des phénomênes, Paris, Presses universitaires de France, 2001, p. 152 e seguintes. 14 Para esclarecimentos factuais sobre este romance e seu estatuto tanto na filosofia quanto no decurso da obra de Levinas, vamos nos referir ao prefácio de Catherine Chalier e Rodolphe Calin das Euvres 1. Carnets de captivité et autres inédits, op. cit., p. 14 e seguintes, assim, claro, como ao trabalho de edição de D. Cohen-Levinas e ao prefácio de J.-L. Nancy em Eros, littérature et philosophie. Inédits, op. cit. 15 Emmanuel Levinas, Euvres 1. Carnets de captivité et autres inédits, op. cit, por exemplo, p. 132, 135, 146. 13
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A ética do sobrevivente
de excepcional está acontecendo no cotidiano da cidade — ainda que o pânico da fuga e a pilhagem que a acompanha estejam para acontecer (estes últimos acontecimentos, aliás, constantemente levados ao ridículo por Levinas, o são dificilmente). No entanto — e esse é o evento chocante enquanto “transcendental” ou “metafísico” do não evento mundano —, algo acontece quando quase nada ainda está objetivamente acontecendo: o ordinário da vida é, de repente, captado pela crua luz da derrota. O que passa? Tudo acontece como se se Pproduzisse no mundo (essa é a situação) a operação de suspensão da tese do mundo. Na narração dos acontecimentos de sua vida, Levinas nos oferece muito poucas indicações “objetivas” a respeito do que realmente viveu como “palco de Alençon” (e, na verdade, isso não importa...). É em outro nível que o palco de Alençon é representado." Quando ele evoca sua obra de romance considerada em sua globalidade e sua generalidade, é muito claro que foda ficção tem função de épochê: uma “irrealização” do mundo no sentido de neutralizar a tese da existência. À atração
se
No entanto, há um acontecimento empírico singular que vale a pena ser notado. Trata-se de um evento objetivamente significativo, a respeito pouco de um cabeleireiro, cujo escopo “transcendental” Levinas revelará, e no qual nos deteremos mais adiante. 17 Nos Carnes, ele é mencionado muito mais do que desenvolvido; em outros textos publicados, ele é mais desenvolvido — e particularmente num deles ao qual voltaremos mais adiante. No entanto, em geral, esse palco seminal é dificilmente identificável e atribuível. Há, sem dúvida nenhuma, uma remanência ou um ressurgimento de um momento efetivamente vivido pelo homem Levinas, mas tudo acontece como se esse momento não pudesse ser atribuído a uma origem simples, nem dentro de uma determinação mundana precisa e unívoca — o que provavelmente não é alheio ao seu estatuto de evento “transcendental” ou “metafísico”: estamos, portanto, mais inclinados a acompanhar a disseminação das ocorrências desse “palco” na obra do que seus ressurgimentos cronológicos a partir de um momento datável na história da vida de Emmanuel Levinas e da história da França (ou seja, do que é de fato objetivável, como a derrocada de 1940). 16
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2. À derrocada ou o real sob redução: o “palco de Alençon”
reivindicada pelo fantástico na literatura, várias vezes declarada, sublinha esse índice ou essa operação de neutralização. E, de certo ponto de vista, o palco de Alençon reúne e nos conduz a um ponto culminante, por assim dizer, ele “instancia” esse trabalho de époche. O “pensamento-situação” da derrocada, encarnado no palco de Alençon, tem, portanto, uma função muito clara de redução fenomenológica; uma redução fenomenológica que por si só não sairá, em compensação, ilesa de tal “repetição”. Vamos especificar a descrição desta operação, desta “redução levinasiana”, e a quê ela dá acesso. Fenomenologicamente, a redução pode ser entendida de várias maneiras. À derrocada como redução não reconduz a nenhum fundamento, tampouco a nenhuma certeza (e seguramente não conduz às certezas do ego ou da consciência) — pelo contrário. Ela se diz numa imagem recorrente: as “cortinas que queimam ou caem””?, A derrota — a deserção de todo poder — tem como seu derradeiro poder: o de remover o véu, o de desvelar. Sob a pena de Levinas, a questão da “queda” ou do “fogo” das “cortinas” pode ser formulada, muito classicamente, na dicotomia ser/aparência — a aparência que se torna equivalente à “ilusão”. Mas esta formulação é imediatamente corrigida: certamente é o ser que é revelado?º, mas não como se pudéssemos opô-lo à Ver, por exemplo, Emmanuel Levinas, Carnets de captivité et autres inédits, Levinas se refere ao que ele chama de seus “processos literários”; “A situação real é descrita sobriamente. [...] Mas uma pequena imagem final, sobre a qual nunca convéminsistir [...] faz com que ela (cireule) como uma rápida corrente de ar cheia do fantástico. Toda a “situação real' aparece no limite de um precipício.” 19 Rodolphe Calin e Catherine Chalier comentam esta expressão em seu prefácio aos Carnets de captivité et autres inédits, op. cit., p. 16. 20 Desteponto de vista, sentimos uma verdadeira proximidade com a problemática heideggeriana da a-letheia, do ser e do seu esquecimento — que precisaria 18
op. cit., p. 150, ou p. 190 em que
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2. A derrocada ou o real sob redução: o “palco de Alençon”
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falta de ser da ilusão. Pelo contrário, esta revelação mostra-o naquilo em que ele não se faz precisamente como presença plena: na sua nudez ou na sua verdade, daí uma característica essencial das profundezas do ser, não ser o suficiente, ou não ser verdadeiramente (voltaremos a isto). E uma precisão importante é fornecida. Se o ser em meio à derrocada, o ser submetido à derrocada ou à derrota, poderíamos dizer, se vê privado de algo, não é de uma aparência enganosa que o teria ao mesmo tempo escondido e vestido: ele é privado de seu sentido. O ser em suas profundezas, revelado pelo que “é”, luta para ser e.., da mesma forma, “é” sem sentido.” Submetidos à redução, em situação de derrocada, os seres são apresentados como tendo duas características aparentemente, e apenas aparentemente, contraditórias. De certa forma, a fria luz da derrota desfaz em pedaços seus contornos de maneira demasiado crua, congela suas formas em caricaturas e, para reforçar, manifesta seu irrisório. À fria luz da derrocada prende os diferentes seres no seu ser, impede-os de se libertarem ou de escaparem: ali reside o patético e o irrisório dessas multidões que vão para a estrada carregadas de bagagem por todos os lados — como circos que estão indo embora, escreve Levinas.”?? Cada palavra aqui deve ser considerada. Os indivíduos humanos estão abarrotados de bagagem, deixando vestígios no ser — vessem dúvida ser explorada mais adiante. 21 É porisso que o próprio termo “palco” na expressão levinasiana “palco de Alençon” deve ser entendido pelo menos tanto no sentido do teatro (até sua parte operativa) como no sentido do romance. De repente, o mundo aparece como um palco em que uma peça irrisória foi representada. À partir do momento em que já não aderimos ao espetáculo, ou ainda, a partir do momento em que o circo vai embora (o termo “circo” empregado nesta ocasião por Levinas é, naturalmente, significativo) sobra apenas um palco irrisório, despovoado de qualquer realidade substancial (os elementos decompõem-se) e de qualquer sentido. 22 Emmanuel Levinas, Carnets de captivité et autres inédits, op. cif., p. 104.
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tígios do ser no ser —, vestígios que dizem a impossibilidade de escapar (e por isso eles se opõem radicalmente ao “vestígio do que nunca terá acontecido”??). A derrocada: impossibilidade, incapacidade de uma saída para fora do mundo e para fora do ser; des-mobilização que não é senão o inverso da mobilização — o movimento dos seres no ser —; o ser revelado, da mesma forma, como aquilo que é: um circo irrisório, sem sentido ou absurdo, preso em si mesmo, enredado por si mesmo. E esse peso ou essa gravidade, como uma cilada, é a impossibilidade da base ou da hipóstase, da substancialidade, realmente. Por conseguinte, a segunda característica desses seres: seu enredamento no ser — que é contraditório apenas na aparência — de fato, os des-realiza. Eles mal existem, custam a existir, são fantasmas, caricaturas de si mesmos sempre à beira de desaparecer dentro de uma existência indeterminada.?* A superdeterminação do papel, o caráter exagerado, estão sempre à beira do colapso daquilo que não é nem ser realmente, nem franca negação do ser, e com toda certeza não é “para além de ser”: ser que mal existe, “i/y q” — em sua dupla característica de deficiência tanto de ser quanto de sentido. O i/y 4º que Levinas mostra aqui precisamente se “mantém” sempre “ali” (assim como subsistem os fantasmas — ou seja, mal, mas inevitável e indefinidamente), debaixo de uma fina película, a fina superfície sobre a qual o circo representa sua comédia: 23
Sobreo pesado vestígio do “existente com bagagem”, ver também, ibid,
p. 133.
Vejaarazão para o “Fantasma”, então mencionado a propósito do período de um ano inteiro de cativeiro, ibid., p. 126. 25 Comosabemos, na obra de Levinas, a noção de i/y a é como o lado sombrio da noção de elemento ou de elemental. É, portanto, bastante significativo que até a decomposição dos ele evoque a decomposição das coisas em elementos, embora ou no palco”. vai circo o próprios elementos, que ocorre “depois que
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e
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comédia do ser (da substância) e a comédia do sentido (do significado tematizado). Não podemos ler ali, no pensamento-situação da derrocada, a descrição desse “mundo destruído” que serve de início a De Lexistence à Iexistant?** Não podemos mesmo considerar que, “irradiando” em toda a obra, o “palco de Alençon”, por assim dizer, “dá a ver”, “torna imagem”, as descrições fenomenológicas do ser produzidas no início de Totalidade e Infinito” e depois em De outro modo que ser ou para lá da essência”? Voltemos à descrição do palco de Alençon. O que impressiona é a ideia subjacente de que as “cortinas” são pompa e decoro. Elas são a expressão da autoridade da ordem oficial (sugerindo, no fundo, que a ordem se sustenta sobre aquilo que deveria ser apenas seu sinal ou aparência), ou ainda da oficialidade da ordem, Pensemos nos “ouros da República” — a República Francesa, que sabemos ser muito querida pelo jovem judeu lituano, que acabava de se naturalizar cidadão francês. De certo modo, no caso de Levinas, o real se aperfeiçoa e se completa nas instituições: a República Francesa, o Estado de Direito, a pátria dos Direitos Humanos, em que os sinais são os da autoridade legítima que, no fundo, garante a consistência da realidade. Professores, juízes e advogados vivem e encarnam um mundo de educação e de justiça garantido sem dúvida por uma força policial sob as ordens de um poder mensurado, esa
26 Como Catherine Chalier e Rodolphe Calin notam no prefácio de Emmanuel Levinas, ibid. p. 1. 27 Emmanuel Levinas, Totalité er TInfini, Paris, Le Livre de Poche, 2003, prefácio, p. 5. 28 Emmanuel Levinas, De outro modo que ser ou para lá da essência. Trad. José Luis Pérez, Lavínia Leal Pereira, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011, capítulo 1, Essência ou desinteressamento, seção II, Ser e interessamento.
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2. A derrocada ou o real sob redução: o “palco de Alençon”
clarecido e legítimo; autoridades que zelam pela ordem social, pela ordem cultural e pela ordem da civilidade (aquela que nos permite ir ao teatro), pelos negócios e pela indústria ou por aquela vã tagarelice (aquela pela qual “os padeiros praticam seu ofício”, mas também aquela pela qual, entre gente de outras classes, “os viscondes contam histórias de viscondes”). Essa é a “consistência” mesma do real (sua consistência não autêntica) — em tempos normais. Sabemos o quanto o jovem Levinas acreditou nesta ordem, ordem garantida pela República Francesa, guardiã dos Direitos Humanos; o quanto o homem maduro Levinas nunca deixou de lhe ser fiel, ser fiel a essa ordem que garante o real e a vida comum. Mas podemos medir o quanto, da mesma forma, ele enfatizou sua insuficiência — ou ainda o quanto ele enfatizou que aquilo que realmente importava nela, nunca veio dela. Isso é precisamente o que a redução levinasiana revela: o ser não basta, não basta ao sentido — à significância — e nem mesmo, de certo ponto de vista, ao ser. No prefácio de Totalidade e Infinito, retorna a imagem central do palco de Alençon, a de “cortinas que queimam”. E o que revela o fogo? Retomo aqui esta conhecida passagem: “Dura realidade, (soa como um pleonasmo!), dura lição das coisas, a guerra se produz como a pura experiência do ser puro, no próprio momento do fulgor quando ardem as cortinas da ilusão”. Basta seguir o início do De outro modo que ser ou para lá da essência para encontrar esta descrição que não acompanho aqui detalhadamente, cujos momentos principais apenas indico: que o ser é o confronto de seres, cada ser perseverando em seu ser, inevitavelmente colidindo com os outros; que esse confronto substancial procede do anonimato indeterminado do i/y a tanto assim que ameaça voltar a ele; que, na ordem do 31
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ser, o i/ y a anônimo se encontra precisamente neutralizado e domesticado, de forma intrinsecamente frágil. É porque o ser é ordem, que distingue as substâncias e as justapõe no espaço, contendo cada uma dentro de suas fronteiras; é porque o ser é
unificador, que produz sentido tematizado (significações culturais) e de civilidade, mas também justiça como medida e partilha garantida por um Estado. O ser é a paz, desde que a paz seja apenas o inverso da guerra: a guerra, alergia e choque entre substâncias individuais, que pode enviá-las, a qualquer momento, ao assustador anonimato, que ameaça constantemente transformar-se no caráter fantasmático do i/ y a. A derrocada revela assim a profundidade do ser pelo que ele é, e, por contraste e contrapartida, a sua superfície pelo que ela é: comédia da ordem harmoniosa; a ordem harmoniosa como comédia ou teatro — palco, nesse sentido. É no “palco do ser” que há ordem, paz, e muito simplesmente um mundo e um espaço em que as substâncias podem ser dispostas umas ao lado das outras. Mas o ser submetido à derrocada vê a ordem oficial se desmoronar, ordem revelada então como nada mais que uma frágil película lacerada, interrompida: o palco do ser é realmente apenas uma superfície muito fina em que, reforçando-se como fogos, o ser se esforça para consistir; uma superfície que, quando rasgada, permite vislumbrar o pior, assim como também se deixa revelar enquanto comédia frágil e irrisória. Desse ponto de vista, o propósito levinasiano é radical. Com essa ordem humana que parecia garantida por toda a eternidade pela razão, com esse “mundo razoável”, é o mundo enquanto tal — a partir da percepção — que se desmorona: as estradas por onde entram os fugitivos não só não penetram para além do ser, mas já não vão para lugar algum, pertencem a um terrível no man's land (não da u-topia, mas legein
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2. À derrocada ou o real sob redução: o “palco de Alençon”
da indeterminação de qualquer lugar).”º Talvez se pudesse até dizer que, em certo sentido, trata-se da paz do fogos, dos filósofos, dos juízes e advogados, que já “sustenta” até o mundo da percepção. Se o pensamento-situação do palco de Alençon, da derrocada, tem esse papel fundamental, se ele encarna efetivamente a “redução levinasiana” — então não é de se estranhar que ele esteja mais ou menos explicitamente disseminado no texto levinasiano: no texto literário certamente (texto não publicado até hoje”º), mas também no texto explicitamente filosófico, e ainda no texto que eu descreveria como “judeu” — num sentido muito preciso aqui: nomeio assim os textos que Levinas escreveu a partir de seu “ser-judeu” ( muitas vezes dirigidos à comunidade judaica). Vamos examinar duas ocorrências do palco de Alençon, e tentar esclarecer tanto o que elas nos ensinam quanto o que o deslocamento e o enxerto que elas sofrem nos ensinam sobre a redução levinasiana enquanto derrocada. Em suma, trata-se de considerar tais ocorrências como “variações” desse palco e da operação que ele encarna.
29 Parauma descoberta e, sobretudo, uma leitura muito bela dos textos levinasianos sobre lugar e não lugar, sobre a terra de ninguém em suas ambiguidades em particular, ver Jean-Louis Chrétien, Lieu et non-lieu dans la pensée de Levinas, em Emmanuel Levinas et les territoires de la pensêe, Danielle Cohen-Levinas e Bruno Clément (dir.), Paris, Presses universitaires de France, 2007, p. 121-138. Ver também François-David Sebbah, Emmanuel Levinas. L'utopie du chez-soi, in: Le Territoire des philosophes. Lieu et espace dans la pensée au XXe siêcle. Thierry Paquot e Chris Younês (ed.), Paris, La Découverte, 2009, p. 255-274. 30 O autor se refere ao ano de 2017, quando escrevia este texto (N. do T).
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2.1. Primeira ocorrência “Sem nome”, texto publicado em Les Nouveaux Cahiers, em 1966, é, pelo menos de certo ponto de vista, um texto judeu no sentido de que seu autor, seu remetente, se identifica com seu “ser-judeu” e se pergunta o que é necessário para transmitir a experiência da concentração e da clandestinidade judaica à comunidade judaica ao final do horror nazista.*! Não retomo a descrição que foi produzida nessas páginas sobre o “abandono” que ocorreu entre 1940 e 1945. Vamos simplesmente salientar que nesse “abandono” tudo acontece como se o evento da derrocada — a interrupção traumática que ele constitui — fosse “contínuo”, perdurando numa estranha suspensão.” Tudo está ali, inalterado, de certo ponto de vista, mas desertado do seu significado, tornado irrisório. “InterregEstetextoé repetido em Emmanuel Levinas, Noms 'propres, Montpellier, Fata Morgana, 1976. Depois, na sua reedição, Emmanuel Levinas, Noms propres, Paris, Le Livre de Poche, 1987, p. 141 e seguintes. O primeiro e explícito destinatário é de fato o que foi convencionado chamar de “a comunidade judaica”, como mostra uma primeira publicação numa revista cuja identidade se baseia principalmente no judaísmo francês. Levinas, que se dirige a um “nós” a quem pertence, identifica-se como emissor a partir do seu “ser-judeu”. No entanto, continua sendo verdade que por definição — publicado e legível para todos — este texto por vocação se dirige à universalidade da comunidade de possíveis leitores (como evidenciado por sua inclusão numa coleção sem destinatário privilegiado a não ser seu leitor). Distinguir Os vários textos levinasianos, segundo a situação de Levinas como remetente e segundo o destinatário privilegiado, parece-me esclarecedor. Escusado será dizer, porém, que o traçado de fronteiras entre tipos de textos produz necessariamente uma identificação esquemática e que essas fronteiras não são, evidentemente, estanques. 32 Aquiencontramos uma característica temporal da redução fenomenológica que aparece em seus diferentes momentos, uma característica expressa pelas acentuações carregadas de duas traduções do termo épocãe: interrupção e suspensão. Trata-se, juntamente com a redução, de uma descontinuidade radical além de uma suspensão do tempo do mundo (pela qual essa interrupção é, paradoxalmente, “contínua”). 31
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2. A derrocada ou o real sob redução: o “palco de Alençon”
no ou fim das instituições, ou como se o próprio ser tivesse se suspendido. Nada mais era oficial. Nada mais era objetivo. Nem o menor manifesto pelos Direitos Humanos.” E, para
Levinas, como sabemos, depois dessa suspensão, surgiu o sentimento do “privilégio injustificado de ter sobrevivido a seis milhões de mortes”**; surgiu a vida vivida a partir de então como um “período de graça”, em que o “real da vida normal” foi reconstituído (os jornais, as conversas, os valores e a força pública para protegê-los), mas de tal forma que “nada poderia preencher nem mesmo recobrir o abismo escancarado”*. Assim, a redução ao ser, ou em ser (como i/y a, que restituímos acima tal como ela é apreendida por Levinas dentro da situação, de certa forma, pontual e paroxística da derrocada (há um momento da derrocada, um antes e um depois: todas as coisas no lugar e multidões nas estradas), é ela também a situação de desolação do judeu, daquele que assume o “ser-judeu”. A desolação se temporaliza primeiro no punctum da derrocada, e depois por um período de cinco anos. Mais ainda radicalmente, em certo sentido, uma vez revelada, ela dura para sempre: a derrocada continua, a desolação aí está — nada da vida que seja retomado (como inautenticidade legítima!) pode realmente recobrir o abismo. Uma vez queimadas as cortinas, a tecelagem de um novo manto de décorum, de autoridade e de civilidade só pode trazer em si a marca indelével da ruptura e deixar entrever o que ela se esforça em recobrir. Trata-se da desolação radical: não que eu esteja separado de outrem, nem fechado no meu mundo, nem mesmo que eu esteja sozinho no mundo — estou só sem nem mesmo haver mundo. 33
Emmanuel Levinas, Noms Propres,
34 35
Ihid.
op. cit.,
1987, p. 142.
Tbid,
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À ética do sobrevivente
2. À derrocada ou o real sob redução: o “palco de Alençon”
Estou só. À situação não é tal que a injustiça me atinja, que a violência seja atenuada, no entanto, pela certeza de que em algum lugar haja uma Justiça e homens justos, que haja outros homens que não me ouviriam nesse momento, mas aos quais eu poderia esperar um dia me juntar. À situação de desolação radical é tal que a própria ideia de Justiça já está desmoronada. Assim, uma das “variações” da redução levinasiana remete-a ao “ser-judev”, e a torna operante sob o modo particular dessa facticidade, dessa situação precisa. E o quê aprendemos, então? Aparece algo neste texto que não aparecia diretamente em outras evocações acerca do “palco de Alençon”: como uma espécie de resíduo da redução não percebido até agora. Esclareçamos o que está em causa. À desolação é também designada como a internalização de valores que desmoronaram do lado de Fora e com o próprio lado de Fora — internalização “no recolhimento de uma consciência subjetiva”. O mundo em pedaços, o real submetido à redução ou à derrocada, em que tudo é semelhante e neutralizado em sua tese de existência, é também um mundo, por assim dizer, sem orientação ética. Esse mundo já não é mais mundo: “retornamos ao deserto, a um espaço sem paisagem”, Mas essa anulação do mundo deixa um resíduo não afetado; o “restante” irredutível da subjetividade que tal redução. O “ser-judeu” experimenta sofre o traumatismo
de
36 37
Tesid.
é
Note-se que a descrição proposta pelo texto “judeu” inteiramente semelhante àquela proposta nos textos “filosóficos” (Totalidade e Infinito, De outro modo que ser ou para lá da essência) recordada na primeira parte: a ordem humana que garante a paz desmorona, e com ela o próprio espaço, permitindo a emergência do deserto sem lugar e sem orientação. Tira-se daí, então, uma lição: o homem não precisa de civilização para viver — civilização que se desgasta como mero sinal ou aparência de si mesma —, e nem mesmo de conforto... Ver Emmanuel Levinas, Nos propres, op. cit., 1987, p. 143.
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permite que a subjetividade seja entendida de duas maneiras. Primeiramente, como ser imobilizado: o ser imobilizado significa antes de tudo “negativamente”, como ser que não pode escapar, e inicialmente de si mesmo, ser cujo próprio ser se encontra aprisionado e amaldiçoado (há nesse ponto uma hiperbolização do “ser com bagagem”). Tal ser é consignado a um espaço, mas não se trata de modo algum de um espaçamento, ou de se instalar em algum lugar, pelo contrário. Trata-se de um espaço-receptáculo, “do espaço que acaba de ser feito — como o túmulo — para nos conter”**: asfixia no ser e no seu ser — como daquele enterrado-vivo. Subjetividade à beira de sucumbir sob seu próprio peso de ser. Mas já — esta é a segunda característica desta subjetividade —, se deixa ler como uma linha pontilhada o retorno dessa intimação dentro de si mesmo, dessa “imobilização dentro de si mesmo”. Trata-se, então, daquilo sobre o qual a redução do ser ao ser (do ser e sua ordem ao 1/y a) não tem poder, daquilo que precisamente não pertence ao ser: crer no retorno dos valores, um “sentir-se responsável” por valores, quando do lado de fora eles se desmoronaram juntamente com tudo aquilo que está fora, juntamente com todo o Mundo: a “vida interior”, diz Levinas, palavras antigas e convencionadas para dizer que a verdadeira interioridade não é do Mundo, e certamente não como um “dentro” que ainda seria “situável” no Mundo. Esperança e responsabilidade, quando nada do mundo mais fica de pé — ou só se mantém de pé sob a crua luz do irrisório —, resistem, porque não são do Mundo, nem do ser. Esperança e responsabilidade por meio das quais, em certo sentido, a interioridade é a própria evasão.”*? Tsid Aquideixodelado uma problemática que, no entanto, é decisiva: a ligação entre o ser judeu em sua particularidade e a “alma humana” em sua generalidade, 38 39
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A ética do sobrevivente
2.2. Segunda ocorrência Gostaria de me concentrar num outro “acréscimo”, outra variação do palco de Alençon, da derrocada — desta vez num texto do qual pode-se dizer que seu pacto de leitura o identifica claramente como um texto filosófico. No que diz respeito aos textos publicados por Levinas durante sua vida, trata-se certamente da versão que mais explicitamente evoca a derrocada. Em particular, esta versão retoma, com extrema clareza, as marcas características desse palco (os lugares, os detalhes mencionados) e as apresenta. Às mesmas situações são evocadas, exatamente nos mesmos termos, mas de forma mais detalhada do que nos “relatos” do palco mais diretamente ligados à experiência biográfica. Mas, quando Levinas vive como uma segunda vez o “pensamento-situação da derrocada”? Quando é que ele experimenta uma segunda derrocada — ou melhor, quando ele revive a derrocada? Ao ler Derrida. O efeito da desconstrução sobre o mundo das significações não é apenas comparado à derrocada de 1940, mas é, de certa forma, com ela identificado. O texto de 1972 dedicado a Derrida, Tout autrement* (texto que se pode dizer a ligação entre a situação do judeu na sua facticidade de existência e a situação de cada ser humano. Ver em particular, a este respeito, Étrejuif (texto publicado
na revista comunitária Confluences em 1947), reimpresso nos Cahiers d'études lévinassiennes, n. 2, 2003, p. 197-206, 40 Jacques Derrida, Tout autrement, in: Ireo, n. 54, 1973, reimpresso em Emmanuel Levinas, Noms Propres, op. citf., p. 1. Este texto sobre Derrida, portanto, aparece pela primeira vez na edição especial que lhe foi dedicada, de uma das principais revistas do “muito contemporâneo” no que se refere às artes, literatura e filosofia nos anos 1970. É claro que não é à toa que os dois textos (Sans nom e Tout autrement), cuja heterogeneidade de registro sublinhamos, se encontram na “reformulação” dentro da mesma coleção, que é precisamente, em grande parte, a “coletânea” de “amigos”.
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2, À derrocada ou
o real sob redução: o “palco de
Alençon”
contemporâneo a De outro modo que ser ou para lá da essência), é bastante eloquente sob esse ponto de vista. Encontramos todas as características da derrocada (desta vez “circunscrita” ao domínio do pensamento): a abolição do lugar e a desolação de qualquer paisagem — há paisagens de pensamento — tornada inabitável. A imagem do no man's land utilizada nos Cahiers reaparece: “caminhamos, esperando, numa no man's land, num intervalo incerto até a respeito das incertezas que, em toda parte, que piscam”“!. “No início, tudo está no lugar, depois de algumas páginas ou de alguns parágrafos, sob o efeito de um formidável questionamento, nada mais é habitável para o pensamento. [...] Revejo sempre, ao lê-lo, o êxodo de 1940.” Isto não se encontra nas notas dos Cahiers nem nas outras páginas de Levinas que aqui e ali narram ou comentam acontecimentos históricos; é aqui na página 66 de um texto sobre a desconstrução derridiana que encontramos na obra publicada a mais completa restituição do palco de Alençon. Assim, o “pensamento-situação” põe em contato o episódio vivido pelo homem Levinas, no mundo — dificilmente identificável sob o ponto de vista empírico, “em algum lugar entre Paris e Alençon” em 1940 — e a situação da desconstrução. E se, segundo nossa hipótese de leitura, a derrocada é de fato um modo da redução (a “redução levinasiana”), então podemos medir o quanto a desconstrução está próxima da redução; ela permanece uma redução, mesmo que seja uma redução que “acontece” com sujeito muito mais do que é operada por ele — uma redução derridiana em íntima afinidade com a redução levinasiana: a derrocada ou o real submetido à redução; a desconstrução ou o texto submetido à redução (um continua O outro e vice-versa).
é
41
42
Ibid, p.
66.
Trata-sede Derrida.
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A ética do sobrevivente
E o que dizer desse contato entre
2. À derrocada ou o real sob redução: o “palco de Alençon”
derrocada e a desconsde Levinas — da “filosofia a
trução? E o que dizer — a palavra é como derrota”*? No regime de desconstrução, como na derrocada, não se pode mais acreditar nem tomar partido: os significados tematizados desmoronam, deixando a ordem do significante despovoada de sentido. Não está mais em jogo uma dialética do ser e da aparência enganosa, mas, sim, — os termos são quase idênticos àqueles usados na descrição do que a derrocada revela no “palco de Alençon” — uma falta de presença “originária” que mina o ser (o texto derridiano então explicitamente citado por Levinas
é A voz e o fenômeno).
Um ponto merece aqui nossa atenção: um episódio algumas vezes mencionado em outras versões da derrocada adquire, dentro da retomada relativa à desconstrução derridiana, um estatuto absolutamente decisivo. Trata-se desse evento, literalmente tão estranho quanto anedótico, que eu alusivamente apontava iniciando esse tema“*; esse evento que me parece encerrar uma dimensão “transcendental”, ou melhor, “metafísica”, no sentido de Levinas. Episódio estranho: “um barbeiro meio bêbado convidava os soldados que passavam pela estrada — os “meninos”, como ele os chamava em linguagem patriótica pairando sobre as águas, ou flutuando no caos — a virem cortar o cabelo de graça em seu estabelecimento”. O texto subjacente não é nem muito “sábio” nem muito “antigo”. Trata-se, muito prosaicamente, do “amanhã vamos fazer a barba de graça”. É em relação a ele que o próprio título do parágrafo faz sentido: “amanhã é hoje”. “Amanhã, vamos fazer a barba de graça” ou 43
44 45
40
Emmanuel Levinas, Noms Propres, op. cit., 1987, p. 67. Emmanuel Levinas, Carnets de captivité et autres inédits, Ibid, p. 67.
op. cit., p. 73.
“messianismo”! Levinas comenta nestes termos: “a procrastinação essencial — a futura diferença — estava sendo absorvida
no presente. O tempo chegava a seu termo com o fim ou com o provisório da França.”"º Vamos extrair o significado deste “amanhã vamos fazer a barba de graça”. Trata-se do trabalho gratuito para outrem,
como dom de si mesmo: eis o impossível para a “racionalidade calculadora” da economia e das relações sociais comuns. E é isso que a expressão em seu uso também comum denuncia amável, mas ironicamente: o caráter ilusório de tal esperança. Aquele que espera a chegada do impossível mergulha na ilusão. No entanto, no evento da derrocada — mais ou menos contínuo em sua duração suspensa —, no aqui e agora de um lugar também colocado entre parênteses (“algum lugar entre Paris e Alençon”) o impossível como tal acontece, e ele “tem lugar” de uma forma necessariamente estranha e paradoxal: ele desmonta o tempo. Ele provém do entretempo (suspensão do decurso normal do tempo) e do contratempo: interrupção, mas também perturbação ou “engarrafamento” no passar obrigatório do tempo. Hoje e amanhã se colidem, fundem-se um no outro sem se absorverem um no outro: um hoje que adquire a força de futuro do amanhã como tal, um “amanhã” que toma forma de presente, como hoje, sem se anular, como puro futuro”: impossível acontecido que acontece pela via do impossível. Não podemos identificar aqui a própria “estrutura” do momento messiânico, ao qual se abre a intervenção profética**?
46 47 48
Toid.
A-venir, segundo o autor (N. do T.). Sobrea temporalidade do profetismo e do messianismo ver Gérard Bensussan, Le temps messianique, Paris, Vrin, 2001, em particular a p. 57 e seguintes,
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À ética do sobrevivente
E o que acontece não é certamente um aumento da presença ou uma sobrepresença. As descrições anteriores à derrocada nos ensinaram isto — acrescentando aqui claramente, a partir desse ponto de vista, uma ideia que se encontra no coração da “desconstrução”: acontece a derrota ou a derrocada da presença. A presença se ausenta da chamada; ela deserta. E, desde então, na derrocada, aquilo que chega, que acontece, é como se não chegasse, como se não acontecesse; é aquilo cuja não-chegada constitui o evento e, portanto, a quase-presença. O desmoronamento da presença torna-se evento. Não insistirei aqui mais sobre a quase-identidade entre a derrocada e/ou a derrota, por um lado, e o evento messiânico, por outro; uma proximidade estabelecida, se a descrição estiver correta, no coração do pensamento-situação de uma certa redução fenomenológica que é descoberta, dessa forma, o mais próximo da “desconstrução” derridiana. O sentimento apegado à derrocada é caracterizado por sua ambivalência intrínseca: é uma provação que cai sobre você, que não é escolhida (ao contrário da operação de “redução fenomenológica” entendida em seu sentido husserliano — então sinônimo de controle); uma terrível provação de desolação e desmoronamento. E, no entanto, essa provação é necessária, pois de fato é redução (apesar de tudo o que a opõe à operação Pprinceps husserliana), ela é a própria redução no sentido de que ela abre, dá acesso — seja pela desolação ou pela deserção da presença. No centro mesmo dessa ambivalência se encontra, aliás, em Jogo a complexidade da relação de Levinas com Derrida — algo desse “contato no coração de um quiasmo”*, Até certo ponto, 49 Eisas últimas palavras de Jacques Derrida em Tout autrement, in: L'arc, n. 54, op. cit.
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2. À derrocada ou o real sob redução: o “palco de Alençon”
Levinas sugere que Derrida, de certa forma melhor do que ninguém, “inscreve” o pensamento-situação da derrocada no centro da filosofia. Há, além disso, na descrição da desconstrução por Levinas, digamos, um entrelaçamento com seu próprio gesto filosófico — uma quase confusão mesmo entre os dois gestos. É bastante óbvio: certas sequências de descrição da desconstrução, tanto nos termos utilizados quanto nos significados sugeridos, são indistinguíveis das descrições que Levinas usa, a partir do seu “próprio” gesto filosófico: a desconstrução, como o vai-e-vem entre Dizer (evento do outro modo que ser) e Dito (fegein, reunindo o ser), o “piscar”, pelo qual o Dizer se compromete com o Dito — e já a “agitação” do desdito que libera, reduzido ao Dizer... Flá quase, nestas linhas que dizem o gesto filosófico, o reconhecimento, a confissão ou talvez — indiretamente dirigida também a Derrida — uma espécie de declamação implícita de um “ele sou eu, e eu sou ele”. No entanto, nada da dureza que há em identificar a desconstrução com 1940, com a derrocada, se apagou. É que o inegável entrelaçamento na amizade dos gestos de pensamento leva, entretanto, — e sem nada anular de si mesmo — até o ponto de litígio, ou pelo menos de extrema reserva. Sem dúvida, Levinas compartilha com Derrida a ideia de que, em certo sentido, não se recupera da derrota, de que a derrocada é sem Aufhebung, não promete novas tropas em ordem de combate — nem restauração nem vingança da presença substancial. Quem já se expôs uma vez ao sopro devastador permanece irredutivelmente preso no sentimento da derrocada (este último ainda que “recoberto” de novo pela película reconstituída do mundo e da cultura), mas, como vimos, esse sentimento também é esperança, é mesmo condição de possibilidade da esperança: a esperança mantida no seio do impossível, e mesmo a esperança que só pode surgir como 43
A ética do sobrevivente
tal no seio do impossível, contra tudo
2. A derrocada ou o real sob redução: o “palco de Alençon”
contra todos. Aqui se encontra o ponto litígio: Levinas, no texto de 1972, suspeita de que a deserção da presença, tal como a desconstrução derridiana a manifesta, não abre ao um-para-o-outro, para a “ética”, a “bondade” ou o “amor” (os termos e intensidade variaram) que, no seu caso, por assim dizer perfuram sempre a evidência da guerra e a provação da derrota — sem, no entanto, anulá-las.*º As duas derrocadas, a levinasiana e a derridiana, de fato não coincidem. Os caminhos se bifurcam. À suspeita levinasiana: a desconstrução, depois de ter liquefeito o mundo, des-mobilizado os seres, jogado nas estradas os fantasmas atulhados de suas bagagens, pára ali e não se abre para a positividade do que não tem mais nenhuma presença subsistente, mas se doa, assim, precisamente, em sua própria positividade: rostos e ética. À desconstrução permaneceria junto dos espectros; de fato, o motivo do espectro tem sempre conotação negativa em Levinas — é preciso escapar do mundo dos espectros —, ao passo que Derrida conseguiu apegar-se a esse motivo, dando-lhe conotação positiva, para fazê-lo dizer a ausência de qualquer presença como um evento.”* e
de
50 Compreende-se, portanto, que ele tenha apreciado de maneira ambivalente a desconstrução de seu próprio texto por Derrida, descrevendo Violência e metafísica (o comentário derridiano sobre Totalidade e Infinito) como “assassinato sob narcose” — mais do que como o desdito reconduzindo ao Dizer... 51 Devemos, muito mais do que fazemos aqui, pensar sobre uma ultraimposição entre os dois êxodos — o Êxodo bíblico e o Êxodo de 1940. Sabemos que o evento do Éxodo bíblico é “inaugural e matricial”, que ele “metonimiza todos os eventos que a ele se assemelham” (nas palavras de Gérard Bensussan em Le temps messianique): ora, o que a “forma originária” do “evento profético” promete é a interrupção da derrocada pela libertação, depois, a redenção. Sem dúvida, a experiência da suspensão de 1940-1945, desse deserto, terá perturbado a compreensão pelo Levinas judeu do momento messiânico — este último se revela talvez terrivelmente “sem promessa de redenção”, mas, já insistimos, não sem esperança, muito pelo contrário! Messianismo frágil, porém, mantido nesse
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Entre as duas derrocadas, a levinasiana e a derridiana, há uma questão de contato no interior de um quiasmo. E não podemos deixar de salientar como, ao longo do tempo, tangencialmente, uma convergência tende a ocorrer dentro mesmo da irredutibilidade da diferença. Proximidade explicitamente assumida por Levinas entre a desconstrução e sua própria prática do “Desdito” (pela qual Levinas toma nota da crítica derridiana que aponta a “ingenuidade ontológica” de Totalidade e Infinito). Por outro lado, não podemos deixar de ver o quanto Derrida compreenderá cada vez mais a “desconstrução” como “ética” no sentido levinasiano; “desconstrução” que, expondo-se ao que não vem, se expõe, no entanto, ao que vem assim (como não vindo), e lhe diz “sim”, “incondicionalmente”.”? sentido. O problema não é ser salvo por um Deus do qual Levinas atualiza a o horror nazista; aqui a esperança é preservada, e além disso, ela só do abismo, apenas na e pela sua própria fragilidade: a ética do fundo emerge no rosto de outrem. Essa seria a divergência, em que Levinas suspeita de Derrida: a “desconstrução” nomearia o risco de um êxodo que rompe qualquer ligação com o Êxodo... o êxodo de fantasmas sem rosto. 52 Um nome, que contou tanto para Levinas como para Derrida, não aparece neste texto — de certa forma, estamos a ponto de justificar sua ausência pela necessidade de construirmos um outro texto — o de Blanchot. De fato, em muitos aspectos, a escrita literária segundo Blanchot e sobretudo de Blanchot — “a escrita da derrocada” —, é a própria derrocada; além da afirmação e da negação, a vinda do que não vem, senão decepcionando, senão se ausentando de sua própria presença (ver, por exemplo, L'atfente, 'oubli). Quando ele lê em Blanchot algo acerca do gesto ético, Levinas não acompanha, contudo, o amigo até o fim porque, precisamente, a redução de Blanchot, enquanto derrocada, tem de certo modo muito bom êxito — não preservando mais o restante da sub-
morte com
jetividade como responsabilidade: Blanchot caminha para o anonimato radical através da escrita literária, enquanto Levinas reclama para a escrita filosófica um restante de subjetividade irredutível - como responsabilidade e testemunho da experiência de outro modo de ser. Essa bifurcação, que acontece em grande parte em meio à possibilidade de uma distinção entre escrita filosófica e escrita literária, terá, sem dúvida, de ser levada em consideração para a compreensão do romance de Levinas — e da difícil relação que este último manteve, parece, com sua própria escrita literária.
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À ética do sobrevivente
Para concluir, espero que, apesar da forma necessariamente aproximativa e abusiva como a redação foi formulada, tenha havido algum sentido em dizer: “toda a filosofia de Levinas está ali, no palco de Alençon”, se esta última é de fato como um “pensamento-situação” seminal, o da derrocada como redução (e, portanto, o da redução como derrocada). “Pensamento-situação” seminal que se dissemina, portanto, na diversidade dos textos levinasianos, e que tentamos, por meio de exemplo, designar em ação, em dois momentos da maior importância, em duas palpitações ou “piscadas” decisivas: na descrição do “ser judeu” e no contato com o pensamento derridiano — contato no qual se opera e se expõe a vitalidade do gesto filosófico de Levinas.
3.
A Ética como culpabilidade do sobrevivente
Responsabilidade por outrem ao suportar sua desgraça ou seu firma, como se disto fôssemos culpados. Proximidade máxima. Sobreviver como culpado. Nesse sentido,
o
sacrifício
por outrem criaria com
a morte de outrem uma outra relação: responsabilidade que seria talvez a razão pela qual se pode morrer. Com a culpabilidade” do sobrevivente, a morte de outrem me diz respeito. Minha morte é minha participação na morte de outrem, e na minha morte eu morro esta morte que é minha culpabilidade.
Emmanuel Levinas, Dieu, la mort, et le temps, Le Livre de Poche, 1995, p. 49
A partir do que foi convencionado chamar Holocausto, ao
mesmo tempo que, não sem dificuldade e sofrimento, muito foi produzido tanto pelo testemunho do próprio sobrevivente
Escolhemos sempre traduzir aqui “culpabilité” por culpabilidade, e não por culpa, por entender que este primeiro termo designa melhor uma condição, no vocabulário levinasiano uma condição originária do ser, para além de um sentimento e aquém de uma ação, e que é diferente de uma provável consequência de atos humanos condenáveis cometidos, sendo que então para este outro caso, sim, acreditamos caberia melhor o termo culpa (N. do T). 53
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À ética do sobrevivente
quanto pela literatura da memória, encontramos, respondendo a uma tal exigência, ou refletindo sobre ela, muito pouca coisa por parte de Levinas; Levinas que teria dificilmente meditado e transcrito esse “dever de lembrar”. Assim, Levinas, pensador do vestígio, se houver um, não terá colocado no centro da sua filosofia, depois do Holocausto, a exigência de “salvar” os desaparecidos pela aniquilação, de reparar o erro absoluto, ou pelo menos de esboçar tal reparação — intrinsecamente impossível — graças a uma sobrevivência textual, construindo túmulos de papel como outros terão feito. É porque, como sabemos, a meditação levinasiana sobre o vestígio se encontra num nível de manifestação completamente diferente: na relação com o Infinito e com o imemoria/l. Isto não significa, evidentemente, dizer que o pensamento do vestígio do Infinito, da experiência do imemorial, não tenha relação com ou seja indiferente à dimensão ética que envolve a questão do vestígio dos desaparecidos e do memorial exigido — mas significa que um desvio é necessário para iluminar este último à luz do primeiro. O próprio Levinas terá muito pouco explicitamente desenvolvido esse desvio. Além disso, é como se os textos levinasianos não só evitassem esse questionamento, mas também mostrassem certa desconfiança em relação a muitos dos temas mais frequentemente associados a ele. Desconfiança levinasiana em relação aos “fantasmas” como “sobreviventes”; desconfiança também em relação às “lembranças” que temos dos desaparecidos. Dito isto, o último Levinas terá, entretanto, elaborado uma “ética do sobrevivente” — num sentido original, que contrasta com a exigência dominante, a do testemunho em favor dos desaparecidos, ao mesmo tempo necessário e de certa forma sempre impossível. E a grande origi48
3.
À Ética como culpabilidade do sobrevivente
nalidade, a singularidade da forma pela qual Levinas entende a ética como “culpabilidade do sobrevivente” está intrinsecamente ligada a essa desconfiança, sempre presente e fortemente fundada em termos filosóficos, que é própria de Levinas, em relação aos “fantasmas sobreviventes” e às “lembranças”, por meio dos quais tentamos manter estes últimos no Mundo. Examinemos esses dois pontos.
3.1. A reserva em relação ao fantasma e à lembrança Por que essa reserva em relação à lembrança? As “lembranças”, os “vestígios”, nesse sentido, pertencem ao horizonte do mundo — preservam os desaparecidos “dentro” da memória e no Mundo. Esses vestígios já estão “congelados” ou “petrificados” — já fazem parte de uma certa ideia do “morto”*”. Para Levinas, a autêntica relação com outrem é uma experiência do rosto de outrem: 1) enquanto “vida viva” vulnerável a se preservar da morte, e 2) enquanto abertura para o além do horizonte do Mundo onde se mostram as substâncias, e mais radicalmente enquanto abertura para o além do ser (des-inter-essamento radical pelo eu que experimenta assim o além do ser na sua própria preocupação pelo ser de outrem). À partir daí, preservar os vestígios sem vida (sem rosto vivo), e, além do mais, “trancando-os” no horizonte do Mundo, utensílios entre os utensílios (lembrança”, assim como se traz uma “lembrança” de um país estrangeiro), ou fechando-os na re-presentação pela memória, tudo isso 54 Assim podemos ler em La transcendance des mots. À propos des biffures: “Palavras desfiguradas, “palavras congeladas' em que a linguagem já está se transformando em documentos e vestígios. À palavra viva luta contra essa virada do pensamento em vestígio, luta com o que está escrito e que aparece quando não há ninguém para ouvir”, in: Emmanuel Levinas, Hors sujet, Montpellier, Fata Morgana, 1987, p. 221.
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A ética do sobrevivente
equivale a colocar duas vezes em perigo a relação autêntica com outrem.” Uma primeira vez, não mais se colocando na relação com o rosto vivo e vulnerável; uma segunda vez, ao tentar se conservar no Mundo, e mais radicalmente no ser, o que, pelo contrário, requer a abertura para além do ser, a travessia para além de todas as lembranças (como coisas ou como representações) em direção a um Imemorial que jamais terá se deixado encurralar pela presença. Encontramos essa reserva muito explicitamente formulada na crítica levinasiana (à qual voltaremos) do “cuidado com outrem” como Heidegger a formula em Sein und Zeit: “Cuidado Essa ideia surge frequentemente nos escritos de Levinas: a palavra viva, logo que se retira, só ficando o vestígio escrito, permanece “congelada”, volta-se para os mortos; é assim como o rosto que se torna máscara, sempre máscara de morte, quando ele é considerado em suas características objetivas e mundanas. Por isso, entendemos que Levinas valoriza concomitantemente aquele que vive e que valoriza a vida; mas o que torna realmente vivo (um rosto, uma palavra) não é certamente sua presença “objetiva”, sua presença enquanto “coisa”, mas, muito pelo contrário, é o ir adiante de qualquer presença, para além de qualquer presença, que então acontece. À reserva “aos vestígios e documentos” que encontramos em seus escritos deve, portanto, ser bem compreendida: sem dúvida, trata-se de uma reserva diante do morto, do inanimado, do resto sem vida, mas esta última não é de modo algum a contrapartida de uma nostalgia do “presente” em oposição ao “passado”, nem mesmo simplesmente do Npréz sente vivo” de uma vida orgânica ou de uma consciência (que esteve viva na tensão de seu fluxo) — ainda modos de presença (que deve se romper); o que se terá feito “presença” terá sido precisamente a “lacuna” para além de qualquer presença (pelo menos de qualquer “presença constante” e garantida): travessia para além do ser, imemorial, diacronia... Aqui se impõe uma das mais férteis ambiguidades, e também das mais notáveis, do pensamento levinasiano: Levinas quer, ao mesmo tempo, passar radicalmente para além de qualquer presença (de objeto, de representação, de vida, de vida até mesmo da consciência, no sentido de um tecido de intencionalidades) e ele tende a chamar de “presença” esse “fazer presença” da experiência ética para além de todas as presenças no Mundo: radical não-presença (no sentido da mais extensa ontologia) que se diz, contudo, como a própria “presença”, o fazer presença da experiência ética, é verdade, na experiência da vulnerabilidade do rosto vivo, que pode morrer. 55
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3.
A Ética como culpabilidade do sobrevivente
certamente assegurado, mas condicionado pelo ser no mundo; aproximação de outrem, com certeza, porém, a partir das atividades e do trabalho no mundo, sem encontrar rostos, sem que a morte de outrem signifique ao ser-as, ao sobrevivente mais do que emoções e comportamentos funerários e lembranças.” Um outro texto, escrito trinta anos antes, mostra a mesma desconfiança ao esclarecer sobre outros aspectos da questão. Esse texto, pronunciado no College Philosophique criado e promovido por Jean Wah], constitui uma primeira versão de um importante capítulo de Totalidade e Infinito, o capítulo sobre a “separação””?, Ora, nas últimas páginas desse texto haverá muita discussão sobre a “morte do outro” e o “tempo do sobrevivente”, um tempo que foi então identificado de forma exemplar como tempo da história, tempo do historiador. Não se pretende aqui dar conta em detalhe das nuances extremamente ricas dessas descrições. Conservaremos aqui apenas o que diz respeito, mais precisamente, à desconfiança levinasiana em relação às “lembranças”. Como sabemos, nesse momento da sua obra, Levinas insiste muito particularmente sobre o caráter decisivo e absoluto da separação, por meio da qual a subjetividade se subjetiva como poder “de se colocar à parte”: colocar-se à parte do Mundo (para poder melhor manter uma relação com ele). A subjetividade é apenas isto — legítima 56 Em Emmanuel Levinas, Mourir pour... (Conferência proferida em 1987), in; Entre nous, Essais sur le penser-à-l'qutre, Paris, Grasset, 1991, p. 204-214. Note-se o uso do restritivo que indica claramente a insuficiência das “emoções funerárias e das lembranças”, senão seu poder negativo de ocultamento — de esquecimento — do que realmente importa. 57 Ver Emmanuel Levinas, La séparation, in: Euvres completes - Parole et silence et autres conférences inédites au Collêge Philosophique. Rodolphe Calin, Catherine Chalier (ed.), Paris, Grasset, 2009, tome 2, p. 259-289. Ver Emmanuel Levinas, Totalité et Infini. Essai sur Vextériorité, La Haye, Martinus Nijhoff, 1961, p. 26 e seguintes acerca deste assunto.
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A ética do sobrevivente
separação —, pela qual ela se excetua de certo ponto de vista do horizonte espaço-temporal mundano: ela não se deixa capturar nas conexões entre as coisas na espacialidade, nem no tempo do Mundo. Como psiquismo, o sujeito não se deixa situar entre coisas e utensílios, nem se deixa recapitular no tempo “objetivo” do Mundo, mensurável, cujos acontecimentos são sempre ainda pontos identificáveis num horizonte comum pelo historiador. É somente sob a condição da separação que resiste a sua reapropriação, sua imersão na totalidade, é somente assim que há não só sujeito — hipóstase e psiquismo —, mas também pluralidade irredutível (uma socialidade não integrável numa totalidade). Assim, se o “tempo do sobrevivente”, o tempo da história escrita pelo historiador, integra a vida dos desaparecidos na totalidade “objetiva” de um tempo impessoal que reúne a presença do Mundo na continuidade de uma “história”, então, paradoxalmente, mas de forma coerente, ele será a anulação da separação que constitui o “si”. Levinas não escreve isso tão explicitamente, mas compreende-se que a escrita da história dos desaparecidos por meio do “sobrevivente” (o historiador, nesse caso), se ela equivale a reabsorver a separação radical que terá tornado possível e instituído cada si vivente, será a pior das supressões. Acima de tudo, é preciso não acontecer que “o tempo de um desemboque no tempo do outro”, e que, ao acreditar que estou preservando a vida de outrem, integrando-a no “meu tempo” (na consciência e na lembrança), e, pior, em certo sentido, no “tempo histórico” (narrado pelo historiador), eu chegue a abolir a vida de outrem, ao absorver a “separação”. Nessas páginas em que Levinas enfatiza a “separação” e a valoriza, pelo mesmo movimento ele também valoriza as noções de “intervalo” e de “segredo”. Na medida em que me separo,
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3.
A Ética como culpabilidade do sobrevivente
permaneço irredutível e legitimamente opaco à luz do Mundo; na medida em que me separo, minha vida como intervalo entre nascimento e morte não é integrável nem ao tempo comum, ao tempo social, nem ao tempo das coisas. Aliás, o importante, o autêntico da minha morte, não é que ela seja recolhida a partir do exterior pelo “sobrevivente” (o historiador), integrada por ele no seu tempo de consciência e, finalmente, no tempo do mundo e da história. O que realmente importa é que minha morte, em certo sentido, confirme a separação: minha morte, como interrupção radical, revela meu nascimento como um começo radical (e não como um ponto na linha do tempo histórico), ela revela, por assim dizer, retrospectivamente, que o intervalo de minha vida na sua separação foi, em certo sentido, um absoluto que não se pode suprimir.”** Como sabemos, Levinas insistiu muitas vezes nisso, contra Heidegger, que a morte não é a “possibilidade da impossibilidade”, mas a “impossibilidade da possibilidade”. Trata-se, em particular, de sublinhar desse modo que a morte como interrupção da minha vida não abre o Assim, nestes textos Levinas valoriza a figura de Giges, ao contrário do que acontecerá em De outro modo que ser ou para lá da essência (op. cit., capítulo 5, 2, c) onde se trata, ao contrário, de descrever uma subjetividade “sem segredo” como “testemunho do Infinito”. Aqui, porém, não desenvolvemos esse ponto. Vamos apenas salientar que não há, é claro, nenhuma contradição, para além das diferenças de ênfase, seguindo as fases da obra consideradas, entre o segredo legítimo da subjetividade em sua separação e a ausência do segredo radical da subjetividade em sua relação com o Infinito, testemunhando em favor do infinito — não sendo nada além do testemunho do infinito (o “de” dizendo mais ainda o genitivo subjetivo do que o genitivo objetivo). 59 O “psiquismo” na sua separação é, nessa conferência, frequentemente descrito como “memória”. Mas entendemos que não se trata, sobretudo, de uma “memória” de “representações” participando da construção da presença do Mundo, mas, pelo contrário, da memória como espessura própria do psiquismo, interioridade, a única capaz, pelo menos nessa descrição, de converter o nascimento no radical “começo” desvinculado da “data de nascimento” no tempo objetivo. 58
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A ética do sobrevivente
possível da existência, mas, precisamente porque ela interrompe, ela confirma retrospectivamente o triunfo sobre o tempo
portanto, sobre a morte como evento “objetivo”) da vida separada, absoluta, não suprimível, do si. Essa observação nos leva a uma outra razão — relacionada — da reserva levinasiana acerca do tema da “sobrevivência” que encontramos neste texto. Se a figura do “sobrevivente” identificado ao historiador é tratada com grande cautela pelas razões acima mencionadas, a figura do “sobrevivente” como sobrevivente em certo sentido à sua própria morte (e não a de outrem), o é provavelmente ainda mais. À “sobrevivência” é, então, identificada como a impossibilidade de morrer. O aterrorizante do morrer, o que dá seu conteúdo de sentido à própria noção de “morte” e ao seu caráter aterrador, é isso, é o “morrer que não se acaba”. À morte aterradora é aquela que consiste “em viver sua morte”º, segundo uma descrição proposta por Blanchot. Há uma espécie de cruzamento descritivo e teórico no pensamento de Levinas que, embora por vezes seja difícil acompanhar, se caracteriza por sua coerência e ousadia: se a morte realmente, como interrupção, confirma retrospectivamente o caráter absoluto da minha vida (em seu intervalo separado), então somente aquilo que tem o poder de realmente morrer, de se interromper radicalmente, terá vivido realmente, absolutamente, uma vida que, em retrospecto, é “triunfo sobre a morte”. Por outro lado, não chegar a morrer, a se interromper realmente, implica e significa (e,
60 Vera conferência La séparation: “O morrer é angústia porque o ser, morrendo, não se termina ainda que se terminando. Ele não tem [e não há] mais tempo, isto é, ele não pode mais levar seus passos, a lugar algum, e, contudo, não pode sequer perceber o vazio ou o nada — então ele vai lá, onde não se pode ir, sufoca, mas eternamente em seu presente; ele vive sua morte.”, in: Emmanuel Levinas, Parole et silence et autres conférences inódites au Collêge Philosophique, ob.
cit., p. 288.
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3. A Ética como culpabilidade do sobrevivente
retrospectivamente nunca ter estado realmente, autenticamente, absolutamente, vivo. E por isso que a morte, como experiência terrível, é precisamente impossibilidade de morrer, um “viver sua morte”, uma agonia indefinida. Desse ponto de vista, os “mortos”, enquanto sobrevivem, eles sofrem (nos dois sentidos do termo). O “sobrevivente”, enquanto considerado agora uma espécie de “espectro” ou “fantasma” que assombra o mundo dos vivos, de certa forma realiza a pior das experiências da morte, aquela pela qual, longe de estabelecer a interrupção radical (a interrupção que participa do legítimo trabalho de separação que confirma a vida de uma pessoa viva), a morte equivale a viver indefinidamente a impossibilidade da interrupção radical, da separação. Assim, se é necessário ajudar os espectros, não é para “sobreviver”, mas, ao contrário, é para acabar realmente, para realmente morrer.ºº Não insistiremos sobre isto aqui — isto tem sido frequentemente observado e comentado — que a figura do “espectro” está associada, no caso de Levinas, ao 1/ y a, posto que de fato, o i/ y a designa um existir bruto, neutro, sem orientação ética, um “zumbido” indefinido, incessante, do ser, quando, neste último, nenhum ser consegue subsistir: teia anônima da existência da qual nenhuma hipóstase é arrancada, em que nenhuma substância é individualizada — a pior versão do ser, em que nada realmente existe; em que, particularmente, nenhum siº se separa, nem começa, nem termina.º“* Nenhum “soi” existe ali realmente — com uma vida plena e realizada Aqui não vamos examinar a comparação com a descrição do tratamento derridiano, de muitas maneiras diferente, ou até mesmo oposto, das razões do espectro e da sobrevivência. 62 Destaque nosso (N. do T.). 63 Ver em particular Emmanuel Levinas, De /'existence à lexistant, Paris, Vrin, 2004, p. 100 e seguintes. 61
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A ética do sobrevivente
vida que será condição de possibilidade para a experiência ética do rosto de outrem: para se expor ao para além do ser, é necessário ainda ter tido “de antemão” a força e a capacidade de existir realmente, de individualizar-se numa vida separada. A “sobrevivência” do “sobrevivente” como “espectro” sanciona e significa o que nunca terá sido senão uma meia-vida, e consiste na pior das versões da morte, naquela em que o “viver sua morte” e a “impossibilidade de morrer” se equivalem. Assim, a desconfiança de Levinas em relação aos “sobreviventes” e às “lembranças” se desenvolve em dois níveis: 1) desconfiança em relação ao historiador como um “sobrevivente” que absorve a separação e integra a vida de outrem ao mundo (apagando tanto a separação radical que realiza essa vida, quanto a abertura para o além do ser, que esta última, a separação, também permite); e, 2) ainda mais radicalmente, desconfiança em relação aos espectros, terríveis habitantes do i/ y a, aquém mesmo do Mundo. —,
3.2. A culpabilidade do sobrevivente Dito isto, é, no entanto, verdade que em sua última fase Levinas se propõe cada vez mais a identificar a experiência ética como “morrer por outrem”, e o “sujeito” da experiência ética como “sobrevivente” (à morte de outrem). Sabemos que em Sein und Zeit, Heidegger descreve o Dasein, o ser-aí do existir humano ipseizado num sentido radicalmente não-ôntico ou não mundano, como aquele em que em seu ser está em jogo o seu próprio ser, e que se ipseíza na “minhidade”*? (Uemeinigkeit) e autenticidade (Eigentlichkeit) como relação com 64
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Singularidade do seu próprio eu (N. do T.).
3. A Ética como culpabilidade do sobrevivente
sua própria morte, com sua mortalidade (e não com o evento mundano) — sua mortalidade assim descoberta como sua própria possibilidade (de ser humano e ipseizado). Trata-se aí de uma relação de coragem solitária na angústia: o si se ipseíza na solidão. Assim, o “ser-para-a-morte”, segundo Heidegger, é, pelo mesmo movimento, “ser-no-mundo” (In-der-Welt Sein); o “mundo” que não é um supercontêiner, mas é aquilo que o Dasein habita; o Dasein sempre já fora de si mesmo, em relação com um “mundo” ou com “mundos”. E no mundo, de acordo com Heidegger, eu encontro “outrem”. O Mitsein, o ser-com é, por assim dizer, uma estrutura fundamental do Dasein (ver parágrafo 26 de Sein und Zeit). E no parágrafo 47, Heidegger refere-se ao sterben fiir, ao morrer-por-outrem. Mas não se trata de modo algum da experiência originalmente constituinte (que é aquela, absolutamente solitária, do ser-para-a-morte, para o Dasein); e, aliás, interessando-se pelo “morrer por” outrem, Heidegger observa que outrem nunca é aliviado de sua própria morte, de sua mortalidade (mesmo que se possa protegê-lo, preservá-lo, adiar a morte de outrem): “ninguém pode tomar de outrem seu morrer”. “Eu” morro sempre só. Em Mourir pour...*, Levinas entra em discussão com Heidegger a fim de estabelecer que a experiência de outrem é mais originária e constitutiva do que o ser-para-a-morte solitário de um Dasein que é apenas preocupação, preocupação pelo ser (e pelo seu ser). Não vamos nos surpreender muito com isso. Mas devemos enfatizar que para Levinas não se trata apenas de colocar a experiência de outrem no lugar da experiência da mortalidade para o sujeito; trata-se de substituir esta última pela experiência de outrem em seu morrer. E tal experiência do 65 Emmanuel Levinas, Mourir pour..., in: Entre nous, Essais sur le penser-àVautre, op. cif., p. 204-214.
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3. A Ética como culpabilidade do sobrevivente
A ética do sobrevivente
morrer de outrem constitui o si que se decide então enquanto sobrevivente. O “sujeito” desta experiência — da qual “eu” não sou precisamente o “sujeito” já que ela me despoja de todos os meus poderes como sujeito — é a testemunha. Na relação com o morrer de outrem, todos os meus poderes desmoronam; só resta um, um “poder” que dificilmente é um, porque não é o meu (porém, vem a mim a partir do outro; mas é tal que nele o “eu” vem, e vem a si mesmo a partir do absolutamente outro): testemunhar. O sobrevivente, a testemunha. Em certo sentido, sobreviver é testemunhar, e vice-versa. Também podemos considerar que: 1) Levinas conota negativamente a figura do sobrevivente, no sentido do ser que sobrevive à sua própria morte, o espectro; 2) que ele também avalia negativamente o sobrevivente, no sentido daquele que tende a integrar a vida do sujeito desaparecido no tempo do mundo e da história (o “historiador”), e que, no entanto, 3) no final de sua própria vida, ele chegará a fazer coincidir a experiência ética no que ela tem de mais radical com a experiência do sobrevivente à morte do outro como “testemunha” (e não como o “historiador”, que se dá o poder de integrar o tempo do outro no tempo comum, no tempo da história). Tentemos explicar esse deslocamento — que não é nenhuma inconsequência e muito menos negação. Muito claramente, em torno da segunda grande obra, De outro modo que ser ou para lá da essência (1974), sobretudo, e cada vez mais nos textos subsequentes, Levinas “dá cor” à experiência ética sobre a qual nunca deixou de meditar de modo singular: a interpelação pelo rosto de outrem vai cada vez mais se fazer como interpelação pela mortalidade que, literalmente, o rosto expõe. Como sabemos, o rosto, por sua vulnerabilidade, por sua nudez, segundo as descrições levinasianas, desperta, ao mesmo tempo, 58
interdito que golpeia tal pulsão. A experiência do rosto vai ao ponto de reverter a pulsão de assassinato numa injunção de cuidado e preservação. Ora, no último a pulsão do assassinato e o
período da obra levinasiana, a vulnerabilidade torna-se mais precisa (ela tira todas as consequências a partir de si mesma, se assim se pode dizer) como mortalidade; da mesma forma, a injunção de preservação e cuidado que ela suscita torna-se mais precisa como um “preservar da morte”, um “subtrair outrem à morte”,
Tratar-se-á de tomar para si a própria morte de outrem, de se substituir a outrem (e já não somente para responder à injunção sobretuque ele é): “e” tomo para mim o mal feito a outrem, e do o mal cometido por outrem, seus pecados, mas também seu sofrimento, em última instância seu “morrer”, Que significa isso? Dois contrassensos devem ser evitados. Levinas, obviamente, não endossa a ingenuidade de afirmar que haveria de se pretender aliviar outrem de sua mortalidade. (Heidegger tem razão, é claro, num certo sentido “eu” morro sempre só). Levinas também não
indica nada como tratasse de empatia” ou simpatia, que seria basicamente ainda, e sempre, um poder do sujeito. Haveria um “sujeito”, que teria um “poder”: o de se colocar no lugar de outrem, de tomar para si seu sofrimento, sua angústia, seu morrer; ou ainda o de “mimetizá-los” em si mesmo, etc. Levinas insiste, com frequência, que o imperativo ético de responder ao mandamento (a experiência de outrem) não provém, de modo algum, de um processo psicológico de empatia ou de simpatia.”
se
66 Ver L'Einfiblung, tal como a partir de T. Lipps diferentes fenomenólogos a têm pensado e descrito. 67 No curso La mort et le temps (1975-1976) (in: Dieu, la mort, et le temps, mandamento op. cit., p. 49), ele até escreve — já que radicaliza a resposta ao dor sofrer a e compaixão, por outrem outrem: “Simpatia a em substituição ou “morrer mil mortes" pelo outro, têm como condição uma substituição mais radical a outrem”.
E
A ética do sobrevivente
3. A Ética como culpabilidade do sobrevivente
O que significa então “morrer por outrem”? Significa precisamente um movimento de des-infer-essamento absolutamente radical: eu posso sacrificar-me por outrem (por ti e para ti). É o morrer por outrem que diz em última análise a experiência radical da ética. E trata-se talvez do próprio amor como des-inter-essamento de si, que não é sequer o interessamento por (outra entidade), mas o abandono de qualquer estrutura de interesse na relação com outrem. O amor se realiza em “morrer por”. Ele “consegue” isso como des-interessamento radical do si arrancado dele próprio, mesmo que necessariamente ele fracasse do
ponto
de vista de outrem: outrem morrerá, mais cedo ou mais tarde. Claro que posso sacrificar-me por outrem no sentido de que posso morrer no lugar dele nessa ou noutra ocasião, mas é claro que não
posso poupar outrem de sua mortalidade, de seu morrer. O “morrer por” realiza bem, de fato, a estrutura do des-inter-essamento radical no que diz respeito ao sujeito que se sacrifica; mas do ponto de vista de outrem, meu sacrifício será sempre, estruturalmente, insuficiente; necessária e inevitavelmente, deixarei de preservar outrem, em termos absolutos — deixarei de preservá-lo da própria mortalidade. E qualificar o “sujeito” da ética como sobrevivente (i.e., sobrevivente da morte de outrem) significa precisamente formular esse fracasso necessário e estrutural. Algumas observações podem ser feitas aqui: 1) É no momento de um certo tipo de saída do ser — a morte de outrem é uma maneira pela qual outrem “sai” do ser (mas, então, é preciso que ele morra realmente; que ele não seja prisioneiro do morrer indefinido dos espectros, como o sublinhamos...) — a saída do ser, enquanto a própria “ética”, qe se realiza para o “sujeito” da experiência ética. É por isso que, ainda que Levinas partilhe, claro, a lucidez heideggeriana a um certo nível de descrição — “eu” morro sempre só; “ninguém 60
tirar
de outrem seu morrer” —, ele chega a pensar, no entanto, o momento da morte de outrem como uma relação, uma ligação com outrem. Pois, é 70 ser que se morre sempre só. Mas se a morte pode, de certo ponto de vista, ser basicamente um modo de experiência do estar fora do ser, então acontece no morrer de outrem a própria relação com outrem.º* Assim,
pode
Levinas propõe uma interpretação singular de uma passagem bíblica, Samuel 2,1-23, em que descreve a morte na batalha do rei Saul e de seu filho Jônatas.ºº Estes se “reencontram” na própria morte. Levinas descarta, então — em completa coerência com sua desconfiança de qualquer figura de um ser para além (ocultando o para além do ser) — a ideia de uma imortalidade da alma e/ou de um ser após a morte. Ele comenta a frase que diz do rei e de seu filho, que eles “[...] não foram separados pela morte, mais leves que as águias, mais fortes que os leões”, nos seguintes termos: é fazendo-se “mais leves que as águias e mais fortes que os leões”, ou seja, é escapando da animalidade, da animalidade que, aqui, será exemplar do conatus essendi, que os dois homens, sacrificando-se um pelo outro, e pelos outros, vencem a morte, em certo sentido. Morrer por outrem, sacrificar-se, é aqui o mais radical do des-inter-essamento. Longe de confirmar o ser como um ser depois-da-morte, a morte como morte para outrem atravessa além do ser: o morrer-por como realização da ética. Aqui se encontra uma realização positiva do “morrer por”. Não é, portanto, “no horizonte do mundo”, entre os “utensílios” que fazem sentido “referindo-se à”, que a experiência ética se 68 “Como se, ao contrário da análise heideggeriana, na morte não se dissolvesse toda a relação com outrem”, em Mourir pour..., em Entre nous, Essais sur de penser-à-l'autre, op. cit., p. 228. 69 JTeid.
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3. A
A ética do sobrevivente
realiza, e, portanto, também não entre os índices, os vestígios e memoriais — ou, nunca primeiro ali — nem no imperativo da “sobrevivência”, pois a sobrevivência ainda é vida como interessamento por si, do ponto de vista do sujeito”, e/ou a já terrível modalidade do espectro — que a experiência ética se realiza para além da vida interessada em si. À abertura para o além do ser na experiência de outrem vem, portanto, num certo sentido, a se cristalizar no sacrifício por outrem, no último Levinas.”* 2) Isto nos leva à redefinição — em alguns aspectos surpreendente — da ética, pelo último Levinas, como “culpabilidade de sobrevivente””??. Tal fórmula deve ser utilizada com muitas 70 Ou então na sobrevivência do outro, como ela é para mim desinteressamento por mim mesmo; mas então, não é a sobrevivência do outro que deve ser preservada, num sentido, certamente não — se a sobrevivência é então uma modalidade do espectro —, o que deve ser preservado é a vida propriamente viva do outro. Se quiséssemos conservar o termo “sobrevivência” para significar a vida vulnerável do outro a ser protegida, então teríamos que ouvir o “sobre” da “sobrevivência” como uma intensificação; o que, ao que parece, Levinas, ao contrário de Derrida, não fez. 71 Fazemos referência ao livro de David Brézis, Levinas et le tournant sacrificiel, Paris, Hermann, 2012. Este livro concede um peso decisivo à experiência de sobrevivente do homem Levinas (cuja família inteira que vivia na Lituânia foi exterminada) na constituição de sua obra filosófica. Ele parece formular a hipótese de que podemos ler a sequência dos diferentes momentos da obra filosófica levinasiana como traduzindo a forma pela qual Levinas não cessou de lutar contra os espectros: exigindo não os deixar regressar (por exemplo, como acontece em De existence à lexistant), parecendo alcançar tal objetivo em Totalidade e Infinito, terminando por abandonar, e aceitando no final que sua ética fosse culpabilidade de sobrevivente e que a sua obra disso fosse o testemunho. Como veremos mais adiante, propomos outra hipótese de leitura que, sem diminuir de forma alguma a experiência vivida pelo homem Levinas, tenta pensar no estatuto da coloração sacrificial que sua ética assume nos últimos textos de forma estritamente imanente ao filosofar levinasiano como 72 No curso La mort et le temps (1975-1976) (In: Dieu, la mort, et le temps, op. cit. p. 21) Levinas escreve: “Esta é minha afeição pela morte de outrem, minha relação com sua morte. Ela é, na minha relação, minha deferência para com alguém que já não responde, ela já é uma culpabilidade — uma culpabili-
tal.
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Ética como culpabilidade do sobrevivente
precauções. Em Sans nom, Levinas faz uma menção, a título autobiográfico, do que se pode identificar como um sentimento de culpabilidade: “A morte, sem dúvida, anulará em breve o privilégio injustificado de ter sobrevivido a seis milhões de mortos.””3 Esse sentimento, em sua dimensão psicológica, mundana, contou, com toda certeza, infinitamente na vida do homem Levinas; dispomos, porém, de poucos vestígios escritos desse ponto de vista. E não vamos tentar especular aqui sobre o que Levinas sentiu intimamente. De um ponto de vista filosófico (sem ignorar, mas sem pretender explorar aqui a porosidade entre uma vida e uma filosofia), propomos a seguinte interpretação. Por que a experiência ética vem a coincidir com a experiência da “culpabilidade do sobrevivente”? Para Levinas, viver, existir, se manter no ser, no esse, já é, sempre, de certo ponto de vista, prejudicar outrem, pois é não se des-inter-essar; já que ocupar “um lugar ao sol” será sempre ocupar um lugar que outrem poderia ter ocupado, com tanto direito quanto eu ou com tão pouco quanto eu:”* estamos aqui ao nível do fato da existência, interessamento primordial, aquém de qualquer direito e de qualquer legitimidade... Portanto, a responsabilidade é, em termos dade de sobrevivente” e “Outrem me diz respeito como um próximo. Em toda morte é acusada a proximidade do próximo, a responsabilidade do sobrevivente, responsabilidade que a aproximação da proximidade move ou comove” (Ibid., ética p. 26). Estas formulações são emblemáticas da forma como a experiência é aplicada e, de certo modo se radicaliza no últimíssimo Levinas; são significativas mesmo na “mudança”, que apontamos em itálico, a qual parece colocar em equivalência “culpabilidade” e “responsabilidade”. Desenvolveremos isto
imediatamente a seguir, Emmanuel Levinas, Noms propres, op. cit., 1987, p. 142. 74 Ou melhor, sempre absolutamente mais do que eu, porque, do meu ponto de vista, do ponto de vista do sujeito da experiência ética, a existência, o viver de outrem, tem prioridade absoluta.
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A ética do sobrevivente
estritos, sempre indistinguível da culpabilidade, em Levinas. Parece-nos, desse ponto de vista, significativo que este último cite muito frequentemente, como sabemos, a famosa frase de Dostoievski em Os irmãos Karamazov: “Somos todos culpados de tudo e de todos diante de todos, e eu mais que os outros”, primeiramente: apresentando-a como uma formulação do “coração” de sua filosofia; e em seguida: “traduzindo” o russo, por “responsável” e por “culpado” — indiferentemente. Parece-nos que não se trata de modo algum de uma hesitação ou de uma imprecisão conceitual, nem apenas de uma questão de tradução do russo, mas que a filosofia de Levinas converte sempre a responsabilidade em culpabilidade. Assim, e para dizê-lo precisamente, é quando a experiência de outrem se “focaliza” na experiência da mortalidade de outrem, se reúne e se concentra nessa dupla experiência de “morrer devido a outrem” e “morrer por outrem”, que, então, a outra face do “morrer por” se revela. Por trás da realização, do “êxito” do desinteressamento radical, do sacrifício, aparece o fracasso inevitável: nunca vou salvar outrem de sua morte, de sua mortalidade. Se eu a testemunho, se a testemunho por Outrem que esteve vivo, é porque estou vivo quando ele já não está mais vivo, isto é, estruturalmente sobre-vivendo (à morte do outro), fracassando necessariamente em salvar o outro da morte, falhando em sudstituir-me a ele até trazer para mim sua morte enquanto tal, seu morrer;"* portanto culpado (de não ter podido absolutamente salvá-lo). Minha 75 O que faz Cristo — que promete a ressurreição dos corpos a partir de sua própria ressurreição. Essa dimensão da problemática impede, portanto, que a problemática da substituição levinasiana — a ética como substituição a outrem, mesmo no seu próprio morrer — seja por completo desdobrada integralmente no modelo crístico.
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3.
A Ética como culpabilidade do sobrevivente
responsabilidade já terá sempre fracassado, já terá sempre se transformado em culpabilidade (minha resposta, nesse sentido, estará sempre em falta).”é
76 Entendemos que, à medida que a experiência ética do “questionamento” do meu ser por outrem se radicaliza como substituição a outrem, a exigência de preservar a vulnerabilidade de outrem se radicaliza como exigência de substituição a outrem até mesmo em seu morrer, como exigência de sacrifício. E como não posso poupar outrem de sua morte, então, esta morte é minha culpabilidade. No entanto, Levinas chegou a escrever (sublinhamos com itálico): “[...] irmão de outrem, e, na fraternidade, imediatamente responsável por outrem, não-indiferente à mortalidade do outro, acusado por tudo, mas sem qualquer culpabilidade de que se lembre e antes de ter tomado qualquer decisão ou praticado qualquer ato livre e, consequentemente, antes de ter cometido qualquer falta da qual teria resultado esta responsabilidade, responsabilidade de refém até à substituição por outro homem” nas Notes sur le sens (1979), in: De Dieu qui vient à Pidée, Paris, Vrin, 1986, p. 255. Nesta conferência, que também pertence ao último período da obra, Levinas aborda os mesmos temas nos mesmos termos — excetuando o fato de que ele insiste na ausência de culpabilidade e na ausência de falta, No entanto, não há ali qualquer contradição. É claro que é necessário insistir nessas formulações sobre “sem culpabilidade de que se lembre” e sem falta cometida. A responsabilidade em questão é “sem falta” e “sem culpabilidade” se, segundo o procedimento judicial do tribunal, se procura imputar uma falta “objetiva” a um sujeito livre e responsável preexistindo à culpabilidade que nele possa ser reconhecida. Mas para Levinas, muito precisamente, trata-se de descrever uma falta não atribuível objetivamente, já constituindo o si que faz a experiência ética, algo como uma dívida original inextinguível e estruturante para um si que surge
nessa mesma experiência: eu já terei sempre, e estruturalmente, fracassado em salvar outrem da morte, do morrer (e não nessa ou naquela outra ocasião, que poderia constituir uma falta “objetiva”). Sentimento de culpabilidade, “má consciência” escreve Levinas, Estas expressões tornam claro que a responsabilidade já revertida em culpabilidade é imputável sem falta objetiva, não é culpabilidade por “isto” ou por “aquilo”. Mas, ainda que se trate, em certo sentido, de um sentimento, isso não induz, de modo algum, um pouco de realidade — como se, por exemplo, eu, percebendo que não tivesse realmente cometido nenhuma falta “objetiva” para com outrem, pudesse me “curar” e me sentir melhor! Pelo contrário, segundo Levinas, essa “doença” é a própria ética como a dimensão mais radical do existir humano, “por outrem até o morrer” constituindo a ipseidade do si.
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A ética do sobrevivente
3.3. Observações finais Assim, Levinas sempre desconfiou dos espectros sobreviventes, sempre formulando a ética como tarefa de acabar com o zumbido anônimo da sobrevivência desses fantasmas, já que esta última não é senão uma agonia indefinida. Assim, Levinas desconfiou sem cessar da figura de controle que é sobrevivente (à morte de outrem) como historiador — controle e poder de integrar pela representação ao “presente” do Mundo, ao longo da história; assim ele desconfiou dos “documentos” e “vestígios”, dos “memoriais”, coisas no mundo e coisas sem vida: a interpelação ética somente surge da única vida que pode legitimamente reivindicar proteção e preservação, a vida viva do outro, a vida viva do outro que inverte minha vida viva, meu conatus, abrindo-me, assim, para além do Mundo e do ser; interpelação radical como vulnerabilidade e mortalidade que nos obriga a agir agora Oo
e
para o amanhã.
Finalmente, o último ensinamento de Levinas, que se cristalizou nos últimos anos de sua vida: a experiência viva da culpabilidade do sobrevivente, simultaneamente e sem qualquer contradição, frustra e cumpre a experiência ética, a experiência do “amor sem concupiscência” ”7 77 Estamosmuito longe do trabalho de luto, no sentido de Freud. No trabalho de luto, para o sujeito interessado em si mesmo, trata-se de uma questão de “cura”, de perseverar na vida (é um trabalho legítimo e necessário!). Trata-se de um “trabalho” sobre a lembrança do outro que desapareceu, graças ao qual, precisamente, aceitamos seu desaparecimento e até nos damos conta de seu cumprimento, de tal forma que podemos nos desligar dele e encontrar outros “objetos” em que possamos investir para continuar a viver (o que trai, traduz, O caráter egoísta desse apego ao outro, como “objeto” de fixação de minha pulsão, ou como facilitador de minha pulsão, mesmo através do trabalho do desejo). Certamente Levinas também explica que é necessário, em certo
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3. A Ética como culpabilidade do sobrevivente
Tentamos mostrar que a experiência de culpabilidade do sobrevivente, além da experiência psicológica e biográfica, é, segundo Levinas, como um “existencial”, uma tonalidade estruturante do existir humano enquanto tal, que seu filosofar, por seus próprios meios, revela. Uma indicação para terminar; uma indicação que pode ser lida em Sans nom: a menção do “privilégio injustificado de ter sobrevivido a seis milhões de mortos” segue-se imediatamente à descrição de outra experiência radical, aquela que aconteceu como uma interrupção radical do sentido, de todos os significados (social, cultural, jurídico e legal, da própria justiça), entre 1940 e 1945. Uma experiência terrível e aterradora tendo função de épochê: “Interregno ou fim das instituições ou como se o próprio ser tivesse se suspendido”"*, Em muitos aspectos, a experiência de culpabilidade do sobrevivente ecoa irredutivelmente essa
suspensão, essa terrível interrupção de sentido, que, apesar de todas as sobreposições e restaurações, é, de certa forma, indelével, não cicatrizável. Levinas suportou essa experiência de interrupção do significado, enquanto estava mantido em cativeiro num campo prisioneiros de guerra, agrupado com outros judeus, mas protegido do pior por meio do uniforme francês. Ética do cativo, ética do sobrevivente.”?
de
o desaparecimento do morto (para arrancá-lo da agonia dos espectros), mas é para ele e não para mim, e sobretudo não trabalhando em torno das “lembranças”. 78 Emmanuel Levinas, Noms propres, op. citf., 1987, p. 142. 79 Noquediz respeito à “ética do cativo”, referimo-nos aos Cahiers de capiivité, em Emmanuel Levinas, Cabiers de captivité et autres inédits, op. cit. bem como ao primeiro capítulo deste livro.
sentido, realizar
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À ética do sobrevivente
3.4. Post scriptum As matérias tratadas aqui são muito delicadas. Tornemos clara nossa intenção, mesmo que um tanto sem jeito, sejamos claros quanto à nossa intenção. - Assinalando que Levinas tinha expressado uma reserva em relação à “lembrança”, aos vestígios mundanos e aos memoriais no mundo, e que ele tinha pouco ou nem mesmo pensado num “dever de lembrar”, não quisemos dizer, é claro, que sua filosofia buscou deslegitimar o que está em jogo teórica e eticamente. Mas quisemos assinalar que ela nos convida a inscrever essa profunda e legítima preocupação numa dimensão apresentada como mais significativa, como fonte de sentido — a dimensão da experiência do imemorial, do que destrói o tempo do mundo e da história, - Assinalando que ele não desenvolve em sua obra — ou como sua obra — sua culpabilidade de sobrevivente; que ele não “teoriza” essa culpabilidade em sua especificidade (trata-se da culpabilidade daqueles que sobreviveram ao Holocausto), enquanto as últimas décadas do século XX viram muitos testemunhos de sobreviventes relatando, muito frequentemente, a culpabilidade profunda do sobrevivente, além de várias teorias desenvolvidas a esse respeito. Ao assinalar isto, não pretendemos, naturalmente, dizer nada sobre a intimidade da experiência vivida do homem Levinas. Somente notamos que seu pensamento não consiste diretamente numa meditação sobre o “testemunho impossível” (como falar por aqueles que morreram?, com que direito?, como não trair o caráter indizível do indizível ao formulá-lo?...); que é a partir do coração da ética e, em certo sentido, da realização da própria experiência ética, que deve ser compreendida a “culpabilidade de sobrevivente” que Levinas formula em seus 68
3.
A Ética como culpabilidade do sobrevivente
últimos textos, num sentido independente do seu doloroso itinerário biográfico (e mesmo se, naturalmente, existe uma ligação íntima entre essas duas dimensões*º — uma ligação íntima que não permite, contudo, que esta filosofia seja, totalmente e de maneira causal, derivada da experiência vivida). - Assinalando o tom sacrificial que cada vez mais dá cor às formulações levinasianas da experiência ética, não queremos confirmar que o núcleo da mensagem levinasiana seja que, literalmente, o télos exclusivo de uma vida humana é o sacrifício a e para outrem, que uma vida humana é indigna se ela não se oferecer a este objetivo: o dolorismo e o angelismo se encontram muito distanciados de Levinas! Levinas soube exaltar também a legitimidade do gozo egoísta e “ateu” do Eu, envolvendo-se em sua felicidade absolutamente legítima — e, não é preciso ter e comer o pão para poder até mesmo tirá-lo da boca para dá-lo a outrem? No entanto, esse tom sacrificial torna-se cada vez mais significativo e perfaz, de certo modo, a ética levinasiana, no sentido em que ela designa o ideal regulador ao qual todos os atos éticos são implicitamente medidos; atos éticos que, e Levinas não ignora isto de modo algum, são, na maioria das vezes, modestos e preciosos na sua própria modéstia (longe do heroísmo).
Sabemos que Levinas dedica De outro modo que ser ou para lá da essência “à 80 memória dos seres mais próximos entre os seis milhões assassinados pelos nacional-socialistas, junto aos milhões e milhões de humanos de todas as confissões e nações, vítimas do mesmo ódio do outro homem, do mesmo anti-semitismo”, e que as letras hebraicas que seguem esta dedicatória em francês dizem e preservam os nomes dos mais próximos entre os assassinados.
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4.
Uma
ética impiedosa
Paul Audi se dedica a um estudo minucioso sobre a “compaixão” e sobre todo o predomínio que ela exerce hoje em dia: não é ela o modo dominante da ética e até mesmo da política? Não deveriam toda a ética e a política corretas, dignas de serem expressas, basearem-se na compaixão? Quem se distanciasse, pelo menos no Ocidente, de uma ética ou uma política de compaixão, não seria suspeito ou banido? Ele meticulosamente retira a “raiz” da ideia de compaixão das fontes gregas e cristãs do Ocidente. Resumirei aqui rapidamente: a compaixão é um sentimento e até mesmo uma emoção compartilhada com o semelhante porque é ela afetada ela forja laços, forma pela afeição do semelhante. Como sinto, e comunidade; ela tende a universalizar o comum: sou afetado por você que sente, porque também você é um ser vivo e um ser que sente, como eu. Através desse sentir, acontece uma universalização, por assim dizer, como extensão. Em mim
Num ensaio recente, Lempire
de la compassion*',
tal,
81 Paul Audi, LEmpire Lettres, 2011.
de la compassion,
eu
Paris, Encre Marine, Les Belles
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4. Uma ética impiedosa
A ética do sobrevivente
vida se co-move” para a vida, a vida de uma pessoa viva é reconhecida em outra pessoa viva e, no final, se autoafeta: minha benevolência é a vida em mim que é compartilhada na vida em outrem, auxiliando-se em última instância. Os laços forjados são de fato uma exumação de um “sempre já compartilhado”, de uma comunidade em que o semelhante reconhece o semelhante (somos os dois, ambos, “seres que sentem”, viventes). Assim, o modo indiscutível da ética hoje — pelo menos no Ocidente — seria compassível: a disponibilidade para cuidar diante da vulnerabilidade do outro sensível, que já sofre.ºº Mas minha compaixão por outrem, às escondidas, é a vida em relação à vida, auxiliando-se. Paul Audi começa seu livro com uma reflexão sobre Levinas, que ele cita longamente: A socialidade não é simplesmente o fato de sermos muitos. Não é a multiplicidade humana que faz a socialidade humana, é uma estranha relação que começa na dor, na minha, em que apelo ao outro, e na sua dor que me perturba, na dor do outro que não me é indiferente. É o amor do outro ou a compaixão. O fato de que outrem pode se afetar pelo sofrimento de outrem é o grande evento humano, o grande evento ontológico.** Seguindo a mesma direção que Paul Audi, podemos notar que Levinas também escreve: “Cuidado com o sofrimento de outrem que, através de crueldades, pode afirmar-se como o próprio núcleo da subjetividade humana a ponto de se encona
82 Hiífennosso(N.doT). 83 Suspendo aqui a questão da extensão do círculo dos “semelhantes” — ela se limita a nós, seres humanos? Envolvem necessariamente todos os seres sensíveis? Todos os vivos? 84 Emmanuel Levinas, Une éthique de la souffrance, in: Autrement, Série Mutations, n. 142 (Souffrances), fev. 1994, p. 133-135 e p. 135.
72
trar elevado
a
um supremo princípio ético — o único que não
é
possível contestar — [...]”*. Para dizer a verdade, Paul Audi se surpreende. Ele se surpreende particularmente com o fato de que Levinas tome a
compaixão e o amor como sinônimos, muito precisamente porque o amor não é amor ao semelhante, equalização de um ao outro, por exemplo, na vida compartilhada, mas sempre amor como des-inter-essamento de si em direção à alteridade de outrem experimentada como o próprio inassimilável, excesso de tudo “em comum” de qualquer “medida comum”. Ele se surpreende ainda mais porque sabe muito bem e nos lembra que, se Levinas pode ser apresentado como um pensador do amor, é exatamente porque ele radicalizou e ampliou esse excedente do Outro — para além do Ser — sobre o Mesmo. Não tendo o pensamento levinasiano como foco de sua reflexão nesse texto, Paul Audi — depois de ter observado que Levinas, aliás, não tematiza a compaixão em seus grandes textos, especialmente em De outro modo que ser ou para lá da essência, a grande obra mais próxima cronologicamente dos textos citados — tende a diagnosticar que o Levinas que aceita refletir sobre a compaixão quando ele é, por assim dizer, convidado por sua época (a compaixão que, portanto, não seria um dos filosofemas imanentes a seu gesto filosófico), não é, afinal, “exatamente o Levinas dos 'grandes' livros”*, Em muitos aspectos, esse diagnóstico poderia ser radicalizado. À ética de Levinas não somente não é a partilha de algo em comum com meu semelhante, mas nunca é exclusivamente sentimento que relaciona o vivente com o vivente (ou o humano
e
Emmanuel Levinas, La souffrance inutile, in: Entre nous. Essais sur le penserà-l'autre, op. cit. p. 107-120. 86 Paul Audi, LEmpire de la compassion, op. cit., p. 12. 85
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À ética do sobrevivente
com o humano, dependendo da extensão do círculo dos semelhantes que queremos admitir) — ela é sentimento ou afeto diante do mandamento e suscitado por ele: responsabilidade e já culpabilidade (por violar o mandamento). O mandamento do rosto de outrem — isto é, o “grão de loucura” já tendo questionado e aberto uma fissura no Si que o experimenta da forma mais íntima — aterroriza-me e me ordena agir: nada dessa experiência tem a ver com benevolência e simpatia, nem por outrem nem pelo eu que a experimenta; e compreende-se que a noção de “compaixão” terá de ser radicalmente renovada no seu significado no caso de poder ser integrada na economia da intriga ética no sentido levinasiano. De fato, se a piedade é caracterizada como uma espécie de compaixão, e como um grau de grande intensidade da compaixão, deve-se até dizer que a ética de Levinas é absolutamente impiedosa: impiedosa tanto com outrem como com o “sujeito” que a experimenta, Assim, prosseguindo, eu gostaria de: 1) Esclarecer qual é o estatuto dessa ética impiedosa. 2) Defender a hipótese de que, mesmo que só possamos concordar com o diagnóstico formulado por Paul Audi de que a compaixão não se encontra no centro da filosofia levinasiana, segundo o qual ele talvez a evoca apenas por facilidade de linguagem num momento de menor intensidade do seu filosofar, podemos também defender a hipótese (sem, aliás, implicar qualquer contradição) de que Levinas quer subverter o que é mais frequentemente compreendido por “compaixão”, que ele quer “exasperar” a noção de “compaixão”, perturbá-la a ponto de talvez reverter o seu sentido, a ponto de despojar a impiedosa experiência que ela deve esconder, ainda que de maneira distante e sufocada, isso se ainda esta palavra já gasta 74
4. Uma ética impiedosa
contiver um significado ético (no sentido que Levinas compreende a ética). 3) Arriscar uma ou duas hipóteses quanto ao uso que se pode fazer dessa ética impiedosa, insuportável em sentido estrito, em nossa época compassível. Comecemos por considerar o que diz Levinas, ao levar a sério o estatuto de “grande evento humano” ou “o próprio nó da subjetividade”, o estatuto de “evento ontológico fundamental”, “primeiro princípio” e “único indiscutível” da ética, que ele atribui à “compaixão” nos dois textos tardios mencionados acima. Que significado estranho deve assumir a noção de “compaixão” para se revelar como tal? Não se trata de compartilhar o sofrimento de outrem — o que ainda seria: 1) um poder do sujeito, e 2) uma solidariedade com ele no horizonte de algo em comum ou uma comunidade compartilhada. Não se trata mais de um poder do sujeito que “assume para si”; não se trata de um poder de “colocar-se no lugar de outrem”. Recordemos que a “substituição”, no caso de Levinas, não consiste, no sentido literal, em “substituir-se a outrem” para se encarregar de seu sofrimento ou de sua culpabilidade; o que seria o fato de um sujeito pré-existente a essa “ação”. À substituição é a experiência de que sempre o outro já está no lugar, de que o outro está no meu lugar, acusando-me a partir do meu próprio lugar — alteridade da acusação que recai sobre mim no meu mais íntimo: não insisto aqui, mas “meu próprio corpo” está sofrendo somente por estar sendo questionado — corpo no acusativo, encarnação da própria acusação.”
—
“compaixão”
—
87 Nãomealongo demasiado aqui sobre a noção de “substituição”. Digamos simplesmente que se a substituição nunca é um “colocar-se no lugar do outro” no sentido literal do termo, ela significa apenas “tomar sobre si” aquilo que é o fardo do outro (seu sofrimento e sua culpabilidade), na medida em que o outro terá
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4, Uma ética impiedosa
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Continuemos a descrição: A “Compaixão” diz respeito ao des-interessamento radical de um sentimento que nem sequer é, como a Befindlichkeit
sempre questionado meu ser, ocupado meu lugar, como meu remorso e minha culpabilidade: minha consciência é sempre “má consciência”. De certa forma, sempre usurpei o lugar de outrem pelo simples fato de ser, mas o “sempre e já” da minha culpabilidade de ser sempre já terá inscrito o Outro em mim — é aí que reside verdadeiramente a substituição. Mais precisamente, a “substituição” para o Si que o experimenta é kenose de um Si des-interessado, que nada retém é “para o outro”; assim, o Si já é sempre refém do outro — em si mesmo, que não tanto na condição de seu prisioneiro, mas porque está retido em seu lugar; a ponto de que o Si não terá jamais sido para si mesmo seu primeiro habitante: retido no lugar do outro, o Si em sua substituição — sua substituição que não é uma ação, mas uma arqui-suscetibilidade originária, passividade mais antiga que qualquer atividade — é tal que, no fundo, o Outro já está sempre em seu lugar, no seu lugar: tal é o significado profundo da substituição. Note-se que Levinas escreve: “É por causa da condição de refém que pode haver no mundo piedade, compaixão, perdão e proximidade” (e em duas linhas mais abaixo: “A incondição de refém não é o limite da solidariedade, mas a condição de qualquer solidariedade”), em Emmanuel Levinas, Autrement qu'étre ou au-delà de I'essence, op. cit., p. 186. É importante notar aqui que no texto de 1974, em De outro modo que ser ou para lá da essência, Levinas se refere a esta situação arqui-originária do Si, ou melhor, a essa experiência anárquica e, contudo, estruturante (a experiência da própria an-arché), como o “transcendental” (ou o “existencial”) em relação ao qual os comportamentos mundanos que normalmente chamamos “simpatia”, “compaixão” assumem um sentido que se lhes assemelha muito pouco, Desse ponto de vista, o “grande texto” que é De outro modo que ser ou para lá da essência não confere efetivamente um papel estruturante à compaixão enquanto tal, uma vez que a relaciona com o transcendental que a constitui e que ela oculta. Isto está de acordo com a leitura — repitamos — absolutamente convincente — proposta por Paul Audi. Outros textos levinasianos poderiam ser citados para endossar a leitura aqui proposta. Ainda em Emmanuel Levinas, Autrement qu'étre ou au-delàa de Fessence, op. cif., p. 195: “Se a obsessão é sofrimento e “contrariedade”, é porque o altruísmo da subjetividade-refém não é uma tendência, não é benevolência natural das filosofias morais do sentimento.” Num texto do mesmo período, o curso La mort et le temps (1975-1976), em Dieu, la mort, et le temps, op. cit. p. 49, afirma: “Simpatia e compaixão, sentir a dor pelo outro ou “morrer mil mortes' pelo outro tem como condição uma substituição (enfatizamos) mais radical por outrem.”
já
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heideggeriena”º, afeição a si mesmo quando houver afeição ao sofro outro, o que seria ter afeto pelo outro). Certamente não Dito o sofrimento do outro, eu sofro pelo sofrimento do outro. sofrimento isto, é ainda mais importante o fato de que o seu me faz sofrer, mas sem “eu”, sem “ipseidade” anterior a esse sofrimento. Não sou nada mais que este sofrimento, sans moi préalable: sou esse sofrimento que sequer é meu sofrimento (sofrimento em relação ao qual a “minhidade” restauraria um controle, ainda que mínimo), tanto mais que também não é o sofrimento de outrem. Levinas não diz que devo nem mesmo que posso compartilhar o sofrimento de outrem. Ele diz que o sofrimento me questiona e me constitui responsável e culpado por esse sofrimento e, assim, me constitui como sofrimento “diante” desse “sofrimento”, este “diante” revelando-se alojado no meu mais íntimo, como fissura no coração da ipseidade inteiramente constituída como esse próprio sofrimento (e, portanto, como nunca compartilhável do anonimato do qual ele é arrancado). Podemos ver como o sentido mesmo da noção de “compaixão” foi radicalmente renovado. Onde a compaixão é geralmente apresentada como uma atenção benevolente a outrem sensível ao seu sofrimento, capaz de compartilhá-lo, permanecendo amenizado pela serenidade — preocupação com o outro que compartilha e, entretanto, mantém a distância necessária à “atenção e ação para” — ela é aqui apenas sofrimento, obsessão sem distância, e um sofrimento que não é, de certo modo, nem o meu sofrimento nem o de outrem. Estou sozinho, numa solidão que sequer é minha, sou essa solidão como sofrimento. Levinas insiste nisso em várias ocasiões. Ver, por exemplo, Emmanuel 167. Levinas, Entre nous. Essais sur le penser-a-l'autre, op. cit, p. 149, p. 88
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Essa compaixão levinasiana, em muitos sentidos, significa exatamente o contrário do que se costuma chamar “compaixão”: ela é sem piedade para com outrem, e sem piedade para com o “sujeito” que a experimenta, no sentido de que não lhe poupa nada do sofrimento nem de sua culpabilidade: não o alivia, não perdoa — não é isso que importa. Ela se constitui apenas como sofrimento, e nada mais. Então por que dizer “compaixão”? Poderíamos não “tomar Levinas à letra”, Sabemos, aliás, que seu vocabulário não é necessariamente muito estável e que ele não considera necessariamente todas as expectativas teóricas ou culturais de um termo. Mas, como dissemos, nos propomos a testar a hipótese de que o método levinasiano de “deformação” e “exasperação” das noções está sendo aplicado aqui em relação à “compaixão”. Se destruímos o sedimento estratificado em torno daquilo que normalmente entendemos por “compaixão”, então este seria o núcleo da experiência que se revela: puro sofrer suscitado pelo puro sofrimento do outro, por sua vulnerabilidade — isto é, já seu sofrimento e sua morte; o seu “sofrimento inútil”, não detectável em nenhuma justificação.º? É preciso insistir que a “verdade” da vulnerabilidade de outrem é a sua mortalidade. Há de fato um “sofrimento meu” “com” o sofrimento de outrem se precisarmos que o “Si” não preexiste a esse sofrimento do outro que o acusa e o suscita; se deixarmos claro também que o “com” não significa aqui nenhuma partilha, nenhuma “comunidade” compartilhada. E se “meu sofrimento” é minha própria solidão, é porque, pelo menos de certo ponto de vista, ele é uma impotência radical diante do sofrimento de outrem: posso proteger outrem dessa ou daquela ameaça, me
substituir a ele num sentido menor de “substituição” nessa ou naquela ocasião, nas eu não posso me substituir a ele na experiência da mortalidade enquanto tal: outrem morrerá e não posso fazer nada a esse respeito. Seu sofrimento (em que sua morte é sempre anunciada) é, desse ponto de vista, não compartilhável, mas ele me atormenta radicalmente, sempre. Não se trata, portanto, de se colocar no lugar de outrem e de ser suficientemente sensível a seu sofrimento para agir a seu favor: trata-se de um sofrimento incompartilhável tão radical que ele me questionará sempre num sentido “espectralizado”, e que ele sempre me deixará exposto à irredutibilidade de minha culpabilidade — já que não poderei salvar outrem da mortalidade, já que fracassarei necessariamente, em última análise, em responder a seu apelo (qualquer pedido que no interior de seu coração seja “pedido de ajuda”). Esta é uma das verdades profundas da “compaixão” que Levinas quer desvelar: a solidão do sujeito que a experimenta, que é sua impotência e até mesmo sua culpabilidade. Tal seria sempre a força motriz secreta por trás daquilo que se torna visível na compaixão, isto é, a ajuda e o cuidado dedicados ao outro.” Aliás, o que pode essa “compaixão” realmente fazer se for fundamentalmente impotente para proteger outrem da morte? No entanto, Levinas reconhece nela uma eficácia, senão mesmo um poder. Ele escreve que meu sofrimento na minha compaixão deixa de ser um sofrimento inútil (o sofrimento de outrem permanecendo, só podendo permanecer, tendo que permanecer, “sofrimento inútil”, isto é, injustificável); ele se torna sofrimento útil, diz Levinas, isto é, “amor sem concupiscência”, O que isso quer dizer? Ele abre a dimensão de um futuro que não é de modo algum o meu; um futuro pelo qual não estou
89 Nãomedetenho aqui na explicação que Levinas oferece acerca da própria ideia de teodiceia dentro noção de “sofrimento inútil”,
90 Portanto, não se trata de palavras, mas de afirmar que a separação mais radical, a solidão absoluta, é o elo: proximidade, escreve Levinas.
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interessado — o próprio futuro, que está para vir. O amor é mais forte que a morte, naquele sentido preciso de que ele me leva para além do meu interessamento por mim mesmo — para além do ser; “onde ser ou não ser não é a questão”. Insistamos no seguinte ponto. À compaixão, como a descreve Levinas, não é uma simpatia benevolente por outrem em seu sofrimento, ela é um sofrimento num certo sentido insuportável diante da morte de outrem. Tal é a radicalidade exasperada da “compaixão” levinasiana que a coloca no extremo oposto da retórica dos “bons sentimentos” da bela alma. 1) Somente diante da morte de outrem é que outrem é verdadeiramente outrem, no sentido em que a verdade de sua vulnerabilidade se revela como a irredutibilidade da sua mortalidade. 2) É apenas no momento mesmo em que a morte atinge outrem que se revela o sentido da relação ética com outrem, como um des-interessamento radical por si, inversão do meu conatus (no rosto de outrem morrendo, a morte me visa — e ainda assim não me importo com meu destino). 3) Somente, então, a relação com outrem se assume simultaneamente como culpabilidade irremissível (diante da morte de outrem) e abertura de um futuro para além do ser (para além da morte desse outrem e da minha). Mas posso dizer para outrem que ser ou não ser não é, para ele, a questão? Certamente que não, já que sua vulnerabilidade é a própria insistência no ser, é um “salve-me!” quer dizer, um: “me deixe viver aindal”. À ética é exclusivamente da minha conta, não da conta de outrem: outrem, precisamente, do seu ponto de vista, tem todo direito ao egoísmo. Minha culpabilidade irredutível — não vou salvar outrem da própria mortalidade mesmo “substituindo-me” a ele (no sentido literal) — é, no meu sofrimento por outrem, convertido em amor que abre para o além-do-ser. Não o salvarei, no ser ele 80
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morrerá. Mas através do meu amor sem concupiscência — sem apego à perseverança no ser, no “meu” ser — abro o futuro que perfura o ser: dimensão do futuro mais forte que a morte e sem imortalidade (a imortalidade que quer ser perpetuada no ser). É preciso dizer: futuro ou para-outrem, para-outrem ou futuro (o “ow” indicando aqui a reciprocidade: o futuro não está em nenhum outro lugar senão no “para-outrem”).”º Pudemos justamente observar uma diferença de ênfase entre, por um lado, Totalidade e Infinito em que, para além do rosto, Eros abre o futuro numa fecundidade mais forte que a morte, e De outro modo que ser ou para lá da essência, no qual a relação com outrem é culpabilidade obsessiva e obcecada pela mortalidade de outrem. Olhando de perto, pode parecer que não há nenhuma supressão, mas uma mudança no estatuto da abertura do futuro para além da alternativa entre ser e não ser: certamente a experiência obsessiva de outrem é ampliada em De outro modo que ser ou para lá da essência, mas a abertura ao futuro como para-outrem, como tempo desformalizado, tempo não como uma forma a "priori, mas como uma experiência concreta, está sempre presente, embora de outra maneira: como o próprio sofrimento por outrem. À “compaixão” (que, portanto, dificilmente aparece como tal em De outro modo que ser ou para lá da essência) aparecerá de novo em Levinas no texto de 1982 para nomear aquilo de que se trata, para nomear a ligação dessas duas experiências dentro de uma mesma experiência: por um lado, o sofrimento radical, solitário e impotente, não compartilhável
91 Demaneira diferente, e com diferenças significativas, Paul Ricoeur também medita sobre esse ponto de ligação entre a morte no ser e o desinteressamento por outrem, abrindo um futuro que não é o meu. Ver Paul Ricoeur, Vivant Jjusqu'à la mort, seguido de Fragments, Paris, Seuil, 2007, La couleur des idées.
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por outrem, assim como para outrem, e, por outro lado, o amor sem concupiscência como abertura do futuro.”? Sem dúvida, só podemos estar atentos a uma ética que seja pela defesa e pela promoção de “sentimentos morais” que nos dispõem a nos colocarmos no lugar de outrem, para vermos as coisas de seu ponto de vista; que também nos dispõem a medirmos o que compartilhamos com nossos “semelhantes”, nossos “irmãos”, uma ética que nos torna sensíveis ao sofrimento (o que não significa vivê-lo efetivamente — posso ficar emocionado pelo medo do meu filho no escuro, sem sequer experimentar esse medo) e que desencadeia em nós algumas ações de socorro. Tal descrição da experiência ética parece-me ser bastante convincente — necessária num certo sentido. No entanto, é preciso constatar que aquilo que Levinas chama de ética não tem nada a ver com ela — e mais do que nunca quando ele fará da “compaixão” um dos princípios fundamentais da ética. A ética, segundo Levinas, se opõe, em todas as suas características, a uma ética da compaixão e da simpatia (entendida no sentido da capacidade de se colocar no lugar de outrem, de reconhecer seu ponto de vista, e de se relacionar com ele numa sensibilidade compartilhada): e culpável,
92 Emúltima análise, compaixão” é menos um princípio primeiro — se não o princípio primeiro da ética — do que um momento na intriga da responsabilidade ética. Se a ética de Rousseau, por exemplo, faz da piedade (ou compaixão) a disposição afetiva originária que possibilita a moralidade, em Levinas a compaixão é um momento na ética da responsabilidade — sempre culpabilidade. Resta ver como esse momento é privilegiado. Ou nos bombardeamos com a ideia de que a compaixão é apenas uma manifestação mundana da “substituição”, a “substituição” que seria como seu “transcendental”, ou, segundo as indicações dos textos tardios e periféricos, afirmamos que a “compaixão”, na renovada descrição que aqui chegamos seguindo Levinas, é como o momento mais intenso, o momento de realização da ética.
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4. Uma ética impiedosa
Ela consiste em sua assimetria em elevar a impossibilidade da reciprocidade como a própria ética. 2) Ela não é de modo algum um “poder”, uma faculdade do sujeito (de se colocar no lugar de outrem). 3) Ela não é de modo algum um modo de conhecimento de 1)
outrem (fosse ele afetivo, fosse ele uma Befindlichkei!). 4) Ela denuncia qualquer relação que signifique partilha, o comum e, in fine, a equalização no “semelhante”, 5) E, finalmente, ela é impiedosa, não poupa nada, nenhum sofrimento, nem ao eu nem a outrem. Ela não é partilhar a dor como forma de aliviá-la suprimindo uma parte dela; ela reforça e ela acusa: o eu é responsável, isto é, acusado e culpado diante do mandamento e é nada mais que sofrimento por outrem; outrem a quem ajudo, é claro, mas que, estruturalmente, jamais aliviarei do seu morrer”, nem mesmo do seu próprio sofrer. Compaixão duas vezes impiedosa — porque não se deixa comover pelo próximo, o irmão;?* porque é aterradora para o
“sujeito” que a experimenta e que ela suscita. Uma terrível e
pessimista lucidez diante da qual acontece de me deter — e que é, de fato, irredutível. Ela é a verdade do ponto de vista do ser: ninguém é inocente — “innocent of what?"*. A culpabilidade não é um predicado possível (isto é, possivelmente ausente), ela é o ser: o ser é culpado — pois, segundo outra afirmação 93 O Eué sempre culpado, estruturalmente, pois a verdade última do “não matarás” é que “você deve vencer a morte por outrem”, o apelo a permanecer vivo deste último só pode, em certo sentido, ser absoluto. 94 Eseanoção de “fraternidade” adquire um estatuto decisivo em De outro modo que ser ou para lá da essência, é apenas na medida em que foi extraída por Levinas do registro semântico do “semelhante” e da “origem” ou do “em comum” compartilhado. Não me alongo aqui, mas a renovação do sentido da noção de “fraternidade” por Levinas é tão radical quanto aquela que afeta a noção de “compaixão”. 95 Veros diálogos do filme Unforgiven (1992), de Clint Eastwood.
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levinasiana, “o ser é o mal”** — já é culpado de se repousar no ser, e também de não poder salvar outrem da morte, de não poder morrer radicalmente em seu lugar: não sou Cristo — verdade irredutível. E minha compaixão será sempre minha culpabilidade. No entanto, em Levinas, minha culpabilidade já é, também, amor, amor sem concupiscência — para outrem, como esta falha que sempre me habita e abre um futuro que não está de modo algum ligado a uma disposição fundamental do Eu (que não é o futuro de minha protensão ou e&-stase, nem também de mim mesmo como e&-stase), um futuro que não é para mim, nem mesmo para este outrem que vai morrer, e que eu amo em vista de todos outre(ns) que virão: “O Messias sou Eu, ser Eu é ser o messias.” No final deste breve percurso destinado a esclarecer de maneira interna um ponto de interpretação do texto levinasiano — em quê sentido e por quê pode se tratar, em Levinas, de uma ética ao mesmo tempo impiedosa e da compaixão? — gostaria de inclui-lo nos nossos dias atuais. Enfim, como eu recordava ainda há pouco, podemos ser receptivos às éticas contemporâneas que reabilitam o sentimento de empatia e a disposição de cuidar enraizados na percepção de situações particulares, em oposição a uma concepção de ação justa, que primeiro exige o cálculo abstrato da racionalidade da partilha — e esta ancoragem no sentimento e na percepção de situações em que está sempre em jogo “um” outrem particular e concreto, sem dúvida, tem uma afinidade com o gesto levinasiano. No entanto, constata-se imediatamente o fosso entre 96 Ver Emmanuel Levinas, Le femps et F'autre, Paris, Presses universitaires de France, 1983, p. 29. 97 Emmanuel Levinas, Difficile liberté, Paris, Le Livre de Poche, 1977, Biblio Essais, p. 129.
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essas éticas e a de Levinas. Nessas éticas, não há nenhuma
culpabilidade originária, nenhuma exigência de “morrer por outrem” indo até ao sacrifício (fosse este último estruturalmente impossível e, portanto, já culpado), nenhuma fissão do sujeito esvaziado de sua substância por um por-outrem traumático. Em suma, não há nada dessa insuportável obsessão pelo Outro que não se pode assumir e que torna exatamente a ética de Levinas insuportável, nada do que faz dela uma ética difícil”? Pode-se também ser receptivo tanto à valorização das Hlumanidades, da Literatura e das Artes, quanto à formação e reforço da capacidade de adotar o ponto de vista do outro — pode-se mostrar como a violência e a guerra, talvez o mal, se intensificam quando esta capacidade de encarar o outro, de considerá-lo até logo em seguida “colocar-se no seu lugar”, fracassa.” No entanto, também aqui estamos no extremo oposto da ética levinasiana, que não é, de modo algum, compreensão do outro (mesmo quando a compreensão é afeto e percepção antes de ser conceito), de modo algum um “colocar-se no seu lugar”, de modo algum uma “simetrização” entre o Eu e Outrem — pelo contrário: o “si” da ética de Levinas surge ao ser questionado assimetricamente pelo Outro enquanto ele é o próprio incompreensível.
Repitamo-lo uma vez mais, é só no insondável e insuportável excesso: 1) de uma culpabilidade originária irrecusável, 2) diante do rosto como mandamento não negociável, 3) no sofrimento da compaixão como “sofrer por” ultrapassado no “morrer por” 98 Indicamos aqui, sem entrar no exame da questão, o que nos parece o risco de uma leitura que confronta a ética segundo Levinas e o conjunto, muito contrastado pelas diferenças, do que se aceita hoje ser chamado de “éticas do care” (do cuidado). 99 Ver, por exemplo, Martha Nussbaum, Les Émotions démocratiques, Paris, Flammarion, 2011, Climats.
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sacrificial, que a ética abre o caminho para ir para além do ser — compaixão como meu “morrer por” que será amor sem concupiscência. Se “ser levinasiano” significa algo, então me parece que ser levinasiano é estar ligado ao que esta ética literalmente tem de insuportável — ao que ela tem de muito difícil. Será que isto equivale a negar que é belo e agradável estar numa disposição benevolente para com outrem, saber como ocupar o seu lugar ou seu ponto de vista, e assim negociar um espaço comum que possa ser vivido, compartilhável e aceitável por todos os nossos “semelhantes” (numa universalidade em expansão)? Claro que não! Mas o que Levinas nos ensina é isto: para que tal disposição não descambe para o “mingau do coração” dos bons sentimentos, ela deve ser sustentada por uma ética completamente diferente: eu, culpado mais do que todos os outros, aterrorizado pelo que há de incalculável num mandamento inegociável, um completo morrer-por-outrem sacrificial. Uma ética impiedosa deve sustentar a ética da benevolência voltada para outrem, e da compreensão do ponto de vista do outro: somente sob tal condição é que esta última não cai na sua própria caricatura (a moral está sempre à beira da estupidez ou da caricatura, nas próprias palavras de Levinas).!ºº Talvez até possamos considerar que se a impiedosa moral levinasiana deve sustentar subterraneamente a ética compassiva (e, efetivamente, por trás dos “belos discursos”, esta última é difícil de ser realizada concretamente), inversamente, a ética compassiva,
4.
Uma
ética impiedosa
cobrindo e escondendo seu motor secreto, nos previne de sermos dominados pela insuportável ética levinasiana tão difícil de viver sem desvios e muito diretamente: a situação limite ou o extremo do humano — já desumana em muitos aspectos.
100 Acredito seriamente que, se podemos tentar compartilhar o ponto de vista do outro e conseguir negociar passo a passo, levando em consideração o ponto de vista do outro — o que é sempre doloroso — é porque essa negociação dolorosa e razoável se baseia, no fundo, nessas duas “loucuras”: a (an)arquiculpabilidade
originária
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e o
amor sem concupiscência.
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5. Epílogo
Desenvolvi a hipótese de que o “palco de Alençon” descrito por Levinas em seus Carnets de captivité e seus esboços de romances (que expressa uma ruptura, um trauma, que opera como o coração de uma derrocada, com uma repercussão indefinida) tem o valor de épochê fenomenológica, ápochê levinasiana, uma épochê que manifesta o que sua obra De Hexistence à L'existant chamará, em 1947, de um mundo em pedaços. Trata-se de uma redução muito singular: não a revelação do “como” da operação de sentido, mas a do colapso de qualquer sentido e de todos os valores — o significado dos teatros, da civilização e da civilidade, da justiça e dos tribunais, até o próprio mundo percebido em sua coerência; o legein (a reunião harmoniosa) de todas as coisas se desfaz. Enfatizemos que essa interrupção, uma vez ocorrida, só pode continuar indefinidamente, não podendo mais ser escondida, apagada ou obturada. A revelação da ausência de sentido pode ser descrita de um ponto de vista ontológico e, mais especificamente, do ponto de vista do existente humano. 89
A ética do sobrevivente
5.
O que descobre essa épochê é um atolamento na existência: a existência pesa, a existência é pesada, e os entes estão, por assim dizer, condensados em sua forma, encurralados em seu ser, Por isso, esta metáfora, que constantemente se repete na escrita de Levinas: na derrocada, os fugitivos se sobrecarregam de bagagens inúteis e fúteis (imagem que reaparece, aliás, na escrita de outros autores); O ser pesa como um ter, No entanto, ao mesmo tempo, esse ser sob a redução levinasiana é indeterminação, ele é fantasmagórico. Em certo sentido, não pesa. Pesa demasiado sob certo ponto de vista, e não pesa sob outro ponto de vista. E isto não é contraditório (encontramos essa ideia, ou uma ideia muito próxima nos trechos sobre Arte em De Vexistence à Vexistant). Basicamente, quando o mundo se desfaz, quando não há mais constituição de um mundo apreendido em seus horizontes, a indeterminação do il y a aflora mesmo quando as coisas se concentram em sua forma. Elas não são mais habitadas pelo dinamismo da existência e, portanto, tendem a desmoronar. Esse é o lado ruim da nudez. Há pelo menos duas nudezas em Levinas: por um lado, há a nudez do rosto (nudez, pelo lado ético), e, por outro lado, há a nudez que retira a forma das coisas, até trazê-las de volta ao i/ ya... quando isto não constitui mais um mundo as coisas não são mais apreendidas em suas formas (já que essas formas eram apreendidas, como tais, na coerência de uma cena perceptiva). As coisas despidas de suas formas são matéria pura e pesam segundo sua pura matéria. Então, o mundo é um fantasma: em certo sentido, não pesa nada e, por outro lado, pesa demais. É ao mesmo tempo a fixidez da coisa que cai em pedaços e a indeterminação de uma existência em que nada realmente chega a existir, isto é, a ter uma forma e um dinamismo de existência — i/ y a, mundo de espectros, para Levinas.
e
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Epílogo
E do ponto de vista do ente humano, do existente humano, a partir da redução levinasiana, a partir da revelação do desmoronamento do sentido, o que aparece é que efetivamente o torna um fantasma no pior sentido da palavra. ente humano Ele é ameaçado pela indeterminação do i/ y a. E ele está sobrecarregado, encurralado em sua existência. Ambos de uma só vez. Ora, em muitos aspectos, esse existente humano, descoberto pela derrocada como épochê, é o Dasein segundo Heidegger. Aliás, Levinas escreve isto: “o eu que existe é sobrecarregado por todos estes existentes que ele domina. À sobrecarga da existência era para mim a forma que tomava o famoso “cuidado” heideggeriano”*, Gostaria de tentar uma hipótese de leitura que precisaria ser consolidada mais adiante, por exemplo, por meio de uma leitura cuidadosa de certas passagens de De existence à Iexistant — entretanto, arrisco-a aqui sem maior precaução: parece-me que a leitura que Levinas faz acerca do Dasein segundo Heidegger — isto não é surpreendente, do ponto de vista de sua formação intelectual, nem mesmo das referências explícitas daqueles anos, ainda que possa parecer curioso à primeira vista — é, em certo sentido... muito bergsoniana. Lembremos o que chamou a atenção de Levinas em sua leitura de Heidegger: Heidegger nos ensinou a verbalidade do ser, a entender o “ser” como um evento. O ser é evento do ser. E o Dasein, na medida em que ele é esse ser para quem “o que ocorre com o ser tem a ver com seu próprio ser”, é — de acordo com a descrição heideggeriana — cuidado (Sorge). Ele é esse ser que é imediatamente cuidado, que é esse ser que cuida em ser. Ora, tudo acontece como se, segundo Levinas, esse evento
se
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Emmanuel Levinas, Etbique et Infini, Paris, Le Livre de Poche, 1984, p. 50.
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A ética do sobrevivente
fosse imediatamente uma crispação. O que ouvimos a partir da noção de evento geralmente é a manifestação, o êxtase: o que
faz o evento, o que chama a atenção, o que sobressai de um movimento, de um élan extático. Ora, o [ser] evento do Dasein já é crispação, já é uma maneira de se apegar a si. Daí o fato de Levinas não hesitar em comparar o Dasein com o conatus essendi. Certamente, essa é uma “heresia” do ponto de vista heideggeriano, uma vez que Heidegger descreve o Dasein como uma existência que surge, precisamente, por não se reduzir de modo algum à vida de um vivente — mas, é isto o que Levinas decididamente afirma: o Dasein segundo Heidegger é o mais interessado dentre os vivos — quase um “sobrevivente” no sentido em que Canetti descreve o “sobrevivente”, como aquele que se atém a sua vida mais do que a qualquer outra coisa, e mais do que todos os outros, até o ponto de desfrutar da maldade de “morrer por último”. O Dasein heideggeriano exprimiria, assim, de forma exemplar, a perseverança do ser em si mesmo, mas não de qualquer modo: enquanto ele é esse evento que já é crispação, enquanto ele é essa saída de si que não é nada mais do que o movimento de crispação sobre si. Essa comparação, obviamente, deve ser estudada de forma mais precisa, mas parece-me que isso lembra as descrições de Bergson sobre o lan vital. O impulso sempre é tensão e esforço. O impulso e o que emerge sempre são tensão e esforço porque o impulso vital encontra a matéria, enfrenta a matéria; ele deve se encarregar de sua própria materialidade. E, ainda, porque o impulso vital sempre já é duração em Bergson, e que a duração sempre supõe que haja uma compenetração de todos os seus momentos: a duração avança em si mesma e consigo mesma. Assim, o impulso não é jamais separável de um movimento de reunião e de contração. Ele é ao mesmo tempo emergência e tensão. 92
5. Epílogo
O Dasein segundo Heidegger, descrito por Levinas, é aquele movimento de êxtase do ser que já é tensão sobre si mesmo. Há aqui uma espécie de descrição original do existente humano por Levinas, que, muito livremente, inscreve Bergson “em” Heidegger: como um retrato estranho do Dasein vivendo habitado pelo impulso vital. E se considerarmos a medida desta descrição, entendemos que, finalmente, o mais aterrador não é o movimento da existência imediatamente egoísta que habita todo ser, nem mesmo essa crispação sobre si (ponto que nos detém habitualmente, com bastante razão, quando lemos Levinas). Na verdade, essa crispação, no mínimo, é o existir de um existente: é uma existência no mundo. Ora, quando o mundo desmorona — e é aí que a descrição terá um tom realmente bergsoniano — quando se dá a derrocada, “sob a derrocada”, os Dasein se relaxam, se encontram sem tensão, não são nem mais essa crispação sobre si, esse viver como crispação sobre si. Como em Bergson, o relaxamento e a distensão são o inverso inevitável da tensão e do impulso. Há, portanto, algo muito pior do que a crispação egoísta do existente, exemplarmente do existente humano, há sua verdade secreta: esses fantasmas nas estradas que tanto mexeram com Levinas são esses Dasein sem tensão que em seu relaxamento se juntam à indeterminação do i/y a. Vemos — ao lermos os rascunhos de romance —, que a derrocada libera várias formas de existência que são encenadas numa variedade de personagens (que não desenvolvo aqui). Ele libera o “tudo é permitido” no colapso dos valores (encontramos, por exemplo, ao virarmos uma página, o “cínico” que rouba carros). Levinas é bastante nietzscheano sob esse ponto de vista: o colapso dos valores no ser, por desestabilizador que seja, libera; ele libera a possibilidade do evento messiânico no interior do 93
5. Epílogo
A ética do sobrevivente
que há de mais comum na vida: o por-outrem desinteressado como esse cabeleireiro que corta gratuitamente o cabelo dos rapazes do contingente, na guerra, em meio à derrota. Ele
libera
uma
certa leveza. Se tivermos em mente as passagens de
que tratam disso, sabemos que o elemental e o gozo que ele promete e permite são muito próximos do i/ ya... Não nos surpreenderemos ao vermos o quanto o cativo é surpreendido no “canibalismo do erotismo” de acordo com as próprias palavras de Levinas: o pente, ele próprio, não é mais Totalidade
e Infinito
ferramenta ou instrumento, já é cabeleira; o corpo de outrem, o das mulheres apenas percebido, não é mais o instrumento magnificamente articulado que faz sentido funcionando no mundo, surpreendido numa rede de referências finalizadas pela utilidade ou eficiência; ele é somente carne para ser desfrutada, consumida. Eis também o que o intervalo da derrocada, esse tempo suspenso, revela aquém do mundo... Devemos nos lembrar, por exemplo, quando lemos os textos do último Levinas sobre “o amor sem concupiscência”, “a caridade”; recordaremos que, em sua ambiguidade, Eros nunca elimina o canibalismo que o assola. De qualquer modo, todas essas formas de existir referem-se, em última instância, à verdade crua descoberta pela derrocada; um mundo partido em pedaços, no qual os existentes humanos Já não conseguem nem mesmo se apoiar. O mais terrível é que a derrocada não acaba mais: uma vez ocorrida a interrupção, ela não pode ser recoberta. A derrocada trouxe à luz uma verdade, a verdade do ser e do existente humano em particular, de que a lucidez jamais poderá esquivar: certamente a guerra acabou, o curso das coisas humanas será retomado, o mundo vai se reconstituir, mas agora só pode ser uma comédia irrisória — revelada como tal. As palavras de 94
Levinas são lembradas em seu texto biográfico muito breve, Sans noms: “nada foi capaz de preencher ou mesmo cobrir o abismo escancarado. [...] e a vertigem que nos assalta a bordo é sempre a mesma, **º É que a tensão não retornou: na verdade, não pode retornar porque a verdade não reside tanto no fato de que a derrocada terá sido “distensão”; a verdade mais profunda se encontra, sim, no fato de que a derrocada terá revelado que qualquer tensão é intrinsecamente insuficiente, já sendo distensão. De agora em diante, os Dasein representam o papel de ser dos Dasein ou, além disso, não podem mais ignorar que eles nunca representaram nenhum outro papel senão o de ser Dasein. Os existentes humanos representam o papel de ser existentes humanos. E isso é o mais terrível.
No romance, Levinas descreve a vida como um continuar a viver depois de um suicídio de revólver. Tal é a condição posterior à derrocada — e não é somente uma condição histórica que viria após um evento histórico, é a verdade da existência, uma vez que a natureza e a lei de seu reinado são reveladas. É como a derrocada tivesse revelado que a existência totalmente ativa, isto é, a existência do existente que sabe estar
se
em tensão, que sabe estar preocupada consigo mesma, sempre tivesse se mostrado como uma comédia no plano do fantasmagórico. Os personagens de Levinas, no período imediato do pós-guerra, ou tentam negar essa verdade — eles “foem as raízes da vida”, escreve Levinas!* — ou representam a comédia... Que mais fazer? E é isso que Levinas não quer resolver — ele, que não se esquivou da lucidez que ordena reconhecer que, depois da derrocada, depois de “ter como que se suicidado com 102 103
Emmanuel Levinas, Noms propres, op. cit. 1987, p. 142. Emmanuel Levinas, Éros, littérature et philosophie. Inédits,
op. cit. p. 57.
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5. Epílogo
A ética do sobrevivente
o
revólver”? , a existência tensa dos Dasein que cuidam de sua
existência, se ela puder voltar a se constituir, nunca será senão uma comédia e não terá sido outra coisa senão uma comédia —: a chama do fogo foi vendida. No fundo, o que a derrocada realmente revela é que, do próprio interior da existência e de sua instalação no mundo, não há acesso ao sentido (à significância) para existentes humanos, que eles mesmos não conseguem, embora às vezes o neguem, adquirir um fundamento. Uma vez que se revelou em sua crueza O que é a existência, uma vez que alguém partiu o mundo em pedaços e viu o que está por baixo, todas as tentativas de recuperação desse abismo são inúteis. No entanto, a experiência crucial desse ponto de vista é para Levinas a relação com a morte de outrem: isso pode ser visto em filigrana nos seus textos de guerra, mas será na outra ponta de sua obra (nos textos dos anos 1970 e 1980) — como se somente depois de um longo período de latência, de recusa ou de hesitação talvez, ou depois de uma tentativa de gerar outras formas, não sei — que essa verdade vai se impor, chegando a se tornar explícita e até mesmo obsessiva. Há uma crítica violenta e recorrente, em romances e livros e nos Carnets de captivité, acerca da piedade e da compaixão. Em particular, pode-se notar um confronto com Heidegger, novamente, sobre essa questão. No parágrafo 26 de Ser e tempo, Heidegger tematiza a Fiirsorge (traduzida como cuidado””) e 104 Levinas convida a pensar mais de uma vez o estranho slogan “com nosso revólver suicidar-se é um prazer”, ibid,, p. 56, 101. 105 Adotamos o termo corrente “cuidado”, não antes de lembrar algumas sutilezas que envolvem a palavra: “Em alemão coloquial, Sorge (palavra da qual se originam as outras) significa preocupação. Talvez por este motivo a tradução em apreço tenha optado por este termo. No entanto, o uso cotidiano desta expressa ansiedades ou inquietações pelas quais, às vezes, se passa na vida. 9%
distingue dois modos a partir dela. Um deles consiste em se substituir a outrem, mas devemos entender aqui a substituição num sentido bem fraco (não-levinasiano): colocar-se no lugar do outro para carregar seus problemas, isto é, para carregar seu fardo ou sua existência. Formulo assim porque é também uma imagem recorrente do romance inacabado e dos Carnefs, essas multidões sobrecarregadas de bagagens irrisórias, quando um carrega a bagagem do outro (como um circo que se desloca, escreve Levinas). Mas ao lado da Fiirsorge como um se substituir a outrem, existe um modo mais autêntico de cuidado, que consiste em ajudar outrem a se refazer com cuidado, a reassumir o cuidado (Sorge), a reassumir o cuidado com seu próprio ser. Pode-se dizer — Heidegger não diz isso assim — a estender, a dar uma tensão maior ao cuidado. Tal será, para Heidegger, o modo mais autêntico do cuidado. Não se vai carregar no lugar dos outros a existência deles. Devemos ajudá-los a assumir sua existência, isto é, a se refazerem como cuidado quando o nó do cuidado com a existência se distende. Mas, de acordo com Levinas, toda essa operação continua inscrita no mundo, é do Ora, não é neste sentido habitual que o filósofo compreende Sorge; é isso que encontramos em Ser e tempo: “A expressão nada tem a ver com “sofrimento, “aborrecimento, nem “preocupação com a vida', que podem ser onticamente encontradas em todo ser-aí' [...]. Neste caso, se não desejarmos incorrer no preciosismo da palavra “cura, mais apropriado seria o uso do termo “cuidado”, mesmo que tal solução implique o obscurecimento daquele radical. Isto nos parece mais justificado do que alterar o cânon que, até então, reservava a palavra Firsorge para designar uma preocupação com os demais seres-aí, ou, “ocupação para com o outro”. Já seria possível como indicaria o prefixo Firconfusões que a substituição dos termos eventuais e entrever os impactos (cuidado' por “preocupação', e preocupação por “preocupação com o outro”) acarretaria sobre as pesquisas em andamento e sobre a literatura especializada Saraiva que usa “cuidado' para referir-se a este modo de ser do ser-aí.” Roberto Unisinos, v. de Martin Ser Filosofia e Heidegger, Kahlmeyer-Mertens, tempo 14, n. 2, p. 169-174, 2013 (N. do T). :
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5. Epílogo
A ética do sobrevivente
mundo; ela implica crer que, a partir dos recursos do mundo (no mundo, num horizonte mundano) e a partir dos recursos da existência do Dasein, pode-se ter uma relação autêntica com outrem. Porém, como sabemos agora, para Levinas, após a derrocada, aparece numa luz crua que o cuidado só se desenvolve na superfície do i/ y a, e que essa é sua verdade, e que nem o sentido verdadeiramente (a “significância”) nem o existente (ipseidade) poderão jamais surgir nesse mesmo plano. Depois de ter se suicidado com o revólver, para retomar essa imagem, torna-se absolutamente patético para Levinas acreditar que a partir do mundo e da existência no mundo: 1) um sujeito possa se “ipseizar”, 2) possa encontrar a abertura do sentido e 3)a relação autêntica com outrem (estas três dimensões, para Levinas, vêm juntas, são uma mesma e única experiência). Se há algum sentido, isto é, se existe uma relação autêntica com outrem, o último Levinas enfim a formula, ela é somente a partir dessa experiência radical que se produz no horizonte de todas as experiências de outrem: a partir do “morrer-por”, o “morrer por” nunca mais intenso que no acompanhamento de outrem que morre. De acordo com a descrição que ele propõe — resumida aqui de modo bastante sumário e desenvolto — no momento em que outrem vai morrer posso acompanhá-lo, encontrando-me absolutamente desinteressado por mim mesmo — amor sem concupiscência —, estando assim aberto diante de um futuro que não será mais um futuro de interessamento (que não será nem o meu, nem o dele). A figura levinasiana do sobrevivente (à morte de outrem e à sua própria que o terá ameaçado) é, desde então, atingida por uma grande ambivalência. Ela é habitada pela culpabilidade do sobrevivente, uma culpabilidade irredutível, uma vez que não 98
posso tomar para mim a morte de outrem, já que não posso assumir em seu lugar a experiência do morrer. No ser, outrem morrerá e não posso nada diante disto. Eis o que a guerra e em seguida a derrocada revelaram-no de uma vez por todas, e esse saber não pode ser recoberto: o Dasein e a “Fiirsorge” não passam de comédias irrisórias. E, no entanto, acompanhando outrem em seu morrer, tomado de compaixão — Levinas, assim, se reapropria do termo “compaixão”, mas na medida em que ele renovará completamente seu sentido — posso experimentar o des-interessamento mais radical e me ipseizar diferentemente de uma crispação sobre mim mesmo (numa radicalidade que a noção de “sacrifício” vai exprimir, ainda que o heroísmo do sacrifício e a recomendação deste heroísmo não poluam as páginas desses textos tardios, muito pelo contrário). Essa compaixão, bem outra, refere-se a uma substituição completamente diferente — a substituição entendida no seu sentido levinasiano: não que eu me coloque no lugar de outrem, mas que eu me exponha a um sequestro tão radical por outrem a ponto de que este último tenha sido sempre meu primeiro habitante, inscrito no meu coração ou na minha maior intimidade, como uma fenda constituinte da minha ipseidade. No amor sem concupiscência que sinto ao acompanhar outrem em seu morrer até a experiência do “morrer por”, experimento interior da derrocada, a partir do i/ y a que os que mesmo fantasmas assombram — e talvez até na medida em que essa abertura amarga verdade do ser não pode mais ser negada —, a para o além do ser ocorre, ou pelo menos pode ocorrer, já que nada mais, a partir do ser, poderá garanti-la. Eis o que me apareceu durante minha leitura de Levinas nesses últimos anos: ética do cativo, essa ética que se busca a partir da luz sobressalente da derrocada, podia, em certo sentido, apenas
no
a
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5. Epílogo
À ética do sobrevivente
ser realizada como ética da culpabilidade do sobrevivente — que é, sem contradição, ética do amor sem concupiscência — tendo,
por assim dizer, proibido todas as figuras compassivas no sentido mais corrente da palavra, tendo particularmente proibido o cuidado, a Fiúrsorge heideggeriana, e tendo mostrado que o existente como tensão e crispação na existência é atormentado pelo seu inverso, isto é, o relaxamento. Desde que haja tensão, há distensão. Esta lei (bergsoniana no sentido de que Bergson deu um alcance metafísico ao princípio da entropia), finalmente, Levinas reconhece como sendo a lei do Dasein. E, se houver sentido, significância, será apenas na interrupção do reinado da existência com base no mundo: a significância só pode surgir a partir da abertura para além do ser e do seu “estar no mundo”, Essa abertura, que só se abre realmente por não ser de modo algum garantida, nem mesmo antecipável a partir da lógica do ser — o que pressupõe talvez contrariá-la — ocorre na “pequena bondade”: acompanhar um moribundo, vivendo a impotência de salvá-lo a ponto de não ser mais do que um movimento por e em direção a ele, cuidar do outro sem considerar seus próprios interesses, naquilo que há de “pequeno” que podemos fazer em meio ao mais prosaico deste mundo que habitamos, que a partir daí habitamos de verdade, isto é, diferente de fantasmas assombrando o terrível no man's land do ily a. Durante anos, meditei que a ética levinasiana do para-o-outro supusesse que a descrição do ser enquanto ser o manifesta como o mal ou a guerra, para retomar os termos de Levinas. E me tornei atento à alergia que pode somente reinar entre os conatus essendi que se chocam inelutavelmente, cada um tendo em vista apenas sua própria existência. Igualmente tornei-me atento à provação de outrem que vem sacudir o reino da guerra. 100
A história não estava errada, mas não estava concluída: não tínhamos bebido a taça até termos chegado à borra do vinho. Dito isto, mais que nunca, a partir da derrocada, o futuro abrir. A aterrorizante lucidez levinasiana, na medida pode mesmo em que ela nada se esquiva da verdade fantasmagórica do ser, transforma sua melancolia em significância, em amor por outrem e em futuro. A propósito, ela marca até mesmo um inalienável direito à felicidade: já que estamos no mundo, e ainda que ele deva ser contrariado, o gozo de ser retorna a nós. Aliás, não é verdade que apenas um ser que pode saborear seu pão e a tranquilidade de sua casa poderá tirar o pão de sua boca para dá-lo a outrem? Tudo isso levará tempo, no fundo, uma vida, mas a ética que o cativo procurava no núcleo da derrocada acabará se encontrando a si mesma como ética do sobrevivente reatando sem contradição o aparentemente contraditório: ética impiedosa renovando, entretanto, integralmente o sentido da compaixão e, assim, reivindicando-a; culpabilidade irredutível e necessária que preserva, porém, mesmo no coração do mais sombrio, o inalienável direito à felicidade do sujeito, desviando-a radicalmente dele mesmo “para o outro”... Tal ética não é fácil, nem a compreender nem a viver. Vêm circulando hoje em dia algumas caricaturas do pensamento levinasiano que devem ser constantemente dissipadas: é necessário reafirmar com força que outrem não é, segundo esse pensamento, hipostasiado como uma entidade que acabaria sendo abstrata à força de ter sido tão magnificada; uma entidade que, além disso, seria a própria bondade (como se se tratasse de seu predicado essencial). Outrem é sempre esse ou aquele outrem em sua singularidade. À bondade, o bem, concernem a mim, e não a outrem. E me atreveria a acrescentar o que,
se
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5. Epílogo
A ética do sobrevivente
por muitas razões, Levinas nunca escreveu diretamente: após a derrocada, ou melhor, numa situação de derrocada contínua, eu sei também que, em certo sentido, outrem é também culpado estruturalmente (senão mau, o que seria excessivo); mesmo o mais inocente dentre outrem(ns) — “a criança, a viúva, o órfão” — o é: ele não é um conatus, não é enquanto perseverança no ser que ele pode morrer, que ele é vulnerável e me chama, e me
pede
“me salve”?
Certamente não tenho, de modo algum, o direito de, do ponto de vista levinasiano, dizer que outrem é mau e egoísta, nem tenho o direito de considerá-lo a partir desse ponto de vista — a ética me proíbe de fazê-lo; ela é, em todo seu sentido, esse interdito (pelo menos em relação ao interdito do assassinato) — mas eu sei disso, já que outrem é inteiramente o apelo de perseverar em seu ser. (Seu apelo trai sua natureza: ele quer perseverar no ser, por isso, ele me incomoda, me faz mal.) Meto
Assim, vivem os sobreviventes, juntos, depois de Levinas. Assim, vivemos, na ambiguidade não absorvível, ambivalência dessa condição: o conatus sempre já tomado como refém e que desde então negocia, à beira do abismo, assim como à beira da “santidade”. Entre a intensidade hiperbólica de cada uma dessas duas bordas — o fantasma do “i/ ya” e a “santidade” — na maioria das vezes, vivemos nossas pequenas vidas de sobreviventes, no difícil esforço da cortesia do “primeiro, o senhor” (sem relação com a hipocrisia social) e do compromisso. Na maioria das vezes, não estamos presos nas experiências-limite efetivas da derrocada, por um lado, e do sacrifício, por outro lado, na experiência, talvez, do surgimento do segundo no âm102
bito do primeiro (porém, sabemos, por uma certeza irrefutável, que isso pode acontecer de novo a qualquer momento). Então, fazemos “pequenas coisas” que, juntas, pouco a pouco fazem surgir um pequeno sentido no mundo; negociamos uns com os outros para repelirmos cada dia novamente o acontecimento de uma derrocada definitiva (que nada poderia evitar de uma vez por todas). Devemos aceitar o pouco de nossas ações, o compromisso e a negociação retomados sem descanso entre o conatus-no-limite-do-abismo; devemos nos desconfiar dia a dia da aparência da radicalidade. Mas, essa modéstia necessária extrai, no entanto, sua fonte de sentido — vamos enfatizá-lo — na hipérbole ou no excesso do para-o-outro e na sombra carregada do excesso escuro da derrocada. Após a derrocada, na derrocada contínua que tem o valor de desvelar uma verdade que não pode ser recoberta, depois de tantos outros genocídios que confirmam de novo e constantemente essa verdade cruel, mas também após Fukushima, depois falar que a promessa de tecnologia se reverteu em ameaça (para como Hans Jonas), ou ainda diante de tantas novas guerras num mundo globalizado, com o aumento de perigos climáticos, e enquanto tantos outros refugiados põem novamente o pé na estrada (a derrocada continua, sempre), estamos à beira do abismo: o colapso (ou o desabamento], um “nada”, “sem nós”, é possível. Somos mais do que nunca forçados ao retorno à ética hiperbólica, a essa “santidade”, se houver, se ela chegar. Mas esse piscar, dia a dia, na impossibilidade de cancelar suas duas bordas extremas, só pode ser negociado, por exemplo dentro do compromisso, da cortesia, efetivamente, quando falta a santidade.
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A ética do sobrevivente
Lista de referências
Num parágrafo dedicado à “substituição”, em De outro modo que ser ou para lá da essência", Levinas escreve: “É pela condição de refém que pode haver no mundo piedade, compaixão, perdão e proximidade. Mesmo o pouco que encontramos, mesmo o simples primeiro, o senhor”.” Se é preciso primeiro ouvir nessas frases que os bons sentimentos só fazem sentido na medida em que estão relacionados à aterradora “condição de refém” do sujeito, entendo também, que muitas vezes nos encontramos, provavelmente na maioria das vezes, no “pouco”. O “pouco” de cortesia ou de “pequena bondade” esclarece os acordos e os compromissos que, no ser, os coratus crispados, à beira do abismo em que inelutavelmente nos encontramos, fazem circular entre si — pelo menos, tanto quanto o sacrifício, esse “transcendental” tão excepcional e efetivamente concretizado. Assim, tratemos de continuar a transformar a derrocada em significância e em amor — pequenas coisas, pequenas bondades, incansavelmente repetidas à beira do abismo, negociando constantemente com a irredutível crispação egoísta de nossas existências — tão perto dos fantasmas, e tão distante.
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i
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