A doutrina da vontade de poder em Nietzsche
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A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Müller-Lauter, Wollgang A doutrina da vontade de poder em Nietzsche / Wolfgang Müller-Lauter : !tradução Oswaldo Giacoia 1. - São Paulo· ANNABLUME, 1997. - (Coleção E: 6) Título original: Nietzsche Lehre von Willen Zür Macht. Bibliografia. 1. Nietzsche. Friedrich Wilhelm, 1844·1900 1. Título. li. Série. C00-193

97·1839 Índices para catálogo sistemático: 1. Vontade de poder· Nietzsche · Fiolosofia alemã 193

A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

SUMÁRIO

Wolfgang Müller-Lauter

ISBN: 85·85596-85,5

Capa: Luciano Guimarães

A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO

7

Scarlett Marton Revisão: Dida Bessana

CONSELHO EDITORIAL Eduardo Peiiuela Caiiizal Wiili Bolle Norval Baitello Junior Carlos Gardin Lucrécia D' Aléssio Ferrara Ivan Bystrina Salma T. Muchail Ubiratan D' Ambrósio Plínio de Arruda Sampaio Maria Odila Leite da Silva Dias

1ª edição: maio de 1997 ©Wolfgang Müller-Lauter

ANNABLUME editora . comunicação Rua Ferreira de Araújo, 359 - Pinheiros 05428-000 . São Paulo . SP . Brasil Tel. e Fax. (011) 212.6764 http://annablume.com. br

li A DOUTRINA DA VONTADE PODER EM NIETZSCHE Caracterização provisória da vontade de' poder Observações sobre a problemática dos póstumos A significação dos póstumos na interpretação de Nietzsche por Karl Schlechta

49 54 56 59

A respeito das declarações de Nietzsche sobre a vontade de poder em obras publicadas 62 Sobre a interpretação da vontade de poder como princípio metafísico 70 A vontade de poder como um e múltiplo 73 'Vontade de Poder' no singular 81 Os muitos mundos e o único mundo 98 'As' vontades de poder 'no' mundo 104 A vontade de poder como interpretação 120

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Scarlett Marton ir, 1:

Sempre os escritos de Nietzsche dão margem a múltiplas leituras. Apresentam enorme riqueza em figuras de estilo, mascaram a história da vida de um homem, revelam uma experiência filosófica determinante. Prestam-se a estudos de ordem diversa: o exame estilístico, a análise psicológica, a interpretação filosófica. Neles se inspiram grande número de trabalhos; deles tratam outros tantos. Há os que se consagram às influências que o filósofo exerceu e os que se dedicam à repercussão de sua obra. Há os que comparam o tratamento que ele dá a alguns temas com os de outros autores e os que se detêm na análise de um de seus textos. Há ainda os que se voltam para o exame de questões precisas e os que se empenham em avaliar a atualidade de seu pensamento enquanto um todo. Entre nós, duas leituras da obra de Nietzsche acabaram por impor-se: a de Heidegger e a de Foucault. Enquanto Heidegger, com seu fino e preciso _trabal0o filológico, julgou _que a empresa nietzschiana consistia em levar a metafísica

j

él_t~~_s_últimas conseqüências, Foucault, com a amplitude e audácia de sua visão, entendeu que ela residia em inaugura~

10 ~ovas

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técnicas de interpretação. Um atenuou a reflexão do

filósofo p&ra pôr err1 relevo a suapíópria; o outro dela se_ anquan!o caixa de ferramentas.

À margem de ambas situa-se a interpretação de Müller-Lauter.

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e perman0Ce 0bjeto das mais diversas interpretações. Mas tal diversidade não resulta apenas dos pressupostos que norteiam as várias leituras; deve-se também a uma dificuldade técnica.

É sobretudo nos fragmentos póstumos, redigidos pelo filósofo entre o verão de 1882 e os primeiros dias de 1889, que tal concepção se acha presente; e só muito recentemente estas anotações foram publicadas na íntegra. 3

Em seu ensaio A doutrina da vontade de poder em

Nietzsche, 1 Wolfgang Müller-Lauter propõe-se a explorar as idéias do filósofo e desvendar a trama dos seus conceitos. Partindo da análise de uma concepção considerada central pela maioria dos comentadores, reconstrói com clareza e vigor o pensamento do autor de Zaratustra, aquilatando o alcance de sua reflexão. Não é por acaso, porém, que adota este ponto de partida. Controvertida, a concepção de vontade de potência 2 é

1. Publicado numa primeira versão nos Nietzsche-Studien (3) 1974, Berlim, Walter de Gruyter, p. 1-60, é considerado pelo próprio autor como seu ensaio mais importante. 2. Optamos por traduzir a expressão Wil/e zur Macht por vontade de potência. E isto por várias razões. Adotamos a escolha feita por Rubens Rodrigues Torres Filho na sua tradução para o volume Nietzsche - Obras Incompletas da coleção "Os Pensadores" (São Paulo, Abril Cultural, 2ª ed., 1978). Permanecemos fiéis a outros escritos nossos, em que desde 1979 fizemos essa opção. Se traduzir Wil/e zur Macht por vontade de potência pode induzir o leitor a alguns equívocos, como o de conferir ao t13rmo "potência" conotação aristotélica, traduzir a expressão por vontade de poder corre o risco de levá-lo a outros, como o de tomar o vocábulo "poder" estritamente no sentido político (e, neste caso, contribuir - sem que seja essa a intenção - para reforçar eventualmente apropriações indevidas do pensamento nietzschiano). M~smo correndo o risco de fazer má filologia, parece-nos ser pos~ _vel entender o termo Wille enquanto disposição, !Ei_ndên-

Müller-Lauter enfrenta o desafio. Começa por perguntar pela legitimidade de recorrer aos póstumos para examinar a concepção de vontade de potência. Deve-se considerá-los mais relevantes que a obra publicada? Ou, pelo menos, tão importantes quanto ela? Deve-se, ao contrário, levar em conta somente os textos publicados pelo próprio Nietzsche? Ou aterse sobretudo a eles? Mais até, deve-se confiar em igual medida nas diferentes edições das anotações inéditas deixadas pelo filósofo? Enfim, como se deve proceder diante dos escritos de Nietzsche? Esta é, por certo, uma questão metodológica; é inevitável que os estudiosos tenham de se haver com ela. Alguns julgam de maior valor os livros editados pelo filósofo; outros eia, impulso e o vocáhulo .'vlacht, associado ao verbo machen, como fazer, produzir, formar, efetuar, criai. Enquanto força eficiente, a vontade de potência é força plástica, ~;j~-d~r~ -É o i~pulso de toda força a efetivar-se e, c_o111_ _isso, criar novas configurações em relação com as de_rnais._ Contudo, a principal razão, que nos leva a manter a escolha que fizemos, consiste em oferecer ao leitor, com as duas opções de tradução ("vontade de potência" e "vontade de poder"), a possibilidade de enriquecer sua compreensão dos sentidos que a concepção Wil/e zur Macht abriga em Nietzsche. 3. Trata-se da edição crítica das obras completas do filósofo organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Werke. Kritische Gesamtausgabe, 30 vs., Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1967/1978.

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atribuem peso maior aos fragmentos póstumos. Há ainda quem hierarquize os textos segundo a importância que acreditam ter cada um deles, encarando este ou aquele como a "obra capital". E há quem entenda que se deva levar em conta apenas os póstumos que se mostram de acordo com a obra publicada. Contudo, esta não é apenas uma questão metodológica. Perguntar sobre a relação que se deve estabelecer com os

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Assim é que Karl Jaspers, por exemplo, compara a obra do filósofo a um canteiro de obras: as pedras estão mais ou menos talhadas, mas a construção se acha por fazer. 4 Walter Kaufmann caracteriza seu modo de pensar e expressar-se como "monadológico": cada aforismo tende a ser autosuficiente, mas o conjunto se apresenta enquanto construção filosófica. 5 Jean Granier entende seus escritos enquanto um

escritos de Nietzsche tem outras implicações. Importa, antes de mais nada, deixar clara a disposição de não considerar a_ ~bra do autor de Zaratustra mero escrito ideológico; implica sobretudo tornar patente a intenção de tomá-la enquanto texto ~losófico. Esta atitude vem contrapor-se a outras que, sem dúvida, não se pautam por motivos teóricos nem se norteiam por razões de método. Visando a construir e divulgar certa imagem do filóso-

todo como um campo de ruínas - aspecto causado por sua

fo, logo depois do colapso psíquico que ele sofreu nos primeiros dias de janeiro de 1889, muitos decidiram colocá-lo "no seu devido lugar". Houve então os que se dispuseram a fazer uma reavaliação retrospectiva das idéias à luz do enlouquecimento; atribuíram diferentes datas à manifestação dos primeiros sintomas da doença mental. Houve também os que tentaram detectar os escritos redigidos sob o efeito das drogas; foram unânimes em ver nos textos de Turim a influência do cloral. Enfim, _não foram poucos os que se aproveitaram do

ocultou concepções suas ou apenas as deixou entrever. De

-~stado

em que Nietzsche mergulhou para desacreditar sua obra. Hoje a situação é outra. São razões de método que

têm de embasar os diversos procedimentos que os estudiosos adotam em relação à obra publicada e às anotações inéditas do filósofo. Mas é bem possível que tais decisões metodológicas escondam intenções; é provável até que exponham ângulos de visão. É certo que revelam o viés pelo qual o estudioso compreende o autor de Zaratustra, a maneira pela qual o intérprete apreende como o próprio Nietzsche se percebeu e se colocou.

vontade ilimitada de contestação. 6 Eugen Fink, por sua vez, assegura que "Nietzsche mais dissimulou que publicou sua filosofia" 7 e Heidegger, de quem esta interpretação é tributária, afirma que "é nos escritos 'póstumos' que será preciso buscar a autêntica filosofia de Nietzsche". 8 Quanto a este ponto, Müller-Lauter parece estar de acordo com Heidegger. Também ele entende que Nietzsche fato, não são raras as passagens em que o filósofo critica a linguagem em sua função comunicativa. 9 Para que haja c.omu4. Cf. Nietzsche - Einführung in das Verstandnis seines Philosophierens, Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1950. 5. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Antichrist, Nova York, The World Publishing Co., 10ª ed., 1965. 6. Le probleme de la vérité dans la philosophie de Nietzsche, Paris, Seuil, 1966. 7. Nietzsches Phi/osophie, Stuttgart, 1960, p. 1O. 8. Nietzsche, Berlim, Gunther Neske Verlag, 1961, v. 1, p. 17. 9. Lembremos da belíssima passagem do Crepúsculo dos ido/os: "Não nos estimamos mais o bastante, quando nos comunicamos. Nossas vivências mais próprias não são nada tagarelas. Não poderiam comunicar-se, se quisessem. É que lhes falta a palavra. Quando temos palavras para algo, também já o ultrapassamos. Em todo falar há um grão de desprezo. A fala, ao que parece, só foi inventada para o corte transversal, o mediano, o comunicativo. Com a fala já se vulgariza o falante" (Incursões de um

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nicação, não basta utilizar as mesmas palavras; é preciso co-

der a importância e recebam, por fim, cuidadosa formulação. Ao que nos parece, para tentar compreender o pensamento de

mungar as mesmas experiências. Atendendo a exigências da vida gregária, a linguagem opera abreviações. Antes de mais

15

nada, abrevia como o indivíduo se sente e o que pensa e

Nietzsche, é preciso levar em conta todas as suas idéias - as claramente explicitadas e as por serem elaboradas. É igual-

respeito de si e do mundo. Seu caráter grosseiro está longe,

mente necessário considerar todos os seus escritos - os li-

pois, de ser contingente; acha-se inscrito em sua própria natu-

vros publicados e os fragmentos póstumos. Pois, como bem

reza. É para facilitar a sobrevivência que a linguagem, grossei-

faz ver IVlüller-Lauter, o próprio filósofo "se compreendia como

ra, simplifica. E não se reconhecendo simplificadora torna-se

o mais escondido de todos os ocultos".

o solo propício onde se enraízam preconceitos metafísico-reli-

No fim das contas, o autor de Zaratustra é um pen-

giosos. Razões bastantes para Nietzsche apresentar concep-

sador a quem não se aplica a máxima estruturalista que in-

ções suas de modo velado, alusivo ou mesmo hipotético.

atravessado pela visão do eterno retorno, decide não partici-

siste em dever o historiador trabalhar tão-somente com a obra assumida pelo autor, 11 Por isso mesmo, é fundamental distinguir, no coniunto dos inéditos, os escritos póstumos e os esboços preparatórios de trabalhos publicados, as paráfrases de textos já concluídos e os projetos de empreendimentos

pá-la a ninguém. 10 Mas, passados alguns meses, já na Gàia

futuros. É imprescindível discernir com clareza os diversos

ciência anuncia que tudo retorna sem cessar. É certo que, em

registros em que as anotações póstumas se situam. Daí, a

sua obra, existem questões sempre retomadas; é certo tam-

importância de discutir e avaliar as diversas edições da obra do filósofo.

E a estas razões acrescentam-se outras. Tampouco são raros os momentos em que o filósofo se antecipa à elaboração de suas idéias. Tanto é que, em agosto de 1881, ao ser

bém que algumas questões são tratadas num único texto e outras surgem, sofrem mudanças e desaparecem; é certo ain-

Para o leitor brasileiro, esta questão talvez pareça

da que, por vezes, a descontinuidade das questões se dá de

desprovida de sentido. Ela não revela de imediato toda sua

uma linha para outra. Mas também ocorre que idéias se apre-

importância; ainda hoje não se dispõe sequer de uma edição

sentem de início enquanto simples anotações, pareçam logo per-

1o.-

extemporâneo, § 26. Utilizamos a edição das obras de Nietzsche (Werke. Krítische Studienausgabe), organizada por Colli e Montinari; sempre que possível, recorremos à tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho para o volume Nietzsche - Obras Incompletas da coleção Os Pensadores. Tanto é que no dia 14 escreve a Heinrich Kõselitz: "Pensamentos surgiram em meu horizonte, pensamentos tais como nunca vi. Não direi uma palavra e procurarei manter-me calmo e impassível. Sem dúvida, é preciso que eu viva ainda alguns anos".

11. Cf. GOLDSCHMIDT, Victor. "Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos". ln A religião de Platão, traduzido do francês por leda e Oswaldo Porchat Pereira, São Paulo, Ditei, 1963, onde se lê: "Seja qual for o valor dos inéditos, eles não são, enquanto concebidos num tempo unicamente vivido, construídos no tempo lógico, que é o único a permitir o exercício da responsabilidade filosófica. Notas preparatórias, onde o pensamento se experimenta e se lança, sem ainda determinar-se, são léxeis sem crença e, fílosoficamente, irresponsáveis; elas não podem prevalece/ contra a obra, para corrigi-la, prolongá-la ou coroála" (p. 146-7).

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das obras completas de Nietzsche em português. 12 Aqui como

nou as publicações, insistiu no lançamento de edições baratas. Leiloou os manuscritos das conferências "Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino", vendendo-os para um jornal popular em dezembro de 1893; autorizou a publicação de O anticristo em setembro de 1895; organizou uma antologia de poemas lançada antes do Natal de 1897. Com o capital proveniente dos direitos autorais, adquiriu uma propriedade em Weimar e nela instalou os Arquivos Nietzsche, onde recebia personalidades do mundo cultural e político. Mais tarde, permitiu e incentivou a utilização da filosofia nietzschiana pelo Terceiro Reich e, em 1935, foi enterrada com as honras nacionais. E sobre o filósofo Elizabeth Fórster-Nietzsche escreveu ensaios, artigos e uma biografia em três volumes. Para a primeira edição da Vontade de potência, redigiu longa introdução. Nela afirmava que o livro constituía a principal obra em prosa do irmão; infelizmente não fora concluído ou talvez tivesse sido, perdendo-se o manuscrito por ocasião da crise de Turim. Em 1906, publicou a segunda edição, em que reuniu 1.067 fragmentos póstumos, e mais uma vez não respeitou a ordem cronológica nem explicitou os critérios de seleção. Nos manuscritos de Nietzsche, a intenção de escrever um livro intitulado Vontade de potência surge por volta de agosto de 1885; é apenas um título ao lado de outros, um projeto literário dentre vários. No verão do ano seguinte, um plano de trabalho intitulado "Vontade de potência" traz como subtítulo "Ensaio de uma transvaloração de todos os valores. Em 4 livros", disposição que se mantém até 26 de agosto de 1888. A partir daí, o título "Vontade de potência" desaparece, cedendo lugar a "Transvaloração de todos os valores" .13

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alhures, o filósofo tornou-se célebre antes de ser conhecido. Por volta de 1900, André Gide escrevia nas Lettres à Angele: "A influência de Nietzsche precedeu o aparecimento de sua obra". Atento à difusão de seu pensamento na França, referiase ao fato de seus livros não terem sido todos traduzidos para o francês. Quase cem anos depois, as palavras de Gide prestam-se muito bem para descrever o que ocorre entre nós. Os estudiosos de Nietzsche, porém, logo se vêem confrontados com sérios problemas, quando se debruçam sobre as primeiras edições de seus textos. Em 1901, Elizabeth Fórster-Nietzsche publicou uma obra a que deu o nome de Vontade de potência. A partir de apontamentos que o filósofo deixou e de um plano que ele seguiu durante algum tempo, reuniu 483 fragmentos póstumos redigidos entre o outono de 1887 e os primeiros dias de janeiro de 1889. Escolheu-os a dedo no caos das notas escritas durante meses e organizouos sem respeitar sequer a ordem cronológica. Assim, com a ajuda de Heinrich Kóselitz, compilou o que apresentou como a "obra filosófica capital" de Nietzsche. Para legitimar sua empresa, a irmã do filósofo não hesitou em falsificar cartas por ele dirigidas, na sua maioria, à amiga Malwida von Meysenbug; obteve os originais, compôs o texto a partir deles e depois os destruiu. Apresentando-secomo destinatária das missivas, pretendia impor imagem de credibilidade junto aos editores e amigos do filósofo; queria levar a crer que conhecia as intenções dele melhor que ninguém. Espírito empreendedor, Elizabeth empenhou-se na difusão do nome de Nietzsche pela imprensa; entre 1893 e 1900, fez dele o ídolo das revistas. De posse da custódia de seus escritos, elaborou uma nova edição de seus livros, supervisio12. E ainda menos da edição crítica organizada por Giorgio

Collí e Mazzino Montinari.

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13. A esse propósito, comenta Mazzino Montinari: "Assim terminam, na vigília do próprio fim de Nietzsche, as vicissitudes do projeto literário da Vontade de potência" (Su Nietzsche, Milão, Editori Riuniti, 1981, p. 65).

r= 18

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Questionável sob vários aspectos, a obra que a irmã do filósofo publicou como Vontade de potência serviu, até a década de 1950, enquanto instrumento de trabalho para os estudiosos. Contudo, depois da Segunda Grande Guerra, Karl Schlechta denunciou

o procedimento de Elizabeth

Fõrster-Nietzsche e desqualificou o livro por ela inventado. Baseando-se em pesquisas feitas nos Arquivos Nietzsche em Weimar, constatou que não existia a Vontade de potência, a 14

"obra capital"; tudo o que havia eram papéis póstumos. Não coube a ele, porém, publicar na íntegra os escritos do filósofo; na edição em três volumes que levou a termo, limitou-se a divulgar pequeno número de inéditos. E, ao lado de alguns outros textos, nela incluiu justamente os fragmentos póstumos reunidos na edição de 1906 da Vontade de potência. É bem verdade que procurou estabelecer a ordem cronológica em que teriam sido redigidos; mas não alcançou grande êxito, pois, ao que consta, não teve acesso aos manuscritos originais. Não é por acaso que, no entender de Müller-Lauter, o grande mérito da edição que Schlechta organizou residiu em denunciar a lenda de que a Vontade de potência constituiria a "obra filosófica capital" de Nietzsche. E seu maior defeito -

apesar de não ser essa a intenção do editor -

consistiu em reforçar a imagem do filósofo que esse mesmo livro divulgou. 14. Foi, então, incisivo: "basta folhear esse conjunto para ver que os textos reunidos (na Vontade de potência), embora póstumos, despertaram interesse considerável. Deve-se refletir ainda mais sobre o fato, quando se percebe que a maior parte desses textos impressos sem a autorização de Nietzsche não concorda com a textura dos manuscritos: a Vontade de potência não é uma obra póstuma" ("A lenda e seus amigos". ln Le Cas Nietzsche, traduzido do alemão por André Coeuroy, Paris, Gallimard, 1960, p. 123).

19

Veio a público, por fim, a edição crítica das obras completas de Nietzsche, organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Fruto de um trabalho de fôlego, desenvolvido ao longo de anos com extremo cuidado e rigor, contou com a colaboração decisiva de Müller-Lauter. De início parceiro de Montiriari nesse empreendimento, ele acabou por substituí-lo, depois de sua morte em 1986, passando a coordenar e dirigir as tarefas editoriais relativas aos póstumos e às cartas de Nietzsche. 15 Imprescindível para a pesquisa internacional acerca da obra do filósofo, esta edição crítica acumula méritos inquestionáveis: tornou acessível aos estudiosos a totalidade dos escritos de Nietzsche; buscou recuperar os textos de acordo com os manuscritos originais ordenados cronologicamente; procurou depurar das deformações e falsificações que sofreram a obra publicada, as anotações inéditas e a correspondência; incluiu imenso aparato histórico-filológico de valor inestimável. Contudo, antes de ela vir a público, graves equívocos foram gerados pelas edições que a antecederam. Algumas dentre elas, sem dúvida, também contribuíram para as diferentes apropriações ideológicas das idéias do autor de Zaratustra. No início do século, na Europa, muitos consideravam Nietzsche um pensador dos mais revolucionários e, na Espanha, chegavam a vê-lo como um "anarquista intelectual". Passadas poucas décadas, porém, tomaram-no como um dos pilares do nazismo na Alemanha e dele se apropriaram como um 15. Não se detém aí a atividade editorial de Müller-Lauter. Além de responder durante algum tempo enquanto diretor de Theologia Viatorum, um dos mais importantes periódicos na área de teologia filosófica e filosofia da religião, fundou em 1972 os Nietzsche-Studien. Até bem recentemente, foi um dos editores responsáveis dessa publicação anual, que, por sua qualidade, conquistou um lugar ímpar na cena filosófica mundial.

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pensador de direita na França. 16 Por certo, houve quem denunciou a trama que ligava o nome de Nietzsche ao de Hitler. De 1935 a 1945, vários intelectuais - dentre eles: Bataille, Klossowski, Jean-Wahl, que se reuniam em torno da revista Acépha/e - empenharam-se em desfazer o equívoco.

ideológica. Reivindicando "a exigência ancestral da racionalidade", alguns pensadores da nova geração francesa quiseram pensar com Nietzsche contra o nietzschianismo; melhor ainda, contra determinada utilização das idéias do filósofo. E pensar com Nietzsche, em princípio, deveria significar levar a sério suas afirmações. Mas o propósito que declaravam perseguir não impediu que fizessem recortes arbitrários nos textos 18 ou se apoiassem em citações extraídas da Vontade de potência, sem levar em conta que este foi um livro inventado pela irmã do filósofo. 19 De fato, combatendo o que julgaram ser uma apropriação ideológica, a de apresentar Nietzsche como o mestre da suspeita, limitaram-se a substituir uma imagem sua por outra. E com a agravante de que esta nova imagem, na verdade, reeditou outras bem mais antigas: a de Nietzsche racista e anti-semita ou, na melhor das hipóteses, a de Nietzsche comprometido com o pensamento tradicional. É com determinação que Müller-Lauter se empenha em desmascarar as leituras ideologizantes da obra do filósofo. Em seu artigo "O desafio Nietzsche", ele faz ver com clareza como "ideologias têm freqüentemente relações próprias de reciprocidade". 2 Mostra como se construiu a imagem marxista de Nietzsche numa reação à imagem nacional-socialista forjada no Terceiro Reich. E aponta que, para tanto, em muito con-

20

No final da década de 1960, a extrema-esquerda francesa fez do filósofo o suporte de suas teorias. E intelectuais de peso, durante as duas últimas décadas na França, privilegiaram a vertente corrosiva do seu pensamento. Incluíram-no ao lado de Marx e Freud entre os "filósofos da suspeita"; e entenderam a filosofia como "exercício infinito da desconstrução". Bem mais recentemente, alguns pensadores da nova geração pretenderam romper com Nietzsche através de um acerto de contas com os nietzschianos franceses de hoje. E voltaram contra seus mestres, Foucault, Deleuze, Derrida

e outros, as

armas que estes lhes ensinaram a manejar.17 Este fato ilustra bem os maus feitos da apropriação 16. Atítulo de exemplo, cf. o artigo "Nietzsche contra Marx", publicado em 1934 por Drieu-la-Rochelle, em Socialisme fascista. 17. Cf. BOYER, Alain et alii. Pourquoi nous ne sommes pas nietzschéens, Paris, Bernard Grassei & Fasquelle, 1991. De modo geral, o livro peca por falta de reflexão filosófica e excesso de estados psicológicos, relatos autobiográficos. Mas, para além da aparente catarse, tem um objetivo político muito preciso: demarcar território, conquistar espaço no cenário intelectual francês. E, para tanto, nada mais eficiente que a polêmica. Se a obra possui a qualidade do panfleto, isto é, a veemência, seu maior defeito reside em manifestar a alergia por Nietzsche, com o ímpeto de contrapor-se aos nietzschianos franceses. Lançado no Brasil com o título Por que não somos nietzschianos (São Paulo, Ensaio, 1994), esperemos que não venha apenas substituir um equívoco por outros tantos, mais graves e numerosos.

21

º

18. É o caso do artigo de André Comte-Sponville "A bestafera, o sofista e o esteta: 'a arte a serviço da ilusão' " (na edição brasileira, p. 37-96). 19. É o que ocorre no texto de Pierre-André Taguiefl "O paradigma tradicionalista: horror da modernidade e antiliberalismo, Nietzsche na retórica reacionária" (na edi· ção brasileira, p. 213-94). 20. Traduzido numa primeira versão _por Ernani Chaves e na versão definitiva pela Comissão Editorial da rnvista, in discurso (21), 1993, p. 21. Este foi o primeiro texto de Müller-Lauter que com grande sa1isfação logramos publicar no Brasil.

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correu o trabalho de Georg Lukács. Recorrendo à sociologia, o autor de A destruição da razão pretendeu explicar as colocações do filósofo como resultantes de determinada posição ideológica que vinha em defesa da burguesia imperialista na Alemanha. Embora suas idéias fossem nebulosas, suas afirmações confusas e sua reflexão eivada de contradições, ao seu pensamento garantia coesão o conteúdo social nele expresso. E este consistia na luta contra o socialismo. Mas Müller-Lauter pergunta: "Pode-se demonstrar melhor o irracionalismo de Nietzsche do que quando se lhe nega toda coerência de idéias e se encontra sua unidade pura e simplesmente na irrazão ideológica da fundamentação do imperialismo?" 21 Não é por acaso que o livro de Lukács foi determinante na antiga República Democrática da Alemanha; ele contribuiu para a maneira pela qual lá passaram a encarar Nietzsche. Julgaram que seu pensamento se propunha a fazer a roda da história girar para trás; entenderam, por exemplo, que a vontade de potência e o eterno retorno do mesmo estavam na base da visão de mundo que alimentava todas as cruzadas anticomunistas.22

pensamento, como propedêutica à superação das condições individuais", e concluiu: "recuperemos Nietzsche". Por furtar-se a enfrentar seu pensamento, há quem pretexte os efeitos políticos desastrosos que ele teria causado. Se hoje há quem declare que seus escritos são monstruosos, é porque não quer ver as deturpações de que foram objeto. Assim reaviva-se a imagem de Nietzsche precursor do nazismo, fruto de uma leitura ligeira e superficial. Por desprezar sua reflexão, há quem sustente que o filósofo não fornece instrumentos para analisar as questões políticas. Se hoje há quem assegure que, no Brasil, é inútil ler seus textos, é porque deles espera respostas imediatas para os nossos problemas. Assim divulga-se a imagem de Nietzsche desnecessário e inoperante, fruto de um modo de pensar prag-

E a nós surpreende que também no Brasil ainda haja quem partilhe tais preconceitos. Entre nós, muito cedo as idéias de Nietzsche despertaram interesse. Já no início do século, sua obra deixava marcas na literatura anarquista. Poucas décadas depois, seguindo o espírito da época, o filósofo passou a ser tomado como pensador de direita. E quando chegava ao auge a sua difamação, Antonio Candido tomou a sua defesa. No ensaio "O portador", publicado em 1946 no Diário de São Paulo, conclamou a que se levasse em conta "sua técnica de 21. Idem, ibidem, p. 21. 22. Müller-Lauter menciona o último livro sobre Nietzsche que veio a público na República Democrática da Alemanha. Trata-se de Zur Phi/osophie Friedrich Nietzsches de Heinz Malorny lançado em 1989, em Berlim.

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mático e utilitarista. Para desvalorizar suas idéias, há quem argumente que o autor de Zaratustra é um fenômeno episódico da história da filosofia. Se hoje há quem afirme que sua obra não deixou marcas, é porque desconhece a gama de escritos e debates que ela continua a ensejar. Assim difunde-se a imagem de Nietzsche sem escola ou seguidores, fruto de uma abordagem precipitada e cheia de prevenção. Em suma, se entre nós ainda hoje há quem alerte para os perigos do contágio Nietzsche ou por ele manifeste alergia, argumentando que é um pensador contraditório e irracionalista, é porque não se dispõe a enfrentar, sem intermediações, sua fala: corrosiva, mas também construtiva.

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Nietzsche, um dos pensadores mais controvertidos de nosso tempo, deixou uma obra polêmica que continua no centro da discussão filosófica. Mas, na verdade, dele sempre se disse o que se quis. Nos cem anos que nos separam do momento em que interrompeu sua produção intelectual, as mais

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variadas imagens colaram-se à sua figura, as leituras mais diversas juntaram-se ao seu legado. Logo depois da crise de Turim, a súbita repercussão da obra trouxe em seu bojo o exorcismo de sua filosofia. Num primeiro momento, o interesse despertado pela biografia e a ênfase dada ao estilo atenuaram a torça de suas idêias. Episódios de sua vida - como a estada em clínicas psiquiátricas - atraíam a atenção e aguçavam a curiosidade. Genialidade e loucura eram termos indissociáveis nos "círculos nietzschianos", que começaram a proliferar em toda a Alemanha na passagem do século. Tudo se passava como se a crise em que o filósofo mergulhara o envolvesse numa aura de mistério, conferindo a afirmações suas o peso das proclamações de um profeta. Era na literatura mais do que em qualquer outro campo que se exercia a sua influência. Nele se inspiraram autores naturalistas e expressionistas menos conhecidos e, também, escritores de renome como Stefan George, Thomas Mann e, mais recentemente, Robert Musil e Hermann Hesse. Muitos partiam do princípio de que Nietzsche não elaborou um programa, mas criou uma atmosfera: o importante era respirar o ar de seus escritos. Fascinados por sua linguagem, nele redescobriam a sonoridade pura e cristalina das palavras, a correspondência exata entre nuanças de sons e sentidos, a nova perfeição da língua alemã. Mas viam-no sobretudo como um fino estilista e abandonavam quase por completo o exame de suas idéias. Entre 1890 e 1920, biografia e estilo ficaram em primeiro plano; com os anos, porém, começaram a surgir as mais diversas interpretações da filosofia de Nietzsche. Alguns fizeram dele o defensor do irracionalismo; outros, o fundador de uma nova seita, o guru dos tempos modernos. Houve os que o consideraram um cristão ressentido e os que viram nele o inspirador da psicanálise. Houve ainda os que o tomaram por

precursor do nazismo e os que o encararam como o crítico da ideologia, no sentido marxista da palavra. E multiplicaram-se as interpretações de suas idéias. Alguns tentaram esclarecer os textos partindo de uma abordagem psicológica. Entendiam as possíveis contradições neles presentes como manifestação de conflitos pessoais; 23 percebiam suas idéias como uma "biografia involuntária de sua alma"; 24 compreendiam, em particular, sua concepção de além-dohomem como fruto de uma "filosofia de temperamento". 25 Outros, apoiando-se na psicanálise, diagnosticaram seu pensamento como expressão de uma personalidade neurótica. Encaravam a doutrina da vontade de potência como tradução filosófica do jogo de seus mecanismos inconscientes; 28 relacionavam essa mesma doutrina com seu sentimento de inferioridade; 27 tomavam as teses da morte de Deus e do surgimento do além-do-homem como o ponto de chegada de um processo que remontava às origens da consciência moderna. 28

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23. Cf. ANDRÉAS-SALOMÉ, Lou. Friedrich Nietzsche in seinen Werken, Frankfurt am Main, lnsel Verlag, 1983; em português, Nietzsche em suas obras, São Paulo, Brasiliense, 1992. O propósito do livro é esclarecer o pensador através do homem; o pressuposto de que parte é o de que, em Nietzsche, obra e biografia coincidem. 24. Cf. WOLFF, Hans. Friedrich Nietzsche. Der Weg zum Nichts, Berna, A. Francke Verlag, 1956. O autor procura mostrar como o empenho de Nietzsche em conhecer condenou-o ao niilismo. 25. Cf. JANKÉLÉVITCH, S. Révolution et Tradition, Paris, Janin, 1947. O objetivo do livro reside em fazer ver que o pensamento de Nietzsche é uma "filosofia de atmosfera". 26. Cf. JUNG, Carl Gustav. Über die Psychologie des Unbe· wussten, Zurique, Rasher Verlag, 1951. 27. Cf. DELAY, Jean. Aspects de la Psychiatrie moderne, Paris, PUF, 1956. O autor dedica uma parte desse estudo à interpretação de algumas teses de Nietzsche. 28. Cf. ADLER, Gerhard. Études de Psychologie Jungienne,

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A repercussão de seus escritos acabou por fazer-se sentir nas mais diversas áreas: na literatura, nas artes, na psicanálise, na política, na filosofia. É inegável que seus textos deixaram marcas indeléveis em nossa cultura. Sensível ao impacto causado por Nietzsche nos últimos cem anos, MüllerLauter afirma: "A história de sua influência, que não se limitou nem à Alemanha, nem à Europa, já foi diversas vezes escrita sob diferentes pontos de vista". E acrescenta: "Com resultados consideráveis, foi inserida no conjunto de experiências de sucessivas gerações de nosso século". 29 Antes de tudo, Nietzsche não queria ser confundido. Para sua surpresa e horror, tanto anti-semitas quanto anarquistas se diziam seus adeptos. Ao longo de décadas, porém, será evocado por socialistas, nazistas e fascistas, cristãos, judeus e ateus. Pensadores e literatos, jornalistas e homens políticos terão nele um ponto .de referência, atacando ou defendendo sua obra, reivindicando ou exorcizando suas idéias. No mais das vezes, vão operar recortes arbitrários em seu pensamento visando a satisfazer interesses imediatos. Dessa perspectiva, quem julgou compreendê-lo equivocou-se a seu respeito; quem não o compreendeu julgou-o equivocado. Uma coisa é denunciar as utilizações indevidas que se tez do autor de Zaratustra; outra é apontar as dificuldades de compreensão que seus escritos colocam. Atento a estas duas ordens de questões, Müller-Lauter adverte: "À primeira vista parecem ser supérfluas indicações acerca de como se

deve ler Nietzsche. Nenhum filósofo alemão escreveu textos tão acessíveis como ele". 30 É bem verdade que, neste caso, o leitor não se arrisca a defrontar-se com um escrito hermético e impermeável a toda abordagem. É certo, porém, que corre o risco de julgar, iludindo-se, apreender com justeza o que parece facilmente acessível. Mais grave é este perigo que tem de enfrentar: o de deter-se onde é instado a prosseguir investigando, o de abandonar arbitrariamente a busca e apegar-se ao já conhecido. E nada mais avesso ao espírito nietzschiano que cristalizar convicções. 31 No entender de Müller-Lauter, o filósofo lança mão de diversos recursos "para induzir seus leitores a um trato penetrante com seus textos". E todos contribuem para incitá-los a portarem-se enquanto filólogos. 32 Recorre a expedientes vários para atraí-los, provocá-los e levá-los a toda espécie de tentações. E todos concorrem para instigá-los a ruminar seus pensamentos. 33 É desta forma que quer ser lido; lentamente,

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Genebra, Librairie de l'Université, 1957. Consagra uma parte do trabalho ao esclarecimento de idéias de Nietzsche, a partir de teses de Jung. 29. "O Desafio Nietzsche", loc. cit., p. 7. E Müller-Lauter refere-se ao livro de Hermann Rausching, Masken und Metamorphosen de.s Nihilismus (FrankfurtNiena, 1954), em que, a partir da iminência do niilismo antecipada por Nietzsche, o autor distingue três fases de sua influência.

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30. "Uma filosofia para ruminar", Folha de S. Paulo, 9 de outubro de 1994, Caderno Mais, p. 7. Sob esse título veio a público a primeira parte do texto "Über den Umgang mil Nietzsche" (Sobre o trato com Nietzsche) na tradução de Oswaldo Giacóia Júnior. Eeste foi o segundo texto de Müller-Lauter que pudemos trazer para o leitor brasileiro. 31. Lembremos do aforismo 483 de Humano, demasiado humano, onde se lê: "As convicções são inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras". 32. Cf. nesse sentido Ecce homo, Por que escrevo livros tão bons, § 5: "Que, nos meus escritos, fala um psicólogo sem igual, é talvez a primeira constatação a que chega um bom leitor - um leitor tal como mereço e que me lê como os bons filólogos de outror liam Horácio". 33. Cf. nessa direção A genealogia da moral, prefácio, § 8: "É certo que, a praticar desse modo a leitura enquanto arte, é necessário algo que precisamente em nossos · dias mais se desaprendeu - e por isso exigirá tempo

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com cuidado e consideração. Do leitor ideal espera coragem e curiosidade; exige uma leitura compromissada. Acerca da questão "como ler Nietzsche?'', Deleuze e Lyotard tomaram posição no Colóquio de Cerisy. 34 Entenderam que ele não se presta a comentários, como Descartes ou Hegel. Nele, a relação com o exterior não é mediada pela interioridade do conceito ou da consciência; as palavras não valem como significações, representações das coisas. E querer comentá-lo, revelar o sentido de seu discurso, implica tomar o partido da interioridade e da representação. É preciso, ao contrário, fazer uma leitura intensiva do filósofo; no dizer de Deleuze, conectar o texto com a força exterior pela qual ele faz passar algo ou, no de Lyotard, produzir novas, diferentes intensidades. Com isso, o autor desapareceria no texto e este,

Klossowski 37 pareciam atentos àquilo que o discurso nietzschia-

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nos leitores. Naquela ocasião, Oeleuze, 35 Lyotard 36 e também até que meus escritos sejam 'legíveis' - para o qual se deve ser quase vaca e de modo algum 'homem moderno': o ruminar... " 34. Em julho de 1972, o Colóquio de Cerisy congregou pensadores franceses ealemães, na sua maioria, para debater o tema "Nietzsche hoje?" Os trabalhos então apresentados foram publicados sob o título Nietzsche aujourd' hui? em dois volumes na coleção 10/18 (Paris, UGE, 1973), que reuniu 24 comunicações, geralmente seguidas pela reprodução das discussões, e duas mesas-redondas. A partir desse material, organizamos o volume Nietzsche hoje? (traduzido do francês por Milton Nascimento e Sô· nia Salzstein Goldberg, São Paulo, Brasiliense, 1984); que trouxe a público nove trabalhos seguidos das discussões que então ensejaram. O critério de nossa seleção consistiu em oferecer ao leitor brasileiro a máxima diversidade, diversidade de temas, abordagens e perspectivas. 35. Cf. "Pensée nomade". ln Nietzsche aujourd'hui?, volume 1, p. 159-74; "Pensamento nômade". ln Nietzsche hoje?, p. 56-76.

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no suscitava; nortearam-se menos pelas idéias do filósofo que pela perspectiva que acreditavam apontar. Em 1964, no Colóquio de Royaumont, Foucault aproximara "Nietzsche, Marx, Freud". 38 Não se tratava de examinar os pensadores para contrapor concepções suas ou de lançar mão de um deles para demolir o outro, mas de relacioná-los justamente porque, em vez de multiplicar os signos do mundo ocidental, teriam criado

nova possibilidade de interpietá-los. Em 1972, Deleuze, Klossowski e Lyotard insistiram em atribuir a Nietzsche lugar privilegiado. A ele recorreram para refletir sobre política, arte, cultura, psiquiatria; tomaram-no como referência para pensar seqüestros e justiça popular, ocupação de fábricas e squattings, insurreições e comunidades antipsiquiátricas, happenings e pop art, a música de Cage e os filmes de Godard. Segundo Lyotard, só Nietzsche permitia um discurso de intensidades máximas; para Deleuze, ele operava uma decodificação absoluta, enquanto Freud e Marx apenas recodificações.

É com prudência e cautela que Müller-Lauter se posiciona diante da leitura proposta pelos franceses e, em parti· cular, por Deleuze. Antes de mais nada, busca situá-la no espaço em que conflitam as diversas apropriações ideológicas do autor de Zaratustra. No artigo "O desafio Nietzsche", mostra que à imagem nacional-socialista do filósofo construída no Terceiro Reich veio opôr-se a marxista, que via seu pensamento como expressão da luta da burguesia contra o socialismo. 36. Cf. "Notes sur le retour et le kapital". ln Nietzsche aujourd'hui?, v. 1, p. 141-57; "Notas sobre o retorno e o Kapital". ln Nietzsche hoje?, p. 44-55. 37. Cf. "Circulus vitiosus". ln Nietzsche aujourd'hui?, v. 1, p. 141-57; "Circulus vitiosus". ln Nietzsche hoje?, p. 91-103. 38. ln Nietzsche, Cahiers de Royaumont - Philosophie nº VI, Paris, Minuit, 1967, p. 183-92.

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pelo seu conteúdo, não ac::iba por estabelecer um tratamento arbitrário dos textos do filósofo, tratamento que excede a abertura já concedida por Nietzsche a seus leitores". E conclui: "Tal pergunta deve ser respondida afirmativamente". 39 Ainda a propósito da questão "como ler Nietzsche?", Karl Lõwith defende este ponto de vista: Não são as leituras

to em comum. Por não ater-se ao passado, Deleuze não se preocupou

mo como instrumento de luta.

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Mas, pondo em relevo o caráter transgressor da filosofia de Nietzsche, não acabou Deleuze por atribuir-lhe "um pathos social que lhe é estranho"? Mais até, não acabou por ler os escritos do filósofo "de uma maneira particularmente descompromissada"? É justamente o que pensa Müller-Lauter. "Impõe-se a questão de saber", diz ele, "se a corrente de força, com a qual Deleuze penetra de fora no interior dos aforismos nietzschianos e de novo volta para fora, enriquecido

E, a partir do início da década de 1970, a esta última imagem intelectuais franceses contrapuseram outra, a que tomava sua filosofia justamente como aliada no combate ao emburguesamento. Foi nessa direção que caminhou Michel Foucault. Grande foi o impacto do texto que apresentou no Colóquio de Royaumont. Aproximando Nietzsche, Freud e Marx, seu trabalho serviu, por um lado, como ponto de partida para as reflexões que Deleuze, Lyotard e Klossowski vieram a desenvolver acerca da atualidade do pensamento nietzschiano. E, por outro, provocou reações imediatas da parte dos ideólogos na antiga República Democrática da Alemanha. Insurgindo-se contra a idéia de colocar Nietzsche e Marx lado a lado, eles sustentaram que não era possível nem legítimo pretender que ambos tivessem algum pon-

com a utilização indevida que fascistas e nazistas fizeram dos escritos de Nietzsche; entendeu que com ela Jean-Wahl, Klossowski e Bataille já haviam acertado as contas. Por voltar-se para o futuro, empenhou-se em ressaltar o caráter ativo das idéias do autor de Zaratustra; julgou que nelas se manifestava grande força revolucionária. Seguindo em vários pontos a interpretação de Foucault, considerou que, se a "trindade" Nietzsche, Marx e Freud se achava na aurora da modernidade, o primeiro nome que a constituía deveria ocupar posição de destaque. As idéias de Freud e as de Marx concorreram para desmontar os códigos sociais estabelecidos; o marxismo e a psicanálise, enquanto "as duas burocracias fundamentais", voltaram a normalizar a vida pública e a privada. E assim operaram recodificações. Contra a "cultura burguesa", de que acreditava fazer parte inclusive o pensamento marxista, Deleuze procurou utilizar a filosofia nietzschiana. Contra a construção da imagem marxista do filósofo, que só pôde condenar o estilo aforismático que ele adotou em vários de seus textos, o pensador francês quis resgatar o aforis-

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que constituem um texto filosófico; ele permanece o que é, independentemente delas. Há, portanto, leituras corretas e erradas. O critério que se impõe é o de compreender o autor como ele mesmo se compreendeu - nem mais, nem menos. E, no caso de Nietzsche, as dificuldades não são grandes, uma vez que ele reexaminou seus escritos nos prefácios de 1886 aos livros já publicados e ainda na autobiografia. "Nietzsche é o tipo de pensador que sempre tentou, ele próprio, fazer o balanço de seu pensamento", afirma Lõwith; "no Ecce Homo, visão retrospectiva da obra, constata, surpreso, que teve idéias, mas ignorava sua unidade e era inconsciente de sua coerência, que só lhe aparecia no fim". 4

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Outra é a posição de Müller-Lauter. Tomando distância em relação a Lõwith, ele entende que, na autobiografia mais do que em qualquer outro texto, Nietzsche desafia o leitor a compreender seu pensamento. Tanto é que já no prólogo 39. "O Desafio Nietzsche", toe. cit., p. 24. 40. ln Nietzsche aujourd'hui?, volume 2, p. 227; Nietzsche hoje?, p. 159.

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clama que não o confundam. 41 Mas, se no primeiro parágrafo faz essa exigência, logo no seguinte apresenta-se como uma natureza antagônica. 42 E, no seu caso, é preciso levar em conta não só os antagonismos que tem fora de si mas também . aqueles que traz em si. É por essa razão que "não há o único entendimento correto do pensamento de Nietzsche em um sentido definitivo e conclusivo", assegura Müller-Lauter. "Isso porque não apenas ele próprio é inconcluso, mas, segundo pressupostos a ele inerentes, também tem que permanecer inconcluso" .43

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a defesa de convicções. Não é por acaso que. no entender de Nietzsche, seriam justamente estes os requisitos essenciais do espírito livre. 44 Alguns não hesitam em falar do mal-estar que ho1e lhes provocam os escritos do filósofo; outros, da sedução que ainda exercem. No Colóquio de Cerisy, Eugen Fink 45 reconhe· ceu que sua obra literária não mais influenciava escritores de talento como outrora; o encanto produzido pe!a perfeição de sua linguagem era coisa datada. Também Lõwith 46 admitia que a embriaguez provocada por suas metáforas, parábolas e aforis-

Nos dois artigos publicados no Brasil, não passam despercebidas as inquietações de Müller-Lauter diante da questão "como ler Nietzsche?". Na verdade, ele se dedica ades-

mos pertencia ao passado, quando Assim falava Zaratustra, verdadeira bíblia, acompanhava os voluntários da Primeira Guer-

mascarar as apropriações ideológicas da obra do filósofo e empenha-se em lidar com as peculiaridades de sua maneira

de Nietzsche ainda podem causar, não devem ofuscar o olhar

de expressar-se. Se é preciso impedir desvios e deturpações propositais de seu pensamento, também é necessário evitar mal compreender suas idéias. E, no limite, os dois procedimentos vêm juntos; num caso e noutro, trata-se de desfazerse de hábitos, abandonar comodidades, renunciar à segurança. Numa palavra, trata-se de impedir a adoção de crenças, evitar 41. É o que se lê nas últimas linhas do primeiro parágrafo do prólogo de Ecce homo: "Nessas circunstâncias há um dever, contra o qual se revolta, no fundo, meu hábi· to, e mais ainda o orgulho de meus instintos, ou seja, de dizer: Ouçam! Pois eu sou tal e tal. Não me confundam, sobretudo!" 42. CI. as primeiras linhas do segundo parágrafo do prólogo de Ecce homo: "Não sou, por exemplo, nenhum bichopapão, nenhum monstro de moral - sou até mesmo uma natureza oposta (eine Gegensatz-Natur) à espécie de homem que até agora se venerou como virtuosa. Entre nós, parece-me que precisamente Isso faz parte de meu orgulho". 43. "Uma filosofia para ruminar", toe. cit., p. 7.

ra. Contudo, a aversão ou o fascínio, que porventura os textos do comentador. Ele deseja, por certo, um leitor atento - e não preconceituoso ou entusiasta. De diferentes maneiras, ao longo dos anos, os historiadores da filosofia interpretaram a sua obra. Alguns procura44. Vale lembrar esta passagem notável da Gaia ciência: "Onde um homem chega à convicção fundamental de que é preciso que mandem nele, ele se torna 'crente'; inversamente seria pensável um prazer e uma força de autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, de todo desejo de certeza, exercitado, como ele está, em poder manter-se sobre leves cordas e possibilidades, e mesmo diante de abismos dançar ainda. Um tal espírito seria o espírito livre par excellence" (§ 347). 45. Cf. "Nouvelle expérience du monde chez Nietzsche". ln Nietzsche aujourd'hui?, v. 2, p. 345-64; "Nova experiência do mundo em Nietzsche". ln Nietzsche hoje?, p. 168-92. . 46. Cf. "Nietzsche et l'achévement de l'athéisme". ln Nietzsche aujourd'hui?, v. 2, p. 207-22; "Nietzsche e a completude do ateísmo". ln Nietzsche hoje?, p. 140-67.

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1954,ss Heidegger apontava a íntima ligação entre a teoria da

ram apontar os referenciais teóricos que ele adotou e aprofundar os conceitos com que trabalhou; outros buscaram situá-lo em seu momento histórico e reinscrevê-lo na atmosfera

vontade de potência e a doutrina do eterno retorno; em 196 ·1, s6

cultural de sua época. Um dos primeiros a desenvolver um

nietzschiana Um ano depois, apareceu na França

trabalho de conjunto sobre o seu pensamento foi Charles Andler. 47 Lançados entre 1920 e 1931, os seis volumes de

de Gilles Deleuze, 57 que pôs em relevo a noção de valor

seu estudo foram criticados por outros comentadores. Henri Lefebvre 48 nele viu um afrancesamento das idéias de Nietzsche e Jean Gran·1er 49 nele responsabilizou o acúmulo de documentos acessórios pela penúria da análise dos temas propriamente filosóficos. O trabalho de Andler teve, porém, grande relevância: apontou as influências a que Nietzsche foi suscetível, refez a trama conceituai de seus escritos e empenhou-se em

no Colóquio de Royaumont, Michel Foucault aproximou

reintroduzi-lo na tradição cultural. Karl Lõwith, por sua vez, publicou em 1941 um estudo, 50 em que tentava reinseri-lo no pensamento alemão do século XIX, e antes disso, em 1935, outro, 51 em que se detinha no exame da doutrina do eterno retorno. Em 1936, Karl Jaspers 52 escreveu um trabalho sistemático sobre a vida e obra do filósofo. Vinte anos mais tarde, Walter Kaufmann 53 trouxe a público importante estudo em língua inglesa, consagrando-se sobretudo à análise da teoria da vontade de potência. Nessa época, em textos de 1950

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e de

permitiu que fossem editados seus cursos sobre a tilosotia 0

trabalho 8

salientou a importância do procedimento genealógico. Em 1964, "Nietzsche, Marx, Freud", entendendo que, no século XIX. eles teriam inaugurado uma nova hermenêutica. E, em 1972, no Colóquio de Cerisy, encontro internacional em torno da questão "Nietzsche hoje?", Deleuze, Klossowski e Lyotard exploraram em outra direção a trilha aberta por Foucault: não pretenderam pensar a atualidade do texto nietzschiano mas pensar a atualidade através dele. Foi pela leitura dos pensadores franceses, em particular de Foucault e Deleuze, que, recentemente, no início da década de 1980, o autor de Zaratustra ganhou ouira vez destaque no Brasil. A partir de Royaumont, Foucault encarou Nietzsche menos como objeto de análise que como grille de lecture; relacionou-se com ele menos como o comentador com seu interpretandum que como o pensador com sua caixa de ferramentas. Em Cerisy, Deleuze, que em 1962 havia publicado um comentário exemplar da obra do filósofo, questionou

47. Cf. Nietzsche, sa vie et sa pensée, Paris, Gallimard. 48. Cf. Hegel, Marx, Nietzsche, Paris, Casterman, 2ª ed., 1975. 49. Cf. Le probléme de la vérité dans la philosophie de Nietzsche, Paris, Seuil, 1966. 50. Cf. Von Hegel zu Nietzsche, Zurique, Europa Verlag, 1941. 51. Cf. Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkehr des Gleichen, Hamburgo, Felix Meiner Verlag, 3ª ed., 1978. 52. Cf. Nietzsche - Einführung in das Verstãndnis seines Phi/osophierens, Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1950. 53. CI. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Antichrist, Nova York, The World Publishing Co., 10ª ed., 1965. 54. Cf. Holzwege, Frankfurt, Vittorio Klostermann, 2ª ed., 1952.

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que era ser nietzschiano hoje: preparar um trabalho sobre Nietzsche ou produzir, no curso da experiência, enunciados nietzschianos. Amigo pessoal de Foucault, Gérard Lebrun, que esteve entre nós por mais de trinta anos, sempre privilegiou pensadores corno Nietzsche e Pascal. A eles recorria como instru55. Cf. Vortrãge und Aufsãtze, Tübigen, Gunther Neske Verlag, 1954. 56. CL Nietzsche, 2 vs., Berlim, Gunther Neske Verlag', 1961. 57. CI. Nietzsche et la philosophie, Paris, PUF, 1962.

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escreve Müller-Lauter, "não pode ser encontrada como um

mentas de trabalho; como operadores utilizava conceitos seus.

último substrato de 'verdades' subjacentes a seu pensamento, nem simplesmente extraídas de seus textos".s9

Fazendo da filosofia uma história heterodoxa, não procurou reconstituir sistemas de pensamento, tomando-os isolados uns dos outros, ou determinar verdades de doutrinas, substituindo-

Que Nietzsche não se prntenda um pensador sistemático, salta aos olhos de quem entra em contato com sua obra.

as umas às outras. Tampouco pretendeu cotejar sistemas filo-

E isso não se deve apenas ao estilo específico que adota ou

sóficos ou comparar verdades doutrinárias, apontando suas afinidades e divergências, seus débitos e créditos. Rejeitando a técnica da contabilidade, tratou de apreender os parti pris velados de um procedimento lógico, captar as idéias subjacen-

ao tratamento peculiar que dá a certas questões. Deve-se sobretudo à sua recusa, explícita, dos sistemas filosóficos. De tato, não são raras as vezes em que a eles se opõe. 60 Mas o ponto central de sua crítica não reside no tato de apresentarem uma unidade metodológica e sim de fixarem uma dogmática. Tampouco são raras as ocasiões em que se opõe aos espíritos sistemáticos. 61 Ao pretender impor ao pensamento

tes a uma obra, diagnosticar o não-dito de um autor. A Lebrun, e a muitos que ele formou, a genealogia nietzschiana permitiu desvendar o ardil dos filósofos, praticar a desconfiança face às ma·1s diversas formações ideológicas, enfim, questionar a vertente clericalista, teológica, cristã de nosso pensamento. Pois como escreve o próprio Gérard Lebrun:

caráter monolítico, eles seriam levados a desistir da busca, abandonar a pesquisa, abrir mão da criatividade. Acreditando precisar de amplos horizontes para ter grandes idéias, Nietzsche nega-se a encerrar o pensamento numa totalidade coesa mas fechada. Pondo-se como um pensador assistemático, e mes-

Mas que outra coisa pretender, quando nos propomos a ler Nietzsche hoje? Muito se enganaria quem pretendesse travar conhecimen-

mo anti-sistemático, manifesta sua dissonância face a certa concepção do saber, que identifica filosofia e sistema.

to com um filósofo a mais. Nietzsche não é um sistema: é um instrumento de trabalho insubstituível. Em vez de pensar o que ele disse. importa acima de tudo pensar com

Para os estudiosos do filósofo, desde logo se impôs a pergunta acerca da existência ou não de um sistema em sua obra. Nas primeiras décadas deste século, Charles Andler cons-

ele". 58

tata que, embora já haja consenso quanto à existência de uma

Com Lebrun, Müller-Lauter talvez se pusesse de acordo quanto a este ponto: Nada mais estranho a Nietzsche que o projeto de enclausurar o pensamento, encerrá-lo nos limites estreitos de uma dogmática. Nada mais distante dele que o propósito de colocar a reflexão a serviço da verdade, asfixiá\a sob o peso do incontestável. "Tal unidade (a de sua obra)", 58. "Por que ler Nietzsche hoje?" ln: Passeios ao léu. São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 38.

1

59. "O Desalio Nietzsche", fac. cít., p. 13. 60. Num fragmento póstumo, afirma: "não sou limitado o bastante para um sistema - nem mesmo para meu sistema ... " ([255] 10 [146] do outono de 1887). 61. Na Aurora assegura: "Existe uma comédia dos espíritos sistemáticos; querendo perfazer um sistema e arredondar o horizonte que o cerca, forçam-se a pôr em cena as qualidades mais fracas no mesmo estilo das qualidades mais fortes - querem apresentar-se como naturezas inteiras e homogêneas em sua força"(§ 318).

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filosofia rietzschiana, ainda se duvida de que ela possa com-

espíritos sistemáticos, teve de reconhecer, em 1888, que por

portar um sistema. No seu entender, porém, a obra de Nietzsche

vezes foi com esforço que escapou de ser um deles. e2 Estes

abriga pe!o menos dois siternas, írutos de duas grandes intui-

são os argumentos que alinhava, para então concluir:

1;ões: o do pessimismo estético, elaborado entre 1869 e 1881, e o do transformismo intelectualista, desenvolvido de 1881 a

Se se levam em conta, apesar de todas as

1888. Parcialmente incoerentes entre si, cada um deles revela

suas oposições, as conexões imanentes do

perfeita coerência em si mesmo. Por outro lado, Jaspers sus-

pensamento nietzschiano, este não pode ser simplesmente oposto à sistematícidade. 63

tenta que o filósofo não constrói um conjunto intelectual lógico. Os esboços de sistema, presentes em seus escritos, são apenas apresentações provisórias de idéias visando à exposição, conseqüências de determinada orientação de pesquisa ou re-

Mas também com Kaufmann em certa medida concorda Müller-Lauter. Se Nietzsche é um pensador-de-problemas,

sultados da ação que pretende exercer através da reflexão

nem por isso se detém no exame de questões isoladas. Ao

filosófica. Kaufmann, por sua vez, recorrendo à distinção pro-

contrário, sempre visa à unidade. Se procura conectar os pro-

pos1.a por Nicolai Hartmann em O pensamento filosófico e sua

blemas específicos com um todo, nem por isso espera tornar

sustenta que Nietzsche não é um pensador-de-sistemas (system-thínker). mas um pensador-de-problemas (pro-

blem-thinker). Procurando fazer experimentos com o pensar,

sua reflexão definitiva. Ao contrário, quer continuamente pôr à prova suas hipóteses. "Ele experimenta com o pensamento", escreve Müller-Lauter.

ela recorre ao estilo aforismático e, nessa medida, está de acordo cem o espírito da época, marcado pela insatisfação crescente com os modos tradicionais de expressão. Por entender "experimentar" como "tentar viver de acordo com", a uniclade de seu pensamento, embora por vezes obscurecida mc.s nunca obliíerada - pela descontinuidade do experimentalismo, encontraria garantias na unidade da própria vida, ou

Se nos deixarmos levar por seus questionamentos, que no essencial ainda são os nossos, poderemos ser enredados por suas reflexões, poderemos trilhar os caminhos que levam ao âmago dos problemas e conjuntos de seu filosofar. 64

se.ia, repousaria numa "unidade existencial". Lówith, por fim, encara o pensamento nietzschiano como um sistema em aforismos. Sua produção aforismática apresenta uma unidade, ligada à da própria tareia filosófica, ambas sustentadas pela lógica de certa sensibilidade diante da filosofia. Quanto a este ponto, Mül\er-Lauter concorda em certa medida com Lówith. Se Nietzsche sustenta que o caos se acha inscrito no mundo, também reconhece que a ordem é indispensável para a vida. Tanto é que não pôde furtar-se - com o seu pensamento - a ordenar. E, malgrado a crítica que dirige aos

62. Cf. o fragmento póstumo (372) 11 [41 O) de novembro de 1887/março de 1888, a que Müller-Lauter se refere: "NB. Desconfio de todos os sistemáticos e os evito. A venta· de de sistema é, para um pensador ao menos, algo que compromete, uma forma de imoralidade ... Talvez adivinhem através de um olhar lançado embaixo e atrás des· te livro de que sistemático ele próprio escapou com esforço - de mim mesmo ... " 63. "O Desafio Nietzsche", loc. cit., p. 13. 64. "O Desafio Nietzsche", /oc. cit., p. 13.

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A DOUTRINA Oi\ VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

Lõwith e Kaufrnann insistem no fato de o filósofo ter colocado o estiío aforisrnático a serviço de seu experimentalismo. Os aforismos, tentativas renovadas de refletir sobre algu-

A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO

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se acham intimamente relacionadas. É esta relação, ao que nos parece, que define o caráter experimental de sua filosofia. Neste contexto, encontra lugar uma questão central pa-

mas questões, possibilitariam experimentos com o próprio pen-

ra grande parte dos comentadores: a de investigar se Nietzsche

sar. Mais cuidadoso, Müller-Lauter julga que não se deve atri-

é incoerente ou não, se seu pensamento é contraditório ou não.

a Nietzsche um estilo aforisrnático, porque ele recorreu a

Jaspers, Kaufrnann e Granier, entre outros, alertam para a exis-

buir

diversos meios estilísticos de expressão. Contudo, tanto Lõwith

tência de contradições em seus textos. Karl Jaspers sustenta

e Kaufrnann quanto Müller-Lauter ressaltam o caráter funda-

que elas não se deveriam, porém, ao privilégio de um modo de

mentalmente experimental do pensamento nietzschiano. De fato, são vários os textos em que o filósofo convi-

dominante e abrigaria tanto o discurso contínuo quanto o aforis-

expressão, mesmo porque a obra não apresentaria urna forma

da o leitor à experimentação, seja por entender que nós, hu-

mático ou polêmico. A interpretação teria de buscar todas as

manos, não passamos de experiências ou por acreditar que

contradições e, reunindo concepções relativas a um mesmo te-

não nos devemos furtar a fazer experiências com nós mesmos.

ma, chegar à "dialética real", que levaria a esclarecer o projeto

Em Assim falava Zaratustra, jamais lança mão da linguagem

nietzschiano e, com isso, compreender a necessidade das con-

conceituai; as posições que avança tampouco se baseiam em · ' · 65 Em Para argumentos ou razoes; assen tam-se em v1venc1as. •

tradições.

aiém de bem e mal, ;efere-se aos filósofos do futuro como experimentadores, como os que têm o dever "das cem tentativas, das cem tentações da vida". 66 E, num fragmento póstumo, afirma ignorar "o que sejam problemas 'puramente espirituais' ". 67 Com isso, quer ressaltar que sua reflexão e sua vida

de pensar e expressar-se de Nietzsche permitiria que surgissem

Walter Kaufrnann, por sua vez, entende que a maneira contradições nos seus escritos, mas elas poderiam ser resolvidas, se considerados os "processos de pensamento" que o levaram a pensar como fez. O primeiro passo para apreendê-los consistiria em reexaminar a relação entre os fragmentos póstumos e os livros publicados. A obra póstuma comportaria uma

65. Tanto é que, num determinado momento, a personagem central diz a um de seus discípulos: "Por que? Perguntas por que? Não sou daqueles a quem se tem o direito de perguntar por seu porque. Acaso é de ontem a minha vivência? Há muito que vivenciei as razões de minhas opiniões" ("Dos poetas"). Recusando teorias e doutrinas, rejeitando a erudição, Zaratustra sempre apela para sua experiência singular. É com o intuito de reforçar esta atitude que, repetidas vezes, recorre à imagem do sangue. "De todos os escritos'', diz ele, "amo apenas o que alguém escreve com seu sangue" ("Do ler e escrever"). 66. Cf. § 42. 67. CI. o fragmento póstumo 4 (285) do verão de 1880, onde se lê: "Sempre escrevi minhas obras com todo o

divisão em três partes: O anticristo, Ecce homo e O caso Wagner, trabalhos concluídos que só vieram a público depois da crise de 1889, deveriam ser tratados como livros publicados; as notas utilizadas para as aulas na Universidade da Basiléia, apresentando um discurso contínuo, não trariam maiores dificuldades; enfim, a massa de fragmentos, redigidos durante as caminhadas nos Alpes e utilizados ou não em trabalhos posteriores, seria reveladora do modo pelo qual o autor chegou a suas posições finais, mas não poderia ser equiparada aos livros concluídos. meu corpo e a minha vida; ignoro o que sejam problemas 'puramente espirituais' ".

A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO

Jean Granier, por fim, julga que as contradições que a obra de Nietzsche comporta se tornariam compreensíveis, se tomadas enquanto expressão da pluralidade de pontos de

cidade de perspectivas adotadas na reflexão sobre a mesma problemática.

vista do autor. Estes, no entanto, não se achariam linearmente justapostos, mas estruturados em "andares", de modo que, levando em conta a verticalidade das intuições nietzschianas, seria possível detectar as linhas de ruptura responsáveis pela clivagem dos diferentes pontos de vista e apreender, assim, a dinâmica de seus "ultrapassamentos". Preocupados com as contradições que emergem dos textos de Nietzsche, Jaspers, Kaufmann e Granier propõem três maneiras distintas de lidar com elas. Para Jaspers, uma vez que quer chegar à "dialética real", elas são necessárias; para Kaufmann, já que espera entender os "processos de pensamento", elas acabam por dissolver-se; para Granier, porque

cias do autor de Zaratustra, as contradições eventuais de seu pensamento, Müller-Lauter é taxativo: o que se coloca sob

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pretende apreender a dinâmica dos "ultrapassamentos", elas se tornam compreensíveis. Ora, experimentalismo e perspectivismo têm ligação estreita. Ao fazer experimentos com o pensar, Nietzsche persegue uma idéia a partir de vários ângulos de visão, aborda um tema assumindo diversos pontos de vista, enfim, reflete sob.reuma problemática adotando diferentes perspectivas. Nessa medida, as contradições que o confronto com os textos traz à tona são necessárias, tornam-se compreensíveis e acabam por dissolver-se. São necessárias, não por terem sido colocadas por uma "dialética real", como quer Jaspers, mas por emergirem da diversidade de ângulos de visão assumidos na abordagem da mesma questão; tornam-se compreensíveis, não por corresponderem a momentos que seriam em seguida "ultrapassados", como pretende Granier, mas por surgirem da pluralidade de pontos de vista tomados no tratamento do mesmo tema; acabam por dissolver-se, não por se apresentarem enquanto etapas preparatórias que levariam a posições finais, como espera Kaufmann, mas por brotarem da multipli-

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Quando se trata de examinar as eventuais incoerên-

nossos olhos é uma filosofia que vive de seus próprios conflitos. "A filosofia de Nietzsche vive de suas tensões imanentes", assegura. "Somente delas se obtém a unidade de sua obra''. 68 E esta é talvez a principal razão pela qual ele tem de permanecer inconcluso, não pode almejar um termo de chegada para suas investigações. De fato, não é mais um sistema filosófico o que propõe. O que faz é criar outra forma de conceber a filosofia, outro modo de filosofar. Pondo em prática sua "psicologia do desmascaramento", questiona preconceitos, combate pré-juízos, denuncia convicções. Suas considerações, audaciosas, ousadas, irreverentes, são por isso mesmo extemporâneas. Distanciando-se de Foucault, que toma o filósofo como sua caixa de ferramentas, Müller-Lauter talvez então dissesse que ele é antes de tudo um instrumento de trabalho para si mesmo.

Mas, em seu ensaio A doutrina da vontade de poder

em Nietzsche, é sobretudo com Heidegger que Müller-Lauter se propõe a discutir. 69 Se com Foucault ele não chega a dialo68. "O Desafio Nietzsche", toe. cit., p. 13. 69. É fato que deixa clara sua intenção, na primeira nota ao texto, de nele levar em conta principalmente as objeções que Weischedel ("A vontade e as vontades. Para a discussão de Wolfgang Müller-Lauter com Martin Heidegger". ln Zeitschrift für philosophische Forschung27/1, 1973, p. 71-6) e Kõster ("A problemática da interpretação científica de Nietzsche. Reflexões críticas a respei- · to do livro de Wolfgang Müller-Lauter sobre Nietzsche".

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r A TE.RCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO

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gar intensamente, com Heidegger se defronta várias e repeti-

No entender de Heidegger, a metafísica, não se colo-

das vezes. 70 Em seu artigo "O desafio Nietzsche", constata

cando a pergunta pelo Ser, encerra-se nos parâmetros exclusivos do ser do ente. 72 É nesse espaço que Nietzsche desenvolve a reflexão filosófica. Seu pensamento apresenta cinco termos fundamentais: a vontade de potência, o niilismo, o eterno retorno do mesmo, o além-do-homem e a justiça; através de cada um deles, a metafísica revela-se sob certo aspecto, numa relação determinada. A vontade de potência designa o ser do ente enquanto tal, sua essência; o niilismo diz respeito à história da verdade do ente assim determinado; o eterno retorno do mesmo exprime a maneira pela qual o ente é em totalidade, sua existência; o além-do-homem caracteriza a humanidade requerida por essa totalidade; a justiça constitui a essência da verdade do ente enquanto vontade de potência. A partir daí, Heidegger empenha-se em mostrar de que modo o pensamento nietzschiano fica enredado nas teias da metafísica. Procurando impor a própria reflexão como um movimento antimetafísico, Nietzsche opera tão-somente a inversão do platonismo, pois "a inversão de uma proposição metafísica permanece uma proposição metafísica". 73 Com a morte de Deus, o filósofo nomeia o destino de vinte séculos da história ocidental, apreendendo-a como

com razão que, "a despeito de seus aspectos discutíveis, a interpretação heideggeriana de Nietzsche exerceu capital influência, que ainda perdura, não só sobre as leituras de Nietzsche na Alemanha, mas também na França e nos Estados Unidos" .71 ln Nietzsche-Studien (2), 1973, p. 31-60) fizeram a seu livro Nietzsche. Sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia (Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensãtze und die Gegensãtze seiner Philosophie, Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1971 ). Contudo, as primeiras linhas do ensaio revelam que seu interlocutor privilegiado, embora oculto, é Heidegger. 70. Em seu livro Nietzsche - Sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia, publicado em 1971, já apresenta refutação filosófica decisiva da interpretação que Heidegger faz do pensamento nietzschiniano. 71. Loc. cit., p. 9. O interesse particular, que Müller-Lauter demonstra pela interpretação heideggeriana de Nietzsche, ao contrapor-se a ela de maneira determinada e decidida, torna-se ainda mais compreensível, se se levar em conta a sua formação. Nas palavras de Oswaldo Giacoia Junior: "Membro de uma geração de intelectuais cuja formação transcorreu sob marcante influência de filósofos como Martin Heidegger e Karl Jaspers, assim como sob o impacto avassalador das conseqüências da Segunda Grande Guerra, Müller-Lauter fez também parte do grupo dos jovens acadêmicos que assumiu como própria a tarefa de soerguer dos escombros aquilo que restara do patrimônio universitário e do legado espiritual da tradição alemã. Data, pois, de muito cedo sua ocupação reflexiva com a obra de M. Heidegger, bem como seu envolvimento - de início marcado por certa disposição negativa - para com a filosofia de Nietzsche, que - como é sabido - foi apropriada e deformada, malgrado seu, para fins de propaganda e mistificação ideológica nacional socialista".

o advir e o desdobrar-se do niilismo. Ao afirmar que "Deus está morto", quer dizer que o mundo supra-sensível não tem poder eficiente. Encarando-o como ilusório, é levado a considerar verdadeiro o mundo sensível - e, nisto, segue a inspiração positivista da época. Ao passar do espírito para a vida, pensa a metafísica até as últimas conseqüências, sem

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72. Cf., entre vários outros textos, Kant und das Problem der Metaphysik, onde se lê: "a metafísica é o conhecimento fundamental do ente enquanto tal e em totalidade". 73. Cf. Sobre o humanismo, traduzido do alemão por Em manuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro; 1967, p. 47-8.

A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

A TERCEIRA MARGEM DA INTERPRETAÇÃO

conseguir, porém, romper com ela. 74 Sem chegar a desmon-

camadas". 76 Ora, é justamente o que ele põe em prática, com

tar a estrutura fundamental do ente enquanto tal, a filosofia

discrição e modéstia, mas também com determinação.

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Em seu livro Nietzsche - Sua filosofia dos antagonis-

nietzschiana continuaria a desenvolver-se no horizonte do "esquecimento do Ser". Müller-Lauter poderia muito bem pôr-se de acordo com Heidegger quanto a incluir Nietzsche na história da metafísica. E com ele poderia também concordar quanto à necessidade de outro começo para o pensar. Contudo, Heidegger julga que a reflexão nietzschiana constitui o momento de completude da metafísica ocidental, uma vez que, ao inverter o platonismo, a ela propiciou esgotar suas possibilidades essenciais. E MüllerLauter entende que a empresa de Nietzsche consiste justamente em proceder à destruição da metafísica a partir dela mesma. Se, por vezes, o filósofo assume ares de metafísico, (ao pensar, por exemplo, o eterno retorno como a suprema aproximação entre o vir-a-ser e o ser 75 ), por trás das aparências que inventa para si a cada momento, leva a metafísica a desmoronar, porque não se detém em momento algum em suas investigações. "A significação completa desse acontecimento", conclui Müller-Lauter, "só poderia ser adequadamente interpretada no quadro de uma extensa discussão em que a metafísica fosse problematizada na multiplicidade de suas 74. Heidegger conclui: "Enquanto simples inversão da metafísica, o antimovimento de Nietzsche contra ela cai irremediavelmente nas suas ciladas - e de tal forma que a metafisica, divorciando-se de sua natureza própria, não pode mais, enquanto metafísica, pensar a própria essência" ("Nietzsche's Wort 'Gott is! to!' ". ln Holzwege, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermanri, 2ª ed., 1952, p. 200). 75. Cf. o fragmento póstumo 7 (54) do final de 1886/ primavera de 1887, onde se lê: "Que tudo retorne é a mais extrema aproximação de um mundo do vir-a-ser com o do ser".

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mos e os antagonismos de sua filosofia, pretende fazer uma

apresentação e crítica imanentes da obra do filósofo. Em seu ensaio A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, conta não perder de vista em momento algum o horizonte de sua filosofia. Em ambos os casos, põe-se à escuta e busca compreender os interesses e qt1estionamentos específicos do autor de Zaratustra. Opta assim por estar atento àquilo que o próprio Nietzsche quis dizer ou disse. Tomadas tais decisões metodológicas, dispõe-se a investigar em profundidade o que elegeu como seu objeto de exame. E, no caso do ensaio, ele consiste nesta afirmação - aparentemente simples - do filósofo: "esse mundo é a vontade de potência - e nada além disso!" 77

É tal a estratégia a que Müller-Lauter recorre que, a cada passo do texto, destitui a concepção da vontade de potência das conotações metafísicas com que os intérpretes a carregaram: unicidade, permanência, substancialidade, fixidez, universalidade. Mas não nos enganemos; o principal objetivo que persegue é o de demonstrar, contrapondo-se a Heidegger, que a reflexão de Nietzsche exclui a pergunta pelo fundamento do ente, no sentido da metafísica tradicional. E, com isso, põe em evidência o que ela tem de mais próprio: o pluralismo e o dinamismo, pois é graças a eles que pode abrirse para o lulu ro. Pluralista, o pensamento nietzschiano apresenta ao leitor múltiplas provocações. Dinâmico, a ele propõe sempre novos desafios: a crítica contundente dos valores, que entre nós ainda vigem; os ataques virulentos à religião cristã e à 76. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, p. 53. 77. Cf. o fragmento póstumo 38 (12) de junho/julho de 1885.

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A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

moral do ressentimento, constitutivas de nossa maneira de pensar; o combate à metafísica, que devasta noções consagradas pela tradição filosófica; a desconstrução da linguagem, que subverte termos comumente empregados; a tentativa de implodir as dicotomias, que desestabiliza nossa lógica, nosso modo habitual de raciocinar. Contudo, seu desalio maior talvez consista no caráter experimental que reveste. Instigando a questionar sem trégua ou termo, descarta grande quantidade de preconceitos, desmascara a falta de sentido de inúmeras convicções. Tanto é que, ao conceber a vida como possibilidade de "experimentação de conhecimento", Nietzsche faz do experimentalismo sua opção filosófica. Distanciando-se das leituras empreendidas por Heidegger e por Foucault, ainda tão em voga entre nós, MüllerLauter inaugura uma nova vertente interpretativa da obra do filósofo. Compreende de outro modo seu caráter peculiar; ele não residiria na tentativa de levar a metafísica até as últimas conseqüências nem no ensaio de inaugurar novas técnicas de interpretação. A filosofia nietzschiana se dá ao leitor enquanto reflexão incessante, em permanente mudança. Como o rio de Heráclito, ela afirma a inocência do vir-a-ser; mais ainda, ela se põe enquanto vir-a-ser. E ao percebê-la dessa perspectiva,

li A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE Wo!tgang Mül!er-Lauter

Müller-Lauter situa-se - para lembrar um título de Guimarães Rosa - na terceira margem do rio.

Tradução de Oswa/do Giacoia Junior

Ji

1.

A doutrina da vontade de poder em Nietzsche 1

Também aqui, como tão freqüentemente, a unidade da palavra nada garante para a unidade da coisa. H.H. 1, 14

Quando Nietzsche escreve que o mundo seria vontade de poder e nada além disso, com essa clara declaração ele parece nos ter posto em mãos uma chave para a compreensão de seu pensamento, com emprego da qual os intérpretes filosóficos estão familiarizados: ele nomeia o fundamento do ente e determina, a partir dele, o ente em sua totalidade; seu pen1. A presente tradução tem por base a segunda versão, até aqui inédita, do texto publicado nos Nietzsche/Studien de 1974, Berlim/Nova York, Walter de Gruyter, p. 1-60. Trata-se de versão revista e ampliada, que nada altera nas posições hermenêuticas fundamentais do texto original. Optei por vontade de poder, não pelo corrente termo vontade de potência, para traduzir o conceito nietzschiano Der Wille zur Macht. A tradução tem o inconveniente de arriscar-se a circunscrever o conceito demasiadamente

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A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

sarnento é metafísica, no corrente sentido da longa história da filosofia ocidental. A compreensão desse pensamento não nos coloca, pois, em princípio, diante de novos problemas. Nietzsche pode também se voltar explicitamente contra a metafísica, mas podemos rapidamente nos convencer de que ele dela fala apenas no sentido de uma teoria dos dois mundos (Zweiweften-

theorie). Se desconsideramos esse estreitamento, não pode ser mantida a pretensão de Nietzsche de que sua filosofia não seja metafísica. Nietzsche apenas prolonga, poderíamos assim dizer, a cadeia das interpretações metafísicas do mundo com um elo ulterior. Heidegger atribuiu à filosofia de Nietzsche uma significação particular no interior da história da metafísica. Ele a interpreta como acabamento (Voiiendung) da metafísica ocidental, na medida em que, na inversão (Umkehrung) da metafísica por ela operada, as possibilidades essenciais desta última deveriam se esgotar. No pensamento de Nietzsche acontece, porém, ainda mais: a destruição da metafísica a partir dela própria. Deixa-se mostrar que dela, justamente como do píncaro supremo da "metafísica da subjetividade", essa subjetividade despenca no infundado (Grund-/ose). A metafís·1ca "vontade de vontade", na figura da vontade de poder transparente a si mesma, se torna querer-do-querer (~ewoiites Wollen), que não mais remete a um alguém que quer, à vontade, mas tão-sono registro da filosofia política, mas apresenta também a vantagem de evitar a ressonância e a evocação da distinção metafísica entre ato e potência - o que certamente contraria a intenção de Nietzsche-, assim como de manter presente um dos mais fundamentais aspectos de seu pensamento, qual seja, uma concepção de força e poder se esgotando, sem resíduos, a cada momento de sua efetivação. Nos termos de Para além de Bem e Mal, aforismo nº 22, todo poder Uede Macht) extrai, a lodo instante, sua última conseqüência. (N. do T.)

A DOUTRli~A DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

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mente à estrutura do volitivo (Gefüge von Wollendem), que, perguntado pelo seu derradeiro láctico ser-dado (G b . . ' ege enselíl), subtrai-se no in-fixável ( Un-fest-ste/1-bare). Não há dúvida de que Nietzsche permanece metafísico. Nenhuma dúvida de que ele restaura a metafísica· por exemplo q d · , uan o pensa na doutrin.a do retorno, a suprema aproximação entre o devir~ o ser. Mais essencial parece-me, porém, que, por detrás das fachadas, sempre de novo erigidas por ele, a metafísica des-

m~ron~, em conseqüência de seu incessante perguntar. A sigrnl1caçao completa desse acontecimento s . d . o po ena ser adeq~adamente interpretada no quadro de uma extensa discussao em que a metafísica fosse problematizada na multiplicidade de suas camadas. Seja observado que minha interpretação de Nietzsche com eleito, contradiz fundamentalmente a de H 'd ' _ e1 egger, mas que nao me vejo por isso em oposição ao esforço de Heidegger por um "ultrapassamento ( Verwindung) da metafísica" S .d . ua necess1 ade - assim como também a necessidade do "outro começo" preparndo por Heidegger - parece-me muito mais crnscer, a partir do pensar de Nietzsche, em medida ainda m_a1s for.te do que se tornou manifesto por meio das interpretaçoes ate agora existentes. Trata-se, nessa investigação, da pergunta pela vontade de poder. Ao empreendê-la, queremos tentar nos mover inteiramente no horizonte da filosofia de Nietzsche. Mostrar-se-á q~al complexa problemática se encontra por detrás da afirmaçao, qu~ soa tão simples: o mundo seria vontade de poder e nada alem disso. 2 Nessa problemática queremos ingressar 2. Em" linhas fundamentais, apresentei minha interpretação da . vontade de poder" em meu livro:_ Nietzsche. Sua filo~of1a dos antagonismos e os antagonismos de sua filosof1a, Be'.l1m-~ova York, 1971. Em crítica mais pormenorizad~ d1scut1ram comigo: W. Weischedel em uma contribu1çao para a discussão intitulada A vontade e as vontades.

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passo a passo. Parece-me conveniente, em face de sua complexidade, começar com a introdução de algumas características declarações de Nietzsche acerca do que ele entende por "vontade de poder". Elas devem abrir um primeiro acesso ao que na seqüência será explicitado.

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Caracterização provisória da vontade de poder Vontade de poder não é um caso especial do querer.

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um da vontade de poder. Assim "um quantum de poder ... é designado por meio do efeito que ele exerce e a que resiste."s Por toda parte, encontra Nietzsche a vontade de poder em obra. "Mais inequivocamente" ela se deixa mostrar "em todo vivente ... que tudo faz não para se conservar, mas para se tornar mais." 6 Mas, também no âmbito inorgânico, a vontade de poder é o unicamente atuante. Nietzsche se separa da "vontade de vida" de Schopenhauer, como forma fundamental da vontade: "a vida é um mero caso particular da vontade de poder, - é totalmente arbitrário afirmar que tudo anseia por passar para essa forma da vontade de poder."7

Uma vontade "em si" ou "como tal" é uma pura abstração: ela não existe factualmente. Todo querer é, segundo Nietzsche, querer-algo. Esse algo-posto, essencial em todo querer é: poder. Vontade de poder procura dominar e alargar ·incessantemente seu âmbito de poder. Alargamento de poder se perfaz em processos de dominação. Por isso querer-poder (Machtwo//en) não é apenas" 'desejar', aspirar, exigir." A ele pertence o "afeto do comando" .4 Comando e execução pertencem ao Para a discussão de Woltgang Müfler-Lauter com Martin Heidegger. ln: ZlphF27/1, 1973, p. 71-76 e P. Kõster em A problemática da interpretação científica de Nietzsche. Reflexões críticas a respeito do livro de Wolfgang MüllerLauter sobre Nietzsche, ln: Nietzsche-Studien 2, 1973, p. 31-60. No que se segue, considerarei em notas as objeções essenciais principalmente desses críticos, na medida em que se relacionem à problemática da vontade de poder. Onde isso não ocorre expressamente, penso, porém, ter tomado em conta as objeções no curso da minha exposição. 3. As exposições seguintes originaram-se de uma conferência sob o título Reflexões sobre a doutrina de Nietzsche da vontade de poder, que pronunciei em Lõwen (Louvain) a convite da Wijsgerig Gezelschap em 13 de maio de 1973. 4. Fragmento póstumo, novembro 1877-março 1888, 11 [114]; KGW (Kritische Gesamtausgabe der Werke Nietzsches,

ed. G. Colli e M. Montinari, Berlim-Nova York, Walter de Gruyter, 1967 s. OGJ.) V/112, 296. As obras publicadas ou preparadas para publicação por Nietzsche serão c'ltadas com precisa indicação, tanto quanto possível, do escrito, parágrafo, aforismo etc., segundo a edição KGW. Os póstumos serão citados de acordo com a KGW, na medida em que já publicados nessa edição. Uma vez que para os póstumos da década de 1880, até aqui publicados na KGW, em parte não se dispõe de quaisquer concordâncias (V 1 e 2), em parte apenas daquelas da KGW (VIII 2 e 3) para a edição in octavo (GA. 19 volumes e um volume de índice remissivo, Leipzig, Naumann/Krõner, 1894 s.), é passivei que um ou outro fragmento póstumo já publicado na KGW seja citado segundo a edição GA. Na medida em que forem indicados textos da KGW que foram impressos em edições anteriores da compilação de fragmentos póstumos A VONTADE DE PODER, serão indicados entre parênteses os números dos aforismos dessa compilação sem mencionar eventuais diferenças na decifração e /imitação do aforismo ou alterações de texto efetuadas pelos editores de GA. 5. Fragmento póstumo, primavera de 1888, 14 [79]; KGW VIII 3, 50 (Vontade de Poder - doravante VP. 634). 6. Fragmento póstumo, primavera de 1888, 14 [121 ]; KGW VIII 3, 93 (VP. 688). 7. Idem, (VP. 692).

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Não apenas naquilo que domina e que estende seu domínio se exterioriza a vontade de poder, mas também no dominado e submisso. "Mesmo o relacionamento do que obedece para com aquele que domina" tem de ser entendido "como um resistir", no sentido mencionado. 8 Também o homem é, no fundo - em qualquer que seja o modo de relação -, vontade de poder. Nietzsche remete todas as nossas atividades intelectuais e anímicas a avaliações ( Wertschiitzungen), que "correspondem a nossos impulsos e suas condições de existência." Num apontamento póstumo, escreve a esse respeito: "Nossos impulsos são redutíveis à vontade de poder. A vontade de poder é o último Faktum por detrás do qual podemos chegar." 9 Com isso se torna claro, que para Nietzsche "a

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essência mais interna do ser é vontade de poder." Essas primeiras exposições da temática da vontade de poder se orientaram pelos póstumos. Pergunta-se se tal orientação é legítima. Numa questão tão importante, não deveríamos, de preferência, nos ater apenas - ou pelo menos primariamente - aos escritos publicados pelo próprio Nietzsche? Como fica, então, a confiabilidade filológica dos póstumos editados? Que peso filosófico têm os apontamentos não publicados por Nietzsche em relação à obra autorizada por ele?

Observações sobre a problemática dos póstumos A maior parte das anotações inéditas de Nietzsche, na medida em que possui imediata relevância filosófica, foi 8. Fragmento póstumo, GA XIII, 62. Agosto-setembro de 1885, nº 40 (55]; KGW VII 3, 387. 9. Fragmento póstumo, GA XIV, 327, comparar GA XVI, 415. Agosto-setembro de 1885, nº 40 [61]; KGW VII 3, 393. 10. Fragmento póstumo, primavera de 1888, 14 [80]; KGW VIII 3, 52 (VP. 693).

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tornada acessível à discussão acerca de Nietzsche nos quadros da assim chamada "edição em oitavo maior". Os póstumos completos só estarão prontos quando a edição crítica da obra completa promovida por G. Colli e M. Montinari tiver chegado à sua conclusão. No entanto, já segundo os volumes até aqui publicados dessa edição, pode ser dito que, sobre a base do material ora tornado conhecido, a pesquisa sobre Nietzsche (Nietzsche-Forschung) se vê colocada, sob vários aspectos, diante de uma nova situação. Não se pode dizer, no momento, se conhecimentos essencialmente novos para a resposta à pergunta pela vontade de poder podem resultar dos textos até aqui ainda inéditos. Ouso duvidar disso, não por derradeiro porque os editores anteriores dedicaram precisamente a ela uma atenção particular. Assim é que, sob o título: "A Vontade de Poder" foi publicada uma composição de apontamentos póstumos de Nietzsche, primeiramente limitada, no ano de 1901, a 483 aforismos e contendo, em 1906, 1.067 aforismos. Em suas compilações, seus editores se orientavam por um dos numerosos planos que Nietzsche, de fato, projetara para uma futura obra, mas que não realizara. Ao fundamentar seu empreendimento numa disposição de Nietzsche de 17/03/1887, seguindo uma divisão muito geral de Nietzsche, eles reuniram num conjunto textos que, em vários aspectos, são de caráter diverso e somente em parte - ainda que considerável - contribuem para o esclarecimento daquilo que Nietzsche entende por "vontade de poder". Além disso, de fato, também a respectiva escolha e ordenação sistemática são mais do que questionáveis, sem falar de leviandade editorial em particular. Além disso, em outros volumes de póstumos da edição em oitavo maior, pode-se obter algo significativo para a compreensão por Nietzsche da vontade de poder. Que o problema da vontade de poder entrou na consciência pública, e, com efeito, tanto no bom sentido, filosoficamente questionador, quanto no mau emprego, do tipo

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jargão, isso tem de ser sobretudo remetido a que, com a edição de 1906, um livro com o título A vontade de poder foi publicado e causou efeito, do qual se afirmou que ele apresentava a obra filosófica principal de Nietzsche. É vedado falar de uma tal obra principal de Nietzsche. Mas proibe-se também deixar de lado, como meros póstumos, os aforismos e fragmentos publicados nas mencionadas compilações, assim como nos outros volumes da edição em oitavo maior. Na verdade há que se diferenciar entre, por um lado, "póstumos autênticos", e, por outro lado, excertos em forma de paráfrase, que Nietzsche ultimava, assim como "preparações" para publicações por ele mesmo ainda realizadas. Aqui a nova edição crítica completa abrirá ainda conhecimentos essenciais. Mas, já a respeito da relação entre primeiras anotações e textos ulteriores, retrabalhados para a publicação, o caso de Nietzsche não é como o de outros autores. Nietzsche não apenas retinha muitas de suas concepções. Ele também dava expressão a algumas delas, em seus escritos, apenas de modo encoberto, simplesmente alusivo, ou também em forma hipotética. A indicação a respeito da peculiar significação dos póstumos de Nietzsche perde em estranheza, quando ouvimos que Nietzsche se compreendia como o mais escondido de todos os ocultos. 11 Em Para além de Bem e Mal ele até escreve que não amamos mais suficientemente nosso conhecimento, tão logo o comunicamos. 12 E num apontamento póstumo do ano 1887 se lê: "Eu não considero mais os leitores: como poderia eu escrever para leitores? ... Mas eu me anoto, para mim .." 13 Aquilo que Nietzsche reteve adquire peso particular a partir de tais declarações. Desse modo, há boas razões para 11. Fragmento póstumo de novembro 1882-!evereiro 1883, nr. 4 [120]; KGW VII 1, 151. 12. Para além de Bem e Mal, 160; KGW VI 2, 100. 13. Fragmento póstumo, outono de 1887, 9 [188]; KGW VIII 2, 114.

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a concepção de M. Heidegger de que "a autêntica filosofia de Nietzsche não teria chegado à configuração definitiva e à publicação em moldes de obra, nem na década entre 1879 e 1889, nem nos anos seguintes." Aquilo que o próprio Nietzsche publicou seria "sempre fachada". A autêntica filosofia de Nietzsche teria. permanecido como "póstumo". 14

A significação dos póstumos na interpretação de Nietzsche por Karl Schlechta À valoração dos póstumos de Nietzsche exemplificada na particularmente marcante exposição de Heidegger se contrapõe, como outro extremo, a convicção de K. Schlechta: nas obras por ele mesmos publicadas ou inequivocamente destinadas à publicação, Nietzsche ter-se-ia expresso de modo completamente inequívoco, categórico. Em relação a uma autêntica possibilidade de compreensão, não resta nada de essencial a desejar. Teríamos de querer entender Nietzsche apenas a partir daquilo que ele publicara. 15 Schlechta publicou 14. M. Heidegger, Nietzsche, 2 v. Pfulingen 1961; nesse caso: 1, 17. Que, nos escritos por ele mesmo publicados, Nietzsche "quase não tenha falado da vontade de poder" é, para Heidegger, "um sinal de que ele quis proteger o mais longamente possível esse [elemento OGJ.] mais interior da verdade do ente enquanto tal, por ele reconhecida, e colocá-lo sob o abrigo de um único, simples dizer", op. cit. li, p. 264. 15. K. Schlechta: O caso Nietzsche, Munique, 2• ed. 1959, 11, comparar 90 e o prefácio à edição de Nietzsche por K. Schlechta (abreviada como SA), Ili, 1433. Que Schlechta não exclui a possibilidade de que ainda se possa encontrar material importante nos póstumos ainda não editados, mostra-o uma observação no Relatório filológico de sua edição da obra de Nietzsche: "Quando dis-

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uma edição em três volumes das obras de Nietzsche, muito

de, como fatal efeito, que os consulentes de sua edição te-

respeitada, a que, desde então, recorrem não poucos autores

nham tido diante dos olhos apenas essa parte dos póstumos;

como único fundamento textual para suas interpretações. Essa

e ela, desse modo, diferentemente dos póstumos não publica-

edição não se limita, todávia, como seria de se esperar da

dos por Schlechta, tenha mais uma vez recebido particular

acima exposta concepção do editor, às publicações de Nietzsche.

relevância objetiva. A esse respeito indicara Schlechta, com

Muito ao contrário, Schlechta acolheu no terceiro volume de

razão, que não seria propriamente explicável como os editores

sua edição - ao lado de outros textos - os fragmentos pós-

de A vontade de poder não acolheram também em sua coletâ-

tumos reunidos na edição de A vontade de poder publicada em

nea de aforismos aqueles apontamentos de Nietzsche encon-

1906.

tráveis nos volumes XIII e XIV da edição em oitavo maior como - Pode-se ver aqui uma inconseqüência de Schlechta.

"demais póstumos". Pode-se levantar a mesma objeção con-

No entanto, o "peso histórico" conferido na literatura à supos-

tra o próprio Schlechta: se já havia esforço para uma edição

ta obra principal de Nietzsche fez parecer a ele como justifica-

de póstumos cronologicamente orientada, por que não, pois,

e integralmente, os textos da compilação

inclusão cronologicamente ordenada dos "demais póstumos"?16

do publicar, de novo

A vontade de poder. Isso ocorre, em verdade, de tal modo que

Não favoreceu

Schlechta,

de facto -

ainda que

Schlechta dissolve a reunião sistemática dos antigos editores, e, em vez disso, procura estabelecer uma rigorosa ordenação

cronológica dos aforismos de que se compõe a compilação. Nisso ele não foi suficientemente bem-sucedido e nem poderia sê-lo, visto que os manuscritos originais não estavam à sua disposição. O mérito da edição de Schlechta consiste, não por derradeiro, em ter destruído definitivamente, para a consciência pública, a legenda da obra principal. Que ele tenha publicado, entretanto, apenas aqueles textos que os editores da compilação de 1906 já tinham escolhido, isso gerou, em verdase que 'A Vontade de Poder' nada de novo ofereceria, essa afirmação se relaciona apenas com a mencionada escolha dos póstumos. Na verdade, isso não parece melhor relativamente ao que foi publicado na edição em oitavo maior, XII s. (1903 s.)- porém minha afirmação não se relaciona à totalidade dos póstumos. Isso não pode ser de maneira nenhuma, pois, em parte, esses póstumos ainda não foram, em absoluto, decifrados, ou não o foram de modo incontestável; ainda existe, pois, entre eles, textos desconhecidos" (SA Ili, 1405).

16. Num relato sobre as reflexões preliminares dos editores de uma tradução italiana de obras e póstumos de Nietzsche, escreve M. Montinari: Não pudemos "também fazer nenhum uso da edição-Schlechta para nossos fins. Com efeito, tínhamos diante de nós, em seus dois primeiros volumes, uma reprodução fiel, na maior parte, das edições originais de Nietzsche; porém no terceiro volume - embora em alguma medida cronologicamente ordenado - tínhamos exatamente o mesmo material tornado conhecido em 1906 pela publicação da segunda edição de A Vontade de Poder. Em Florença, teríamos podido ainda, na verdade, fazer algo mais, para além de Sch/echta: com auxílio do aparato de Otto Weiss a A Vontade de Poder (volume 16 da edição em oitavo maior), teríamos, com efeito, podido eliminar algumas grosseiras mutilações; além disso, teríamos também podido consultar o primeiro A Vontade de Poder de um só volume (1901) e, por meio _disso, podido salvar um certo número de importantes fragmentos que, curiosamente, desapareceram do segundo, definitivo, certamente muito mais extenso A Vontade de Poder (1906); finalmente, com base no índice dos manuscritos dos

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contrariamente à sua intenção declarada -, uma valoração

proveniência e maior envergadura." 18 Schlechta explicita, em

superior daqueles manuscritos que foram publicados em A Von-

sua resposta, 19 não disputar, naturalmente, "que Nietzsche,

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tade de Poder?

17

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na obra por ele publicada, apostrofe freqüentemente a vontade de poder como uma propriedade fundamental da Vida", assim, por exemplo, quando deixa Zaratustra dizer: " 'onde encontrei vivente, lá encontrei vontade de poder'". Porém, onde procurara "explicitar e precisar esse seu pensamento", ele não teria chegado a um "resultado apresentável".

A respeito das declarações de Nietzsche sobre a vontade de poder em obras publicadas

conseqüência uma controvérsia, na qual se tratava também da problemática objetiva da vontade de poder. Karl Lõwith censu-

Esse julgamento de Schlechta não se deixa sustentar. De fato, a obra autorizada por Nietzsche não oferece nenhum fundamento suficiente para uma compreensão da vontade de poder. A insondabilidade do que ele procurou denominar com

rava Schlechta por ter espalhado uma nova legenda-Nietzsche,

essa combinação de palavras se abre somente quando recor-

qual seja: "que não haveria a vontade de poder, como um

remos aos póstumos. De acordo com Schlechta, porém, os póstumos publicados na edição em oitavo maior nada oferecem de novo, em face do que Nietzsche disse em suas publicações. Desse modo, ele chega à convicção de que faltaria capacidade de sustentação ao pensamento da vontade de poder. Mas, se também nos escritos de Nietzsche freqüentemente apenas se encontram "fachadas" a respeito da vontade de poder, então há mais, decerto, a ser retirado deles para o

A diminuta apreciação, por Schlechta, da relevância filosófica dos póstumos publicados de Nietzsche teve como

problema posto e meditado por Nietzsche, da mais remota volumes XIII e XIV da edição em oitavo maior, teríamos podido complementar os manuscritos utilizados para A Vontade de Poder (aqueles, portanto, que também foram indicados nos volumes XV e XVI da edição em oitavo maior. Dessa maneira, teríamos podido estabelecer um rol mais amplo de fragmentos póstumos da década de 1880, em alguma medida cronologicamente ordenados segundo os manuscritos." Em seguida, Montinari entra em ulteriores problemas editoriais. Ele descreve o caminho que conduziu à KGW. e indica a tarefa dela. A citação foi extraída da versão original de um ensaio de Montinari, que o autor cordialmente me pôs à disposição. Desse ensaio só foi publicada, até agora, uma tradução em inglês realizada por D. S. Thatchter sob o titulo: The New Criticai Edition of Nietzsches Complete Works (in: The Malahat Review 24, Victoria 1972, p. 121-34). 17. E. Heftrich apresentou em seu livro A filosofia de Nietzsche. Identidade de mundo enada (Frankfurt/M. 1962, p. 291-95) uma critica exaustiva e detalhada ao procedimento de Schlechta. Que ela seja enfaticamente recomendada aqui.

esclarecimento desse problema do que Schlechta quer perceber. Ingressemos aqui apenas naquilo que o próprio Schlechta menciona. Em sua resposta a Lõwith, ele apresenta "duas provas" extraídas de obras de Nietzsche, que considera como representativas para o problema discutido. Elas são - assim quer mostrar Schlechta - não somente inconciliáveis entre si; cada uma das duas considerações deve ser, além disso, também problemática em si mesma. Na seqüência, submeterei as duas "provas" a uma consideração mais precisa. Entendo, da

i

18. K. Lõwith: Sobre a nova legenda-Nietzsche de Schlechta, Merkur, 12, 1958, 782. 19. Para as considerações de Schlechta a que recorreremos na seqüência v. Ocaso Nietzsche, op. cit., p. 120-22 .

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mental da vontade"' acrescenta ele entre parênteses "-qual mesma maneira, os textos nelas contidos como representativos para o que foi publicado por Nietzsche. A "primeira prova" de Schlechta é o aforismo 36 de Para além de Bem e Mal. Nietzsche apresenta aqui seu pensamento da vontade de poder, no contexto de uma série de reflexões que são revestidas da forma de hipóteses. Elas precisam ser aqui tanto menos apresentadas individualmente quanto ao intérprete Schlechta unicamente interessa o caráter hipotético que se exprime em locuções como: "suposto que ... ", "temos que ousar a hipótese ... ", "suposto finalmente que d.esse c_erto ... " - e semelhantes. Nietzsche encerra suas cons1deraçoes com a reflexão: desse modo teríamos, com isso, adquirido o direito de determinar inequívocamente toda torça atuante como vontade de poder. O mundo visto a partir de dentro, o mundo determinado e designado por seu 'caráter inteligível' - seria justamente 'vontade de poder' e nada além disso.

20

Schlechta considera digno de nota a cautela com a qual Nietzsche se expressa, nessa sua primeira explicitação da problemática da vontade de poder. Que Nietzsche escolha subjuntivo: o mundo seria "vontade de poder" e nada além disso, leva-o a escrever: "Para um pensamento que deve dar

0

sustentação (tragen), isso não soa muito confiável". Contra a concepção de Schlechta, duas coisas se deixam trazer a campo. A: No mencionado aforismo, Nietzsche fala não apenas hipoteticamente. Depois de ter escrito: "Suposto finalmente que desse certo explicar toda nossa vida afetiva como a conformação e ramilicação de uma forma funda-

-

20. Para além de Bem e Mal, 36: KGW VI 2, 50 s.

se1~

da vontade de poder, como é minha proposição-". Com

r.awo esc,reve E. Heftrich: "O claro notum est do parêntese l1m1ta porem a hipótese segundo a qual o aforismo é conduzido; sim, co~oca-a inteiramente em suspenso, com o que se torna soluçao, princípio, aquilo que se encontra entre parênteses (mmha. proposição)."21 De fato, com o acréscimo, Nietzsche vai além das reflexões por ele apresentadas no aforismo como hipóteses dignas de questão, e nele menciona sua convicção fundamental. Aqui não se pode, com efeito, falar de falta de confiança. B: O mencionado aforismo encontra-se em Para até~ de Bem e Mal sob o título: "O Espírito Livre" (Segunda seçao). Os espíritos livres devem ser os novos "filósofos do perigoso talvez em todo sentido",22 como Nietzsche escreve já antes, na primeira seção de seu livro. Ele lhes recomenda suas "máscaras e sutilezas", com as quais sejam confundidos. Nisso deve se exprimir seu estilo. 23 Eles representam um tipo de transição: como se diz num texto de seu período intermediário de criação, importa a Nietzsche "franquear G acesso

~ comp,re~nsão de um tipo ainda mais elevado e difícil do que e o propno tipo do espírito livre: - nenhum outro caminho

conduz ao discernimento."24 Se considerarmos sob esse aspecto as experiências do pensamento apresentadas no aforismo 36 de Para Além de Bem e Mal, então temos de concordar com A. Baeumler em sua crítica a Schlechta. Baeumler escreve que seria errôneo interpretar "um meio de estilo como um distanciamento objetivo no ponto capital"_2s Heftrich: A filosofia de Nietzsche, op. cit., 72. Para além de Bem e Mal, 2; KGW VI 2, 11 . Para além de Bem e Mal 25, KGW VI 2, 38. Fragmentos póstumos; GA XIV, 349. Outono de 1885-1886, nº 2 [17]; KGW VIII 1, 72. 25. A. Baeurnler, Posfácio à Vontade de Poder, in: KõrnerTaschenausgabe (KTA) 9, 10 ed. 1964, p. 714 .

21. 22. 23. 24.

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Numa conclusiva consideração sobre a "primeira proque Nietzsche, no texto anteriormente manuscrito, não se exprime hipoteticamente, mas com inequívoca resolução:

va" de Schlechta indiquemos um apontamento póstumo de Nietzsche, com o qual teremos ainda, mais adiante, que nos ocupar mais de perto.26 Ele é proveniente do ano de 1885 e

... quereis um nome para esse mundo? L(ma solução para todos os seus enigmas? Uma luz para vós, vós os mais ocultos, os mais fortes, os mais intrépidos, os mais da meianoite? - Esse mundo é a vontade de poder - e nada além disso! 2ª

pertence aos materiais que Nietzsche considerou para a composição de Para além de Bem e Mal. Na conclusão desse apontamento. Nietzsche se expressou sobre a v~n.tade. de poder de maneira semelhante. Nesse contexto, a un1ca diferença que nos interessa21 entre ambos os textos consiste em ---26. Fragmento póstumo de VP. 1067; GA XVI, 401 s. Junhojulho de 1885, nº 38 [12], KGW VII 3, 338 s. . 27. Sobre a problemática da relação entre o texto p.ubl1cado e o póstumo inédito, cl. He!trich: A Filosofia d~ N1et.zsche, op. cit. p. 69 s. Podemos recorrer ainda, alem disso, a uma versão anterior da conclusão do atonsmo 1067 ~e VP., reproduzida em GA XVI, 515. [Como preparaçao de KGW VII 3, nº 38 [121 , impresso em Kritische Stud1enausgabe - KSA -, Vol 14 ' p· 727] · No contexto _ de uma discussão com L. Klages, Karl Lõwith contrapos as duas versões em seu livro: A filosofia de Nietzsche do eterno retorno do mesmo (Stuttgart, 2ª ed. 1956, p. 97). A primeira versão desloca a "vontade-de-querer-de-novo-e-ainda-uma-vez" para o primeiro plano. Ela so poderia ser interpretada sob inclusão da problemática. da doutrina do retorno, que tem de ficar excluída dos limites desta dissertação. Lõwith escreve: "Enquanto que na primeira versão o problema de um querer do eterno retorno, na figura do mútuo espelhamento entre const1~ tuição do mundo e comportamento próprio, encontra aqui uma aparente solução: em que o auto-querer do ~undo é pensado como um -querer-sempre-de novo-a s1 mesmo do eterno retorno, e a vontade humana, corno um querer para trás e para diante, se move i.gualmente em círculo; na segunda versão, a problemat1c1dade de um querer da fatalidade se torna antes encoberta que

Mostraremos ainda, na seqüência, com que incontestada convicção Nietzsche pensa a efetividade do mundo a partir de seu pensamento fundamental da vontade de poder. Se o que importa é destacar as derradeiras "compreensões" (Einsichten) e não a problemática da atitude de questionamento dos "espíritos livres", então - corno em outros casos, por outras razões - o fragmento póstumo merece aqui ascendência interpretativa sobre a versão publicada. Ao recorrermos à "segunda prova" de Schlechta, caimos mais fundo nas dificuldades que se colocam quando perguntamos pela vontade de poder. Se, a partir do primeiro texto, pudemos concluir que Nietzsche busca um "princípio metafísico fundamental", ao qual todas as "forças atuantes" pudes-

ex-1

pressa pela abrupta fórmula da 'vontade de poder', que ·.· · ·.. simplesmente deve ser a mesma no homem e no mun- : ''Ç:

do" (op. cit., p. 98). Lõwith considera que as doutrinas de Nietzsche da vontade de poder e do eterno retorno se contradizem mutuamente. Contrariamente a isso, procurei mostrar a compatibilidade entre elas em meu livro sobre Nietzsche (op. cit., p. 135 s.). Entre outras coisas, importa-me aí mostrar em que medida a suprema vontade de poder tem de querer o eterno retorno do mesmo. Considerada a partir de minha interpretação, dissolvese a aparência de uma discrepância objetiva entre as duas versões do texto.

28. Fragmento póstumo de VP. 1067; GA XVI, 402. Junhojulho de 1885, nº 38 [12); Kr.w VII 3, 339.

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sem se deixar reconduzir, no entanto a passagem que Schlechta menciona agora indica uma outra espécie de estrutura da vontade de poder. Trata-se do aforismo 12 da segunda dissertação de Para a Genealogia da Morai, 29 do qual ele considera, na verdade, apenas algumas passagens essenciais. Em sua opinião, esse texto é "pelo menos tão elucidativo" quanto o anteriormente mencionado por ele, no que diz respeito à falta de capacidade de sustentação dos pensamentos de Nietzsche. Este se volta aqui tanto contra o pensamento de uma teleologia na natureza quanto contra o gosto dominante da época, "que pactuaria, de preferência, ainda com a absoluta casualidade, até com o absurdo mecanicista de todo acontecer, do que com a teoria de uma vontade de poder atuante em todo acontecer." Schlechta considera que ambas as posições recusadas por Nietzsche, tanto o "progressus em dire: ção a uma meta" quanto também o "absurdo mecanicista", representam apenas "contraposições verbais" em relação à autêntica compreensão do mundo por Nietzsche, que consistiria na hipótese de "um mundo do acaso absoluto". Então, para Nietzsche, "acaso" e "acaso" são duas coisas distintas, assim como "necessidade" e "necessidade" são duas coisas distintas, segundo ele emprega tais palavras numa compreensão "mecanicista", ou no contexto de sua interpretação da vontade de poder. Quando Schlechta é de opinião, por exemplo, de que o conceito de força de Nietzsche provenha "do arsenal da ciência da natureza positivista", então ele não toma suficientemente a sério aquilo que Nietzsche diz na última parte do aforismo sobre "as rigorosíssimas, aparentemente objetivíssimas ciências". Nascendo da "idiossincrasia democrática" contra tudo o que é senhorial, elas desconhecem, por exemplo, a fisiologia contemporânea, a essência da vida, sua vontade de poder. "Com isso se passa por cima da primazia 29. Para a Genealogia da Moral 1112; KGW VI 2, p. 329-32.

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que, por princípio, têm as forças espontâneas, agressivas, usurpadoras, criadoras de novas interpretações." A vontade

de poder é apresentada por Nietzsche, aqui, como pluralidade de forças. Justamente isso irrita Schlechta. No esforço de destacar claramente o pensamento da multiplicidade, ele 0 encobre._ Ele acentua que Nietzsche fala de "processos de subjugaçao mdependentes um do outro." Schlechta observa a respeito: "Se os processos de subjugação são de fato independentes um do outro, então lodo sentido intermediário é absurdo." Com a palavra "sentido intermediário", joga ele manifestamente com "a" vontade de poder. Ele cita, sem dúvida, incompletamente e de uma maneira que, com efeito, desloca aquilo que é pensado por Nietzsche. Completemos a formulação que Schlechta retirou do aforismo 12, pelo menos até onde isso é indispensável para a compreensão do texto Nietzsche escreve: " 'desenvolvimento' de uma coisa, de um.

u~o, de. um órgão, é ... a seqüência de processos de subjugaçao mais ou menos profundos, mais ou menos independentes um do outro, que nele se passam ... "Eles são, pois, mais ou menos independentes um do outro. Com isso, a independência é limitada. Também processos de subjugação que têm "mais" independência um do outro, não são, certamente, completamente independentes um do outro, como interpreta Schlechta. Que Nietzsche, que enfatiza alhures o re 1acionamento de ludo com tudo, fale, nesse contexto, de independência, tem seu fundamento em que ele polemiza aqui contra toda determinação causal ou teleológicamente orientada dos decursos de acontecimentos. Em relação a tais determinações, os processos de subjugação das vontades de poder, que em verdade constituem todos os "desenvolvimentos", são mais ou menos independentes. Isso desconsiderado, as duas "provas" de Schlechta nos conduziram perante duas possibilidades, aparentemente

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incompatíveis, de interpretação da doutrina da vontade de poder.

a si mesma, destaca-se o "caráter intensificador" da vontade

Nietzsche, de fato, não "meditou" suficientemente o problema

algo menos poderoso", como se diz no aforismo mencionado.

de poder interpretada por Nietzsche. 32 E W. Schulz considera em concordância com Heidegger, que aquilo contra o que s~ volta a vontade de poder "nâo seria mais nada exterior, mas sempre apenas ela mesma". Ela ultrapassaria sempre só a si numa auto-supressão que eternamente se repõe.33 Que tais indicações possam bastar.

Sobre a interpretação da vontade de poder como princípio metafísico

O fato de que Nietzsche fale - especialmente nos póstumos - muito freqüentemente da vontade de poder parece fortalecer interpretações da espécie ora mencionada. E quando ele escreve a respeito do mundo, como já foi considerado,

da vontade de poder? Pois ou a vontade de poder é, com efeito, o princípio que funda o mundo, ou o mundo é o infundado ocorrer-conjunto e desprovido de princípio dos processos nos quais a cada vez "uma vontade de poder se tornou senhora de

que ele seria a vontade de poder e nada além disso, então aparentemente se proíbe qualquer concepção em que a efetividade, no entender de Nietzsche, não seja considerada como unidade meta fisicamente fundada. 34

Nas interpretações de Nietzsche predomina a concepção segundo a qual a vontade de poder deve ser entendida como o fundante metafísico. Mesmo quando nos recusamos a conceber a vontade de poder como "inequívoca" vontade metafísica, no sentido de Schopenhauer - isto é, como um "prin-

32. Cf. a esse respeito meu livro Nietzsche, op. cit., p. 30 s. 33. W. Schulz: O Deus da metafísica moderna, Tübingen, 1957, p. 101.

cípio substancial da efetividade, fundamentado em si mesmo" -, ainda assim pode-se persistir em que Nietzsche, "com efeito, pensa, finalmente, as várias vontades de poder concretas

34. Em A vontade e as vontades, pergunta Weischedel: "Nietzsche é metafísico, como quer Heidegger, ou não o é, como afirma Müller-Lauter?" (op. cit., p. 74). Fica pressuposto, com a pergunta, um entendimento comum de metafisica entre os perguntados. Se isso ocorre com razão, é o que deve ser discutido, pelo menos indicativamente.

como manifestações de um princípio unitário, determinante de toda efetividade", como o faz W. Weischedel. 30 Sua interpretação permanece - inobstante todas as outras diferenças aparentada com a de Jaspers, que considera que Nietzsche substancializa o autêntico ser como vontade de poder, no inte-

rior de uma efetividade pensada sem transcendência, no mundo da "pura imanência" .31 Sob um traçado completamente diverso, também Heidegger parte da unicidade da vontade de poder, que se mantém e se supera a si mesma. No superar-se 30. W. Weischedel: A vontade e as vontades, op. cit., p. 76 e 75. 31. K. Jaspers, Nietzsche, Introdução à compreensão de seu filosofar, Berlim, 2ª ed., 1947, p. 310.

1

. . ·. j. ·. L

Segundo Nietzsche, a metafisica surge em virtude de que o pensar "acrescenta (hinzudenkt), inventa o incodicionado para o condicionado." A Nietzsche importa, sempre de novo, "expor o absurdo de toda metafísica como derivação do condicionado a partir do incondicionado." (Póstumos de VP., 574; GA. XVI, 71; agosto de 1883, nº 8 [25]; KGW VII 1, 352). Oriento-me pelo próprio entendimento de metafísica de Nietzsche, quando me refiro à genealogia da metafísica a partir da lógica (Nietzsche, op. cit., p. 13), e quando separo a filosofia de Nietzsche daquela de Schopenhauer. Para Nietzsche,

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Que no mesmo manuscrito se leia que o mundo seja "uma monstruosidade força ... ao mesmo tempo um e múltiplo'', isso não exclui uma interpretação metafísica no sentido trata-se de metafísica quando "é deduzida uma multiplicidade a partir de um primeiro, simples." Não é exato que meu próprio entendimento de metafísica se esgote nessa formulação, como manifestamente pensa Weischedel (A vontade e as vontades, op. cit., p. 72). Para mim é importante destacar o entendimento de metafísica de Nietzsche, também para minha discussão com outras interpretações de Nietzsche. Não se é justo com Nietzsche, quando se lhe imputa que ele caia, ele próprio, na figura da metafísica vista e criticada por ele. Isso ocorre com Heidegger, como tentei mostrar (do autor: Nietzsche, op. cit., p. 30 s.). Isso ocorre também com Weischedel quando ele escreve que Nietzsche poderia valer, "com efeito, como o grande destruidor da metafísica tradicional. Todavia isso apenas significa que ele a substitui por sua nova metafísica da vontade de poder. Também ele não pode renunciar a estabelecer um Absolutum no filosofar." (O Deus dos filósofos, volume 1, Darmstadt, 1971, p. 455). Do pensar não-metafísico de Nietzsche, falo apenas quando apresento, de modo imanente, seu entendimento de metafísica. Se compreendemos, porém, metafísica de modo muito mais abrangente, como o perguntar pelo ente em sua totalidade e enquanto tal, então temos que, segundo minha concepção, designar também Nietzsche como metafísico. Então há que se atentar também para os sinais de dissolução na metafísica de Nietzsche: "o todo" só é dado ainda como "caos", o ente enquanto tal não é mais 'fixável'. Se, com Heidegger, interpretamos metafísica em sua 'essência' como esquecimento do ser, então a metafísica de Nietzsche, na qual "ser" vale como mera ficção, representa uma espécie de metafísica mais elevada. Em todo caso, concordo com Heidegger na medida em que não estou disposto a excluir Nietzsche da história da metafísica, até mesmo da metafísica da sub-

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mencionado. O "múltiplo" se deixa, com certeza, compreender a partir "do um". Quero entretanto, a partir dessa determinação, desenvolver um outro entendimento de vontade de poder e mundo. Sou de opinião de que ele é mais adequado àquilo que a Nietzsche importa.

A vontade de poder como um e múltiplo O mundo é um e múltiplo. O mundo é a vontade de

poder. Pode-se suspeitar, de acordo com isso, que também a vontade de poder é um e múltiplo. Partamos de que a vontade de poder seja um. O um, como teológica e metafisicamente fundante, é recusado por Zaratustra. Ele denomina "malvadas todas essas doutrinas do um." 35 Também o um não é, para jetividade, como suspeita B. Taureck em sua apresentação de meu livro (ln: Ciência e figura do mundo, 1972, Caderno 3, p. 236 s.). Que a subjetividade intensificada ao extremo sinaliza, ao mesmo tempo, seu próprio declínio, isso ainda deve ser mostrado em seguida de modo mais claro. Essas poucas indicações têm de bastar para limitar a pergunta de Weischedel, mencionada de inicio. Somente na medida em que Heidegger imputa ao pensamento de Níetzsche uma metafísica contra a qual este expressamente se voltou, tem razão a oposição operada na pergunta. O próprio Weischedel não permanece na oposição. Ele indica que a determinação, por Heidegger, da vontade de poder como constituição do ser e minhas considerações da vontade de poder como única qualidade "estão mais próximas uma da outra do que aparece à primeira vista" (A vontade e as vontades, op. cit., p. 75). De fato, tanto Heidegger quanto eu destacamos a vontade de poder como essência. Todavia, na elaboração daquilo que significam essência e existência em Nietzsche cessa a comunidade. 35. Assim falou Zaratustra li: Nas ilhas bem-aventuradas; KGW VI 1, 106.

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Jietzsche de modo algum, "o simples". "Tudo o que é, sim-

'verd~deiro' -,o

e~'.:~

lles é me;amente imaginário, não é que . d d . nem é um nem e redut1vel a um. ivo 0 que e ver a e1ro, ' dizer então unidade para Nietzsche? Ele respon, ) que quer , ' · certo i . "Toda unidade só é unidade como orgamzaçao e. con e. . li não diferente de como uma comunidade Zusammensp1e,,, b. um huda , unidade."37 Isso nos força a pensar Iam em o

::~:d: de poder sob esse aspecto. A multiplicidade ~cede ao ) imeiro plano. Só uma multiplicidade pode ser organizada em r · do, d.e "quanta de po· midade. Trata-se, no múltiplo organiza . o un1co , . mundo não é nada mais que vontade for" se pois, . de

~osso

)O ·oi

d ,r então, estabelecer uma ligação com aquilo que e . , ·- da 'segunda prova' de Schlechta. exposto por ocas1ao

A vontade de poder é a multiplicidade das forças em de· ·embate umas co mas outras. Também da força, .no sentido d ,Nietzsche, so, po demos falar em unidade no •sentido edorgani· d . o mun do é uma firme ' bronzea gran eza e Ção Com efeito, za . t de força "3ª Mas esse quantum força, ele forma "um qua~ um . - observa G. só é dado na contraposiçao de quanta. Com razao, . Deleuze: "Toute force est ... dans un ra Pp.ort .essent1el . avec L'être de la force est le plunel; il sera1t propre· 1 une autre orce. 39 N" do as ment absurde de penser la force en singulier." ao se~ • f da mais do que as "vontades de poder", entao nao orças na . d ue a vontade se deixa sustentar a afirmação de Heidegger e q ----36. Fragmento póstumo, primavera de 1888, 15 [118]; KGW VIII 3 272 s. (V P., p. 536). O Frag~ento póstumo de V P., p. 561; GA. XVI, 63. u. tono de 1885-outono 1886, nº 2 [87]; KGW VIII 1, 102. 38 Fragmento postumo . de V p" p. 1067 e 638; GA. XVI, . 401e115 Junho-julho de 1885, nº 38 [12]; KGW VII 3, . p. 339 e outono 1885-outono 1886 , nº2[143]·KGWVlll ' 37

39.

1 p. 135.

G. Deleuze: 1970, p. 7.

. p · • ed Nietzsche et la philosoph1e, ans, 3. .

de poder "nunca seja o querer de um singular, efetivo", vonta· de de poder seria sempre "vontade essencial (Wesenswille). "4º O mundo de que fala Nietzsche revela-se como jogo e contrajogo de forças ou de vontades de poder. Se ponderamos, de início, que essas aglomerações de quanta de poder ininterruptamente aumentam e diminuem, então só se pode falar de unidades continuamente mutáveis, não, porém, da uni· dade. Unidade é sempre apenas organização, sob a ascendência, a curto prazo, de vontades de poder dominantes. Nietzsche radicaliza ainda sua concepção por meio da observação de que cada unidade dessa, como uma "formação de domínio(Herrschafts-Gebilde)", apenas significaria, todavia não 41 seria "um". O um não é. Então também a vontade de poder não é como um. A unidade de formações de domínio, nas quais está inserida uma multiplicidade de quanta de força, não tem nenhum ser. Por outro lado, porém, Nietzsche diz, como ouvimos: A unidade é unidade como organização. Incorre Nietzsche aqui numa contradição consigo mesmo? Se acreditamos na" 'razão' dentro da linguagem", então temos deresponder afirmativamente. Todavia a linguagem-razão é, para Nietzsche, "uma velha senhora mentirosa". No mesmo contexto se diz: Nada teve até então "uma mais ingênua força de convencimento do que o erro do Ser, como foi formulado, por exemplo, pelos eleatas: ele tem a seu favor cada palavra, cada 42 frase que fafamos." Nietzsche está convencido de que a lin· 40. M. Heidegger: Nietzsche, op. cit. 1, 73. Heidegger expõe: (op. cit. li, 36): "Em lugar de 'vontade de poder' Nietzsche diz freqüentemente e equivocamente 'força'." 41. Fragmento póstumo de VP., p. 561; GA. XVI, 63. Outono de 1885-outono 1886, nº 2 [87]; KGW VIII 1, p. 102 . Comparar Fragmento póstumo da primavera-outono de 1881, nº 11 [115) KGW V 2, p. 380: "Um impulso ainda tão complexo, se ele tem um nome, vale como unidade, e tiraniza todo pensador que procura sua definição." 42. Crepúsculo dos ídolos, A "razão" na filosofia, 5; KGW VI 3, p. 72.

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guagem nos engana quando tomamos a palavra ao pé da letra,

da sucumbiram à sedução de seu conceito de ser: Demócrito,

isto é, quando permanecemos nela e deixamos de perceber:

entre outros, quando inventou seu átomo... " 47

por meio dela, a indicação a processos (Sachverhalte) que não

Nietzsche não sucumbe a tal tentação. Se não há

são absorvidos nela. Porque Nietzsche fala indicativamente

nenhum ser no sentido do estável, então não há também ne-

dessa maneira, ele pode tanto dizer "é", quanto negar efetivi-

nhum átomo. Não apenas o um de uma formação de domínio

dade ao "é". 43 Na verdade, há que se perguntar em que sen-

organizada não tem tal ser, porém também o múltiplo "combi-

tido não há ser. "Ser" é, segundo Nietzsche, "uma ficção va-

nado" em uma formação não "é", na medida em que é pensa-

zia." Que, com essa afirmação, ele acredita 44 poder se repor-

do como constituído a partir de unidades fixas. O múltiplo dos

tar a Heráclito, assim como já sua alusão aos eleatas, isso

quanta de poder não há, pois, que ser entendido como plurali-

indica qual "limitação do ser", para dizê-lo com Heidegger, 45 é

dade de dados-últimos quantitativamente irredutíveis, não co-

constitutiva para o entendimento do ser por Nietzsche: o ser é

mo pluralidade de "mônadas" indivisíveis. 48 Deslocamentos

oposto ao devir e dele derivado como "engano''. 46 Como o

de poder no interior de organizações instáveis permitem que

oposto do devir, o "ser" vale como o estável (das Bestandige).

o pensamento da estabilidade (Bestandigkeit)

de um quantum de poder advenham dois, ou que dois se tor-

se compõe, no

nem um. Se nós nos servimos dos números num sentido esta-

entanto, inteiramente com o pensamento da multiplicidade.

bilizador e definitivo , então há que ser dito que o "número"

Nietzsche observa: "Também os adversários dos eleatas ain43. Kõster critica minha diferenciação, relativamente a Nietzsche, entre conceito fixador e palavra indicativa (A problemática, op. cit., p. 40). As questões que se colocam nesse contexto foram levadas adiante e aprofundadas por J. Salaquarda (ln: OAnticristo, Nietzsche-Studien 2, 1973, p. 91 s; aqui: p. 133 s.). A partir das exposições de Salaquarda, torna-se claro como Nietzsche pode proporcionar a seus "conceitos", por exemplo "uma singular cor de lusco-fusco, um aroma tanto de profundidade quanto de mofo." (Fragmento póstumo; GA. XIV, p. 355; junho-julho de 1885, nº 37 [5]; KGW VII 3, p. 305 s.). 44. Crepúsculo dos ídolos, A ''razão" na filosofia 2; KGW. VI 3, p. 69. 45. M. Heidegger: Introdução à metafísica, Tübingen, 1953, p. 71 s. 46. É verdade que ocasionalmente Nietzsche utiliza a palavra "ser" também no sentido de "vida''. Então o próprio ser é entendido como devir. Por vezes, ele é empregado também no sentido de "essência", de "efetividade", de "ente particular", assim como de "ente em sua totalidade''.

dos seres permanece sempre em fluxo. 49 Não há nenhum individuum, não há nenhum último, indivisível quantum de poder

1

~

47. Crepúsculo dos ídolos, A "razão" na filosofia 5; KGW. VI 3, p. 72. 48. Quando recuso a hipótese de que se possa atribuir à vontade de poder de Nietzsche uma substancialidade, no sentido leibniziano (do autor: Nietzsche, op. cit., p. 32 s.), atrás disso não se oculta o pensamento de proporcionar às vontades de poder substancialidade em qualquer outro sentido, como suspeita Kõster (A problemática .. ., op. cit., p. 43 s.). Também não incorro no perigo de uma substancialização quando, seguindo a marcha dos pensamentos de Nietzsche, entendo o homem como unidade de relativa independência. Com isso, depois de sua prévia "destruição", "o homem" não desperta, em minha interpretação, "para uma nova vida", como escreve Kõster (op. cit., p. 46); desde o início de minhas considerações a esse respeito (do autor: Nietzsche, op. cit., p. 18 s.), ele é visto como multiplicidade de forças organizada em unidade. 49. Cf. Do autor: Nietzsche, op. cit., p. 33.

T

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por detrás do qual cheguemos. Nietzsche pretende pensar "ra-

Se suprimo pelo pensamento todas as relações, todas as "propriedades", todas as "atividades" de uma coisa, então não permanece a coisa: porque coisidade é primeiramente fingida por nós, em virtude de necessidades lógicas, portanto para fins de designação, de se colocar de acordo. 55

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dicalmente", na medida em que teria "descoberto o 'ínfimo mundo' como o sobretudo decisivo." 5 Como láctico, esse ínfimo nunca pode ser um derradeiro. Como mundo, ele é sempre uma formação constituída por "quanta de força, cuja essência consiste em exercer poder sobre todos os outros quanta de força. " 51 Uma formação de domínio não "é" um, ela significa

º

um. O que se quer dizer aqui com "significar"? Em Para além de Bem e Mal, escreve Nietzsche, o querer lhe parece sobretudo "algo complicado, algo que é unidade somente como palavra." 52 Já observamos que a linguagem nos simula unidades. Todavia o significar é de essência mais originária do que o falar. Falar é uma maneira de expressão do querer-poder. 53 Ela sela o que previamente já foi interpretado como algo. Toda

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"A" coisa significa um para o intérprete, embora a ele, na efetividade, somente uma multiplicidade se contraponha. Entretanto, também "o" intérprete nada mais é que uma multiplicidade "com fronteiras inseguras". 56 Nós somos "uma multiplicidade que se imaginou uma unidade", anota Nietzsche.57 A consciência, o intelecto, serve como meio com o qual "eu" "me" engano a mim mesmo. 58 Com efeito, há que haver "uma

interpretação surge a partir do anseio de poder de formações de domínio. Elas arranjam para si mesmas aquilo que elas querem superar, talvez incorporar a si, ou contra o que elas se

mantém fechadas as outras." 59 Por meio dessa consciência, a

colocam em defesa. O arranjar é sempre um igualar falsifica-

formação de domínio que eu sou se dá a entender para si

porção de consciência e vontade em todo complicado ser orgânico"; no entanto nossa consciência superior habitualmente

dor e tornar fixo. Aquilo que é igualado e tornado fixo é prepa-

mesma como um: por meio de "simplificar e esclarecer, por-

rado para ser apanhado ou também para a postura de defesa

tanto falsificar." Dessa maneira são tornados possíveis os apa-

de um querer-poder. 54 Nietzsche escreve:

rentemente simples atos de vontade. 60

50. Fragmento póstumo, primavera de 1888, 14 [37]; KGW VIII 3, p. 28. 51. Idem, 14 [81]; KGW VIII 3, p. 53. 52. Para além de Bem e Mal 19; KGW VI 2, p. 26. 53. "O direito senhorial de dar nomes vai tão longe que nos deveríamos permitir apreender a própria origem da linguagem como expressão de poder dos dominadores: eles dizem 'isto é isso e isso', eles selam cada coisa e acontecer com um som e por meio disso, ao mesmo tempo, tomam posse deles", lê-se em Para a Genealo· gia da Moral (1, 2; KGW VI 2, p. 274). 54. V. a esse respeito, do autor: Nietzsche, op. cit., p..~ 1 s.

55. Fragmento póstumo, outono de 1887, 1O [202]; KGW VIII 2, 246; (VP. 558). 56. Fragmento póstumo; GA. XIII, 80. Primavera de 1884, nr. 25 [96]; KGW VII 2, p. 29. 57. ld. XII, 156. Outono de 1881, nº 12 [35]; KGW V2, p. 480. 58. "Eu e mim são sempre duas pessoas diferentes." Também meu "mim" é "fingido e inventado" (Fragmento póstumo; GA XII, 304; verão-outono de 1882, nº 3 [1], p. 352 e 3 [1], p. 333; KGW VII 1, p. 96 e 93 s.). 59. Fragmento póstumo; GA. XIII, p. 239 s. Primavera de 1884, 25 [401]; KGW VII 2, p. 112. 60. Idem, 249; junho-julho de 1885, nº 37 [4]; KGW VII 3, p. 304. Comparar do autor: Nietzsche, op. cit., p. 25 s.

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De tudo isso deveria ter-se tornado claro que Nietzsche

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'Vontade de Poder' no singular

sempre tem em vista multiplicidades lácticas de vontades de poder, que, respectivamente, significam um no sentido de simplicidade ou estabilidade, todavia são formações complexas e

Nietzsche emprega o singular em tripla significação. Na primeira significação, a vontade de poder é relacionada à

incessantemente mutantes, sem constância, nas quais ocorre uma contraposição de quanta de força em variadas graduações. Contudo, com que direito pode Nietzsche, então, falar sempre outra vez da vontade de poder, como se ela não fosse dada apenas na multiplicidade caracterizada, como se ela fosse factualmente um? Como se a vontade de poder, como algo simples, fundasse o mundo. 61 61. Tanto Weischedel quanto Kõster objetam contra a interpretação do "pluralismo da vontade de poder", por mim apresentada em meu livro sobre Nietzsche, que este, todavia, sempre de novo fale da vontade de poder. Ambos os críticos recorrem à proposição de Nietzsche de que esse mundo seria vontade de poder e nada além disso. Colocar-se-ia a questão, assim escreve Weischedel, do porque Nietzsche "não diz - no sentido de Müller-Lauter -: esse mundo é a inlin'ita plenitude das vontades de poder" (A vontade e as vontades, op. cit., p. 75). Kõster considera que a proposição teria, "segundo Müller-Lauter, que soar propriamente: 'Esse mundo é (a multiplicidade das) vontades de poder ... " (A Problemática ... , op. cit., p. 39). A mencionada proposição exige de lato, como tento mostrar pormenorizadamente nesta dissertação, uma explicação na direção caracterizada por meus críticos. Em que sentido Nietzsche pode falar da vontade de poder como do mundo, deve se tornar claro nos dois ítens seguintes. A conclusão que Weischedel extrai daquela proposição, segundo a qual ela sugere que Nietzsche, "todavia, pense finalmente as várias vontades de poder concretas como manifestações de um principio unitário, determinante de toda efetividade", "isso de maneira tal que essa vontade abrangente ganha figura em vontades

singulares" (A vontade e as vontades, op. cit., p. 75), remete o pensamento de Nietzsche àquela dimensão metafísica que ele abandonou. O próprio Nietzsche incorreria naquela duplicação da efetividade que ele combate: a vontade de poder subsistiria uma vez como o abrangente, como princípio, e depois ainda em suas particularizações. Por outro lado, Weischedel se aproxima de minha concepção quando escreve que as muitas vontades de poder "se reúnem nisso: que elas todas são da essência da vontade de poder" (op. cit., p. 75), a vontade de poder teria "seu modo de existência nas vontades concretas cuja constituição ela forma." Ele se afasta dela novamente, quando considera que Nietzsche estaria "a caminho da metafísica para a realidade concreta" (op. cit., 76). Com isso Weischedel pensa, todavia, a mutiplicidade a partir da vontade de poder como um primeiro fundante dessa. A problemática de uma interpretação que considera a vontade de poder como um quase-sujeito, que se quer a si mesmo, se destaca claramente na discussão de Kõster comigo. Kõster acha em meu "insistir na multiplicidade dos derradeiros dados (Letztgegebenheiten)" uma" unilateralidade" (A Problemática ... , op. cit., p. 48). O "aspecto de multiplicidade, indubitavelmente constitutivo na vontade de poder, não deveria ser salientado às custas do igualmente constitutivo aspecto da unidade" (op. cit., p. 41). No curso de sua interpretação de um fragmento póstumo da primavera de 1888 (que, todavia, só se encontra completo e não fragmentado na KGW VIII 3, 49-51, Fragmento. 14 (79]), ele chega ao seguinte resultado: "Com isso parece que a multiplicidade dos quanta (idênticos com ª·vontade de poder) teria na vontade de poder seu fundamento" (op. cit., p. 41, nota 22). Isso me parece questionável. A questão que deve ser colocada

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totalidade do efetivo. Nós ouvimos: o mundo é a vontade de poder e nada além disso. O todo em sua variedade é designa-

do com o nome "a vontade de poder". A que remete aqui o emprego do singular? Com ele, Nietzsche exprime que a vontade de poder é a única qualidade que se deixa encontrar, seja

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aqui é a da relação entre "identidade" e "fundamento". Kõster corre perigo de resvalar num dualismo inadequado aos pressupostos de pensamento de Nietsche quando diferencia entre as vontades de poder do indivíduo e a vontade de poder. O que vale para aquelas "não pode, sem mais, ser universalizado e aplicado à vontade de poder." Minha consideração de que todo o simples se apresenta como produto de uma efetiva multiplicidade valeria, em verdade, "inteiramente para a destruição por Nietzsche da vontade individual, não vale porém de igual maneira (sic!) para a 'vontade de poder' que com ela não pode ser confundida (sic!) (op. cit., p. 42). Por outro lado, enfatiza Kõster que, apesar de toda distinção, as duas determinações se pertencem. Todavia, segundo ele, elas não se deixam pensar em conjunto. O "caráter total do universo e. com isso, a vontade de poder se anuncia na impensável e justamente assim querida simultaneidade de Um e Múltiplo'', para o que Nietzsche teria "empregado o conceito de dionisíaco". Em todo caso, a "identidade dionisíaca" teria sido "querida por Nietzsche apesar e por causa de sua impossibilidade" (op. cit., p. 42 s.). Apesar da crítica de Kõster (op. cit., p. 36, nota 16), não posso ingressar aqui na compreensão por Nietzsche do dionisíaco. Na crítica de Kõster, o dionisíaco tem, em todo caso, a função de trazer à síntese os antagonismos, naquele impensável que é objeto do querer (op. cit., p. 36, comparar especialmente também 57), e, a partirdesse impensável, desqualificar como racionalista o tratamento, por Nietzsche, dos antagonismos (v. a respeito na seqüência p. 54 s. Nota 188). Se Kõster, em sua diferenciação entre a vontade de poder e as vontades de poder, se volta para a utilização por Nietzsche das aspas, o tipa de sua argumentação contrasta, porém, com a sutileza de seu objeto. Ele indica que Nietzsche, .em duas passagens citadas por mim, coloca o plural entre aspas, enquanto o singular

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não se encontra nelas (op. cit., p. 48 s. Nota 33). Isso seria "a sutileza a que se teria aqui que ter prestado atenção". Quando Kõster escreve, porém, que "também alhures quase continuamente nos outros textos póstumos ... o conceito de vontade de poder seria primeiramente empregado no singular e não colocado entre aspas", isso é, então, dito brandamente, um exagero. Há várias passagens em que Nietzsche emprega o plural sem aspas, e há várias passagens onde ele coloca o singular entre aspas. Enumerá-las aqui parece-me dispensável. - Mas mesmo quando se desconsidera a citada expressão de Kõster, tendente à generalização, e se toma a sério sua exigência de que a significação das aspas colocadas por Nietzsche "só então emerge quando se toma o (se. partiGular) texto como um todo", mostra-se de imediato que temos que ultrapassar o texto particular, para compreender o sentido desse destaque (op. cit., p. 49). Um instrutivo exemplo disso oferece a esforço de Heftrich para interpretar as aspas entre as quais Nietzsche, no início do aforismo de VP. 1067 (junho-julho de 1885, Ir. nº 38 [12]; KGW VIII 3, p. 338), colocou as duas palavras "o mundo". Mostra-se logo que Heftrich tem que ir muito além do longo aforismo, "pois interpretar as aspas significa naturalmente determinar o conceito 'mundo'" (A filosofia de Nietzsche, op. cit., p. 54). Também a interpretação que Kõster me apresenta como exemplo - a interpretação de um travessão por Heidegger só é possível a partir de uma compreensão da vontade de poder, que não pode ser extraída do aforismo sob interpretação. - Se limitarmos ainda mais a repreensão de Kõster, se a relacionarmos apenas com a passagem da qual parte sua argumentação, isto é, com o enunciado de Nietzsche acerca das "duas 'vontades de poder' em combate", então temos que constatar que Kõster obtem sua própria interpretação não apenas do mencionado aforis-

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o que for que consideremos. 62 Temos que nos prevenir, porém, contra substancializar, de alguma maneira, a qualidade, ainda que essa maneira seja tão sublime. A qualidade não existe como algo subsistente por si, não como sujeito ou quase-sujeito, também não como o Um, cujas "produções" são as complexas formações de duração relativa, como considera Heidegger. 63 Antes ao contrário, a única qualidade já é sempre dada em tais quantitativas particularizações, senão ela não poderia ser essa qualidade. Toda vontade de poder é, com efeito, dependente de sua oposição a outras vontades de poder, para poder ser vontade de poder. A qualidade "vontade de

poder" não é um Um efetivo; esse Um nem subsiste de alguma maneira para si, nem sequer é "fundamento do ser" (Seinsgrund). Só há "efetiva" unidade como organização e combinação de quanta de poder.

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mo (VP. 401; Ir. póstumo da primavera de 1888, nº 14 [137], [138], [140]; KGW VIII 3, p. 113 s.): que, a partir da contradição entre Vida e Nada, a vontade de poder produz as múltiplas oposições daquela fútil aparência cha· mada 'mundo' e, ao mesmo tempo, destruindo, as recolhe em si" (op. cit., p. 49); isso não pode ser retirado da peça textual, como ser'1a de se esperar de acordo com a mencionada exigência. É evidente que também minha interpretação das aspas, no enunciado acerca das duas 'vontades de po· der' em combate, se nutre de um entendimento global do pensamento de Nietzsche. Há aqui, como alhures, outras razões que fazem aparecer como apropriado esse destaque. Nesse caso: a extrema simplificação (que já indiquei em meu livro, op. cit., p. 76); a explicitação de que também a vontade de nada é vontade de poder; o caso de que as duas vontades de poder (dos fortes e dos fracos) não são vontades de poder lácticas, se as pensamos em sua universalidade e não como particularizações em organizações (a esse respeito infra p. 27 s.). - Carece de uma explicitação própria o porque a filosofia de Nietzsche, em geral, tenha "sempre que parecer uma filosofia das 'aspas'", como ele próprio escreve (GA XIV, 355; junhojulho de 1885, nº 37 [5]; KGW VII 3, p. 306). 62. A esse respeito, do autor: Nietzsche, op. cit. 21 s. 63. HEIDEGGER, M.: Nietzsche, op. cit., li, p. 106.

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Se Nietzsche fala de vontade de poder como única qualidade, então ele, muito freqüentemente, deixa de lado o artigo. Por meio disso torna-se particularmente claro que, no caso da vontade de poder, não se trata de um princípio ou de um ens metaphysicum. Isso ocorre também em duas formulações de Nietzsche, às quais se recorre com especial prazer, para espremer sua filosofia num sistema metafísico, no qual ela não cabe. No contexto de uma crítica a Schopenhauer em Para além de Bem e Mal, ele assim fala do "mundo, cuja essência é vontade de poder"; 64 e num fragmento póstumo se diz (como já citado de início), "a essência mais íntima do ser" seria "vontade de poder". Se Nietzsche escre-

ve "a vontade de poder" ou "vontade de poder", com certeza pensa ele sempre a única qualidade, evidentemente desconsiderando-se os casos nos quais, com a designação "a vontade de poder", ele destaca uma vontade de poder em sua constituição particular. Passemos, pois, à segunda significação do "modo de expressão no singular" em Nietzsche. Visto que a vontade de poder é a única qualidade do efetivo, Nietzsche pode empregar o singular também em vista de determinações universais, com as quais freqüentemente multiplicidades são reunidas em âmbitos, ou adquirem significação de algum outro eventual modo abrangente. Seja mencionado como exemplo o projeto de um plano da primavera de 1888, que traz o sobrescrito: "Vontade de poder. Morfologia". Nesse apontamento, Nietzsche compila os títulos:

64. Para além de Bem e Mal 186; KGW VI 2, p. 109.

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A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

Vontade de poder como "natureza"

como vida como sociedade como vontade de verdade como religião como arte como moral como humanidade. 65 Não podemos nos ocupar aqui nem com os títulos isolados, nem com a seqüência de sua compilação. 66 A partir desse apontamento, deve ser tornado claro como (a) vontade de poder não pode ser entendida. Ela não é um fundamento do mundo, que produz vida, ou se exterioriza como arte, ou se

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sua essência, vontade de podêr. Tornar visível essa essência, nos "âmbitos" de espécie diversa, é a tarefa de uma "morfologia" da vontade de poder, de que se fala também em um outro plano de Nietzsche da primeira metade do ano 1888. 67 Isso vale, precisamente, quando a vontade de poder permanece oculta em determinadas maneiras de expressão (não produções!). Apresentemos uma parte da estruturação de um outro projeto de Nietzsche do mesmo ano, que porta o sobrescrito: "A vontade de poder. Ensaio de uma Transvaloração de todos os valores". Ele mostra de que maneira tem de ser entendida a vontade de poder, por exemplo, como moral e religião: li. Os falsos valores

efetiva como humanidade. Muito ao contrário, as "configura-

1. Moral como falsa

ções" (Gestaltungen) apresentadas por Nietzsche são, segundo

2. Religião como falsa 3. Metafísica como falsa

65. Fragmento póstumo, primavera de 1888, 14 (72]; KGW VIII 3, 46. - Imediatamente antes desse texto se encontra a seguinte disposição: "Vontade de poder como 'lei natural' Vontade de poder como vida Vontade de poder como arte Vontade de poder como moral Vontade de poder como política Vontade de poder como ciência Vontade de poder como religião." (ld. 14 [71 ]). 66. Aqui tem lugar uma comparativa 'filologia das aspas'. A palavra 'natureza' é, na listagem, a única palavra colocada entre aspas. No apontamento manuscrito por Nietzsche a palavra 'lei natural' está entre aspas. Isso sugere o entendimento de 'natureza', no texto acima citado, como natureza mecanicamente interpretada. Isso, mais uma vez, significaria que, também porisso, estaria vedada uma interpretação da seqüência no sentido de curso do desenvolvimento de uma vontade de poder metafísicamente pensada. Não há aqui nenhum quase - hegelianismo.

4. As idéias modernas como falsas. Ili. O critério da verdade

1. A vontade de poder. 68 Em suas configurações tradicionais, ainda determinantes dessa era, moral e religião são da essência da vontade de poder, ainda quando nelas essa essência aparece numa inversão. O critério para "falso" e "verdadeiro" há que se en67. Fragmento póstumo, primavera de 1888, 14 [136]; KGW VIII 3, p. 112. - Nietzsche dá valor à constatação de que exposições morfológicas nada podem explicar, mas estão apenas em condições de descrever estados de fatos: cf. Fragmento póstumo de VP. 645; GA. XVI, 118 s; e GA. XIV, p. 331. Junho-julho de 1885, nº 36 (28]; KGW VII 3, p. 226 e verão-outono de 1884, nº 27 [67]; KGW VII 2, p. 291. 68. Fragmento póstumo, primavera-verão de 1888, 16 (86]; . KGW VIII 3, p. 311 s.

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contrar naquilo que, sem encobrimento, é vontade de poder corno vontade de poder. Ele aflora "na intensificação do senti-

universais, os conceitos mais vazios", assim lemos em Crepúsculo dos ídolos, formam "a última fumaça da realidade

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mento de poder". 69 Precisamos avançar ainda um passo. As configurações e determinações universais não são "falsas" apenas na medida em que nelas conteúdos particulares são reunidos em unidades. Elas já são "falsas" em razão de sua universalidade. Isso vale, pelo menos, para quando ao universal é atribuída "existência". Também à vontade de poder, pensada porventura corno princípio universal e supremo, não cabe nenhuma existência. Ela só existe factualrnente corno única qualidade nos quanta de poder, ou corno essência apenas na multiplicidade, que não se pode abranger com a vista, daquilo-que-é (dass-sein); ou corno essência apenas na plenitude das "existências" conllitantes.7° "Os 'supremos conceitos', isto é, os mais 69. Fragmento póstumo de VP., p. 534; GA. XVI, 45; primavera de 1885, nº 34 [264]; KGW VII 2, p. 71: "Com isso, verdade não é algo que estivesse aí e tivesse que ser encontrada, descoberta, - mas algo que há que ser criado e que dá nome a um processo, mais ainda para uma vontade de subjugação, que, em si, não tem nenhum fim: inserir verdade, como um ativo determinar, não como um tornar-se consciente de algo que 'em si' tosse lixo e determinado. É uma palavra para a 'vontade de poder'." (Fragmento póstumo do outono de 1887, nº 9 [91]; KGW VIII 2, p. 49). A respeito desse critério de verdade, v. do autor: Nietzsche, op. cit., p. 108-15. 70. Heidegger procura expor "como, na metafísica de Nietzsche, a diferença entre essentia e existentia desaparece, por que ela tem que desaparecer no fim da metafísica; como, no entanto, dessa maneira é alcançada a extrema distância do começo" (Nietzsche, op. cit. li, p. 476). No contexto de suas considerações da história da metafísica, Heidegger entende a vontade de poder como essentia, ·o eterno retorno do mesmo como existentia. Uma tal coordenação é inadequada ao pen-

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sarnento de Nietzsche, ponto sobre o qual, todavia, não se pode prosseguir aqui. É essencial, para o que aqui está em discussão, que a relação essência-existência tem que ser pensada já em relação à vontade de poder. Com efeito, também aqui parece desaparecer a diferença: pelos menos as interpretações de Nietzsche dominantes dão testemunho disso. Se é que se trata de um "desaparecer", então vale, eletivamente, no contexto citado, a alegada proposição de Heidegger, segundo a qual um tal desaparecer "só se deixaria mostrar quando se procura tornar visível a diferença." Isso deve ser tentado acima. Para o entendimento da essência da vontade de poder no sentido metafísico, Heidegger resume algumas determinações da vontade, que se deixam encontrar em Nietzsche: "Vontade como o assenhorar-se de ... que se utrapassa a si mesmo, vontade como afeto (o excitante assalto), vontade como paixão (o galopante arrebatamento na imensidão do ente), vontade como sentimento (a condição [Zustãndlichkeit] de permanecer junto a si mesmo) e a vontade como comando." Com razão, Heidegger se recusa a cunhar, a partir dessas e ulteriores determinações possíveis, "uma 'definição' mais pura segundo a forma, que reuna tudo o que foi exposto." (Nietzsche, op. cit., p. 70 s.). Também na seqüência dessa investigação renunciamos a "definições": com elas incorremos na Lógica de que Nietzsche escapa. No que concerne às mencionadas determinações, aqui interessa sobretudo a primeira. Como há que se entender o assenhorar-se que se ultrapassa a si mesmo? Heidegger o interpreta como auto-sobrepujar-se da vontade. "Essa essência única da vontade de poder regra a interdependência que lhe é própria. Ao sobrepujar pertence aquilo que deve ser, a cada vez, superado, enquanto correspondente grau de poder, e aquilo que o supera. É

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evaporada. "7 1 Esse universal é apenas fumaça, a realidade consiste a cada vez no particular jogo-total (Gesammtspie0 de ações e reações operado no interior de complexas formações de centros de lorça.n Há que se partir daqui, nelas fazer começo. Uma das "idiossincrasias dos filósofos" consiste, porém, em "confundir o último e o primeiro. Eles colocam no começo, como começo, aquilo que vem no fim (se. os mais universais, "supremos" conceitos) - infelizmente! pois sequer deveria vir." Se nos apoiamos na razão (na medida em que esta não leva em conta o sentido histórico e não pensa até o fim aquilo que testemunham os sentidos), permanecemos então no "aborto e no ainda-não-ciência", o que aqui significa "metafísica, teologia, psicologia, teoria do conhecimento." Ou "ciência formal, semiologia: como a Lógica e aquela Lógica aplicada, a Matemática." Dessas disciplinas, que se movem em determinações universais diversas, de conteúdo ou de forma,

tência e, por isso mesmo, seja algo constante que se mantém e se conserva. Mas é preciso também que aquilo que supera tenha uma posição firme e seja resistente, sob pena de não poder se ultrapassar a si mesmo, nem permanecer na intensificação sem oscilar, nem permanecer seguro de suas possibilidades de intensificação" (op. cit., p. 269 s.). O que supera carece da resistência do que há que ser superado. Nisso concordo com Heidegger. Quando ele compreende, todavia, o jogo de mútua oposição entre o sobrepujante e aquilo a sobrepujar como curso gradual "de um Unitário", ele eleva a essência da vontade de poder a um ente absoluto que, a partir de si mesmo, se desdobra em multiplicidade, permanecendo, inobstante, junto a si. Com isso, o pensamento de Nietzsche fica equivocado. 71. Crepúsculo dos ídolos, A "razão" na filosofia 4, KGW VI 3, p. 70. 72. Fragmento póstumo, primavera de 1888, 14 [184]; KGW VIII 3, p. 162 s. A Vontade de Poder 567.

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Nietzsche afirma: "Nelas não se encontra a efetividade de modo algum." 73 Nietzsche fala de inefetividade e "falsidade" também em relação àquelas "determinações universais" (no quadro dessa exposição há que se permanecer nessa expressão indiferenciada), que - como propriamente dispensáveis - não vêem "no fim", porém se tornaram imprescindíveis para o existir humano. Outrora tomou-se a alteração, a mudança, o devir em geral como prova de aparência ... Inversamente, vemo-nos hoje, de certo modo, enredados no erro, necessitados ao erro, exatamente na medida em que o preconceito da razão nos constrange a estabelecer unidade, identidade, duração, substância, causa, coisidade, ser; tão seguros estamos, com fundamento em uma verificação rigorosa conosco mesmos, que aqui estâ o erro. 74

Também aqui, "o falso" é transformação da verdadeira essência da vontade de poder. Essa verdadeira essência da vontade de poder pode, todavia, ser indicada em todo transformado, até mesmo como condição de possibilidade e necessidade de tal transformação. Isso se torna claro em um outro apontamento de Nietzsche. Ele nomeia: "fim e meio" "causa e efeíto" "sujeito e objeto" 73. Crepúsculo dos ídolos, A "razão" na filosofia 4 e 3; KGW VI 3, p. 70. 74. ld. 5; KGW VI 3, p. 71.

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"fazer e padecer" "coisa em si" e "fenômeno"

como explicações (não como fato) e em que medida talvez como necessárias explicações? (como "conservadoras")- to75

das no sentido de uma vontade de poder." Se consideramos algo como fim ou como meio para um fim, então não temos nenhum estado de fato diante dos olhos; empreende-se uma explicação. Se também o quererpoder impõe uma tal explicação, então o explicado não adqui76

re com isso a dignidade do efetivo. No texto citado por último Nietzsche fala de uma vontade de poder. Caímos, com isso, na problemática da terceira significação que o singular adquire em Nietzsche. Uma vontade de poder é uma particular vontade de poder, d'1stinta de outras. No apontamento mencionado, é manifestamente do homem, como de uma vontade de poder, de que se fala. Vontade de poder significa, aqui, não apenas a essência da efetividade como tal, porém um efetivo em sua efetividade. Freqüentemente, com particular freqüência em curtos apontamentos póstumos, não se pode diferenciar inequivocamente se Nietzsche considera este ou aquela. Em suas discussões, ele não raro transita de um ao outro. Tomo um exemplo disso num texto, no qual, entre outras coisas, é tratada a já destacada pergunta pelo modo de ser-dado da "finalidade". Nietzsche escreve "que 75. Fragmento póstumo de A Vontade de Poder 589; GA. XVI, p. 91; outono de 1885-outono 1886, nº 2 [147]; KGW VIII 1, p. 137. 76. Nietzsche denomina a" aparente finalidade" também uma vez "a conseqüência ... (da) vontade de poder." (Fragmento póstumo, outono de 1887, 9 [91]; KGW VIII 2, 50; VP. 552. A respeito da problemática da ex-posição v. na seqüência item 1O).

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todos os "fins", "metas", "sentidos" são apenas maneiras de expressão e metamorfoses de uma vontade, inerente a todo acontecer: a vontade de poder ... e que o mais universal e profundo instinto em todo fazer e querer permaneceu o mais desconhecido e oculto, porque in praxi nós sempre seguimos seu mandamento, porque nós somos esse mandamento ... " 77 A transição é aqui fácil de encontrar. Até a última vírgula na passagem citada, fala-se da universalidade essencial da vontade de poder. Quando se diz, em conclusão, que nós mesmos somos vontades de poder "como mandamento", Nietzsche pensa então "entes" existentes como vontades de poder. Nessa significação, evidentemente, não apenas o homem, porém toda unidade organizada de quanta de poder é uma vontade de poder. Desse modo anota Nietzsche: A complexidade maior, a aguda separação, o lado a lado dos órgão e funções conformados, com desaparecimento dos membros intermediários - se isso é perfeição, assim resulta uma vontade de poder no processo orgânico, em virtude da qual forças dominadoras, con-

formadoras, ordenadoras aumentam sempre

o âmbito de seu poder, no interior do qual sempre de novo simplificam: oimperativo cres-

cendo. Quando Nietzsche fala, dessa maneira, de uma vontade de poder, ele então pressupõe, com a expressão singular, o plural como dado. Isso vale, naturalmente, também para aquelas expressões nas quais ele liga "vontade de poder" com um pronome possessivo. Assim, por exemplo, cada povo se 77. Fragmento póstumo, novembro de 1887-março de 1888, 9 [91]; KGW VIII 2, p. 286 s; VP. 675.

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distingue por sua particular vontade de poder. Zaratustra diz que sobre cada povo se eleva uma tábua de valores, como tábua de suas superações: ela seria "a voz de sua vontade de poder". 79 Em um apontamento póstumo escreve Nietzsche: um povo que ainda creia em si, venera em seu Deus, por meio de projeção de seu sentimento de poder, "as condições por meio das quais ele se eleva". Esse Deus representa "a alma agressiva, sedenta de poder, de um povo, sua vontade de poder."ªº Não devemos nos deixar induzir a erro pelo pronome possessivo: os povos não "possuem" suas diferentes vontades de poder ao lado de outra coisa, que lhes seria ainda peculiar. Eles são particulares vontades de poder - e nada além disso. Isso vale para tudo aquilo a que Nietzsche atribui efetividade. Todo "específico" é o que é somente como "sua" vontade de poder. No contexto de uma discussão com a ciência da natureza contemporânea, .Nietzsche considera:

tras vont~des de poder. A particularização já é, em si, sempre um repelir aquilo que resiste, ela possibilita o assujeitamento como a submissão, a incorporação e o ajustamento em relação

94

que todo corpo específico anseia tornar-se senhor, expandir sua força (sua vontade de poder:) sobre todo o espaço e repelir tudo o que resiste à sua expansão. Mas ele se choca permanentemente com iguais anseios de outros corpos e termina por se arranjar ("reunir") com aqueles que lhe são suficientemente aparentados: assim, eles conspiram juntos pelo poder e o processo segue adiante ... 81

a outrem que se particulariza. Particularizar-se, e, na particularização, relacionar-se, agindo ou reagindo, com o outro se particularizando: dessa maneira se consuma todo acontecer. Para nós, "nenhuma mudança é representável", escreve Nietzsche, "na qual não haja uma vontade de poder." E para que não opinemos tratar-se aqui da "única" vontade de poder, temos de prosseguir lendo: "Não sabemos derivar nenhuma mudança, quando não ocorre uma usurpação de poder sobre outro poder." 82 Se uma vontade de poder alcançou "o predomínio sobre um poder inferior", então trabalha "o último como função do maior."ª3 Falar-se de uma vontade de poder que se submete a outra é, naturalmente, uma simplificação. Que uma vontade de poder apresenta, respectivamente, um ajustamento hierarquicamente estruturado de várias vontades de poder particulares, Nietzsche o expôs em suas considerações sobre o corpo humano de modo particularmente insistente. 4 Ele escreve:

ª

Não se pode admirar até o fim como uma tal imensa reunião de seres viventes, cada um independente e submisso e, todavia, em certo 82. lbid. KGW VIII 3, 52 (VP. 689).

Nesse sentido, uma vontade de poder é uma organização de quanta de poder particularizando-se em face de ou79. Assim falou Zaratustra /, Das mil metas e da única meta; KGW VI 1, p. 70. 80. Fragmento póstumo, maio-junho 1888, 17 [4]; KGW VIII 3, p. 321. 81. Fragmento póstumo, primavera de 1888, 14 [81 ]; KGW VIII 3, 165 s. (VP. 636).

95

83. ld. outono de 1887, 9 [91]; KGW VIII 2, 50 (VP. 552). 84. "Seguindo o fio condutor do corpo" - como Nietzsche freqüentemente formula - devemos poder experienciar da melhor maneira aquilo que nós próprios somos. Em comparação com o espírito, seria aquele "o fenômeno mais rico, que permitiria observações mais claras." (Fragmento póstumo VP. 532; Cf. 492; GA XVI, 44, cf, 18; agosto-setembro de 1885, nr. 40 [15]; KGW VII 3, 367,. comparar nr: 40 [21]; KGW VII 3, 370 s.

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sentido, novamente comandante e agente pela própria vontade, pode viver como todo, cres-

a questão: de que espécie é a extrema organização, a mais extensa vontade de poder? Como "últimos organismos cuja configuração vemos", Nietzsche nomeia povos, estados, sociedades. 87 Diferentemente de "configurações e determinações gerais" que só exibem a vontade de poder ao modo de expressões, indicações, "conseqüências" ou "sinais",ªª eles são efetivas formações de domínio. Visto que neles, como organismos existentes, a essência da vontade de poder está dada como ser láctico (dass-sein), os chamados últimos e supremos organismos podem ser utilizados como "ensinamento sobe os primeiros organismos." 89 Todavia, não é necessário

cer e persistir por um tempo.

85

De novo somos remetidos do "um" aos "muitos", às unidades respectivamente organizadas em si mesmas e instáveis, sem uma subsistente essência (Kem) de ser.

Também aqueles ínfimos seres viventes que constituem nosso corpo ... não valem para nós como átomos anímicos, muito pelo contrário, como algo crescente, combatente, reproduzindo-se e de novo agonizantes; de modo que seu número se altera instavelmente. Para tornar completamente claraa fundante efetividade da multiplicidade para tudo aquilo que se dá "a entender" como unidade, Nietzsche aduziu à citada frase um parênteses. Ele fala "daqueles ínfimos seres viventes que constituem nosso corpo (mais corretamente: de cujo atuar-conjunto aquilo 86

que denominamos 'corpo' é a melhor alegoria)." Aquilo que Nietzsche denomina uma vontade de poder é, de fato, jogo de oposição ( Gegenspie0 e concerto (Zusammenspie0 de muitas vontades de poder, de todo modo organizadas em unidade. E aquela vontade está, por seu lado, inserida na contraposição e concerto de uma vontade de poder mais abrangente. Desse modo, um homem, por exemplo, forma um quantum de poder que organiza em si inúmeros quanta de poder. Em oposição e associação com outros homens, ele próprio pertence a "organismos" mais abrangentes. Coloca-se 85. Fragmento póstumo GA XIII, 247 s. Junho-julho de 1885,

nº 37 [4]; KGW VII 3, p. 302. 86. lbid. 248 s. Junho-Julho de 1885, nº 37 [4]; KGW VII 3,

p. 303.

97

87. Fragmento póstumo do outono de 1881, 11 [316]; KGW V 2, p. 461. 88. Para a Genealogia da Moral, li 12; KGW VI 2, p. 330. 89. Nietzsche fala dos últimos organismos no plural: povos, estados, sociedades. Para poder ser vontade de poder, toda vontade de poder carece, com efeito, de uma contra-vontade. Porisso é vedado admitir-se, acima das três últimas formações nomeadas, ainda uma derradeira como factualmente subsistente. Assim, Nietzsche pode dizer: "A 'humanidade' não avança; ela nem sequer existe." (Fragmento póstumo da primavera de 1885, 15 [8]; KGW VIII 3, 202; VP. 90). Tem que restar sem discussão aqui que Nietzsche, freqüentemente, emprega a expressão "humanidade" na apresentação de seu próprio assunto (por exemplo, em sentido de massa, soma de todos os homens, essência dos homens). Em todo caso, a humanidade não é, para ele, organismo e, com isso, não é uma vontade de poder. V. a respeito: fragmento póstumo da primavera-outono de 1881, nº 11 [222]; KGW V 2, 425, onde Nietzsche se volta contra discussões filosóficas; "transformar a humanidade num organismo - isso é o oposto de minha tendência." A ele interessa a "máxima pluralidade possível de organismos mutáveis, de espécies diferentes, que, chegados à sua maturidade e decomposição, deixam cair seu fruto, os indi- · víduos, dos quais, com efeito, a maioria perece, mas os

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aqui recorrer ainda a uma re-tradução do falso universal no verdadeiro particular. A essência da particularização à maneira de organização - como é constitutivo para todo quanta de poder - deixa-se destacar mais facilmente nos macrorganismos do que nas "unidades menores". Ainda que as três formações denominadas possam ser as "últimas" em relação às formas de organização humanas, permanece ainda, todavia a questão se a efetividade em seu todo, o mundo, não é efetividade organizada. Se a questão tivesse uma resposta afirmativa, então teria de ser provada, uma vez mais, a possibilidade da existência da vontade de poder como fundamento da efetividade. Nós partimos de duas afirmações de Nietzsche: o mundo seria um e múltiplo; o mundo seria vontade de poder e nada além disso. Demos então espaço à suspeita de que também a vontade de poder seria una e múltipla. O resultado de nossas reflexões até aqui reza: Existe apenas uma multiplicidade de vontades de poder. A vontade de poder é uma determinação essencial. A uma vontade de poder cabe efetiva unidade apenas como concerto na oposição a outras vontades de poder. No que se segue deve ser tematizada a primeira afirmação: o mundo seria um e múltiplo.

O todo do mundo orgânico é a rede (Aneinanderfãdelung) de seres com pequenos mundos fictícios em torno de si:ao transporem para fora de s1~ em experiências, sua força, seus desejos, seus costumes, como seu mundo exterior. 90 Em conseqüência disso, mundo é, de um lado, um todo: mundo orgânico. Quando lemos, no mesmo manuscrito "que não há mundo inorgânico", então podemos entender so~ "mundo", como mundo do orgânico, o todo da efetividade. Nesse apontamento, fala-se, de outro lado, em fictícios pequenos mundos dos seres particulares. Fica próxima a suposição de que tais ficções não teriam qualquer peso particular. Parece ser essencial apenas o primeiramente nomeado "conceito de mundo". Quando ouvimos, entretanto, que o todo, nele compreendido, forma a rede de seres com os "pequenos mundos",' então somos remetidos de novo àqueles seres. E quando nos lembramos de que Nietzsche chama de sobretudo decisivo91 0 "ínfimo mundo", faz então pleno sentido desdobrar a pergunta pela compreensão de mundo, por Nietzsche, a partir desse decisivo. A questão dos pequenos e ínfimos mundos surge do pluralismo da vontade de poder de Nietzsche. "Todo centrum

Os muitos mundos e o único mundo

de força tem sua perspectiva para o inteiro resto" das forças com as quais se relaciona, "isto é, sua bem determinada valo-

Na mencionada proposição, "mundo" significa aquilo que se costuma denominar "totalidade do ente" ou "o ente em seu todo". Entretanto, essa não é a única significação de mundo na filosofia de Nietzsche. Assim é que ele escreve: poucos são o que interessa." Nesse contexto, o socialismo é visto por Nietzsche como "fermentação", que "anuncia incontáveis experimentos do Estado, portanto também de declínios do Estado e novos ovos."

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ração, sua espécie de ação, sua espécie de reação." Um tal

agir e reagir perspectivamente valorador constitui a cada vez "um mundo". À objeção de que desse modo só se chega a mundos aparentes, contrapõe Nietzsche: "Como se restasse

i

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90. Fragmento póstumo; GA XIII, 80. Abril-junho de 1885, nº 34 [247]; KGW VII 3, p. 223. 91. Cf. p. 79.

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ainda um mundo, se suprimíssemos o perspectiva! Com isso

~'rair nossa perspe~tiva para, desse modo, conservar, o mundo. ~ mundo, abstraido de nossa condição de viver nele ... não

ter-se-ia, decerto, suprimido a refatividade." 92 A relatividade pertence, porém, essencialmente às vontades de poder se organizando umas contra as outras. Dessa maneira, em conseqüência da insuprimível perspectividade, vive "cada um dos seres diferentes de nós em um outro mundo que nós." 93 Podendo-se falar apenas de mundos perspectivas, dissolve-se o problema de sua suposta aparência. "O mundo não é para nós

existe como mundo 'em si'."96 Pressupondo que haja o mundo como o todo da efetividade, então podemos empregar positivamente a declaração contida na proposição citada. A esse mundo pertencem então nossas particulares condições de vida ,e . com 1s~o nossas perspectivas, como pertencem a ele as ações e reaçoes respectivamente determinadas de todos os seres singulares. Quando Nietzsche diz que "o mundo" seria "apenas uma palavra e o jogo total ( Gesammtspie~ dessas ações", 97 então isso significa que ele concebe o mundo como 0 "mundo 98 das forças." Cada força projeta para si, com efeito, um mundo próprio. Mas esse respectivamente próprio não conduz ao encapsulamento em face dos mundos das outras forças. Toda força (isto é, toda vontade de poder) está, decerto, relacionada às outras forças em oposição ou acomodação. o mundo tem, na verdade, "sob certas circunstâncias, sua feição diferente a partir de cada ponto." Mas, como o agregado de todas as forças, ele forma, decerto, o "material" para todos os particulares projetos-de-mundo. O mundo não resulta das "somató-

apenas um resumir relações sob uma medida?" A proposição seguinte contém a resposta afirmativa: "Tão logo falte essa arbitrária medida, nosso mundo se derrete." 94 Se não há qualquer "medida absoluta", então não resta mais nenhuma sombra de direito de se falar em aparência (Schein). 95 O desdobramento dessa problemática do mundo parece conduzir a idêntico resultado que a discussão da vontade de poder. Do singular somos remetidos ao plural. Se tomamos a sério as considerações de Nietzsche sobre a perspectividade, então permanece incompreensível para nós com que direito ele ainda pode falar do mundo. Não temos de concluir: não há o mundo, há apenas mundos? Nietzsche, entretanto, emprega a expressão "o mundo" sempre de novo, no sentido de

rias" dos mundos perspectivas: esses são, decerto, "em todo caso, completamente incongruentes." 99 Também a rede (Aneinanderfadelung) de que se falou antes não produz nenhum contexto (Zusammenhang) dos mundos particulares. Porém, 0 mundo é bem a soma dos seres que ficcionam mundos, a soma das forças factualmente dadas.

efetividade em seu conjunto. No início desta seção, recorremos a um exemplo de que ele pensa também a relação dos pequenos mundos ao mundo como um todo. Precisamos, portanto, tentar esclarecer essa relação. Há que se manter firme nisso: que não podemos sub92. Fragmento póstumo da primavera de 1888, 14 [184]; KGW VIII 3, 162 s. VP. p. 567. 93. ld. VP. 565; GA XVI, 65. Verão de 1886-primavera 1887, nº 6 [14]; KGW VIII 1, p. 244. 94. Fragmento póstumo do outono de 1881, 11 [36]; KGW V 2, p. 352. 95. ld. primavera de 1888, 14 [184]; KGW VIII 3, 163, (VP. p. 567).

101

Segundo Nietzsche, a soma das forças é limitada. "A medida do todo das forças é determinada, nada de infinito."100 96. ld. 14 [93]; KGW VIII 3, 63; (VP. 568). 97. ld. 14 [84]; KGW VIII 3, 163; (VP. 567). 98. Fragmento póstumo da primavera-outono de 1881, 11 [148]; KGW V 2, 396. 1

~

99. ld. primavera de 1888, 14 [93]; KGW VIII 3, 63; (VP. p. 568). .· 100. ld. primavera-outono de 1881, 11 [202]; KGW V 2, 421.

102

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Ele denomina o mundo "uma fixa, brônzea grandeza de força, que não se torna maior nem menor, que não se consome, mas se modifica, inalteravelmente grande como todo, uma econo-

A DOUTRINA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

103

pótese de que o todo seria um organismo repugnaria a essên-

cia do orgânico. 104 E tão pouco quanto o mundo, como um todo, é um ser vivente, 105 tão pouco é ele uma organização,

mia sem despesas e perdas, mas igualmente sem crescimento e aportes."101 Nietzsche não apenas admite uma limitação na

num outro sentido qualquer. Ora, nós ouvimos que unidade só

soma total da força, como também uma limitação do número possível de situações de força (Kraftlagen). Com isso, ele in-

falar do todo como do mundo unitário. É sugestivo que, num

corre em contradição consigo mesmo: a infinita divisibilidade das forças, por meio da qual fica excluído todo pensamento de uma quase-substancialidade das vontades de poder, deixa espaço para o pensamento de infinitamente múltiplas combina-

é unidade como organização. Por isso Nietzsche não pode manuscrito mais tardio, ele recuse a possibilidade de que o mundo seja o "todo" como unidade: "Parece-me importante que abandonemos o todo, a unidade." Ainda mais sugestiva é a fundamentação que ele dá para isso. A essa unidade teria de

ções de força. Nietzsche tem de admitir, entretanto, uma limi-

pertencer "alguma força, um incondicionado. Não se poderia

tação das situações de força, se sua doutrina do eterno retorno do mesmo - que não será discutida aqui - deve ter validade cosmológica. 1 2 Para fundamentação dessa limitação, anota ele: "O infinitamente novo vir-a-ser é uma contradição, ele pressuporia uma força infinitamente crescente. Mas do que

deixar de tomá-lo como instância suprema e batizá-lo 'Deus'."

º

. nutrir. com exce den te.!"103 deve ela crescer! De onde se nutrir, A argumentação tem força de convencimento em relação à

Para a constituição da unidade do todo, seria necessário um fundante originário, que organizaria a multiplicidade total. Recairíamos com isso, porém, no preconceito metafísico combatido por Nietzsche. Assim, exige ele: "Tem-se que estilhaçar o todo; desaprender o respeito pelo todo; retomar para o próxi-

º6

mo, o nosso, aquilo que demos ao desconhecido, ao todo." 1

inalterabilidade das quantidades de força: a hipótese de uma força total (Gesamtkraft) infinitamente crescente é absurda. No entanto, não ficam excluídas, de modo algum, combinações de força infinitamente mutáveis no interior de uma quantidade de força permanentemente igual - assim há que se objetar aqui contra Nietzsche - se os quanta de força são infinitamente divisíveis. Nossa pergunta pel' o mundo se orienta pela problemática da vontade de poder. Para ela, é essencial que Nietzsche acrescente à sua tentativa de fundamentação o seguinte: a hi101. Fragmento póstumo VP. 1067; GA XIII, 401. Junhojulho de 1885, nº 38 [12]; KGW VII 3, p. 335. 102. Comparar a respeito, do autor, op. cit., p. 180 s. 103. Fragmento póstumo da primavera-outono de 1881, 11 [213]; KGW V 2, p. 423.

104. lbid. comparar também fragmento póstumo GA XII, 60, primavera-outono de 1881, nº 11 [201 ]; KGW V 2, p. 420: "Como todo, temos que pensá-lo (se. o todo) tão longe quanto possível do orgânico!" 105. A Gaia Ciência 109; KGW V 2, p. 145. 106. Fragmento póstumo VP. p. 331; GA XVI, p. 381, final de 1886-primavera de 1887, nº 7 [62]; KGW Vl/11, p. 325. V. já também fragmento póstumo da primaveraoutono de 1881, nº 11 [201); KGW V 2, p. 420: "A contra-parte científica moderna da crença em Deus é a crença no todo como organismo: isso me repugna. Ora, o totalmente raro, o indizivelmente elevado, o orgânico, que somente percebemos sobre a crosta da terra, fazer dele o essencial, unfversal, eterno! Isso é sempre ainda humanização da natureza! E uma disfarçada pluralidade de deuses nas mônadas, que em conjunto formam o todo-orgânico!. .. Fantasmagoria! - Se !

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Corn isso, Nietzsche rejeita explicitamente o pensamento de que o mundo pudesse estar enraizado na vontade de poder como num fundamento do ser factualmente subsistente. "O" mundo não é nenhum todo como unidade, no

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Todos os entes são concebidos por Nietzsche como estruturas de domínio, como quanta de poder hierarquicamente organizados. Também o homem é, como já ouvimos, uma tal estrutura. "Aquilo que o homem quer, aquilo que quer toda ínfima parte de um organismo vivente, é um plus de poder."1oa

caso de que toda unidade é unidade de organização. Não há, decerto, nenhuma força fundamental organizando-o num todo. Falar de um mundo tem então, para Nietzsche, só o sentido de que ele admite uma quantidade limitada de força, entendida

Nele todo "impulso" é, ele próprio, vontade de poder. Cada (impulso OGJ.) é "uma espécie de anseio de domínio, cada

em incessante alteração. Trata-se também de quantidades li-

ma a todos os demais impulsos." 1 9 Impulsos reúnem-se para

mitadas de força, quando Nietzsche fala do mundo orgânico, do mundo inorgânico e semelhantes, num sentido setorial. Tais "mundos" não existem por si, também não apresentam nenhuma unidade organizada. Trata-se aqui de div'1sões, por razões,

sustentar oposição a outros complexos de impulsos. Os anta-

finalmente, heurísticas. "O mundo" é caos, como diz Nietzsche: 107 a-legalida-

um tem sua perspectiva, que ele gostaria de impor como nor-

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gonismos dos impulsos levam a incessantes deslocamentos nas constelações de poder: "por meio de cada impulso, é agitado também seu contra-impulso." 110 Como em tudo que é, assim também no homem "todo acontecer, todo movimento, todo vir-a-ser" tem de ser interpretado "como um fixar de relações de grau e de força, como um combale." 111 Nesse sentido,

de de agregações e desagregações de forças. Posto que o mundo não é um todo organizado, então também não há a vontade de poder como o ens metaphysicum constituinte do

espécie pessoal, das quais ora essa, ora aquela estaria em

mundo. Existem apenas multiplicidades de vontades de poder,

primeiro plano, e olharia para as outras como um sujeito olha-

a vontade de poder não existe.

Nietzsche descreveu o ego como "pluralidade de forças de

ria para um sugestivo e determinante mundo exterior." O domínio muda no interior dos complexos pulsionais: "O ponto de vista (Standpunkt) se desloca aos saltos." 112 Este não deve

'As' vontades de poder 'no' mundo Sobre aquilo que caracteriza uma vontade de poder como vontade de poder, o mais importante já foi dito. No que se segue, deve ser indicado o ente em sua particularidade como vontade de poder no mundo. o todo pudesse se tornar um organismo, teria se tornado um." 107. Assim considera N'1etzsche, por exemplo, em Fragmen· to póstumo (novembro de 1887-março 1888, 11 [74]; KGW VIII 2, 279; (VP. 711) ): "Que o mundo não é, em absoluto, um organismo, porém o caos."

ser enten.dido como Um estável. Não é adequado estabelecer 108. Fragmento póstumo da primavera de 1888, 14 [174]; KGW VIII 3, 152; (VP. 702). 109. ld. VP. 481; GA XVI, 12; final de 1886-primavera 1887, nr. 7 [60]; KGW VIII 1, 323. 11 O. Fragmento póstumo; GA XI, 283; outono de 1880, nr. 6 [63]; KGW V 1, 540. 111. Fragmento póstumo de outubro de 1887, 9 [91]; KGW VIII 2, 49; (VP. 552). 112. Fragmento póstumo; GA XI, 235; outono de 1880, nr. 6 [70]; KGW V 1, 541 s. Le-se aqui: "O sujeito se desloca aos saltos". Com isso não se dá uma diferen- · ça na própria coisa.

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"uma unidade" por detrás da multiplicidade de nossos afetos: "basta apreendê-la como um governo." 113 Aquilo que deve valer para o homem concerne também, para Nietzsche, todo vivente: no "âmbito de efetividade" do orgânico não há nada de outro que complexos contextos de quanta de poder, "uma multiplicidade de seres em combate uns com os outros", 114 dos quais cada um deles, em sua particular perspectividade, combate em conjunto com outros quanta ou em oposição a eles pelo domínio no interior de unidades relativas. Sob esse aspecto, mesmo um protoplasma aparece "como uma multiplicidade de forças químicas", 115 a que cabe unidade somente na medida em que a multiplicidade se "dá a entender" como acobertador concerto. Desde o homem até, cá embaixo, o protoplasma, vale, pois, que o vivente -, em conseqüência da multiplicidade das perspectivas nele atuantes -, apreende de modo múltiplo aquilo que se lhe contrapõe. O que se lhe contrapõe é, sob certas circunstâncias, apenas temporariamente o contraposto. Um organismo pode incorporar a si aquilo que inicialmente lhe é estranho; incorporação é, decerto, um modo fundamental em que é efetivo 113. ld. XIII, 245; agosto-setembro de 1885, nr. 40 [38]; KGW VII 3, 379. Num outro apontamento póstumo, lêse a respeito do homem "como multiplicidade": "Seria falso concluir necessariamente de um Estado um monarca absoluto (a unidade do sujeito)" (Fragmento póstumo; GA XIII, 243; verão-outono de 1884, nº 27 [8]; KGW VII 2, 276 s.). - Nietzsche fala ocasionalmente de uma espécie de aristocracia de 'células' nas quais reside o domínio (Fragmento póstumo VP. 490; GA XVI, 16; agosto-setembro de 1885, n9 40 [42]; KGW VII 3, 382). Ele destaca, desse modo, a multiplicidade em cada vontade de poder dominante. 114. Fragmento póstumo, maio-julho de 1885, nr. 35 [59]; KGW VII 3, 259. 115. Fragmento póstumo, GA XIII, 227. Maio-julho de 1885, nr. 35 [58]; KGW VII 3, 259.

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o querer-poder. Em todo caso, o querer-poder carece daquilo que a ele resiste. "A vontade de poder só pode se exteriori:ar em resistências; ela busca pelo que a ela resiste - essa e a tendên~ia original do protoplasma, quando estende seus pseudoten~acu~os e tateia em torno de si. A apropriação e a incorporaçao e, sobretudo, um querer-sub1·ugar um lo , rmar, conformar e transformar, até que o subjugado tenha passado inteiramente ao poder do agressor e o tenha aumentado. Não sendo bem-sucedida a incorporação, então desmorona a formação; e a duplicidade aparece como conseqüência da vontade de poder: para não deixar escapar o que foi conquistado, a vontade de poder separa-se em duas vontades."11s "O protoplasma se dividindo 1/2 + 112 não= 1, porém= 2", anota Nietzsche.11 7 Se o mundo é a vontade de poder e nada além disso, então também as ocorrências no "âmbito de efetividade" não 116. Fragmento póstumo do outono de 1887, 9 [151]; KGW VIII 2, 88; (VP. 656). - Comparar ld. primavera de 1888, 14 [174]; KGW VIII 3, 152; (VP. 702). A respeito da divisão e assimilação dos seres vivos inferiores até a constituição de castas nos organismos superiores, v. também fragmento póstumo da primavera-outono de 1881, nº 11 [134]; KGW V 2, 388 s. 117. Fragmento póstumo, GA XIII, 259; comparar id. XVI, 325; outono de 1885-outono 1886, nº 2 [68]; KGW VIII 1, 90. Comparar outono de 1885, nº 43 [2]; KGW VII 3, 439; outono de 1887, nº 9 [98]; KGW VIII 2, 55 s: "Nenhum 'átomo'-sujeito. A esfera de um sujeito crescendo permanentemente, ou diminuindo-; caso ele não consiga organizar a massa obtida, ele se decompõe em 2. Por outro lado, ele pode, sem destrui-lo, transformar em seu funcionário um sujeit9 mais fraco e, até um certo grau, formar junto com ele uma nova unidade. Nenhuma 'substância', muito mais algo que, em si, anseia por fortalecimento; e que só indiretamente quer se 'conservar' (ele quer se suplantar)."

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A DOUTfilNA DA VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE

orgânico têm de ser interpretadas como lutas de poder. Nietzsche

concretamente afirma, pode ser explicitado no exemplo do con-

empreende essa interpretação, sempre de novo, no contex~o de sua crítica ao pensamento mecanicista. Que ele contrapoe a este sua "teoria de uma vontade de poder ocorrente em todo acontecer", já 0 observamos por ocasião da discussão da 'segunda prova' de Schlechta. 118 Com a minuciosidade exigida pelo assunto, não podemos ingressar aqui na crítica de Nietzsche. Temos de nos limitar a algumas indicações, das quais deve ficar claro como ele, a partir de sua "teoria", critica aquela do

ceito de causa. Num texto póstumo particularmente esclarecedor, do qual podem ser mencionadas algumas passagens, lê-se:

mecanicismo. "Mecânica" reduz o mundo "à superfície", para fazê-

utilizamos esse esquema em toda parte nós procuramos um agente em cada acontecer... Nós procuramos coisas para explicar por que algo se alterou. Mesmo ainda o átomo é uma tal excogitada "coisa" e "sujeito-originário" ... Finalmente compreendemos que coisas, conseqüentemente também átomos, não

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lo "compreensível". Ela é "propriamente só uma arte de esquematizar e abreviar, uma dominação da multiplicidade pela arte da expressão - nenhum "entender" (Verstehen), mas um 119 designar para fins de comunicação ( Verstandigung)." O pensar mecan·1cista "imagina" de tal modo o mundo, que ele pode ser calculado. Ele finge "unidades originárias ... 'coisas' (átomos), cujo efeito permanece constante." Assim como ocorre aqui a transposição de nosso falso conceito de sujeito, como fixa unidade-eu, tanto sobre o "conceito de átomo" como também sobre o "conceito de coisa", assim também se oculta nossa fingida "subjetividade" por detrás, por exemplo, tanto do cenceito mecanicista do movimento, como do "conceito de atividade (separação de ser-causa e atuar)". A mecânica tem, pois, não apenas esse preconceito psicológico como seu pressuposto, porém também o preconceito suposto - sobretudo no conceito de movimento - por nossa "linguagem dos sentidos". No interior da interpretação mecanicista do mundo, temos sempre "nosso olho, nossa Psico/ogia." 120 O que isso 118. V. p.11s.69s. 119. Fragmento póstumo, GA XIII, 85; verão de 1886-outono 1887, nº 5 [16]; KGW VIII 1, 194. 120. Fragmento póstumo da primavera de 1888, 14 [79]; KGW VIII 3, 51; (VP. 635). - No mesmo apontamento

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Calculado psicologicamente, o inteiro conceito (de causa OGJ.) nos advém da convicção subjetiva de que (nós OGJ.) somos causa, qual seja, de que o braço se movimenta ... nós diferenciamos a nós, os autores, do fazer e

atuam: porque ele não estão, em absoluto, aí ... que o conceito de causalidade é completamente inutilizável ... Não há causas, nem efeitos. Lingüisticamente não sabemos como nos libertar disso. Mas nada jaz aí. Se eu penso o músculo separado de seus efeitos, então eu o neguei. 121 Temos de "eliminar" todos os "ingredientes" de nossa errônea convicção subjetiva para alcançar o que está oculto (VP. 634), Nietzsche anota que não faria nenhuma diferença se partimos da "ficção de uma partícula de átomo ou mesmo de sua abstração, o átomo dinâmico." Nele se pensa "sempre ainda uma coisa que atua, - isto é, não escapamos do costume para o qual nos dirigem sentidos e linguagem." 121. Fragmento póstumo da primavera de 1888, 14 [98); KGW VIII 3, 66 s. (VP. 551).

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na compreensão mecanicista da efetividade. Encontramos, então, "quanta dinâmicos, numa relação de tensão com todos os

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Com o objetivo de indicar as conseqüências para as quais Nietzsche

é impelido na elaboração de sua doutrina da

outros quanta dinâmicos: cuja essência consiste em sua relação com todos os outros quanta, em seu 'fazer efeito' (wirken) sobre eles." 122 Também para o "âmbito inorgânico da efetividade", vale a proposição: "toda força impulsionante é vontade de poder". Não há uma outra força. Precisamente o impelir agente e reagente, o aumento e a diminuição de forças, não são pensados como tais "em nossa ciência", o que

é digno de

ser pensado permanece oculto por detrás de nosso esquema causa-efeito. 123

122. ld. 14 [79}; KGW VIII 3, 51; (VP. 635). 123. ld. primavera de 1888, 14 [121], VIII 3, 92; (VP. 688). - Não se deve mal-entender Nietzsche quando ele escreve: "O vitorioso conceito de força com o qual nossos físicos criaram Deus e o mundo carece ainda de um complemento: deve ser-lhe atribuída uma vontade interior, que eu designo como 'vontade de poder'." (Fragmento póstumo de VP. 619; GA XVI, 104). Deleuze designa essa proposição como "un des textes les plus importants que Nietzsche écrivit pour expliquer ce qu'il entendait par volonté de puissance" (Nietzsche et la philosophie, 3ª ed. Paris, 1970, p. 56). Na verdade, ele toma demasiado literalmente a consideração de Nietzsche de que o conceito de força careceria de um complemento ("complément") por meio da vontade de poder. Com razão, escreve ele: "La volonté de puissance ... n'est jamais séparable de telle et tellle forces déterminées." Também há que se concordar com ele quando considera: "La volonté de puissance ne peut pas être séparée de la force, sans tomber dans l'abstraction metaphysique" (op. cil. p. 57). Todavia, a problemática de sua interpretação vem à luz quando ele acrescenta; "lnséparable ne signifie pas identique", e introduz a diferenciação: "La force est ce qui peut, la volonté de puissance est ce qui

veut" (op. cit. p. 56). Com isso, ele 'diferencia' onde Nietzsche não 'diferencia', não está autorizado a diferenciar, sem renunciar à coesão interna de seu pensamento. Para além do já considerado, há que se indicar ainda, nesse contexto, as considerações de Nietzsche no aforismo 36 de Para Além de Bem e Mal, onde se trata de "determinar inequívocamente toda força atuante como vontade de poder." "Naturalmente, 'vontade' só pode fazer efeito sobre 'vontade' ... , deve-se arriscar a hipótese: se, por toda parte onde são reconhecidos 'efeitos', não é vontade que faz efeito sobre vontade - e se todo acontecer mecânico, na medida em que uma força nele se torna atuante, não é exatamente força de vontade, efeito de vontade" (KGW VI 2, 51 ). Em seus escritos, Nietzsche emprega o conceito de força numa dupla significação: numa delas no sentido do representar mecanicista; em outra no sentido da 'vontade de poder'. Aquela deve ser genealógicamente derivada a partir desta. Quando parte da maneira mecanicista de pensar, Nietzsche pode, com efeito, falar da necessidade de uma complementação do conceito de força 'dos físicos', que Deleuze entende como exigência de "adição" com uma 'vontade interior' (nesse contexto el.e emprega a palavra "ajouter", op. cit., p. 57)'. Nietzsche, porém, pensa aqui tão pouco 'aditivamente' quanto, num outro aforismo (VP. 634, primavera de 1888, nº 14 [79], KGW VIII 3, p. 49 s.), o exigido distanciamento do popular conceito mecanicista de necessidade tem uma significação meramente subtrativa. Aquilo que , para a compreensão da efetividade resulta da substituição do conceito mecanicista de for'. ça pelo de Nietzsche, torna indispensável um novopensar dos processos (Vorgãnge) na natureza, no qual não pode mais ser atribuída verdade a nenhum 'residuo' da mecânica. Que Nietzsche, com isso, não con-

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vontade de poder, devem ser ainda discutidos dois problemas nesse contexto: o da percepção no "âmbito inorgânico" e o da necessidade em todo acontecer. Voltemo-nos, em primeiro lugar, para o segundo. A. Comecemos com uma pergunta. A empregabilidade sem exceções das "leis naturais" não nos remete a uma constância originária em todo acontecer, determinada por suas fórmulas? Nietzsche escreve a respeito: "A inalterável seqüência de certas aparências não demonstra nenhuma lei, mas uma relação de poder entre duas ou mais forças. Dizer: 'mas justamente essa relação permanece idêntica a si' nada mais significa que: 'uma e mesma força não pode ser também uma testa a utilidade da mecânica, esse é um outro problema. Disso se falará ainda mais adiante. P. Valadier considera nos Bulfetin Nietzschéen (Archives de Philosophie 36/1, 1963, 141) que os trabalhos de Deleuze "n'ont pas peu contribué ... à l'interpretation de la volonté qui défend aussi Müller-Lauter." Concordo com ele a respeito da comunidade de algumas ten-

dências em Deleuze e em mim, nas discussões da problemática da vontade de poder; minha atenção para isso foi primeiramente despertada pela indicação dele. Porém não devem ser deixadas fora de consideração as profundas diferenças das interpretações. Só se poderia falar delas aqui 'exemplarmente'. Entrementes, o texto citado no início desta nota foi publicado na KGW (junho-julho de 1885, Ir. nº 36 [31]; VII 3, 287). Ao invés de "vontade interior", tem que ser lido: "um mundo interior". Que um mundo interior

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outra força'." "Precavenho-me de falar em 'leis' químicas ... Trata-se de uma fixação absoluta de relações de poder: 0 mais forte se torna senhor do mais fraco, na medida em que este não pode impor seu grau de independência."12s Em lugar da necessidade expressa nas leis, surge, em Nietzsche, a necessidade com a qual transcorrem os combates dos quanta de poder. Se vale "que uma determinada força justamente nada de outro pode ser que exatamente essa determinada força", então isso significa "que ela ni'io se descarrega de outro modo num quantum de força-resistência que não aquele que é conforme à sua fortaleza." E isso, de novo, significa: "Acontecer e acontecer-necessário é uma tautologia." 126 Isso parece permanecer na necessidade da qual se fala também na teoria física, ainda que ela seja interpretada de outro modo por Nietzsche. Oue esse não é o caso, fica claro nos esforços de Nietzsche para contestaJ, em duplo aspecto, a pretensão de validade das leis natuf.ais (sem, com isso, pôr em dúvida a empregabilidade, sim, a utilidade dessas leis). Em primeiro lugar, ele se volta contra'•a convicção de que as leis naturais seriam cte:valjdade a-temporal; em segundo, ele recusa a concepção de que acontecimentos sejam fundamentalmente apreendidos nessas leis. Assim escreve ele: "Não podemos afirmar uma eterna validade de nenhuma 'lei natural', não podemos afirmar a eterna permanência de nenhuma qualidade química, nós não sosuficientemente sutis para ver o presumível fluxo absoluto acontecer: o permanente está aí apenas graças a nossos

(portanto, uma multiplicidade de vontades de poder) tenha que ser atribuido a toda força tisica (sem que topemos, finalmente, com algo 'simples'), vem em apoio

v: a respeito: M. Bauer: Para a genealogia do conceito de força de Nietzsche; in: Nietzsche-Studien 13, p. 222 s. Nota 34.

de minha interpretação.

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124. Fragmento póstumo de VP. 631; GA XVI, 109; outono de 1885-outono 1886, nº 2 [139]; KGW VIII 1, 133 s. 125. ld. 630; GA XVI, 108 s. Junho-julho de 1885, nº 36 [18); KGW Vii 3, 283. 126. Fragmento póstumo do outono de 1887, 1o[138); KGW Vil/ 2, 202; (VP. 639).

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grosseiros órgãos, que resumem e dispõem em superfície aquilo que, em absoluto, não existe dessa maneira." 127 Das "qualidades" químicas, 128 diz-se, em outro lugar, que elas fluem e se alteram, "o espaço de tempo pode ser enorme, que a fórmula atual de uma composição é refutável pelo sucesso. Provisoriamente, as fórmulas são verdadeiras: pois elas são grosseiras; o que é, pois, nove partes de oxigênio para onze partes de hidrogênio? Esse 9:11 é de todo impossível fazer exatamente, há sempre um erro na efetivação, conseqüentemente uma certa envergadura no interior da qual o experimento é bem-sucedido. Mas, do mesmo modo, está no interior desta mesma envergadura a eterna mudança, o eterno fluxo de todas as coisas, em nenhum momento o oxigênio é exatamente o mesmo que no anterior, mas algo novo: ainda quando essa novidade é demasiado fina para toda mensuração; sim, a inteira evolução de todas as novidades ao longo da duração do gênero humano ainda não é suficientemente grande para refutar a fórmula." 129 127. ld. primavera-outono de 1881, 11 [293]; KGW V 2, 452. 128. Que, em verdade, não haja quaisquer qualidades, isso se encontra na conclusão do texto citado em seguida. Há, decerto, apenas a única qualidade 'vontade de poder'. 129. Fragmento póstumo da primavera-outono de 1881, 11 [149]; KGW V 2, 397. A respeito do erro de Nietzsche v: A. Mitasch: O estudo da natureza por Nietzsche, 1950, p. 25. Ele considera que poderia residir aqui um "erro de transcrição em face do dado de Schopenhauer, que falara de 1 átomo de hidrogênio e 9 átomos de 'oxigênio' ... (Em verdade, 8 partes ponderadas [Gewichtsteil] de oxigênio e 1 parte ponderada de hidrogênio, 1 átomo de oxigênio sobre 2 átomos de hidrogênio." O erro é desprovido de importância para a afirmação de princípio de Nietzsche, segundo a qual, nas ciências da natureza, só estamos autorizados a falar de 'qualidades' semelhantes, ao invés de iguais: "Nada ocorre duas vezes, o átomo de oxigênio é sem

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115

A interpretação mecanicista da eletividade, dirigida pelos enganadores preconceitos da linguagem, dos sentidos e da "Psicologia", não toma conhecimento das fundamentais mudanças de espécie menor e mais sutil. Ela simplifica, ao fixar unidades estáveis, entre as quais constrói ligações. Mantendo-se no grosseiro, ela fixa leis sobre a base de tais ligações, às quais atribui irreversível necessidade. Todavia, tal necessidade não é, em verdade, irreversível, não é, em absoluto, necessidade. Incessante tornar-se-outro cabe ainda ao ínfimo e sutilíssimo. Nada permanece aquilo que é num ponto do tempo. Sob certas circunstâncias, suas mudanças transpõem também aquela "certa envergadura" que tem de ser dada, para se poder levar uma lei, uma fórmula, à aplicação. Por detrás da "não-verdadeira necessidade" da mecânica, Nietzsche procura indicar a "verdadeira necessidade". Ela consiste em que um quantum de poder, a cada tempo, só pode extrair uma determinada conseqüência em sua relação com os outros quanta de poder. B. Também os "-entes" inorgânicos são vontade de poder. Uma vontade de poder procura, por exemplo, subjugar uma outra vontade de poder. À subjugação pertence um modo - a cada vez específico - de "conhecer" aquilo que deve ser subjugado. Nenhuma vontade de poder é uma "vontade cega". Por isso Nietzsche é obrigado a admitir um "conhecer", 130 um "perceber também para o mundo inorgânico". Em alguns apontamentos póstumos encontramos concisas indicações a esse respeito. Ele procura caracterizar um tal perceber em sua diferença para com o perceber no mundo orgânico. Ele chega aqui a ponto de dizer que "no mundo químico" dominaria "a mais aguda percepção da diferença de força". Diante disso, já um um seu igual, na verdade basta-nos a hipótese de que há inúmeráveis iguais." Fragmento póstumo nº 11 [237]; KGW V 2, 429 s. 130. Fragmento póstumo; GA XIII, 230; verão de 1883, nr. 12 [27]; KGW VII 1, 442.

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protoplasma, como multiplicidade de forças químicas, tem "uma

do sentir, representar e pensar" teria "sido originariamente

insegura e indeterminada percepção de conjunto de uma coisa estranha". Insegurança e indeterminação provêm de que as várias forças são "seres mutuamente combatentes", cujo an-

uno", diz-se em outro apontamento. "No inorgânico essa uni·

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tagonismo é, então, também decidido quando o protoplasma

117

dade tem de estar presente (vorhanden): pois o orgânico já começa com a separação." 133 O ser-um do inorgânico forma 0 irrecusável pressuposto para a fixidez de suas perspectivas.

"se sente diante do mundo externo". A agudeza da percepção,

"Todo orgânico se diferencia do inorgânico em que ele nunca

que deve ser própria às forças químicas como tais, está na

é idêntico a si mesmo em seus processos." 134 O anorgânico é,

segurança e na determinação. Essas só podem ser dadas em

pois, o idêntico a si mesmo. Aqui o próprio Nietzsche projeta a

"percepções firmes", que Nietzsche, de fato, atribui ao inorgâ-

identidade no interior daquilo que é "o mais digno de reverên-

nico. Na medida em que fixidez, no sentido de estabilidade,

cia", enquanto, por toda parte alhures a desmascara, no en-

constitui o critério do tradicional conceito de verdade, ele pode

tanto, como mera projeção.

dizer do perceber no interior do mundo inorgânico: "aqui domi-

Não devemos atribuir peso demasiado a essa incon-

na 'verdade' ". Desses e de outros apontamentos pode-se auscultar

seqüência de Nietzsche, por certo encontrável apenas em con-

em Nietzsche, creio eu, uma quase velada saudade daquela

amplamente exposto, é que não há qualquer Um, em sentido

131

cisas indicações. O pensamento fundamental de Nietzsche,

"verdade", da verdade, cuja destruição forma a principal preo-

de permanência. Unidade é sempre unidade como organiza-

cupação de sua filosofia. Essa saudade ecoa também quando

ção de quanta de poder uns contra os outros e uns com os

ele anota que o "mundo inorgânico", jacente por detrás do

outros. As "relações" dadas aqui "constituem primeiramente

mundo orgânico, seria "o que há de supremo e mais digno de

seres". 135 Aqui sempre se deve atentar para isso: "que uma

veneração." Faltaria aqui "o erro, a limitação perspectiva". Todo orgânico já apresenta "uma especialização". A perda em toda especialização consiste manifestamente na perda da agudeza e fixidez das percepções. Na falta dessas últimas estaria, então, a "limitação perspectiva" de que fala Nietzsche.

132

"To-

---131. ld. 227 s. Maio-julho de 1885, nº 35 [51], [53], [58], [59]; KGW VII 3, 258 s. 132. ld. 228 (Outono de 1885-primavera 1886, nº 1 [105]; KGW VIII 1, 31). - Comparar, a esse respeito, Frag· menta póstumo da primavera-outono de 1881, 11 [70]; KGW V 2, 336: "Falsidade fundamental das avaliações do mundo sensitivo face ao (mundo OGJ.) morto. Por· que nós somos essas avaliações! Pertencemos a elas! E, todavia, a superficialidade, o engano começa com ay sensibilidade ... O 'mundo morto'! eternamente movi

mentado e sem erro, força contra força! E no mundo sensitivo tudo falso, obscuro! É uma festa fazer a transição desse mundo para o 'mundo morto' - e o maior desejo do conhecimento é contrapor a esse mundo. falso e obscuro as eternas leis, onde não há qualquer prazer, qualquer sofrimento e engano ... Não nos deixemos pensar o retorno ao desprovido de sensibilidade como um retrocesso! Nós nos tornamos inteiramente verdadeiros, nós nos completamos. A morte há que ser reinterpretada! Nós nos reconciliamos assim com o efetivo, isso é, com o mundo morto." 133. Fragmento póstumo, GA XIII, 229; verão de 1883, nº 12 [27]; KGW VII 1, 422. 134. ld. 231; verão de 1883, nº 12 [31]; KGW VII 1, 424. 135. Fragmento póstumo da primavera de 1888, 14 [122]; KGW VIII 3, 95; (VP. 625).

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coisa se dissolva numa soma de relações, nada prova contra sua realidade". 136 Isso também vale, naturalmente, para as "ínfimas" unidades inorgânicas. Retornemos ainda uma vez às enunciações de

como a relação mútua de acontecimentos que não se deixam

119 1

apreender como acontecimentos, mas se fixam mutuamente para - pagando tributo ao acontecer - ter de deixar escapar sempre de novo toda fixação. 138

Nietzsche sobre o mundo inorgânico: aqui dominaria "verda-

Partindo das discussões a respeito da percepção no

de"! Fala-se, no mesmo apontamento, que com o mundo orgâ-

mundo inorgânico, destacamos o estabilizar como um traço

nico começaria a "aparência" (Schein). Podemos recorrer, en-

essencial que cabe a todas as vontades de poder. Retornando

tão, à crítica de Nietzsche ao tradicional esquema verdadeaparência. Para o nosso contexto, tem de bastar a indicação do resultado dela. Posto que Nietzsche parte do subjugar perspectivo, a cada vez perspectivo, toda "verdade" se torna "aparência" e toda "aparência" "verdade". Ao final, dissolve-se a oposição. Todo conhecimento, toda percepção demonstra-se como "acomodação" (Zurechtmachung) de algo a serviço de uma vontade de poder respectivamente dominante. As acomodações têm a força de "estabilizações" (Fest-ste/lungen) do incessantemente mutável na efetividade. Trata-se, nas perspectivas do inorgânico, de arranjadoras estabilizações daquilo que resiste (às quais pode ser atribuída, no máximo, uma "fi-

os olhos para os "âmbitos de efetividade" que nós - seguindo as considerações de Nietzsche - percorremos como amostragem, pode-se dizer, então, que encontramos por toda parte o mesmo dado fundamental: processos de agregação e desagregação de vontades de poder. Pergunta-se: se em race desses processos (Sachverhalt) pode-se, com razão, falar de "âmbitos" (Bereichen). Que significado cabe à diferenciação de Nietzsche entre mundo orgânico e inorgânico? De modo algum estamos autorizados a admitir uma diferença qualitativa de tais âmbitos. Como síntese de forças químicas, o protoplasma não é algo essencialmente outro que as próprias forças químicas. Que Nietzsche não traça nenhuma fronteira entre "os

xidez" relativa 137), de idêntico modo como nas percepções "a partir de muitos olhos", como Nietzsche as constata no mundo orgânico. Todo ente estabiliza e, em verdade, com necessidade. O estabilizar é um traço fundamental da vontade de poder.

inorgânico". Aí se fala da "transição do mundo do inorgânico

Ora, aquele que estabiliza e o estabilizado alteram-se perma-

ao do orgânico". 139 Quando ele, uma vez, concebe o orgânico

nentemente. Se um estabilizador quantum de poder quer per-

como especialização do inorgânico e, uma outra vez, conside-

mundos", isso se mostra mesmo onde ele - da maneira problemática já mostrada - fala da particularidade do "perceber

manecer um quantum de poder dominante, então ele tem de,

ra que não haveria nenhum mundo inorgânico (a respeito de

sempre de outra maneira (pois ele próprio se altera incessan-

que já se tratou em outro contexto), 140 aqui reside, então, ape-

temente e com isso se altera sua perspectiva), estabilizar sem-

nas aparentemente um paradoxo. No primeiro caso, ele pensa

pre novamente o dominado, que se altera. O perceber de todas as vontades de poder se deixa descrever formalmente 136. ld. primavera-outono de 1881, 13 [11]; KGW V 2, 518; comparar supra p. 79. 137. Lembro-me da indicação de Nietzsche de que oxigênio seria algo novo a cada instante; v. supra p. 114.

138. Para a problemática que, desse contexto, resulta para a doutrina de Nietzsche da vontade de poder, cf. do autor: op. cit., p. 95-115. 139. Fragmento póstumo; GA XIII, 227; maio-julho de 1885, ~ nº 35 [59]; KGW VII 3, 259. 140. V. p. 28 s. 99 s.

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"genealogicamente" .141 No segundo caso, ele se volta contra

de Nietzsche. Ele próprio sustenta uma pretensão de superio-

o pensamento mecânico: no mundo inorgânico não dominam

ridade em face de outras interpretações do mundo. Ao questio-

pressão e impulso, também nele só há a mútua oposição de

narmos seu pensamento em relação a essa pretensão, deparamos com o problema da fundamentabilidade de sua "doutrina da vontade de poder".

"organismos" naquele sentido, no qual também povo, Estado, sociedade são organismos. Temos, pois, que diferenciar, em Nietzsche, um conceito amplo e um conceito estrito de organismo. Depois do que foi anteriormente

considerado, 142

quase

não carece mais de menção que devemos nos precaver contra a hipótese de que, como "âmbito de efetividade", o "mundo orgânico" seria abrangido pelo mundo orgânico como pelo todo da efetividade. O mundo não é mundo orgânico, mas mundo de "organismos": o caos das organizações de poder se alterando permanentemente.

Partimos do aforisma 22 em Para além de Bem e 143

Mal. Lá Nietzsche indica a insuficiência da interpretação mecânica do mundo. Já conhecemos seus argumentos e os discutimos com base em outros aforismos e fragmentos nos quais eles recebem exposição mais pormenorizada, ou pelo menos os nomearnos. 144 Para o que aqui nos importa, é essencial que ele impute aos "físicos" má "filologia". A "legalidade da natureza" não seria "um estado de fato, um texto", porém "interpretação". Ele contrapõe a ela sua própria interpretação:

A vontade de poder como interpretação Expusemos a interpretação da efetividade por Nietzsche. Ora, há várias dessas interpretações. A filosofia de Nietzsche apenas aumenta o número delas, como já nos perguntamos no início deste trabalho? Não queremos perguntar aqui por um privilégio que poderia ser admitido para ela a partir de um outro pensamento. Importa a autocompreensão

e poderia vir alguém que, com a intenção e a arte de interpretação opostas, soubesse, na mesma natureza e tendo em vista os mesmos fenômenos, decifrar precisamente a imposição tiranicamente irreverente e inexorável de reivindicações de potência - um intérprete que vos colocasse diante dos olhos a falta de exceção e incondicionalidade que há em toda "vontade de potência", em tal medida que

141. Não deve ser dito com isso que nas considerações de Nietzsche sobre a relação inorgânico-orgânico não se mostrariam contradições. Se o orgânico é, uma vez, "derivado" do inorgânico, diz-se, entretanto, num outro manuscrito, que o orgânico, em sentido estrito, não teria surgido (Fragmento póstumo, GA XIII, 232; primavera de 1884, nº 25 [403]; KGW VII 2, 113). Também o "desenvolvimento" do inorgânico até o homem é concebido às vezes como elevação, às vezes como descida. 142. V. p. 31 s.102 s.

quase toda palavra, e mesmo a palavra "tirania", se mostrasse, no fim das contas, inutilizável, ou já como metáfora enfraquecedora e atenuante - por demasiado humana; e que, contudo, terminasse por afirmar desse mundo o mesmo que vós afirmais, ou seja, que tem um decurso "necessário" e "calculável", mas 143. Para além de Bem e Mal 22; KGW VI 2, 31. 144. Cf. acima p. 109 s; e p. 108 s.

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não porque nele reinam leis, mas porque ab-

fia crítica de Kant." 146 "O movimento infinito do ex-por parece chegar a uma espécie de completude na auto-apreensão desse ex-por: na ex-posição das ex-posições." 147 "A ex-posição de Nietzsche, que sabe que todo saber é ex-posição", recolheria "esse saber em sua própria ex-posição por intermédio do pensamento de que a própria vontade de poder" seria "o impulso onipresentemente atuante, infinitamente diverso, do expor".

solutamente faltam as leis, e cada potência, a cada instante, tira sua última conseqüência. Nietzsche ainda acrescenta, então, a essas considerações: "Posto que também isso seja somente interpretação - e sereis bastante zelosos para fazer essa objeção? - ora, tanto melhor! -" 145 A possível objeção dos "físicos" não é apenas tolerada, ela é manifestamente admitida. Como a teoria mecanicista, também a teoria da vontade de poder é "apenas" interpreta· ção. Não se coloca, então, interpretação contra interpretação? Não se teria de dizer, então, que ambas estariam autorizadas

A ex-posição de Nietzsche é, de fato, uma exposição do ex-por e, por isso, distinta, para ele, de todas as ex-posições anteriores, ingênuas em comparação com ela, que não tinham

a sustentar a mesma pretensão de verdade? Nietzsche escre-

a autoconsciência de seu ex-por. 148

123

ve, no entanto, que se os físicos suscitassem aquela objeção, isso seria "tanto melhor". Em que medida melhor, melhor para

pelo interpretar enquanto tal. Quem diz que isso e aquilo é

Em toda problemática da interpretação de Nietzsche por Jaspers, a cujo contexto pertencem essas considerações, 149 isso, no entanto, é corretamente visto: todo saber é, para Nietzsche, ex-posição, todo saber desse saber é ex-posição da ex-posição. Podemos dizer também, segundo o que foi por nós considerado: em sua variedade, as ex-posições são interpretações de vontades de poder; que elas o são, isso é, do

interpretação tem de conceder espaço para a pergunta pelo

mesmo modo, interpretação. Deverá ser discutido a seguir o

que é interpretação em geral. Interpretação se demonstra a si mesma como carente de interpretação. Ora, Nietzsche preten-

que isso afirma mais precisamente, e quais conseqüências resultam daí.

de ter interpretado adequadamente o interpretar. Jaspers encontra em Nietzsche "a teoria de todo ser-do-muQS]o (Weltsein) como um mero ser-ex-posto (Ausgell[yts~in), do saber do mundo como uma respectiva e>f-posição (Auslêgung)", teoria

Precisamos por diante dos olhos, em primeiro lugar, a

quem? A objeção faz arranjo com a interpretação de Nietzsche. Ela contém no "também ... apenas" a concessão de que a tese da legalidade da natureza seria interpretação. Admitido isso, contudo, encontramo-nos num nível onde há que se perguntar

que teria sido obtida "a partir de uma

transf?rma~o da filoso-

145. lbid. [o trecho citado foi extraído de: Fr. Nietzsche: Obra incompleta, trad. Rubens Rodrigues Torres Filh~, São Paulo, Abril Cultural, 1ª ed. 1974, p. 280, OGJ.].

146. 147. 148. 149.

K. Jaspers, Nietzsche, op. cit., p. 290. Idem, p. 296. ld. 299. Naturalmente, não se pode aqui ingressar nessa problemática. Para a compreensão, por Jaspers, da exposição de Nietzsche, haveria que se recorrer especialmente às suas considerações sobre a problemática· de 'verdade e vida' (Nietzsche, op. cit., p. 184s.).

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extensão do conceito de interpretação de Nietzsche. Todas as

sucumbir à sedução da gramática, e separar o que se pertence

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125

vontades de poder ex-põem, interpretam. Assim, por exemplo,

inseparavelmente. Desse modo, diz-se num outro apontamen-

também as percepções perspectivas do anorgânico são interpretações. E não apenas todas as percepções, todo conhecimento e todo "saber" são ex-posições, mas também todos os

to: "Não se deve perguntar: 'quem, pois, interpreta'?" A per-

150

feitos e formações, sim, todos os acontecimentos. Assim, por exemplo, trata-se de "uma interpretação ... na formação de um órgão." "A vontade de poder interpreta", isso significa respectivamente:

gunta é errõnea, pois "o próprio interpretar" tem "existência" (Dasein); 152 é "ficção" "colocar ainda o intérprete por detrás da interpretação." 153 "O" interpretar não tem "existência (Da-

sein) como um 'ser'", no sentido de permanência, porém "como um processo, um vir-a-ser." 154 Se, no final da seção anterior, caracterizamos o perceber das vontades de poder como relação de acontecimentos entre si, que se fixam mutuamente,

Ela limita, determina graus, diferenças de poder. Meras diferenças de poder não poderiam ainda sentir-se enquanto tais: algo que quer crescer tem de estar aí, que interpreta todo outro algo que quer crescer segundo seu valor ... Em verdade, a própria interpretação é um meio para se tornar senhor sobre algo.

pode-se dizer, então, sob o aspecto aqui destacado, que vontades de poder se contrapõem como interpretações continuamente mutantes. Torna-se claro, depois disso, que, contra o positivismo, Nietzsche pode trazer a campo: "não há fatos, apenas interpretações." 155 Ao levar em conta que toda interpretação é perspectiva, seguimos adiante na, entrementes já familiar, marcha de pensamento de Nietzsche. Ele que, com prazer, faz uso da

Nietzsche acrescenta: "o processo orgânico pressupõe permanente interpretar." 151 O modo de expressão escolhido aqui por Nietzsche se aproxima de um mal-entendido. Poder-se-ia opinar que a vontade de poder (entendida como uma vontade de poder, ou malinterpretada como a vontade de poder, no sentido de um ens metaphysicum) seria um sujeito, do qual o interpretar pudesse ser predicado (sujeito OGJ.) que, por sua vez, formaria o pressuposto anterior para processos. Não estamos autorizados a 150. Comparar GA XIII, 64; outono de 1885-primavera 1886, nr. 1 [115]; KGW VIII 1, 34: "O caráter interpretativo de todo acontecer. Não há qualquer acontecimento em si. O que acontece é um grupo de aparências, selecionadas e resumidas por um ser interpretante." 151. Fragmento póstumo de VP. 643; GA XVI, 117 s. Outono de 1885-outono 1886, nr. 2 [148]; KGW VIH 1, p. 137 s.

relação filológica texto-interpretação (Auslegung) 156 para o esclarecimento de relações fundamentais da efetividade, escreve: o mesmo texto permitiria inumeráveis interpretações. 157 Se pensamos na infinita divisibilidade dos perceptivos quanta de 152. ld. 556; GA XVI, 61. Outono de 1885-outono 1886, nr. 2 [151]; KGW VIII 1, 138. 153. ld. 481; GA XVI, 12. Final de 1886-primavera 1887, nr. 7 [60]; KGW VIII 1, 323. 154. ld. 556; GA XVI, 61. Outono de 1885-outono 1886, nº 2 [151]; KGW VIII 1, 138. 155. ld. 481; GA XVI, 11. Final de 1886-primavera 1887, nr. 7 [60]; KGW VIII, 1, 323. 156. A respeito da "parábola filosófica da interpretação", comparar Jaspers: Nietzsche, op. cit. 292 s. 157. Fragmento póstumo, GA XIII, 69. Outono de 1885 primavera 1886, nº 1 [120]; KGW VIII 1, 35.

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poder, 1 ss então não podemos ficar surpresos ao lermos na Gaia Ciência: "O mundo se tornou para nós ... de novo 'infinito': na medida em que não podemos recusar a possibilidade de

uma explicação (Deutung) serve à intensificação do poder então ela é, no mencionado sentido, mais verdadeira do qu~ aquelas que simplesmente conservam a vida, tornam-na suportável, a refinam, ou separam o doente e o conduzem ao fenecimento." 164 Primeiramente, queremos trazer sob esse critério a explicação mecanicista do mundo, que Nietzsche, com efeito, sempre de novo apreende como o essencial adversário contemporâneo de sua própria filosofia. 1as Em que sentido o modo mecanicista de pensar é apenas uma "filosofia de fachada", 166 já deixamos que o próprio Nietzsche nos exibisse. 167 Mais importante ainda é que ela é falsa. Ela esquematiza, encurta, escolhe "designações" em função de tornar universalmente compreensível. Ela finge unidades constantes, leis. Ela imagina o mundo com vistas à calculabilidade. A "comum linguagem de sinais ... para fins de mais fácil calcu/abilidade" serve à dominação da natureza. 168 Apoiemo-nos aqui. Se, por meio da perspectiva mecanicista, torna-se efetiva uma tal dominação, que, além disso, ainda cresce permanentemente, então ela pode ser "falsa", com efeito, na medida em que não lhe chega à vista o acontecer em seus "transcursos efetivos". Porém, no sentido do critério de verdade de Nietzsche, não é ela "mais verdadeira" do que todas as anteriores explicações do mundo, uma vez que ela intensificou intensifica o poder

126

159

que ele encerra em si infinitas interpretações." A perspectividade de toda interpretação torna-se um problema que, por fim, ricocheteia sobre o próprio filosofar de Nietzsche, quando pensamos que entre as inumeráveis interpretações de um texto, não há "nenhuma interpretação 'correta' ." 16 Não temos qualquer dire'ito de adm'1tir um "conhecer absoluto": "o caráter perspectivo, enganoso, pertence à existência." 161 Então, toda explicação (Oeutung) do mundo é também uma interpretação perspectivamente enganosa, a mecanicista não menos que aquela que compreende todo acontecer do mundo como o caos de vontades de poder cooperantes e combatentes. Em conseqüência disso, "o" mundo, concebido como soma de forças, seria uma interpretação perspectiva do mundo, ao lado de inúmeras outras. Em face da fundamental relatividade de todo explicar-o-mundo, o que poderia ser aduzido em favor da "verdade" da interpretação de Nietzsche? Nietzsche, porém, nos deu ele próprio um critério pa-

º

ra aquilo que ele entende por verdade. Ele assenta na intensificação do poder (Machtsteígerung). 162 Sob esse critério fica colocada a "infinita interpretabilidade (Ausdeutbarkeit) do mundo". Nele deve fazer prova de si 163 "toda interpretação (Ausdeutung) como um sintoma de crescimento ou de declínio." Se 158. V. supra p. 16 s. 159. A Gaia Ciência, livro V, 374; KGW V 2, 309. 160. Fragmento póstumo, GA XIII, 69. Outono de 1885-primavera 1886, nº 1 [120]; KGW VIII 1, 35. 161. ld. XIV, 40. Abril-junho de 1885, nº 34 [120]; KGW VII 3, 180. 162. V. p. 89. 163. Fragmento póstumo de VP. 600; GA XVI, 95. Outono de 1885-outono 1886, nº 2 [117; KGW VIII 1, 118.

127

e

164. ld. GA XVI, 31. Agosto-setembro de 1885, nº 40 [12]; KGW VII 3, 365. 165. "Das ex-posições do mundo tentadas até aqui, a mecanicista parece se colocar hoje triunfalmente em primeiro plano." (Fragmento póstumo de VP. 618; GA XVI, 103; junho-julho de 1885, nr. 36 (34]; KGW V/13, 224). 166. Fragmento póstumo, GA XIII, 82. Abril-junho de 1885, nº 34 [247]; KQWVll 3, 224. 167. A esse respeit;, e.também a respeito do que vem a seguir, v. p. 108 s. • 168. Fragmento póstumo, GA XIII, 83 s. Verão-outono de 1884, nº 26 [227]; KGW V/12, 207.

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do homem como nenhuma outra antes? A partir daí podemos, então, entender que Nietzsche, ocasionalmente, se expresse com reconhecimento sobre essa explicação do mundo. Ela vale, para ele, "não como a mais comprovada consideração do mundo, mas como aquela que torna necessário o maior rigor e disciplina, e que põe de lado toda sentimentalidade." Nietzsche lhe atribui até uma função seletiva, com palavras que nos lembram o "efeito" que deve suscitar sua doutrina do eterno retorno: 169 a representação mecanicista seria "ao mesmo tempo, uma prova de crescimento tísico e anímico: raças malogradas, fracas de vontade, perecem nela." 110 A interpretação mecanicista do mundo pode ser também "uma das mais estúpidas"; sim pode-se com ela até celebrar o "princípio da maior estupidez possível", 171 isso contudo não depõe contra sua "verdade" intensificadora de poder. Nela pode-se tratar também de uma perspectiva de superfícies, entretanto permanece "maravilhoso que, para nossas necessidades (máquinas, pontes etc.), as hipóteses mecanicistas são suficientes." E pode-se tratar aí de "nec~ssklades muito grosseiras" e "os pequenos erros ... não entram em-consideração:" 172

Contrariamente a isso, não parece estar assegurado que a concepção segundo a qual o mundo estaria dado somente numa infinidade de interpretações perspectivas das vontades de poder seria profícua para o querer-poder - sem considerar a questão a ser discutida a seguir: como, então, uma tal concepção sobre o exclusivo perspectivismo pode ser possível. Se a explicação mecanicista é falsa, no senJido de descoberta do efetivo acontecer, e verdadeira no sentido da própria compreensão de verdade por Nietzsc~e, então poderia ser que a explicação do mundo como rgulttpllcidade de vontades de poder é, com efeito, "verdadeira",,no sentido que teve de ser recusado à figuração mecanicista do mundo, ao mesmo tempo, porém, errônea no sentido do critério de verdade como intensificação de poder. Não fica próximo o pensamento de que a compreensão (Einsicht) da relatividade de nossas interpretações paralisa nosso anseio de poder, enquanto que no não saber da relatividade nosso querer-poder se deixa desdobrar desinibido e, por isso, bem-sucedido? O próprio Nietzsche aponta, com suficiente freqüência, para a necessidade de ignorância, ou até de auto-engano, tanto para a manutenção

se com essa interpretação somos dominadores da naturez~ então tem de permanecer irrelevante, por certo, se a ex-posjção é estúpida, grosseira ou errônea.

como para o aumento de poder daquela organização que é o homem. Pertence à nossa ''.unidade subjetiva" - na qual temos de pensar em "governantes à testa de uma comunidade" - "certa ignorância em que o governante deve ser mantido .a respeito das disposições singulares e até das perturbações da comunidade": como condição para o governo organizador. Devemos conquistar uma apreciação elevada "também para o

169. Comparar: fragmento póstumo da primavera-outono de 1881, 11 [338]; KGW V 2, 471: "A história futura: esse

pensamento triunfará sempre mais - e os nele não crentes, segundo sua própria natureza, têm finalmente que perecet1" 170. Fragmento póstumo, GA XIII, 82. Abril-junho de 1885, nº 34 [76]; KGW VII 3, 163. 171. A Gaia Ciência, livro V, 373; KGW V 2, 308. - Fragmento póstumo VP. 618; GA XVI, 103. Junho-julho de 1885, nº 36 [34]; KGW VII 3, p. 288 s. 172. Fragmento póstumo da primavera-outono de 1881, 11 (234]; KGW V 2, p. 429.

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l

não-saber, o ver grosseiramente, o simplificar, o perspectivo." Vale especialmente para nosso espírito que "interpretar-se falsamente poderia ser útil e importante para sua atividade." 173 O "psicólogo do futuro" tem que observar que "o grande egoís173. Fragmento póstumo de VP. 492; GA XVI, 17 s. Agostosetembro de 1885, nº 40 [21]; KGW VII 3, p. 370 s.

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mo de noss~ voniade dominante" exige de nós "que, diante de 174 nós mesmos, fechemos gentilmente os olhos." Há que se mostrar, então, corno, entretanto, para Nietzsche - medindo segundo o parâmetro de sua própria compreensão de verdade-, afinal se inverte a valoração da teoria mecanicista e da teoria

perda no sentimento e consciência do próprio poderio e, com isso, nesse próprio poderio.

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do querer-poder. Naquela, as leis da natureza são, com efeito, propriamente os senhores, nós temos de nos compreender como aqueles que estão submetidos a elas. "Que algo acontece sempre desse e daquele modo é aqui interpretado corno se um ser, em conseqüência da obediência a uma lei ou a um legislador, agisse sempre desse e daquele modo: enquanto ele, abstração feita da 'lei', teria liberdade para agir de outro modo. Mas exatamente aquele assim e não de outro modo poderia provir do próprio ser, que se comportaria desse e daquele modo não primeiramente com vistas a ~ma lei, porém corno constituído desse e daquele rnodo." 175 "E mitologia pensar que forças obedecem a urna lei, de maneira que, em conseqüência dessa obediência, nós temos toda vez o mesmo fenômeno."1 76 Nietzsche, que fareja "moral de escravos" por detrás de todas as manifestações da história ocidental - e não apenas dela -, a encontra finalmente também por detrás das explicações mecanicistas do mundo: "Precavenho-me de falar de /eis químicas: isso tem um paladar moral." Por toda parte, em verdade, o mais forte se torna senhor sobre o mais fraco, não há aí nenhum "respeito por 'leis'." 177 Quem, porém, se concebe corno obedecendo a leis necessárias, esse sofre 174. Fragmento póstumo da primavera de 1888, 14 [27]; KGW VIII 3, 23; (VP. 426). 175. Fragmento póstumo de VP. 632; GA XVI, 110. Outono de 1885-outono 1886, nº 2 [142]; KGW VIII 1, 135. 176. ld. 629; GA XVI, 108. Final de 1886-primavera 1887, nº 7 [14]; KGW VIII 1, 307. 177. ld. 630; GA XVI, 108 s. Junho-Julho de 1885, nº 36 , [18]; KGW VII 3, 283.

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Em contraposição a isso, "a nova ex-posição" de Nietzsche quer dar "aos futuros filósofos, como senhores da terra, a necessária desenvoltura." 178 Ora, exatamente o perspectivismo radical parecia levar ao acanhamento aquele que quer (das Wol/ende). Sua respectiva ex-posição é relativa; conseqüentemente, como aquele que sabe disso, ele parece apenas ainda poder pensar desencorajadamente e agir com convicção enfraquecida. Todavia, esse só é o caso, assim Nietzsche procura mostrar, se não pensamos a perspectividade em suas últimas conseqüências, e não a tomamos a nosso cargo. Resumamos o curso de seu pensamento: Todas as interpretações são perspectivas; não há qualquer parâmetro de medida no qual se pudesse provar qual é a "mais correta" e qual a "menos correta"; o único critério para a verdade de uma exposição da efetividade consiste se e em que medida ela está em condições de se impor contra outras ex-posições. Cada exposição tem tanto direito quanto tem poder. A compreensão da perspectividade de todas as interpretações, a que conduz a "doutrina da vontade de poder" de Nietzsche, pode, por isso, propiciar aos que são fortes em poder a "boa consciência" para a incondicional imposição de seus "ideais". Ora, outros "ideais" de outras vontades de poder, pertencentes a outras perspectivas, se contrapõem ao querer deles. Não lhes são prescritos valores que os vinculem. Pois uma tal vinculação pressuporia, decerto, uma autoridade fixadora, transcendente ou imanente ao mundo. No entanto, só a vontade de poder subjugadora tem, a cada vez, autoridade. Desse modo, também os fortes têm finalmente de romper com a crença de que estariam submetidos a leis naturais, ao subsumi-la ao critério 178. Fragmento póstumo, GA XIV, 31. Agosto-setembro de 1885, nr. 40 [12]; KGW VII 3, 365.

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de verdade da intensificação de poder. Consideremos isso a partir de um pensamento fundamental de Nietzsche: "O deu: moral" está morto. 179 Mas sua "sombra" ainda perdura. Ha que se "vencê-la" a·1nda.1ao Também a explicação mecanicista do.mundo permanece ainda nessa "sombra". O "paladar mo-

Se a filosofia da vontade de poder de Nietzsche pretende declarar a verdade sobre a efetividade, ela não incorre em contradição com o critério de verdade surgido dessa filosofia. Vista a partir dele, ela é até mesmo a única ex-plicação conseqüente do mundo. Nós nos movemos em círculo. Tal circularidade pertence a todo compreender. Nietzsche sabe disso inteiramente, seu pensamento é dirigido por esse saber. "Por fim, o homem não encontra nas coisas nada mais que

ral'', insite às suas leis naturais, o denuncia. A interpretação instituidora de novos valores, por parte de futuros poderosos, só pode ser, do mesmo modo, perspectiva. Por causa de sua coesão, ela não toma conhecime~to de muita coisa. O não-saber recebe uma significação constitutiva para o interpretar, ele tem de se tornar até um não-querersaber. Também o esquecer é essencial para o ex-por dos poderosos - como para toda ex-posição. O próprio saber da , ser "esqueci'do" .181 Esse perspectividade não deve, porem, saber libera, decerto, para a ilimitada subjugação. Se os futuros filósofos devem se tornar os senhores do mundo, então sua interpretação tem de ter também a necessária "amplitude de conteúdo" para isso. Ela tem de explicar a eletividade em sua totalidade, assim como em suas particularizações, para não permanecer aquém das explicações globais já dadas e, por isso, submeter-se a elas. Ela tem de desmascarar as outras explicações do mundo como interpretações, que só podem se mal-entender a si mesmas, porque elas ou não se compreendem, absolutamente, como interpretações, ou pelo menos não entrevêem a essência do interpretar. Isso não exclui que ela possa se servir de uma outra interpretação como de um instrumento, na medida em que esta é útil para a intensificação do poder, como é o caso da mecânica, com vistas à dominação da natureza. Com isso, ela não concebe aquela ex-plicação como verdadeira no sentido de sua própria pretensão de validade. 179. Fragmento póstumo VP. 55; GA XV, 183. Verão de 1886-outono 1887, nº 5 [7]; KGW V\111, 217. 180. A Gaia Ciência 108; KGW V 2, 145. 181. Cf. a esse respeito, do autor: Nietzsche, op. cit., p. 118 ~

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aquilo que ele próprio nelas introduziu: - o reencontrar se denomina ciência, o introduzir - arte, religião, amor, orgulho. Ainda mesmo que isso devesse ser um jogo de crianças, deveríamos prosseguir em ambos, e ter boa vontade para ambos uns para o reencontrar, outros - nós outros! - para o introduzir." 18 2 O que foi dito por último não significa, naturalmente, que uns só reencontram o que os outros apenas introduziram. Introduzir e reencontrar pertencem à respectiva unidade de ex-posição. No entanto, Nietzsche acentua o ocultar como o decisivo. O que é exigido por ele é um ocultar ao criar novos valores. O reencontrar não é apenas um tornar-se atento para o ocultado, porém, além disso, o descobrir do ocultado em todo ex-posto, o alargar-se do ocultar sobre a compreensão de todo efetivo. Ora, a filosofia de Nietzsche, que quer encorajar futuros filósofos para instituições de novos valores, não desdobra ela própria, na interpretação perspectiva, apenas aquilo que ela originariamente "introduziu"? No que ele escreve, não. se expressa apenas sua perspectiva particular? Não ricocheteia sobre sua própria explicação a por ele afirmada relatividade de todas as explicações? Na seqüência procuramos esclarecer a circularidade do pensamento de Nietzsche. Como em toda compreensão, o que importa é "penetrar da maneira correta" no círculo, para

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182. Fragmento póstumo VP. 606; GA XVI, 97. Outono de · 1885-outono 1886, nº 2 [174]; KGW V\111, 152.

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empregar uma expressão de Heidegger. 183 Já expusemos que

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licularidade e a radicalidade da interpretação de Nietzsche nos permanecem ocultas. Se nós nos movimentamos nele, então elas podem se fazer visíveis. Há que se destacar que Nietzsche não apenas compreende toda ex-posição do mundo como essencialmente constituída pela vontade de poder, mas ele pensa também as conseqüências que surgem da auto-compreensão de sua filosofia como ex-posição. Sua filosofia da vontade de poder não pode, pois, ter um caráter meramente contemplativo. Ela própria é expressão do querer-poder. Nela se quer que os futuros criadores de valores se compreendam como vontades de poder. "Vós mesmos sois esta vontade de poder - e nada além disso''. - recorda ele ao homem. Isso é um apelo. Ele afirma:

Nietzsche pode fundamentar a pretensão de sua filosofia a ser a verdadeira explicação do mundo com o critério de verdade brotado dessa própria filosofia. Segundo esse critério uma explicação tem de se impor contra as outras explicações do mundo. Só nisso podem, decerto, mostrar-se sua fortaleza e seu poder. Se perguntamos mais precisamente pelo que significam fortaleza e poder de uma explicação, então penetramos mais profundamente no círculo. Eles não se deixam perceber simplesmente no "sucesso", por exemplo, na história até aqui. Com efeito, o milenarmente perdurante domínio da compreensão do mundo moralmente determinada não é, para Nietzsche, expressão de sua fortaleza, mas signo de fraqueza. O quererpoder não está, precisamente aqui, liberado como verdadeiro querer-poder. Precisamos tomar por base a própria interpretação por Nietzsche de fortaleza no sentido de irreservado poder-subjugar, se queremos acompanhar a pretensão de sua filosofia de que ela seria mais verdadeira, porque mais forte,

compreendei finalmente o que em verdade sois! Deus está morto, combatei também então sua sombra! As tábuas de valores que até aqui elevastes sobre vós não têm nenhuma validade/ Não vos deixeis mais determLnar por esses valores, determinai vós mesmos os valores! Transvalorai os valores antigo~, a partir

do que outras explicações do mundo. E novamente se mostra o círculo, quando Nietzsche, admite um "período pré-moral da humanidade", que deve compreender o tempo pré-histórico, que só então é seguido pelo período moral. Encontramos aqui uma construção da "história" do homem que, deve fundamentar a necessidade de futura fortaleza numa era pós-moral, a partir do retorno àquilo que inicialmente deve ter sido. Essa fortaleza seria, então, verdadeira fortaleza.

de vossa autocompreensão como querer-poder, criai novos valores.

Também a Nietzsche o que importa é não apenas "interpretar" o mundo, mas transformá-lo. Ele compreendeu, com efeito, que todo transformar é interpretar e todo interpretar transformar. Na verdade, também o período moral é caracterizado pela seqüência de sempre novas interpretações do

Jaspers escreve que, em Nietzsche, pensa-se "num círculo que parece se suprimir, e no entanto de novo impele para diante." 184 O círculo não pode ser suprimido. Se nós olhamos para ele apenas como uma estrutura formal, então a par183. M. Heidegger, Ser e Tempo, 7ª ed. Tübingen, 1957, p. 153. 184. K. Jaspers, Nietzsche, op. cit., p. 294.

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mundo. Mas a transformação fundamental ainda falta. Sobre sua necessidade, não há apenas que refletir, há que se exortar para ela. A partir da compreensão do efetivo como vontade de poder, Nietzsche se torna Anunciador. Em Assim falou Zaratustra sua filosofia não escorrega para a "poesia". Zaratustra é

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o porta-voz de seu anúncio. Uma vez que seu chamado ecoa sem ter sido ouvido, Nietzsche se vê relançado na tarefa de pôr diante dos olhos dos homens, em sua nadidade, as sempre

si mesmo sob suas formas perspectivas e somente nelas. Não podemos ver em redor de nosso próprio ângulo: é uma curiosidade desesperada querer saber que outras espécies de intelecto e perspectiva ainda poderia haver: por exemplo, se algum ser poderia vivenciar o tempo para trás, ou alternadamente para diante e para trás (com o que seria dada uma outra direção da vida e um outro conceito de causa e efeito). 1 ª5

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ainda dominantes ex-posições morais do mundo. Já que também para isso ele encontra apenas poucos ouvidos, as argumentações que ele introduz em seus derradeiros anos de criação tornam-se sempre mais grosseiras, a auto-apresentação, sempre mais exagerada, os tons que ele emite, sempre mais estridentes. Com tudo isso ele exige: "escutai-me, afinal"! Não estamos autorizados, porém, a considerar a filosofia de Nietzsche unicamente sob o aspecto de anúncio e apelo, tão essencial quanto ele seja para a compreensão de seus escritos, particularmente a partir do Zaratustra. No desdobramento de sua interpretação, ele se vê necessitado a acompanhar os pressupostos de pensamento que são imanentes a ela. Somente na reflexão sobre eles pode sua filosofia satisfazer sua pretensão de fundamental explicação da efetividade em seu todo. Comecem.os com a pergunta: Em que medida pode Nietzsche sustentar a pretensão de que sua interpreta-

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ção da interpretante efetividade apreende esse seu caráter de

A argumentação de Nietzsche é, em si mesma, convincente. "Nós" somos seres perspectivamente interpretantes; se todos os outros seres também interpretam, nosso intelecto não pode, em verdade, sondá-lo. Com a hipótese de outros seres perspectivantes, nada fica ainda resolvido acerca do caráter particular de suas perspectivas. Nós podemos ver somente sob nossa perspectiva; mesmo quando queremos por em perspectiva (perspizieren) nosso Perspectivar (Perspizieren), permanecemos sob nossa perspectiva. Ora, no texto ci-

interpretação? Com isso, retorna o tema do caráter perspectiva de

possibilidade é freqüentemente exposta por Nietzsche. 186 Mas,

tado, fala-se, com efeito, de autoprova do intelecto; cuja im-

todo interpretar. No quinto livro de A Gaia ciência considerava Nietzsche a esse respeito: Quão longe alcança o caráter perspectiva do existente ou até se há ainda algum outro caráter, ... se, por outro lado, todo existente não é essencialmente um existente interpretante

(auslegendes) - isso não pode, como é justo, ser resolvido nem mesmo pela aplicada e penosamente escrupulosa análise e autoprova do intelecto: uma vez que, nessa análise, o intelecto humano não pode deixar de se ver a

185. A Gaia Ciência (Livro 5) 374; KGW V2, 308.s. 186. V. já fragmento póstumo do outono de 1880, nº 6 [130]; KGW V 1, 559: "O intelecto é a ferramenta de nossos impulsos, ele jamais se torna livre. Ele se aguça na luta dos diferentes impulsos e, por meio disso, refina a atividade de todos os impulsos particulares." Mais tarde, em relação à possibilidade de auto-conhecimento do intelecto, escreve Nietzsche: "É quase cômico que nossos filósofos exijam que a filosofia tenha que começar com uma crítica da faculdade de conhecimento: não é muito improvável que um órgão do conhecimento possa 'criticar-se' a si mesmo?" "Uma ferramenta não pode criticar sua própria aptidão: o próprio intelec-

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de que modo deveria valer apenas para o intelecto que ele não

novo, uma vez que abertura e manter-em-aberto eram seu assunto? A partir dos pressupostos elaborados nesta investigação, oferece-se para isso, com efeito, uma resposta. Se a própria filosofia de Nietzsche é querer-poder, que quer fortalecer os futuros fortes para a tomada do poder, então todas as ex-posições particulares, como também a ex-posição da efetividade como um todo, têm de ser postas a serviço dessa tarefa. Se é posto diante dos olhos dos homens que há, por toda parte no mundo, lutas de poder e quanta de vontade, nos quais predomina o mais forte, e nada além disso, então os homens fortes - em face da ausência de exceção para a "lei" de que todo poder em todo instante extrai sua conseqüência - têm de perder suas derradeiras "inibições", oriundas de seu estarenraizado na tradição, têm de exercer sem reserva seu poder na instituição de novos valores. Com efeito, sob o exame autocrítico dessa interpretação, a explicação "do" mundo como "vontade de poder" figuraria, então, apenas uma ficção. A partir do critério de verdade de Nietzsche, ela seria, no entanto, verdade. Contra essa compreensão da explicação do mundo por Nietzsche deixa-se, com efeito, imediatamente objetar que Nietzsche, que, com a doutrina do retorno, exige o máximo dos fortes, exigiria muito pouco deles com a doutrina da vontade de poder. Por que não lhes deve poder ser exigido entrever a ficção como ficção? Tendo o próprio Nietzsche, todavia, chamado a atenção para a "limitação" perspectiva de todo in~rpretar, isso seria tanto mais incompreensível. Se os futuros poderosos - exatamente por causa do poder - devem ser ao mesmo tempo os mais sábios, 188 então não pode

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pode ver em redor do próprio ângulo? Todo ex-por é, entretanto, perspectiva, até quando não limitado ao intelecto. São justificadas, pois, as cautelas críticas que Nietzsche introduz para nosso conhecimento de "outra existência (von "anderem

Dasein')". De 9ovo, isso significa, certamente, que - à luz da auto-reflexão crítica do interpretar - as considerações de Nietzsche sobre a contraposição das vontades de poder perspectivamente interpretantes como efetividade pura e simples do mundo se demonstram como mera construção. Não teria Nietzsche ainda completado essa auto-reflexão, te-la-ia de novo esquecido depois de perfazê-la, quando fala do perceber perspectiva no "âmbito" orgânico e inorgânico? Isso não pode, decerto, ser tomado seriamente em consideração. Tem Jaspers razão quando considera que Nietzsche teria feito "tudo ao alcance de suas forças para a abertura e manutenção em aberto do possível", encerrando "de novo, ao final, por meio de absolutização" da vontade de poder? A "metafísica da vontade de poder" levada a efeito "em todas os fenômenos" seria "também da espécie da anterior metafísica dogmática?"

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Jaspers mal-entende Nietzsche, quando lhe imputa um tal dogmatismo. Mas, nela mesma, sua argumentação permanece insatisfatória. O que poderia ter motivado Nietzsche a encerrar to não pode determinar suas fronteiras, também não seu ser-bem-sucedido ou malogrado." - "Um aparato de conhecimento que quer conhecer a si meslJlO!! Deveríamos estar além desse absurdo de tarefa. (O estômago que se consome a si mesmo)" (Fragmento póstumo; GA XIV, 3; Outono de 1885-primavera 1886, nº 1 [60]; KGW VIII 1, 22. Outono de 1885-outono 1886, nº 2 [132] KGW VIII 1, 131. Verão-outono de 1884, nº 26 [18]; KGW VII 2, 152). 187. K. Jaspers, Nietzsche, op. cit., p. 309 s.; comparar, por exemplo, 330.

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188. A respeito da problemática em que incorre Nietzsche quando procura pensar o futuro grande homem, inclusive o além-do-homem (Übermenschen) como síntese de fortaleza e sabedoria, v. do autor: Nietzsche, op. · cit., p. 117-34.

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permanecer oculto a eles precisamente o caráter fictício da

precisamente seres de nossa espécie possam conservar-se na existência); por outro lado, ao mesmo tempo, com uma capacidade de compreender exatamente esse ver perspectiva como perspectiva, a aparência como aparência. Isso quer dizer: equipado com uma crença na "realidade", como se ela fosse a única, e novamente também com a compreensão interna (Einsicht) dessa crença, isto é, que ela seria apenas uma limitação perspectiva em face de uma verdadeira realidade. Porém uma crença examinada com essa compreensão interna não é mais crença, foi dissolvida como crença. Em resumo: não estamos autorizados a pensar nosso intelecto dessa maneira plena de contradição, que ele é uma crença e, ao mesmo tempo, um saber dessa crença como crença .. " Na conclusão dessa consideração, Nietzsche exige a supressão dos conceitos "coisa em si" e "aparência". Sua oposição seria tão "inútil" quanto aquela "mais antiga de 'matéria e espírito'". Da inútil oposição: coisa em si-aparência, nasce uma maneira de pensar que introduz uma contradição em nosso intelecto. A contradição torna clara a insustentabilidade da construção daquela oposição. Porém, Nietzsche não emprega aqui

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explicação do todo da efetividade. Em face da remissão ao correspondente dogmatismo de sua interpretação da inteira efetividade, proveniente de seus próprios pressupostos, eles teriam, por certo, que se 'sentir' como os menos sábios, portanto como os mais fracos. Escapamos do dilema no qual nos encontramos se ainda nos movimentando no círculo - nós indagamos da interpretação de Nietzsche quais possibilidades do interpretar ela admite para o homem, e pelo que ela vê determinadas essas possibilidades. Como se mostrará, essa pergunta foi apenas aparentemente respondida quando nos reportamos ao aforisma 374 de A Gaia ciência. Já as considerações que seguem à passagem citada tomam a sério a possibilidade de que o mundo encerre em si infinitas interpretações. E o sobretítulo do aforismo reza: "Nosso novo 'infinito'". Decerto podemos extrair daí, a despeito de todas as objeções críticas, que peso conserva para Nietzsche o pensamento de que haveria também existente não-humano, que ex-põe. Porém, por meio disso, as objeções críticas ainda não estão removidas. Um passo adiante nos leva um apontamento póstumo, proveniente dos anos 1885-1886. 189 Nietzsche se volta aí contra a "modéstia do ceticismo filosófico ou ... da resignação religiosa", que, a respeito da essência das coisas, diria que ela lhes seria desconhecida ou parcialmente desconhecida. Na verdade, isso seria imodéstia, na medida em que pretende dispor de um saber a respeito da legitimidade da "diferenciação entre uma 'essência das coisas' e um mundo da aparência". "Para poder

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"excepcionalmente uma vez a contradição como último critério de verdade para suas afirmações", como considera Jaspers no contexto de sua interpretação do citado manuscrito.190 o "princípio de contradição" é para Nietzsche uma grosseira e falsificadora "acomodação" que vela o efetivo caráter antagonístico da existência. 191 Como contradições intoleráveis têm de valer, porém, para ele, aquelas que conduzem à supressão de seu próprio critério de verdade. Fáctico exercício do poder não pode ser tanto possível quanto impossível. 192 Também

lazer uma tal diferenciação, ter-se-ia de pensar nosso intelecto como acometido de um caráter contraditório: uma vez instalado sobre o ver perspectiva (como é necessário, para que 189. Fragmento póstumo; GA XIII, 48 s. Verão de 1886-primavera 1887, nº 6 [23]; KGW VIII 1, p. 246 s.

190. K. Jaspers, Nietzsche, op. cit., p. 329. 191. V. do autor: Nietzsche, op. cit., p. 13 s. 192. No inicio de suas considerações criticas, designa Kõster como "característica geral" de meu livro sobre Nietzsche. que eu me coloque "decididamente sobre o solo da

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nosso intelecto está a serviço do exercício do poder, ele é,

que somos "nós", criaram para si: Se, como ferramenta des-

como ouvimos, um órgão que as muitas vontades de poder,

sas vontades de poder, ele deve constituir "a crença na realida-

ciência racional, familiarizada com os argumentos da lógica" (A Problemática. op. cit., p. 34). Minha interpretação não poderia ser mais fundamentalmente malentendida. Essa inadequada pré-compreensão impregna todas as objeções que Kõster apresenta na seqüência. Isso é tanto mais incompreensível, quanto inicio minha apresentação de Nietzsche com a destruição, por este, da oposição lógica, para, por detrás dela, indicar os efetivos antagonismos das vontades de poder. Kõster julga que eu não apreendo a crítica da lógica por Nietzsche como suficientemente radical (op. cit., p. 41 ), "que, em decorrência disso, a 'supressão' por Nietzsche do princípio de contradição permanece, de modo característico, sem enérgica conseqüência no curso da investigação" (op. cit., p. 41). Uma vez que eu, entretanto, no curso de minha investigação, pressuponho as conseqüências da crítica da lógica por Nietzsche, coloca-se a questão: como é que Kõster chega a me manter aportado naquela lógica que eu, com Nietzsche, deixo para trás? Onde se trata, para mim, da pergunta pela possibilidade ou impossibilidade de uma atestação da síntese de antagonismos em Nietzsche, Kõster acha que "todos os indícios" apontam para que eu espere de Nietzsche, "com isso, uma demonstração racional-argumentativa" (op. cit., p. 57). Tenho que dizer que eu não sou tão tolo? Se constato antagonismos no pensamento de Nietzsche, então aferrar-me-ia, segundo Kõster, simplesmente em sua "incompatibilidade lógica" (op. cit., p. 37). Também aprecaução com que escolho minhas palavras (plausibilidade, compatibilidade, atestação filosófica) não motivou Kõster a colocar em questão sua objeção de racionalismo. Tem-se que ter a impressão que ele igualiza entre: demonstrativo-de-contradição = racional = lógico = científico, e a essa equação, que ele toma sob o signo 'pensabilidade', só vê contraposto aquilo "queri-

do" por Nietzsche "como 'impensável'". Como se não houvesse um pensamento, que se atestasse a si mesmo, que deixa racionalidade atrás de si; como se não houvesse - por exemplo - a 'Ciência da Lógica' de Hegel, que impugna a pretensão de direito da lógica formal. Sob esse aspecto, é grotesco ver minha interpretação "numa clara oposição à relação de Heidegger com Nietzsche" (op. cit., p. 34). Como se, domesmo modo, não importasse a Heidegger, sempre de novo, expor a compatibilidade das declarações de Nietzsche. Tomemos apenas a pergunta pelo relacionamento entre as doutrinas de Nietzsche da vontade de poder e do eterno retorno, como elas se colocam para Heidegger. Numa crítica à interpretação de Nietzsche por Baeumler, escreve ele: "Mas, suposto que exista uma contradição entre as duas doutrinas ... : sabemos desde Hegel que uma contradição não é necessariamente (sic!) uma demonstração contra a verdade de uma proposição metafísica, mas uma demonstração a favor. Se, portanto, eterno retorno e vontade de poder se contradizem, então essa contradição é talvez exatamente a exigência de pensar (sic!) esse gravíssimo pensamento, ao invés de buscar fuga no 'religioso'. Mas mesmo admitido que jazeria aqui uma insuprimível contradição, e que a contradição constrangeria à decisão: ou vontade de poder ou eterno retorno, por que Baeumler se decide contra o gravíssimo pensamento de Nietzsche e o ápice da consideração (Gipfel der Betrachtung), a favor da vontade de poder"? (Nietzsche, op. cit., 1, 30 s.). Heidegger coloca Nietzsche ilimitadamente sob a exigência do pensar; mesmo contradições fundamentais não constituem, para ele, nenhuma exigência de buscar fuga no 'impensável'; ele admite a possibilidade de que possa haver insuprimível contradição em Nietzsche, que poderia constranger à decisão. Diferentemente de Baeumler,

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de", então, como uma tal ferramenta, ele não pode estar ao

tempo determinado a negar essa crença, ao concebê-la como

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mesmo tempo determinado a negar essa crença, ao concebê-la

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ficção perspectiva. Isso significa que, também no caso aqui discutido, evitar a contraditoriedade no sentido lógico-formal

não vê Heidegger, como é sabido, nenhuma contradição insuprimível entre as duas doutrinas de Nietzsche: ele procura, pelo contrário, destacar - evidentemente à sua maneira -, sua compatibilidade, sim sua "unidade interna" (op. cit., 1, 14). Kõster pretende, no entanto, ter reconhecido que eu (em oposição a Heidegger) imputo a Nietzsche critérios racionais de medida, quando pergunto pela compatibilidade de suas declarações fundamentais. Para Kõster, a radicalidade da impugnação, por Nietzsche, do princípio de contradição consiste em que Nietzsche só deve ainda poder se expressar em contradições? O que acima aduzi contra Jaspers vale, como princípio, para o pensamento de Nietzsche: se Nietzsche, no contexto da exposição de sua própria posição, não pode autorizar nenhuma contradição, ele não se submete, com isso, ao critério de verdade da lógica. A pretensão à 'concordância' de seu pensamento é de uma espécie mais fundamental, ela não é atingida por exigências formais de 'concordância lógica'. Somente em relação a essa exigência, questiono, em meu livro, o pensamento de Nietzsche. De acordo estamos, manifestamente, Kõster e eu, sobre a incompatibilidade interna de pensamentos fundamentais de Nietzsche. A suposição de Kõster de que eu poderia ser de opinião de que Nietzsche "não teria visto" a incompatibilidade (A Problemática, op. cit., p. 58) é absurda: a mim importa, com efeito, exatamente mostrar como Nietzsche luta por compatibilidade. Quando considero que a síntese de fortaleza e sabedoria no além-do-homem só pode ainda ser mantida em aberto por Nietzsche como o que é objeto de crença, então, com o 'só ainda', não salto para fora da crítica imanente, como opina Kõster (Op. cit., p. 58 s; nota 50); com tal 'limitação', não o meço segundo uma 'exigência científica', porém falo a partir da exigência

não constitui o critério de verdade - tão pouco quanto já a consideração de Nietzsche de que uma ferramenta não poderia se encontrar acima de sua própria aptidão como ferramenta pode ser vista como "argumento lógico" -, porém a láctica impossibilidade de não poderem ser subordinadas ao mesmo órgão do querer-poder funções que mutuamente se suprimam. A pergunta: como pode, então, ocorrer que o intelecto aprendesse a se mal-entender a si mesmo no sentido caracterizado, deixar-se-ia responder, a partir de Nietzsche, somente no ampliado contexto de uma genealogia da autocompreensão humana. Há que se renunciar aqui a uma tal exposição. A problemática, de que Nietzsche, em relação ao intelecto como a um órgão determinado, consegue se tornar senhor, a partir de seus pressupostos, retorna mais uma vez a nós do ponto de vista do interpretar. Certamente podemos dizer, segundo o que foi considerado anteriormente, que a auto-compreensão de uma interpretação como interpretação não tem de estar disposta contra o querer-poder, mas pode e deve exatamente liberar o interpretar. Como um todo, o interpretar não está, como o intelecto, limitado a determinadas funções. Ainda as sim, não se pode recusar as questões: como é possível que o interpretar perspectivo em geral pode se compreender a si que o próprio Nietzsche coloca para seu pensamento com uma intensidade digna de atenção. Segundo penso, quando se destaca o incompatível em sua plena incompatibilidade, faz-se mais justiça a essa intensidade, do que quando se conduz o movimento de seu pensamento ao repouso no impensável. Exatamente esse último seria 'fechar os olhos aos perigos' (op. cit., p. 60) que, com a filosofia de Nietzsche, vieram a nosso encontro.

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mesmo como um tal interpretar? Que direito pode Nietzsche fazer valer para sua pretensão de que sua interpretação da efetividade como antagonismo de interpretações perspectivas seja mais do que uma perspectiva meramente humana, seja mais do que até apenas a perspectiva particular do filósofo Nietzsche? Se queremos tentar responder essas perguntas a partir da própria interpretação de Nietzsche, temos de partir então de que, para ele, o homem "não é somente um individuum, porém a totalidade do orgânico continuando a viver numa determinada linha" . 193 A partir desse pressuposto torna-se-nos completamente claro por que a "análise e autoprova do intelecto" não está em condições nem de descobrir algo sobre a correção de nosso conhecer, nem também algo suficiente sobre o próprio intelecto: nela nem sequer o homem, mas apenas uma de suas "ferramentas" é subtraída ao fluxo do vir-a-ser, tomada por si, isolada e considerada por si mesma em sua aptidão. Em contraposição a isso, Nietzsche quer "re-traduzir o homem ... na natureza", permanecer "surdo às armadilhas dos velhos passarinheiros metafísicos, que por um tempo demasiado longo lhe sussurraram: 'tu és mais! tu és mais elevado'! tu és de outra proveniência' ". 194 A proveniência do homem encontra-se na natureza, e "mais" ele não é num sentido qualitativo, porém sim num sentido quantitativo. A totalidadedo-orgânico continua a viver nele. E na medida em que todo orgânico é uma síntese de forças inorgânicas, "vive" nele também o inorgânico. 195 O mais antigo, a ele "firmemente incorpo193. Fragmento Póstumo VP. 678; GA XVI, 143. Final de 1886-primavera 1887, nº 7 [2]; KGW VIII 1, 259. 194. Para além de Bem e Mal, 230; KGW VI 2, 175. 195. "O inorgânico nos condiciona inteiramente: água, ar, solo, figura do solo, eletricidade etc. Nós somos plantas sob tais condições" reza um apontamento (Fragmento póstumo da primavera-outono de 1881, 11 [21 O];

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rado", está em luta com o mais recente. O homem carrega em si o múltiplo que ele interpreta. E ele não poderia tê-lo acolhido em si, não poderia ser o interpretante que ele é, se o próprio acolhido não fosse da essência do interpretar. A partir do mencionado pressuposto, Nietzsche pode ainda dar um passo adiante: uma vez que o homem subsiste, "está provado com isso que um gênero de interpretação (ainda que sempre ampliada [fortgebaut)) também subsistiu, que não mudou o sistema da interpretação." 196 Com isso temos em mãos a chave para a resposta às duas questões colocadas. Nietzsche pode interpretar o múlti-

KGW V 2, 423). O condicionante não permanece como causa fora de nós, nós somos aquilo que nos condiciona. Vale, por outro lado: "Dizes que alimentação, local, ar, sociedade te alteram e determinam? Ora, tuas opiniões fazem-no ainda mais, pois elas te determinam a essa alimentação, local, ar, sociedade." Fragmento póstumo da primavera-outono de 1881, nº 11 [43]; KGW V 2, 394. 196. Fragmento póstumo VP. 678; GA XVI, 143; final de 1886-primavera 1887, nº 7 (2]; KGW VIII 1, 259. - Em Nietzsche, pensamento transcendental e naturalístico não apenas ingressaram numa simbiose, eles se interpenetram, se fundem inteiramente um no outro. Toda ênfase no naturalismo de Nietzsche carece de correção por meio de uma indicação de que todo ente interpreta, é interpretação. E vale, inversamente, que toda interpretação é 'natural'. É insuficiente e conduz a malentendidos quando, como J. Habermas (v. seu Posfá-

cio a Fr. Nietzsche: Escritos de teoria do conhecimento, Frankfurt/M. 1968), na discussão da revisão por

Nietzsche do 'conceito de transcendental', nos detemos na doutrina perspectiva dos- afetos humanos. Essa perspectividade tem que ser entendida, por sua vez, a partir da multiplicidade das per,spectivas 'naturais', que ingressaram no ser-homem. Uma tal explicação

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pio efetivo, o ente natural, como múltiplo interpretar porque o próprio homem é um ser interpretante, e só pode sê-lo porque aquilo que nele conflui, como ente inorgânico e orgânico, já, ele próprio, interpreta. Como síntese e multiplicidade de interpretações, pode o homem perceber seu interpretar perspectiva, na medida em que "o ponto de gravidade se desloca aos saltos" e muda a perspectiva a partir de cada novo ponto. Ele tem o saber desse mover-se aos saltos, porque ele, como todo orgânico, reúne experiências, dispõe de memória. 197 A possi-

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até aqui são avaliações perspectivas, graças às quais nós nos conservamos na vida, isto é, na vontade de poder, de crescimento do poder, que cada elevação do homem traz consigo a superação de interpretações mais estreitas, que todo alcançado fortalecimento e alargamento de poder abre novas perspectivas e faz crer em novos horizontes - isso percorre meus escritos. 19B

bilidade de interpretar o interpretar surge, assim, da mudança das interpretações. Nem é necessário para isso uma faculdade particular, nem se abandona com isso a perspectividade do interpretar. Nietzsche resumiu uma vez:

que o valor do mundo jaz em nossa interpretação (que talvez em algum lugar são ainda possíveis outras interpretações que as meramente humanas), que as interpretações de possibilita a Nietzsche fazer declarações sobre o caráter de interpretação também do ente inorgânico e orgânico, e ao mesmo tempo escapar da possível censura de que sua filosofia da vontade de poder seria naturalismo dogmático. Pontos de partida para uma crítica a Nietzsche são dados também no patamar de compreensão obtido com isso. Mas ele tem, primeiro, que ser urna vez alcançado, se urna crítica objetivamente fundamentada (sachgegründete Kritik) da 'teoria do conhecimento' de Nietzsche deve ser·tentada. 197. "Talvez nada seja mais terrível e ominoso em toda pré-história do homem do que sua mnemotécnica", escreve Nietzsche em Para a Genealogia da Moral (GM. li, 3; KGW VI 2, 311 ). Partindo da pergunta pela possibilidade do poder-prometer, ele dá aí indicações sobre sua genealogia da memória.

Partindo dessa auto-apresentação de Nietzsche, limitamo-nos ao destaque de dois pontos de vista: A. Aumento de poder significa obtenção de novas perspectivas (porque ulteriores quanta de poder toram incorporados}, e com isso alargamento das interpretações. Isso, mais uma vez, caracteriza a elevação do homem. Inversamente, vale: "a pluralidade (Mehrheit) da explicação(:) Sinal da força". 199 A inversão só vale então, com efeito, se as muitas explicações se deixam organizar em unidade e não efetivam a desagregação, como Nietzsche evidencia, particularmente para "a modernidade".200 B. A interpretação das interpretações de Nietzsche não se compreende como filosofia absoluta. Em verdade, impõe-se em seu pensamento a convicção de que tudo o que é seria interpretação. Mas ele não exclui que haja ainda outras interpretações que não estão incluídas no ser-homem. O homem é, decerto, "apenas" a totalidade-do-orgânico continuando a viver "em uma determinada linha" .201 Mantém aberta com isso a possibilidade de que futuros homens, "além-do-homem" 198. Fragmento póstumo, VP. 616; GA XVI, 100. Outono de 1885-outono 1886, nº 2 [108]; KGW VIII 1, 112. 199. ld. 660; GA XVI, 95. Outono de 1885-outono 1886, nº 2 [117]; KGW VIII 1, 118. 200. V. do autor: Nietzsche, op. cit., p, 35 s. 201. V. supra, nota 193.

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(Übermenschen), por meio de incorporação de interpretações para nós ainda inacessíveis, poderiam, em comparação com os viventes de hoje, ampliar ainda sua compreensão da efeti· vidade. "Numa espécie superior de seres, o conhecimento terá também novas formas, que agora não são ainda necessárias." 2º2 A interpretação de Nietzsche inclui em si mesma a possibilida· de, sim, a necessidade de seu próprio alargamento e modificação como um seu aspecto essencial. Depois de nos termos movido, de modo variado, no círculo da interpretação de Nietzsche, ingressemos mais uma vez, em conclusão, na pergunta pelo quem de sua interpretação. Já ouvimos que esta não é uma questão autorizada, na medida em que não haveria, em primeiro lugar, um algo que, então, interpretasse. O próprio interpretar tem existência. É errôneo, portanto, compreender o perspectívismo de Nietzsche como subjetivismo. " 'Tudo é subjetivo', dizeis vós: mas já isso é ex-posição" escreve Nietzsche e recusa tal discurso. 2º3 Num apontamento mais longo do ano 1885 se diz: "O pensamento ... emerge em mim - de onde? por meio de quê? não o sei. Ele vem, independentemente de minha vontade costumeiramente envolto e ensombrecido por uma multidão de sentimentos, de· sejos, aversões, também de outros pensamentos ... Nós o extraímos de tal multidão, o limpamos, colocamo-lo sobre seus pés ... quem faz isso tudo - não o sei, e sou aqui seguramente mais espectador do que causa desse processo ... Que em todo pensar parece tomar parte uma multiplicidade de pessoas - : isso não é, de maneira alguma, fácil de observar, somos fundamentalmente mais fortes no inverso, ou seja: ao pensar, não pensar no pensar. A origem do pensamento permanece oculta; é grande a probabilidade de que ele é apenas o sintoma de um

estado muito mais abrangente; que justamente ele chega e nenhum outro, que ele chega justamente com essa maior ou menor clareza, por vezes seguro e imperioso, por vezes fraco e carente de um apoio ... exprime-se em sinais, em tudo isso, alguma coisa de nosso estado global." 2 4 Naquilo que aqui escreve o "psicólogo" Nietzsche como auto-observador - ele que, aliás, tão decidamente recusa a auto-observação, ou pelo menos adverte contra ela -, deixa-se fazer claro o caráter de acontecimento das interpretações. Como interpretação, o homem é certamente vontade de poder. Mas essa vontade de poder é a permanentemente mutante organização de vontades de poder, que são em si mesmas vontades de poder organizadas. Quanto mais "abrangentes" se tornam as organizações de poder, tanto mais independentes são as forças organizado· ras das organizadas. Entretanto, são finalmente suas mutantes constelações de poder que decidem sobre o regime de governo. O homem é uma tão complexa organização de poder, que ele não pode mais experimentar aquilo que, "no fundo", o impele. Ele é interpretação, mas ele é interpretado. Ele é von· tade de poder, mas - como "vontade do-homem" - vontade de poder impotente em relação a sua autoconstituição. 2 5 lnte-

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202. ld. 615; GA XVI, 100. Verão-outono de 1884, nº 26 [236]; KGW VII 2, 208. 203. ld. 481; GA XVI, 12. Final de 1886-primavera 1~87, nº 7 [60]; KGW VIII 1, 323.

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º

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204. Fragmento póstumo;_ G~ XIV, 40 s. Junho-julho de 1885, nº 38 [1]; KGW VII 3, p. 323 s. 205. V. a própósito já Aurora, 120:" 'Não sei, em absoluto, o que faço! Não sei, em absoluto, o que devo fazen' Tens razão, mas não duvides de que serás feito! A cada instante! Em todos os tempos, a humanidade confundiu o ativo e o passivo, isso é seu eterno entalhe gramatical." "O próprio combate me é oculto, domesmo modo que a vitória, como vitória; pois bem que tomo conhecimento do que, finalmente, faço, - mas, com isso, não tomo conhecimento de qual motivo triuntou propriamente" (Aurora, 129; KGW V 1, 113, 117; comparar Aurora, 124, KGW V 1, p. 114. V. também Fragmento póstumo da primavera-outono de 1881,.nº 11 [131], KGW V 2, p. 387. 0

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ligir isso significa afirmar ilimitadamente o que foi inteligido como o finalmente verdadeiro. "Amor fali" é a última palavra da filosofia da vontade de poder. Mas também essa palavra só lhe pode ser "adjudicada" a partir de sua própria abissalidade. 206 Nada seria mais errôneo, mais inadequado à interpretação de Nietzsche, do que, por fim, deixar-se pôr em evidência a vontade de poder, semelhantemente a um deus ex machina, senão como o sujeito metafísico, no entanto como o acontecimento fundamental. Há, decerto, para Nietzsche complexos de acontecimentos, mas não há o acontecimento fundamental. Não há o um, há apenas mutiplicidades se reunindo, se separando. O filosofar de Nietzsche exclui, como uma pergunta relevante para o acontecer efetivo, a pergunta pelo fundamento do ente; no sentido da metafísica tradicional.

206. O "fatalismo" de Nietzsche não entra em conflito com sua autocornpreensão corno aquele que tem que apelar aos homens para acolher sobre si a verdade da doutrina da vontade de poder. "Apelo" e "anúncio" são, por sua vez, necessitados (ernotigt), como o seria também a aceitação do apelo pelos futuros grandes homens.

Scarlett Marton é mestre em filosofia pela Sorbonne e doutora pelo departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, onde é professora de filosofia moderna e contemporânea. Escreveu Nietzsche. A transvaloração dos valores (Moderna, 4ª ed., 1996), publicado pela Moderna, Nietzsche, das forças cósmicas aos valores humanos (Brasiliense, 1990) e Nietzsche, uma filosofia a marteladas (Brasiliense, 5ª ed., 1991) e organizou Nietzsche hoje? (Brasiliense, 1985). Publicou ainda artigos em livros e revistas especializadas, sendo os mais significativos: "Pascal: a busca do ponto fixo e a prática da anatomia moral" (ln: Finitude e transcendência, Vozes/Editora da PUC-RS, 1996); "Por uma filosofia dionisíaca" (ln: Kriterion, nº 89, 1994); "Nietzsche e Hegel, leitores de Heráclito ou a propósito de uma fala de Zaratustra: Da superação de si (ln: Dialética e liberdade, Vozes/Editora da URGS, 1993); "O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou imperativo ético?" (ln: Ética, Companhia das Letras, 1992); "Nietzsche: consciência e inconsciente" (ln: O inconsciente - várias leituras, Escuta, 1991 ), "Nietzsche e a Revolução Francesa" (ln: Discurso, nº 18, 1991) e "Foucault leitor de Nietzsche" (ln: Recordar Foucau/t, Brasiliense, 1985).

Oswaldo Giacoia Junior é mestre em filosofia pela PUC-SP com a dissertação "Discurso Filosófico e Discursos Científicos: Convergência e Dispersão", sob a orientação do professor-doutor Bento Prado Júnior. Defendeu seu doutorado em filosofia na Freie Universitãt Berlin, na Alemanha, sob a orientação do professor-doutor Reinhart Maurer. É professor de filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Entre outras publicações, escreveu: "Das Problem der Anemie in Lateinamerika", in Volker Luehr (org.): Materiallen für Forschung, Sonderdruck vom Lateinamerika (Institui der Freien Uníversitãt Berlin, 1987). "O Grande Experimento: sobre a Oposição entre Eticidade e Autonomia em Nietzsche", in Trans/Form!Ação Revista de Filosofia, 12, São Paulo, Edunesp, 1989, p. 97-132. "Filosofia da Cultura e Escrita da História", in O que nos faz pensar - Revista de Filosofia da PUC-RJ, 1990, p. 24-50. "F. Nietzsche: Fragmentos Póstumos" (trad.), in Trans/Form!Ação Revista de Filosofia, 13, São Paulo, Edunesp, 1990, p. 139-145. "Nietzsche-Filósofo da Cultura", in Salma Tannus Muchail (org.): Um passado revisitado: 80 anos de filosofia da PUC-SP, São Paulo, Educ, 1992, p. 93-104. "Ética e Uso de Animais em Experimentação", in Ciência Hoje, Revista da SBPC, outubro de 1992. "A Fatalidade da Violência e a Fecundidade do Pensar", in Perspectivas,

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Revista do Departamento de Sociologia da UNESP, São Paulo, Edunesp, 1992, p. 107-17. "O Anticristo e o Romance Russo", in Cadernos Primeira Versão, 55, Campinas, IFCH/UNlCAMP, 1994, p. 1-30. "Nietzsche e a Modernidade segundo Habermas", in Idéias, 2, Campinas, IFCH/UNICAMP, 1994, p. 5-37. "A Crise da Cultura como Escalada do Nihilismo", in Benedito Nunes (org.) A crise do pensamento, Belém, UFPA, 1994, p. 1-35. "Crítica da Moral como Política em Nietzsche", in Cadernos do IEAIUSP, São Paulo, 1996. "F. Nietzsche. Fragmentos Póstumos li", (trad.), in Textos didáticos, 26, Campinas, IFCH/UNICAMP, 08/1996.