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Portuguese Pages 354 [362] Year 1982
Alexandre Cheptulin
A DIALÉTICA MATERIALISTA Categorias e leis da dialética
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A DIALÉTICA MATERIALISTA Categorias e Leis da Dialética
BIBLIOTECA ALFA-OMEGA DE CIÊNCIAS SOCIAIS Série l . — Volume 2 a
Coleção FILOSOFIA
ALEXANDRE CHEPTULIN
A DIALÉTICA MATERIALISTA Categorias e Leis da Dialética Tradução Leda Rita Cintra Ferraz
EDITORA ALFA-OMEGA São Paulo 1982
Planejamento Gráfico e Produção Anselmo da Silva Filho Título do original francês Categories et lois de la dialectique Éditions du Progrès — Moscou © VAAP — Moscou — URSS Capa Jayme Leão Revisão Aparecida de Jesus Eunice Composto/Impresso Gráfica A Tribuna - Santos/SP.
Direitos Reservados EDITORA ALFA-OMEGA, LTD A. 05413 — Rua Lisboa, 500 — Tel.: 28001000 — São Paulo — SP Impresso no Brasil Printed in Brazil
SOBRE O AUTOR
Alexandre Cheptulin é doutor em Filosofia, professor e autor de várias monografias dedicadas ao materialismo dialético, dentre as quais podemos citar Sistema das categorias dialéticas, Leis da dialética materialista, Filosofia do marxismo-leninismo. Este é um estudo dos problemas fundamentais da filosofia marxista, uma análise das categorias e das leis dialéticas. Neste estudo, o autor procura apresentá-las sob a forma de um sistema de conceitos interdependentes, um determinando o outro e um decorrendo do outro. Ele considera essas categorias e leis como reflexos das propriedades e relações reais, como graus e formas de desenvolvimento do conhecimento da sociedade e como princípios do conhecimento dialético e de uma transformação orientada pela realidade.
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INTRODUÇÃO
Este livro dedica-se à análise das principais categorias e leis da dialética materialista. Colocando em evidência o conteúdo das categorias e das leis da dialética, exporemos a essência do materialismo dialético, enquanto teoria filosófica particular. O materialismo dialético estuda as formas gerais do ser, os aspectos e os laços gerais da realidade, as leis do reflexo desta última na consciência dos homens. As formas essenciais da interpretação filosófica, do reflexo das propriedades e das conexões universais da realidade e das leis do funcionamento e do desenvolvimento do conhecimento são as categorias e as leis da dialética. Como elementos necessários da teoria filosófica, elas têm uma função ideológica, gnoseológica e metodológica. Quando estas categorias e leis são usadas pelo homem, para elaborar um sistema de concepções do mundo e uma concepção única dos fenômenos que aqui são produzidos, elas cumprem a função de concepção do mundo ideológico. O conhecimento das propriedades e das conexões universais da realidade, que se exprimem nas categorias filosóficas, é absolutamente indispensável ao homem para sua orientação, para que possa determinar as vias que lhe permitirão resolver as tarefas práticas que surgem no processo de desenvolvimento da sociedade. Fornecendo um sistema global de idéias sobre a realidade ambiente, a filosofia ajuda o homem a elaborar uma atitude em relação à vida social, ao regime social, a compreender a essência da política adotada por um Estado e, por isso mesmo, permite-lhe participar de forma consciente da vida política da sociedade, da luta pelo progresso social e da realização dos grandes ideais da humanidade. 1
Representando o conhecimento das formas universais do ser, das propriedades e das relações universais das coisas, e ocupando, dessa maneira, a função ideológica, as categorias e leis da dialética refletem as leis do desenvolvimento do conhecimento, além de constituírem os pontos centrais, os graus e as formas do funcionamento e do desenvolvimento do processo de cognição. Por tudo isso elas podem ser usadas para apreender a essência da atividade cognitiva e das leis de sua obra. No presente caso, as leis e as categorias da dialética desempenham uma função gnoseológica. Sua assimilação permite um desenvolvimento da faculdade cognitiva, da capacidade de pensar com exatidão. Sendo o reflexo das formas universais do ser e das relações que se manifestam no mundo material e no conhecimento, as categorias e as leis da dialética permitem a formulação dos imperativos, aos quais devem-se submeter a atividade do pensamento e a atividade prática. Esses imperativos constituem os princípios do pensamento dialético, do método dialético do conhecimento e da transformação criativa da realidade. O conhecimento desses princípios eleva o nível do pensamento, alarga suas possibilidades criativas. . A aptidão das leis e das categorias da dialética, para de-, sempenhar uma função gnoseológica e metodológica, coloca em evidência a necessidade de seu estudo e de sua utilização consciente na atividade do pensamento. Em suma: o homem, diferentemente do animal, cuja conduta repousa nos instintos e nos reflexos, é dotado de uma consciência. Todos os seus atos têm um caráter consciente. Antes de praticá-los, ele analisa a situação, fixa objetivos adequados, define os modos e os meios para sua realização. No decorrer desse processo, ele pensa de maneira contínua. Se ele pensar de forma correta, poderá facilmente ter uma idéia clara da situação que se cria, orientar-se, fixar um objetivo exato, utilizar os meios mais racionais para atingir esse objetivo. Se seu nível de pensamento é baixo, ele tem tendência a se confundir mesmo diante das situações mais simples; não consegue orientar-se corretamente. É importante lembrar o quanto é importante para cada homem o saber pensar corretamente e com certo espírito criativo, notadamente no século da revolução científica e técnica e das grandiosas transformações sociais, onde os homens têm de resolver problemas particularmente complexos, tanto técnicos como 2
tecnológicos, além de determinar as vias e as formas do progresso social. Mas, um pensamento criativo correto, correspondente ao nível atual de desenvolvimento da ciência e da prática social, faz supor que os homens conheçam as leis do funcionamento e do desenvolvimento do conhecimento, as leis da atividade do pensamento, e que aprendam a usá-las racionalmente para resolver as tarefas práticas. O especialista contemporâneo deve dominar perfeitamente o método dialético do conhecimento, deve conhecer e aplicar conscientemente os princípios da dialética, as formas e os procedimentos lógicos da pesquisa científica e da criação. Tudo isso mostra a necessidade de um estudo profundo da teoria da dialética, de suas categorias e de suas leis. O estudo das leis e das categorias da dialética tem um papel importante na elevação do nível cultural do homem. E isso porque os resultados do desenvolvimento do conhecimento científico e da prática social concentram-se nas leis e categorias filosóficas. As categorias e leis são graus do desenvolvimento do conhecimento e da prática sociais, conclusões tiradas da história do desenvolvimento da ciência e da atividade prática. Familiarizar os homens com as categorias e as leis da dialética, fazê-los assimilar sua essência, nada .mais é do que os iniciar na cultura humana e alargar seus horizontes. Em sua exposição das principais categorias e leis, o autor procura mostrar as funções gnoseológicas, metodológicas e ideológicas que elas desempenham; ele as considera como formas do reflexo de propriedades e relações universais da realidade, como graus e formas do desenvolvimento do conhecimento social, como princípios do método dialético do conhecimento e da transformação orientada pela realidade. Segundo o autor, essa análise permite que se evidencie o papel importante desempenhado pelas categorias e leis da dialética na atividade teórica e prática dos homens.
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I. NATUREZA DAS CATEGORIAS
A definição da natureza das categorias, de seu lugar e de seu papel, no desenvolvimento do conhecimento está diretamente ligada à resolução do problema da correlação entre o particular e o geral na realidade objetiva e na consciência, assim como à colocação em evidência da origem das essências ideais e da relação destas últimas com as formações materiais, com os fenômenos da realidade objetiva. Esse problema nasceu com a Filosofia e sempre foi o centro de atenção durante toda a sua história. Estreitamente ligado à questão fundamental da Filosofia (isto é, à questão que decide o que vem primeiro: a matéria ou a consciência), ele foi objeto de discussões intermináveis entre as diferentes escolas filosóficas, entre os representantes das tendências materialistas e idealistas. Ludwig Feuerbach tinha razão quando afirmava que "esta questão é uma das mais importantes e, ao mesmo tempo, uma das mais difíceis do conhecimento humano e da Filosofia. .., toda a história da Filosofia está, no fundo, centralizada nesta questão" . Na Filosofia da antiga Grécia, esse problema foi colocado de forma muito precisa e uma solução para ele foi apresentada pelos pitagóricos que, depois de estudar o aspecto quantitativo das coisas e descobrir sua semelhança com o número, concluíram que o número representa uma essência universal independente das coisas individuais e singulares e determina sua natureza e sua existência. A propósito dessa questão, Aristóteles indica que os pitagóricos observaram que os núme1
L. Feuerbach, Vorlesungen über das Wesen der Religion, Leipzig, 1851, p. 153. 1
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ros tinham muitos traços de semelhança, e que é por essa razão que eles decidiram que os princípios dos números deveriam ser os princípios de todas as coisas e que os números deveriam ocupar o primeiro lugar na natureza, medir e reger as coisas singulares, constituindo sua essência. Os pitagóricos colocaram em evidência um dos aspectos (propriedades) universais dos objetos e dos fenômenos da realidade: as relações quantitativas. Mas, abstraindo todas as outras relações e propriedades (singulares e gerais) das coisas, eles erigiram a categoria da quantidade, transformando-a em essência ideal autônoma. Platão desenvolveu essa doutrina pitagórica das categorias. Segundo Platão, o ser verdadeiro e real é formado pelas idéias — as essências ideais que são autônomas, independentes das coisas singulares e que criam estas últimas, unindo-se à matéria. Essa matéria existe nelas durante um determinado tempo e depois elas retornam novamente para o mundo ideal, provocando com isso o desaparecimento das coisas. As essências ideais, segundo Platão, são eternas e imutáveis. As coisas sensíveis são transitórias, elas aparecem e desaparecem. Aristóteles critica o ponto de vista pitagórico e platônico relativo à natureza das categorias. Segundo ele, as categorias, que são noções gerais, não existem antes das coisas singulares, mas são, pelo contrário, o resultado do conhecimento destas, assim como o reflexo das propriedades e das relações que lhes são próprias. Ainda segundo Aristóteles, percebendo as coisas singulares, nós conhecemos não apenas o singular, mas também o geral, que se reproduz em numerosos objetos ou mesmo em todos eles. No processo da percepção reiterada das coisas, o geral, que lhes é próprio, cristaliza-se na consciência dos homens e exprime-se sob a forma de um conceito geral que existe ao lado das imagens singulares. Quando o geral inicial já foi fixado no espírito, conceitos ainda mais gerais são formados a partir dele refletindo as propriedades e as ligações de um grupo maior de coisas, e depois os conceitos mais gerais de todos — que são chamados categorias, que refletem as formas universais do ser — são formados. A teoria de Aristóteles sobre a natureza das categorias, embora sendo justa na sua essência, não é conseqüente. Declarando que, na realidade objetiva, o elemento análogo do conteúdo dos conceitos gerais são a matéria e a forma, Aris6
tóteles acreditava que a forma era ideal, que ela podia ter uma existência autônoma, independente das coisas materiais. Isso não significa que todo o geral, próprio ao mundo objetivo, seja material e que exista apenas por meio das coisas individuais, singulares. Uma parte do geral possui uma natureza ideal e existe independentemente e fora das coisas sensíveis. Isso é uma concessão séria feita a Platão e ao mesmo tempo à visão idealista do problema. Na Idade Média, a concepção da natureza das categorias, assim como a solução encontrada para outros problemas filosóficos, adquiriu uma coloração teológica. Os filósofos que representavam a tendência realista retomavam, sob uma forma ou outra, o ponto de vista platônico sobre as categorias, que eles consideravam como essências ideais autônomas, existindo independentemente dos homens e das coisas. Os nominalistas repudiavam essa concepção das categorias, negando-lhes uma existência independente não apenas na realidade objetiva, mas também na consciência. Johannes Scotus Erigena, por exemplo, filósofo realista da Idade Média, afirmava que os conceitos gerais eram criados por Deus e constituíam a natureza primeira. Deus, intervindo no princípio enquanto universal indeterminado, criou um mundo ideai que constitui o princípio primeiro e a essência das coisas. Esse mundo ideal divide-se em noções de gênero e espécie que, reunidas umas às outras, formam as coisas singulares. Assim, para Erigena, as categorias sendo elementos do mundo ideal, não podiam ser reflexos de formações materiais e de coisas sensíveis, e sim suas criadoras, existindo anterior e independentemente das últimas. O nominalista Roscelin, pelo contrário, partiu essencialmente da solução aristotélica do problema, mas, estabelecendo como absoluta sua negação da existência independente do geral na realidade, ele terminou por negar completamente a existência do geral, isto é, negou sua existência na realidade, não apenas sob a forma de uma existência ideal independente, mas também sob a forma de qualidades, de propriedades das coisas singulares. Esse filósofo considerou que os gêneros e as espécies (as noções de gênero e de espécie) não existiam realmente, eram apenas nomes dados pelos homens para coisas particulares, coisas que eram absolutamente singulares e que não tinham nada de geral. 7
A tentativa de conciliar a visão realista e a nominalista sobre as noções e categorias gerais foi feita por Tomás de Aquino. Da mesma maneira que Aristóteles, ele achava que as coisas singulares apareciam em decorrência da união da matéria com a forma, que constitui a essência. O fato de que existiam, na realidade, várias coisas possuindo uma mesma matéria e uma mesma forma mostrava, segundo ele, que a essência se manifestava enquanto geral nas coisas singulares. No processo de conhecimento, o homem pode distinguir o que é geral e concebê-lo como tal. Em decorrência disso, aparece na razão o geral em seu estado puro, isto é, ao lado do singular. Mas, a partir do fato de que, segundo esse filósofo, existem duas razões — a humana e a divina — a existência ideal do geral é dupla. Por um lado, o geral existe na razão divina sob a forma de modelo das coisas singulares e, por outro, ele existe na razão humana sob a forma de noções surgidas em conseqüência do desligamento do geral das coisas singulares. As essências ideais gerais, que se encontram na razão divina, manifestam-se sempre, segundo Tomás de Aquino, em seu estado puro, fora de qualquer ligação com o singular. Elas engendram e determinam as coisas singulares. Essas mesmas essências ideais que existem sob a forma de conceitos, de categorias, na consciência dos homens, não são autônomas, nem independentes das coisas particulares, são o resultado do conhecimento dessas últimas. Pelo fato de que a essência de uma coisa particular qualquer é determinada pela essência ideal, que se encontra no pensamento divino, os conceitos e as categorias, criados pelos homens, devem ser o reflexo dessa essência ideal, isto é, do geral, existindo de forma autônoma, e não das propriedades reais das coisas. Assim, a tentativa de Tomás de Aquino de conciliar as soluções nominalista e realista, apresentadas para a questão da natureza dos conceitos gerais e das categorias, terminou em fracasso. Essa tentativa limitou-se ao plano das posições do realismo do reconhecimento do ser autônomo, independente das coisas materiais singulares, e das essências ideais que constituem o conteúdo dos conceitos e das categorias. Os materialistas dos tempos modernos (Francis Bacon, Thomas Hobbes, John Locke etc.) negaram a concepção realista da natureza das essências ideais (dos conceitos gerais e das categorias) e procuraram desenvolver o ponto de vista 8
aristotélico sobre o conceito, considerado como uma forma do reflexo do geral na realidade (da natureza geral, das propriedades gerais, das qualidades das coisas singulares). Hobbes, por exemplo, considerava que, na realidade, existiam apenas coisas singulares que se caracterizavam por propriedades determinadas ou acidentes. Algumas dessas propriedades ou acidentes pertenciam a todas as coisas e outras a apenas algumas dentre elas. Refletindo o processo do conhecimento das propriedades das coisas, o homem criou os conceitos correspondentes. A partir do fato de que os objetos possuem propriedades universais, os conceitos que refletiam essas propriedades eram aplicáveis a todas as coisas. São nomes universais . Assim, segundo Hobbes, as categorias não representam as essências ideais gerais autônomas, que determinam a natureza das coisas, mas são apenas o reflexo das propriedades gerais, dos acidentes próprios das coisas. Locke desenvolveu esse mesmo ponto de vista, mas de forma mais conseqüente . George Berkeley opôs-se a essa concepção da natureza de conceitos gerais e de categorias. Partindo do fato de que o geral, na realidade objetiva, existe somente nas coisas singulares, ele procurou provar a impossibilidade da existência _de conceitos e de categorias. Segundo Berkeley, todos os conceitos s|õZjingulares, representam as idéias das coisas particulares que podemos perceber. Ninguém jamais percebeu idéias gerais, ele afirma. O posterior desenvolvimento filosófico das idéias sobre a natureza das categorias e dos conceitos gerais ultrapassa a concepção fundamentalmente nominalista de Berkeley e passa pela reabilitação do ponto de vista de Locke. Essa atitude foi desenvolvida particularmente pelos materialistas franceses do século XVIII (Denis Diderot, Paul-Henri Holbach, ClaudeAdrien Helvétius etc.). Emanuel Kant expôs um outro ponto de vista sobre a natureza das categorias. Segundo ele, as categorias não são o reflexo de aspectos ou de conexões da realidade objetiva, 2
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T. Hobbes, Leviathan or the Matter, Form and Power of a Commonwealth Ecclesiasticall and Civil, Londres, 1928, p. 19-20. J. Locke, Essai philosophique concernant I'entendement humain, Paris, 1975, t. 1, p. 290-8; t. 2, p. 257-61; t. 3, p. 58-71 e 176-80. 2
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mas representam as formas da atividade do pensamento, concedidas~ãconsciência peiã natureza. Seu conteúdo" è determinã3õ~pèla__consciência, representa uma ou outra forma de suas características e é introduzido no mundo dos fenômenos pelo sujeito no decorrer do processo da atividade cognitiva que se produz porque o sujeito dispõe a priori das categorias correspondentes. Os pensamentos de Kant encerram uma boa parte racional se tomarmos um homem isolado, o indivíduo, como sujeito do conhecimento. Com relação a cada indivíduo, as categorias são as formas da atividade do pensamento próprias da consciência social anterior a qualquer, experiência de conhecimento, anterior a toda ação cognitiva, a priori. É apenas assimilando-as que um indivíduo pode pensar'dé acordo com sua época e assim conhecer a realidade que o rodeia. Mas o sujeito real do conhecimento não é um indivíduo, é a sociedade. Com relação à sociedade, as categorias não são absolutamente nada que preceda o conhecimento, e também não são formas da atividade do pensamento que a priori lhes são próprias. Sob essa relação, elas são formas do reflexo da realidade, que se formaram no decorrer do processo da atividade prática e do desenvolvimento, a partir dela, do conhecimento. Seu conteúdo é determinado não pela consciência, mas pela atividade objetiva, e se manifesta como um reflexo das características das formas universais do ser. Ele não é subjetivo, nem é introduzido no mundo dos fenômenos pelo sujeito, que o tira da realidade objetiva e o expressa sob uma forma ideal. O subjetivismo da concepção kantiana da natureza das categorias e a tese, segundo a qual o caráter universal de seu conteúdo é condicionado pela consciência dos homens, foram criticados por Hegel: "O material sensível é, segundo a filosofia crítica, profundamente individual . . . e apenas o entendimento que o examina lhe traz unidade e o erige, por meio da abstração, como universal" . Continuando, ele diz ainda: "A afirmativa de Kant consiste no fato de que as determinações do pensamento têm sua origem no "eu", e é então o "eu" que determina o universal e o necessáráio. Assim, o "eu" seria uma espécie 4
G. W. F. Hegel, Werke. Vollständige Ausgabe, Berlim, 1843, v. 6, p. 85-91. 4
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de cadinho onde o fogo devora a multiplicidade indiferente e a reconduz à unidade" . Embora criticando Kant por seu subjetivismo na concepção da natureza das categorias, Hegel não adotou o ponto de vista materialista. Ele criticou Kant não por seu idealismo, não por deduzir do pensamento o universal, a necessidade e as leis da consciência, mas porque ele não podia seguir logicamente esse ponto de vista, porque parou no meio do caminho e também porque entendia a atividade das leis da consciência e do pensamento como relacionada unicamente com os fenômenos e não com o mundo todo, isto é, com a "coisa em si"; ele o criticava porque Kant deduzia da consciência apenas o necessário, o universal e as leis, mas não tudo o que existia, isto é, não as coisas particulares; criticava-o porque Kant deduzia o universal e o necessário da consciência humana e do pensamento e não da consciência e do pensamento como tais; criticava-o ainda porque Kant construía um muro intransponível entre o subjetivo e o objetivo, entre o conceito e a coisa, entre a idéia e a realidade e depois não os fundia em um todo único, não fazia da realidade um momento da idéia, do conceito. Hegel interpretava a natureza das categorias no plano do idealismo objetivo. Segundo ele, essas categorias apareciam não no decorrer do processo do reflexo da realidade na consciência dos homens, mas em decorrência do desenvolvimento da idéia, que existe anterior e independentemente da existência do mundo material, das coisas sensíveis. A idéia absoluta desenvolve seu conteúdo por meio das categorias que aparecem sucessivamente, e ela se transforma em natureza, em mundo material, se encarna nas formações materiais e nas coisas. Então, sem ter consciência de si mesma, ela sofre um certo desenvolvimento. Em seguida, depois de rejeitar a forma do ser físico que lhe é estranha, a idéia absoluta volta novamente para seu elemento espiritual adequado; depois, por meio da tomada de consciência do caminho percorrido no decorrer do processo de desenvolvimento do conhecimento, regressa definitivamente para si mesma, para existir, em seguida, eternamente sob a forma de espírito absoluto. 5
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Hegel, op. cit., p. 91.
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Assim, para Hegel, as categorias representam essências^ ideais^ que exprimem os momentos correspondentes da ideia absoluta, assim como os graus de seu desenvolvimento dialético _ Sendo as formas da atividade criadora da idéia, as categorias determinam a essência das coisas materiais, essência que se manifesta nelas e que se reproduz no estado puro, em decorrência do conhecimento. Após ter apresentado sob uma forma universal a dialética do autodesenvolvimento das categorias, e de haver pressentido a multiplicidade das leis gerais reais do desenvolvimento da realidade objetiva e do conhecimento, Hegel transforma a dialética das categorias em uma dialética determinante que submete a si mesma a dialética das coisas, transformando esta última em um caso particular da lógica. Embora sem deixar de reconhecer o mérito considerável de Hegel na elaboração da dialética, Marx e Engels criticaram severamente sua concepção idealista da natureza das categorias. Eles assinalaram que, para Hegel, as coisas que existem objetivamente são apenas motivos, cujas categorias lógicas são o esboço. Sendo tiradas das coisas pela abstração do particular e do singular, as categorias são, segundo Hegel, essências autônomas, que existem independentemente das coisas e antes delas, fazendo o papel de substância dessas últimas. "Quando, trabalhando sobre realidades, maçãs, peras, morangos, amêndoas, eu formo a idéia geral de "fruto"; quando, indo ainda mais longe, eu imagino que minha idéia abstrata do "fruto", deduzida de fatos reais, é um ser que existe fora de mim e, ainda mais, que constitui a essência verdadeira da pera, da maçã etc., eu declaro — em linguagem especulativa — que o "fruto" é a "substância" da pera, da maçã, da amêndoa etc. ". "Ora, tanto é fácil, escrevem Marx e Engels ainda, partindo de frutos reais, engendrar a representação abstrata do "fruto", como é difícil, partindo da idéia abstrata do "fruto", engendrar frutos reais"?. A razão especulativa procura sair desse embaraço explicando o conceito geral não por uma essência morta, desprovida de diferenças, mas por uma essência viva, que distingue, no seu L
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K. Marx, F. Engels, La Sainte-famille, Paris, Editions Sociales, 1969, p. 73-4. K. Marx, F. Hengels, op. cit. p, 74, 6
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interior, as coisas concretas e as faz nascer no curso de seu desenvolvimento. O resultado é que frutos reais podem ser manifestações diversas do fruto como tal, isto é, de uma essência ideal. "Pode-se ver por isso, concluem Marx e Engels, que enquanto a religião cristã conhece apenas uma encarnação de Deus, a filosofia especulativa tem tantas encarnações quantas são as coisas; é assim que ela possui, neste caso, em cada fruto, uma encarnação da substância do fruto absoluto"8. Na filosofia burguesa contemporânea, a concepção realista, que supõe o reconhecimento da existência autônoma das categorias sob a forma de essências ideais particulares — as universais —, foi desenvolvida pelo filósofo inglês G. E. Moore. Segundo ele, o mundo é composto por três espécies de coisas: os objetos sensíveis, as verdades ou os fatos e os universais . Moore critica particularmente o ponto de vista segundo o qual existem apenas as coisas sensíveis singulares, enquanto que as universais são consideradas como produtos do pensamento. Ele acredita que tal ponto de vista nasceu do emprego das palavras "idéia", "conceito", "pensamento" e "abstração" com duplo sentido. "Nós empregamos, diz Moore, a mesma palavra "idéia", "conceito" e "abstração" tanto para o ato do pensamento como para os objetos. Sabemos que todos os universais são, em um certo sentido, abstrações, isto é, coisas ideais por sua própria natureza. É por isso que vários filósofos pensam que quando chamamos uma coisa de abstração, subentendemos que ela é um produto do cérebro. Entretanto, esse é um erro grave. Há, é verdade, um processo físico chamado abstração. Mas, no decorrer desse processo, os universais não são criados, apenas tomamos consciência deles. E é exatamente a consciência que nós temos deles que é o produto do processo, e não os universais em si" 0. Apresentando a existência objetiva das categorias (denominadas universais), fora da consciência humana e das diferentes coisas, Moore segue o raciocínio: "A última vez eu 9
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K. Marx, F. Hengels, op. cit., p. 75. G. E. Moore, Some main problems of philosophy, Londres-New York, 1953, p. 372. G. E. Moore, op. cit., p. 371. 8
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tomei o exemplo de coisas diferentes, que estão todas a uma certa distância de uma mesma coisa" . Designando as coisas que se encontram à distância de uma única e mesma coisa pelas letras B, C, e D e a coisa que serve de referência pela letra A, ele prossegue: " . . . a propriedade de encontrar-se a uma certa distância de A é uma propriedade que é comum às três coisas B, C, D e é um "universal", uma "idéia geral", apesar do fato de que esta propriedade consiste em ter uma relação com A, isto é, com alguma coisa que é não-universal" . Examinemos a propriedade que Moore chama de universal. Ela é apenas um momento geral, um aspecto em várias relações particulares: B/A, C/A, D/A. Essa propriedade existe ao lado das relações particulares estudadas? Não. Ela existe apenas mediante essas relações particulares, no interior dessas relações. Se é assim, quais os fundamentos de Moore para classificá-la de universal? Será por que ela pertence a todas essas coisas — B, C e D? Isso apenas prova que essa propriedade pertence da mesma maneira às três coisas em questão. Mas, não prova que ela existe independentemente das coisas e ao lado delas. Assim, a prova apresentada por Moore da existência real, fora da consciência, de idéias e de universais, não resiste à crítica. A concepção das categorias apresentada por K. Popper é bastante próxima da de Moore. Para Popper, há três mundos : o mundo físico, o mundo espiritual de um homem concreto, mundo__das„essências ininteligíveis ou das idéias. O "terceiro mundo encerra não apenas os conceitos universais, mas também todas as afirmações e as teorias. Criando ._.a_existênçia_ autônraia„das_ categorias —- conceitos universais — P°PP!i agiu exatamente da mesma forma que Moore. Segundo ele, os objetos do terceiro mundo — as idéias objetivas — são freqüentemente tomados por idéias subjèfivãs7 p"õr objetos pertencentes ao segundo mundo, embora isso seja totalmente falso. As_essênçias ideais universais, são ..objetivas,..elas existem fora e independentemente do espírito humano e formam um mundo à parte. Essas reflexões de Popper são uma transposição da concepçãoplatônica da natureza das categorias. O autor, aliás, 11
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" G . E. Moore, op. cit., p. 371. G. E. Moore, op. cit., p. 312. 12
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não esconde o laço que existe entre sua própria concepção e a teoria das idéias de Platão. A concepção realista da natureza das categorias inclui a possibilidade de conclusões idealistas. Efetivamente, se o geral, como declaram os realistas, existe de maneira autônoma, independentemente do singular, a única forma possível de sua existência é a ideal porque, entre as coisas materiais, ninguém jamais observou o que quer que seja de geral existindo de modo independente, mas todo o mundo pode observá-lo nos pensamentos sob a forma de idéias e de conceitos gerais. E se o geral, como pode-se deduzir das reflexões dos realistas, precede as coisas materiais e as engendra, o ideal, o pensamento, vem em primeiro lugar, determinante, enquanto o material, as coisas sensíveis, é secundário do ideal, dos conceitos, das idéias. Opostamente ao ponto de vista realista sobre a natureza das categorias, desenvolve-se na filosofia burguesa atual a concepção nominalista. Essa concepção nominalista é encontrada nos trabalhos de vários positivistas e particularmente nos trabalhos dos semânticos. Como exemplo de interpretação extremamente nominalistas da natureza das categorias, podemos citar as reflexões de Stuart Chase e de Walpole Hugh. Chase, como Moore e Popper, analisa esse problema começando por colocar em evidência as razões que determinam a confusão de idéias surgidas na consciência do homem com relação às coisas que existem objetivamente. E como Moore e Popper, ele também considera que essas razões vêm do emprego abusivo das abstrações e das noções gerais. Entretanto, Chase tira disso uma conclusão diametralmente oposta à dos dois primeiros. Se, partindo do fato de que os homens têm o hábito de confundir os produtos de seus cérebros e os modelos ideais, surgidos em sua consciência, com o que visa a consciência, Moore e Popper concluem que os homens negam abusivamente a existência dos universais. Chase, por sua vez, partindo do mesmo ponto, chega à conclusão de que os homens consideram de modo errôneo como existindo objetivamente o que não passa de um símbolo, uma palavra. "Nós confundimos constantemente, escreve Chase, a etiqueta com os objetos não-verbais e damos assim uma falsa validez à palavra, como se fosse algo vivo"i3. £ precisamente, segundo Chase, esta 13
S. Chase, The Tyranny of Words, New York, 1938, p. 9.
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concepção que faz com que as pessoas considerem noções tão abstratas — as de "liberdade", de "justiça" e de "eternidade" — como essências existindo realmente, enquanto que na realidade objetiva existem apenas objetos e fenômenos singulares e não há nem pode haver nada que se assemelhe a essas essências gerais . Assim, segundo Chase, existem, na realidade objetiva, apenas coisas singulares e fenômenos particulares, enquanto que os conceitos gerais e as categorias são somente palavras vazias que não exprimem nem significam nada, já que no mundo objetivo não há coisas (pontos de referência) às quais eles possam corresponder. No mundo, efetivamente, não há cgisas existindo de modo autônomo que representem essa ou aquela categoria ouconceito geral. Mas isso não quer absolutamente dizer que os conceitos gerais não exprimem nada e que não possamos pensar neles como tais sem relacioná-los com um ponto de referência concreto (objeto particular). Os conceitos gerais relacionam-se com os objetos particulares não como tais, mas somente na medida em que eles possuam essa ou aquela propriedade e aspecto gerais. Essas propriedades e aspectos gerais, que se repetem em cada objeto particular desse ou daquele grupo, são os pontos de referência que se refletem nesse ou naquele conceito geral ou categoria. Walpole Hugh defende uma posição análoga sobre a natureza dos conceitos gerais e das categorias. Como Chase, ele nega o conteúdo real dos conceitos e das categorias, considerando-os como ficções, pelo fato de que o que eles definem não existe na realidade objetiva. "Um homem da rua que diz 'que não existe justiça' diz coisas mais precisas do que ele próprio pode imaginar. Esse tipo de coisa nunca existiu. A justiça é uma ficção, assim como suas companheiras: a amizade, a disciplina, a democracia, a liberdade, o socialismo, o isolacionismo e o apaziguamento. Não se pode indicar seus pontos de referência"iõ. Como Chase, Walpole Hugh não compreende ou não quer compreender que os homens, em conseqüência da atividade da abstração e do pensamento, separam o geral do 14
"S. Chase, op. cit., p. 9. W. Hugh, Semantics. The nature of Words and their Meaning, New York, 1941, p. 159. 15
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particular e o fixam em conceitos gerais. Que é precisamente esse geral refletido e fixado no conceito geral e na categoria que constitui o conteúdo, e que é exatamente dele que se trata quando os conceitos gerais ou as categorias são utilizados para exprimir o pensamento. Eles realmente não dispõem de pontos de referência individuais, mas possuem, em compensação, uma grande quantidade de pontos de referência, já que existem objetos concretos encerrados nos limites desse ou daquele conceito geral. E isso testemunha não sua ficção, mas sua realidade. A concepção nominalista da natureza das categorias provoca toda uma série de conclusões anticientíficas. Se, como afirmam os nominalistas, o geral não existe realmente, se é apenas uma denominação, uma palavra vazia, e na realidade existem somente coisas sensíveis e singulares, não há matéria, ninguém jamais a percebeu, ninguém jamais a viu, ela é apenas uma palavra sem significado, equivalente ao termo "nada". Mas se é assim, também o materialismo é falso, já que ele parte da concepção da matéria como alguma coisa que realmente existe. Foi precisamente essa a maneira que Berkeley escolheu para refutar o materialismo. Mas, se os conceitos gerais não significam nada, se na realidade não existe nada a que eles possam corresponder, então, sua utilização não pode permitir aos homens que se orientem em sua atividade, na resolução das tarefas práticas e, ainda mais, esses conceitos gerais induzem os homens ao erro, engendram todas as ilusões possíveis e imagináveis. Assim,história_,do-,desenvolvimento do pensamento filosófico, quatro tendências (sem contar a tendência marxista) aparecem -na"concepção das categorias: alguns filósofos consideram que as categorias existem fora e independentemente da consciência humana, so'n a forma de essências ideais particulares (tendência realista); outros declaram que essas mesmas categorias são ficções,, palavras, vazias que não exprimem nem designam nada (tendência nominalista); outros, ainda consideram as categorias como formas da atividade do pensamento, a priori próprias à consciência do homem e constituindo suas características e suas propriedades inerentes (tendência kantiana); e finalmente os últimos, que consideram as categorias como imagens ideais que se formam no decorrer do desenvolvimento da consciência da realidade objetiva c que refletem 17
os aspectos e os laços correspondentes das coisas materiais_ (Aristóteles, Locke, os materialistas franceses do séc. XVIII). A teoria jn§toialista dialética das categorias representa o desenvolvimento da quarta concepção que foi elaborada na historia da Filosofia, em geral, pelos representantes do materialismo. Como os materialistas pré-marxistas, também os fundadores do materialismo dialético consideravam que as categoriss representam as imagens ideais que refletem os aspectos e os laços correspondentes das coisas materiais. Entretanto, à diferença dos materialistas pré-marxistas, que afirmam que o conteúdo dessas imagens coincide diretamente com as propriedades e os laços correspondentes das coisas, o marxismo considera que essas imagens são o resultado da atividade criadora do_sujeito no - decorrer da qual este último distingue o gera! do.singular. Esse geral exprime as propriedades e as correlações internas necessárias. É por isso que a imagem ideal que representa o conteúdo dessa ou daquela categoria, sendo a unidade do subjetivo e do objetivo, não coincide imediatamente com os fenômenos, com os quais se encontra na superfície das coisas. Pelo contrário, ela se distingue sensivelmente dos fenômenos e chega mesmo a contradizê-los, já que eles não coincidem com sua essência. O conteúdo das categorias deve coincidir e coincide até determinado ponto, não com o fenômeno, mas com sua essência, com esse ou aquele de seus aspectos.
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II. O PROBLEMA DA CORRELACÃO DAS CATEGORIAS DA DIALÉTICA As formações materiais do mundo objetivo simplesmente existem e nada mais. Elas encontram-se em contínua interação. Nesse processo de interação manifestam-se suas propriedades, que as caracterizam como corpos isolados, determinados, fenômenos que, em certas circunstâncias, passam uns pelos outros. O resultado disso é que todos os fenômenos da realidade se encontram em um estado de correlação e de interdependência universais. Mas, nesse caso, os conceitos, pelos quais o homem reflete, em sua consciência, a realidade ambiente, devem ser igualmente interdependentes, ligados uns aos outros, móveis e, em determinadas circunstâncias, passar uns pelos outros e transformar-se em seus contrários, porque é somente dessa maneira que eles podem refletir a situação real das coisas. "Os conceitos humanos, escreveu Lenin, não são inamovíveis, mas, pelo contrário, eles movem-se perpetuamente, mudam-se uns nos outros, escoam-se um no outro, porque, sem isso, eles não refletem a vida existente" . É por isso que o estudo dos conceitos faz supor que se evidencie sua correlação e suas mudanças recíprocas de um no outro, assim como a criação de um sistema que reproduza as relações necessárias dos diferentes aspectos do objeto estudado. O que caracteriza o estudo dos conceitos, em geral, relaciona-se igualmente, é claro, ao estudo das categorias — dos conceitos que refletem as formas universais do ser, os aspectos e os laços universais da realidade objetiva. Desvendar a riqueza das leis dialéticas só é possível se analisarmos as categorias que 1
Lenin, Oeuvres, t. 38, p. 238.
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as refletem em sua correlação e em sua interdependência, se fizermos um sistema no qual cada uma delas ocupará um lugar rigorosamente definido e no qual terá o relacionamento necessário com todas as outras. 1.
RESOLUÇÃO DO PROBLEMA DA CORRELAÇÃO DAS CATEGORIAS NA FILOSOFIA PRÉ-MARXISTA
Foi Aristóteles quem, primeiramente, procedeu a uma pesquisa sistemática das relações das categorias e fez destas últimas um sistema determinado. Mas a classificação aristotélica não reproduzia a correlação real das categorias porque baseava-se total e unicamente nos princípios da lógica formal. O defeito da classificação aristotélica reside igualmente no fato de que ela não englobava todas as categorias já estudadas na época do próprio Aristóteles. Depois de Aristóteles, Kant dedicou-se muito tempo à análise da correlação das categorias. Entretanto, sua classificação ainda contém todos os defeitos próprios à classificação de Aristóteles. Ela baseou-se igualmente nos princípios da lógica formal, na qual as categorias eram divididas em grupos, não segundo o lugar histórico que ocupavam no processo do conhecimento, mas a partir desse ou daquele traço comum; além disso elas não eram apresentadas por seus laços naturais e necessários, mas sim por sua associação contingente. O sistema kantiano, assim como o sistema aristotélico, estava longe de incluir todas as categorias existentes. Embora tenha reagrupado as categorias como já o fazia Aristóteles, Kant colocou-as em uma certa dependência das etapas do desenvolvimento do conhecimento e esforçou-se em mostrar que a cada grau de conhecimento correspondem determinadas categorias. Assim, por exemplo, o estágio da percepção sensível dos fenômenos, segundo Kant, corresponde às categorias de espaço e de tempo; o estágio do pensamento discursivo, às categorias de quantidade, de qualidade, de relação e de modalidade. Ao mesmo tempo, na resolução do problema das categorias, Kant deu um passo atrás em relação a Aristóteles. Ao contrário de Aristóteles, que considerava que as categorias representavam uma forma particular do reflexo das coisas e das 20
relações reais, Kant declarou que as categorias são formas subjetivas da atividade do pensamento, próprias à consciência antes de qualquer experiência. Foi apenas com a filosofia de Hegel que houve uma apresentação global do problema. Hegel criticou vivamente a concepção kantiana das categorias e, em particular, sua tendência subjetivista. É verdade que Hegel criticava Kant a partir das bases do idealismo, e foi sobre essas mesmas bases que ele deu sua própria resolução para o problema da correlação das categorias da dialética. Mostrando a correlação das categorias a partir do quadro da solução idealista dada para a questão concernente ao relacionamento entre a matéria e a consciência, Hegel colocou, ao mesmo tempo, os princípios dialéticos como base para seu sistema de categorias. Ele procurou apresentar as categorias em seu desenvolvimento, em suas passagens de umas às outras. Para Hegel, as categorias são momentos ou graus do desenvolvimento da idéia existindo fora e independentemente do mundo material e do homem. A categoria da qual parte seu sistema é a do ser puro, que representa uma vacuidade pura, desprovida de qualquer conteúdo preciso . Sob essa forma o ser puro é idêntico ao "nada"3.
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Sendo idêntico ao "nada", o "ser puro" de Hegel não é fixo, não se encontra eternamente no mesmo estado e, agindo com o "nada", transforma-se em um "vir-a-ser" que, sendo o resultado da unidade do ser puro com o "nada", chega à abstração absoluta, ao vazio, e adquire um certo conteúdo, trazendo à luz uma nova categoria — o "ser-aqui". É evidente que nem na realidade objetiva nem no conhecimento é possível que algum vir-a-ser possa transformar o "nada" em um ser concreto determinado, e a correlação das categorias do ser puro, do vir-a-ser e do ser-aqui, que nos é apresentada por Hegel, é absolutamente artificial. Mas há algo racional, e isso se dá quando Hegel coloca na qualidade de princípio de partida da passagem de uma categoria para a outra o movimento condicionado pela unidade dos contrários — o G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in Sämtliche Werke, Stuttgart, 1928, v. 4, p. 87-8. Hegel, Werke. Vollständige Ausgabe, v. 6, p. 169. 2
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"ser puro" e o "nada" —, sua luta e a passagem de um para o outro. O "ser-aqui" que apareceu em Hegel representa o ponto de partida do movimento ulterior do pensamento, de sua passagem para outras categorias. A partir do fato de que, segundo Hegel, o "ser-aqui" à diferença do "ser puxo" possui uma certa determinação, ele manifesta-se como qualidade. Analisado sob o ponto de vista interior, a qualidade manifesta-se como "alguma coisa". No movimento das categorias, Hegel captou os laços e as relações reais, próprios ao processo de conhecimento. Todo "ser-aqui", toda forma determinada de existência da matéria é percebida pelo sujeito, antes de tudo pelo ângulo da qualidade, e o sujeito chega à conclusão de que a qualidade dada possui sua própria especificidade; ela é diferente das outras qualidades, ela não é nem uma nem a outra. Depois de ter colocado em evidência a categoria de "alguma coisa", que reflete o momento real do processo de conhecimento da qualidade, Hegel, seguindo o método dialético e sua profunda intuição histórica, esclareceu passo a passo outros momentos do desenvolvimento desse processo. Ele concentra sua atenção sobre o fato de que no decorrer de uma análise rigorosa o "alguma coisa" deixa aparecer sua natureza contraditória e revela ser a unidade dos contrários. Por um lado, ele encerra um momento positivo, por outro, um momento negativo. Enquanto momento positivo, ele representa a realidade, isto é. o ser real (ou, segundo a expressão de Hegel, o ser-em-si), enquanto momento negativo, ele é o ser-outro (ou o "ser-paraum-outro"). De tudo isso depreende-se nitidamente o pensamento de Hegel, segundo o qual, mesmo que esse ou aquele ser determinado exista por si mesmo, possua seu próprio ser, sua natureza original, ainda assim ele não está isolado, desligado de outras formas determinadas do ser, mas sim estreitamente ligado a elas, existindo apenas graças a elas, às outras formas do ser, porque estas últimas lhe estão tão estreitamente ligadas que se integram a ele enquanto momentos determinados de sua natureza interna. Sendo um aspecto interno do "ser-aqui" ou de "alguma coisa", a negação do ser-outro (ou "ser-para-um-outro"), encontrando-se em interação com a realidade, com o ser-em-si, 22
determina seu limite que, por sua vez, não lhe é exterior (ao "alguma coisa"), mas "penetra todo ser-aqui" . "Alguma coisa", segundo Hegel, modificando-se, transforma-se em "outra coisa", mas esta outra é em si mesma uma certa "alguma coisa". É por isso que, modificando-se por sua vez, esta outra coisa transforma-se mais cedo ou mais tarde em uma outra alguma coisa, e esta última, por sua vez, em outra alguma coisa etc., até o infinito . É assim que surge a categoria do infinito. Apresentando a categoria do infinito enquanto progresso, Hegel não pára aí. E ainda mais, ele não considera o conceito do infinito verdadeiro, porque, como ele mesmo declara: "aqui nós não temos nada mais do que uma mudança superficial que não sai jamais do domínio do finito"®. o verdadeiro infinito, segundo Hegel, não é um movimento eterno e uniforme indo de alguma coisa para outra sempre nova, mas um movimento graças ao qual alguma coisa original, no decorrer do processo da passagem de uma para a outra, não se perde, não desaparece na série infinita de outras coisas, mas, pelo contrário, volta para si mesma, "em sua outra, regressa para si mesma'" . Em outros termos, se, no momento do exame dessa ou daquela coisa, nós fazemos a abstração daquilo a que ela está ligada, e se dessa relação ela se revela e se distingue como possuindo uma natureza específica, uma qualidade, transformase inevitavelmente em "um" que não se distingue de nada. O aparecimento e a explicação da categoria do um, em Hegel, corresponde plenamente ao processo real da formação do conceito. A história do conhecimento mostra que o "um", enquanto categoria, foi elaborado e utilizado para designar o que foi reconhecido como o único existente, não se distinguindo de nada e incluindo, em si mesmo, tudo (a agua de Thales, o ar de Anaxímenes, o fogo de Heráclito, o "um" dos Eleatas etc.). Mas o um, uma vez aparecido, não permanece, segundo Hegel, em repouso, ele relaciona-se imediatamente consigo mesmo e diferencia-se de si mesmo. Esta relação do um con4
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"Hegel, Hegel, «Hegel, 'Hegel,
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Werke Werke Werke Werke
cit., cit., cit., cit.,
p. p. p. p.
182. 184. 185. 184.
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sigo mesmo nada mais é do que a repulsa de si por si mesmo. Em conseqüência de tal repulsa aparece o múltiplo. Assim, Hegel deduz a categoria do múltiplo da categoria do um. No processo de repulsão do um com relação a ele mesmo, e da posição de si mesmo como múltiplo, o um intervém não apenas como "repelente" e os múltiplos não apenas como "repelidos", "cada um dos múltiplos, diz Hegel, é ele próprio um" , e como tal repele igualmente o outro. Mas essa repulsa universal transforma-se necessariamente em seu contrário, em atração universal e, no lugar de uma repulsa unilateral, nós observamos a unidade da repulsa e da atração. A despeito do caráter artificial da dedução da repulsa e da atração, Hegel captou de maneira genial a lei da correlação desses processos e, em particular, suas passagens de umas para as outras e de sua unidade. Efetivamente, no processo do conhecimento desse ou daquele grupo de fenômenos, o sujeito conhecedor, analisando os fenômenos um depois do outro, age como se ele se afastasse de um obieto (do um) para dirigir-se a outros (como se se dirigisse para os múltiplos), mas, ao mesmo tempo, evidenciando os aspectos e características gerais dos objetos estudados, unindo-os em um conceito geral, ele 2iga-os em um todo, evidenciando e conservando sua unidade (como se ele os obrigasse a unirem-se novamente um ao outro). Hegel termina seu estudo da categoria da qualidade pela análise das categorias do um e do múltiplo e passa ao estudo da categoria da quantidade. A passagem da qualidade para a quantidade, a despeito de seu caráter artificial, reflete e exprime, em Hegel, em traços gerais, o processo real do desenvolvimento do conhecimento. No decorrer da assimilação, pelo homem, da realidade objetiva, tanto na prática como no conhecimento, dever-se-ia efetuar necessariamente, como já o dissemos acima, a passagem de um objeto pelos outros, e, no momento da evidenciação da identidade desses (múltiplos) objetos, a determinação qualitativa de cada um deles (pelo menos no plano de um grupo comparado e comparável) daria a impressão de ter sido anulada em cada um dos outros (e ela permaneceria a mesma, indistinta). Ao mesmo tempo, a base real se criaria, primeiro, pela evidenciação das diferenças quantitativas de 8
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Hegel, Werke cit., p. 192.
objetos de uma mesma ordem, sob um ponto de vista qualitativo, e, depois, por sua quantidade. Em sua análise da categoria da quantidade, Hegel, sempre fiel à dialética, prende-se primeiramente aos momentos contrários que existem na quantidade e a representa como a unidade dos contrários, e mais precisamente como a unidade da continuidade e da descontinuidade. . A essência contraditória da quantidade, segundo Hegel, é o desenvolvimento ulterior da essência contraditória da qualidade. Como já vimos acima, Hegel caracteriza a qualidade pelo fato de que ela encerra os momentos contraditórios do um e do múltiplo, condicionados pelos processos de repulsa e de atração próprios à qualidade. Com a passagem evolutiva da qualidade para a quantidade, em decorrência desses dois processos diretamente contrários (repulsão e atração), a unidade transforma-se em continuidade e a multiplicidade em descontinuidade. A categoria de quantidade, assim como as categorias precedentes, é apresentada por Hegel não sob uma forma fixa, mas em movimento. Surgindo a um certo estágio do desenvolvimento da categoria de qualidade, ela própria transpõe vários estágios de evolução. No particular, ela manifesta-se primeiramente sob a forma de quantidade abstrata, pura, de quantidade como tal. Depois ela transforma-se em uma dada quantidade. Transpondo, no decorrer de seu desenvolvimento, os estágios de quantidade pura e determinada, a quantidade em seu estágio supremo transforma-se, segundo Hegel, em qualidade, isto é, age como se ela retornasse a seu ponto de partida, repete a etapa já transposta, mas repete-a sobre uma outra base. A qualidade à qual retorna a quantidade, no estágio supremo de seu desenvolvimento, já não é mais indiferente frente a frente com a qualidade, não se manifesta mais como alguma coisa de independente em relação a ela, mas sim como alguma coisa que lhe é organicamente ligada. Com a colocação em evidência da correlação e da interdependência da qualidade e da quantidade, surge uma nova categoria — a categoria de medida que inclui sob uma forma anulada a quantidade e a qualidade . O desenvolvimento ulterior da quantidade e da qualidade, assim como sua passagem de uma para a outra, no decorrer do 9
"Hegel, Wissenschaft cit., in Sümtlicha Werke, p. 409-10
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processo desse desenvolvimento, conduzem necessariamente, em Hegel, à colocação em evidência e, ao mesmo tempo, ao aparecimento de uma nova categoria, a categoria da essência. "Apenas com a migração de uma qualidade para a outra, apenas com a passagem da qualidade para a quantidade e vice-versa, declara Hegel, nós não chegamos ao fim; há ainda nas coisas uma permanência e essa é primeiramente a essência"* . A passagem à essência marca o fim da primeira e o começo da segunda etapa do desenvolvimento da idéia hegeliana. Até aqui o desenvolvimento realizava-se completamente apenas no plano do ser; as categorias de quantidade, de qualidade e de medida eram momentos do ser, graus de seu desenvolvimento. Com o aparecimento da essência, o ser como tal se apaga, ele parece retornar para dentro de si mesmo, transformar-se em um momento da essência, em sua aparência. A essência relaciona-se antes de mais nada com ela mesma, e Hegel indica que "ela se identifica com ela mesma"* -. Então, aparece a categoria de identidade. Na análise da categoria de identidade, Hegel destaca particularmente a noção de identidade como igualdade formal, desprovida de toda diferenciação, abstraída dela própria, e a critica ao mesmo tempo em que acentua a insuficiência da lei de identidade da lógica formal. À identidade formal, Hegel opõe a verdadeira identidade que não apenas não é desprovida de diferenças, mas ainda as encerra nela mesma. E efetivamente, em Hegel, a identidade surgiu em decorrência da relação da essência com ela mesma. A essência aparece em decorrência da anulação e da negação do ser e de suas determinações que, como conseqüência, não desapareceram, mas conservaram-se, transferidos para a essência e continuando a existir nela sob uma forma anulada constituindo seu ser-outro e ao mesmo tempo sua diferença em relação a ela mesma. "Aqui — escreve Hegel — o ser-outro — do qual nós vimos a essência — não é mais um ser-outro qualitativo, uma determinação, um limite, mas.. . uma diferença, um formulado, uma mediação que se encontra na essência" . Entretanto, sendo identidade, a essência "comporta essencial0
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Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 225. »Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 229. Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 233. 10
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mente em si a determinação da diferença" . A diferença transformou-se em seu contrário. A tese de Hegel, segundo a qual toda identidade está necessariamente ligada à diferença, supõe a diferença e que a diferença supõe a identidade, corresponde ao estado real das coisas. Na realidade objetiva não há identidade abstrata, pura, nem diferença abstrata e pura. Toda identidade é a identidade do diferente, assim como toda diferença é a diferença do idêntico. A idéia, segundo a qual, no processo do movimento, a identidade transforma-se em diferença e a diferença em seu contrário, e segundo a qual a contradição manifesta-se não sob uma forma acabada, mas se desenvolve a partir da diferença que aparece primeiramente como exterior, não essencial, depois transforma-se em essencial e em seguida em seu contrário, é igualmente justa. Entretanto, o aparecimento das categorias de identidade e de diferença no estágio do movimento do conhecimento, indo da medida à essência, e sua representação como momentos ou graus precisamente dessa etapa do desenvolvimento do saber contradizem a história do conhecimento. Essas categorias manifestam-se muito antes e, mais exatamente, desde os primeiros estágios do conhecimento da natureza pelo homem, no estágio de seu movimento, indo de um ser-aqui ao outro, no estágio da evidenciação de "alguma coisa". No processo do movimento do pensamento de um ser-aqui ao outro, há necessariamente comparação e ao mesmo tempo evidenciação da identidade e da diferença. O aparecimento das primeiras representações e conceitos gerais é o resultado da tomada de consciência, pelos homens, da identidade do diferente que se manifesta na prática. A distinção dos aspectos quantitativos, das características e, logo, a formação do conceito de quantidade só podem produzirse a partir da descoberta da diferença do idêntico, de um e do semelhante no múltiplo, isto é, sobre a base de uma certa tomada de consciência da identidade e da diferença. As categorias de identidade e de diferença são consideradas por Hegel, aqui, e não anteriormente (não na seção da qualidade e da quantidade onde seu exame impõe-se e onde elas aparecem sob uma forma ou outra), sem dúvida, porque elas tornam 13
"Hegel, Werke cit., p. 232.
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particularmente fácil a passagem aos contrários e depois à contradição. Analisando a contradição, Hegel mostra que ela é geral, que entra no conteúdo de cada coisa, de cada ser. "Tudo o que existe, escreve Hegel, é alguma coisa de concreto e, logo, alguma coisa de diferente e oposta em si. O caráter finito das coisas, continua Hegel, consiste em que seu ser imediato não corresponde a sua essência"!*, por isso, elas esforçam-se sempre para resolver esta contradição e realizar o que elas têm nelas mesmas e, em decorrência, elas modificam-se constantemente. A modificação das coisas é, pois, a conseqüência de seu caráter contraditório. Em outros termos, a contradição é a fonte do movimento e da vitalidade; ". . .é apenas na medida em que alguma coisa comporta em si uma contradição que ela se move; que ela possui um impulso, uma atividade"!5. Opondo-se aos autores que consideravam que não se pode pensar a contradição, Hegel exclama: "É a contradição que, na realidade, põe o mundo em movimento, logo, é ridículo dizer que é impossível pensar a contradição"! . O pensamento de Hegel, segundo o qual tudo o que existe encerra em si uma contradição e de que a contradição é a origem do movimento, o impulso da vida, é na realidade um pensamento genial, que entrou na história da ciência para tornar-se o centro da dialética. Na nossa opinião, Hegel também conseguiu determinar corretamente o lugar das categorias de "contrário" e de "contradição". Os aspectos e os laços que elas refletem só são efetivamente assimilados no estágio do movimento do conhecimento, dirigido para a essência, quando aparece a necessidade de apresentar o objeto em seu movimento, em seu aparecimento e em seu desenvolvimnto, quando, a propósito disso, surge a questão da origem do movimento, da força motora que condiciona seu vir-a-ser, sua vitalidade e a passagem de um estágio de desenvolvimento para outro. Nascida da diferença, a contradição, segundo Hegel, não é eterna; a um determinado estágio de seu desenvolvimento ela 6
Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werkt, p. 242. Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 562. »Hegel, Werke cit,, p. 242.
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se resolve e se transforma ou, segundo os próprios termos de Hegel, mergulha até a sua base (fundamento). "A contradição resolvida é, em conseqüência, o fundamento" . "É por isso que no fundamento, escreve Hegel, o contrário e sua contradição são igulamente destruídos ou conservados" . Eles são destruídos enquanto existentes de forma autônoma e são conservados enquanto momentos de identidade e de diferença, característica do fundamento" . A passagem da contradição para seu fundamento, como a apresenta Hegel, a despeito de seu caráter artificial, encerra muitos elementos racionais. Hegel exprimiu aqui certas leis reais da correlação dos aspectos refletidos pelas categorias que examinamos. A resolução da contradição própria a essa ou àquela formação material conduz necessariamente a sua transformação e, em certas circunstâncias, ao aparecimento de uma nova formação material. O aparecimento do novo é, portanto, a conseqüência da resolução de uma contradição e a resolução da contradição é a base que trouxe à vida essa conseqüência. O fundamento foi representado inicialmente por Hegel sob a forma de fundamento absoluto, que em seguida se determina como forma e matéria. A forma, segundo Hegel, está organicamente ligada à essência. Ela encerra a essência da mesma forma que a essência encerra em sua natureza a forma. Embora sendo no fundo idêntica à forma, a essência distingue-se e manifesta-se, com relação à forma, como alguma outra coisa, como um indeterminado, como uma "identidade informe". Sob esse aspecto, a essência, segundo Hegel, é a matéria. Para Hegel, a matéria apresenta-se como alguma coisa passiva, enquanto que a forma é ativa. Pelo fato de que a forma tem uma contradição própria, ela afasta-se de si mesma e determina-se na matéria. A matéria, por sua natureza, é algo que só pode relacionar-se consigo mesmo e por isso ela é indiferente a qualquer coisa além dela. Mas, ao mesmo tempo, ela encerra, sob um aspecto velado, a forma, e esta inclui nela 17
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"Hegel, Werke cit,, p. 242. "Hegel, Werke cit., p. 242. "Hegel, Werke cit,, p, 242.
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mesma o princípio da matéria . Tudo isso faz com que a matéria ganhe, então, forma e a forma tem de se materializar . A matéria transformada em forma representa a categoria do conteúdo. O conteúdo, segundo Hegel, possui primeiramente uma certa forma e uma certa matéria e é de fato sua unidade . O conteúdo é o que é idêntico ao mesmo tempo à forma e à matéria. Essas últimas são, de certa forma, suas determinantes exteriores. Mas esta identidade é a identidade do fundamento que, desta maneira, adquire um conteúdo e uma forma e converte-se em um fundamento determinado. O fundamento determinado relaciona-se negativamente com ele mesmo e transforma-se em um estabelecido. E é apenas no decorrer de seu estabelecimento que ele torna-se o fundamento de um ser estabelecido. A idéia de Hegel concernente à correlação orgânica, ao estabelecer mútuo, às passagens recíprocas do fundamento e do estabelecido é verdadeira. Ela reflete a dialética real do fundamento e do estabelecido que observamos no mundo exterior e no conhecimento. Na realidade, um aspecto dado de uma formação material torna-se um fundamento unicamente na medida em que ele começa a influir de maneira sensível sobre seus outros aspectos, a determinar a orientação de suas transformações e a condicionar, dessa maneira, a formação de uma nova qualidade. Além disso, um aspecto dado torna-se determinado ou condicionado unicamente na medida em que sua existência, seu funcionamento e sua transformação comecem a depender de um outro aspecto ou relação que se revelem nas condições dadas determinantes, isto é, o fundamento. E, ainda mais, o que, em certas condições, em certo estágio do desenvolvimento da formação material torna-se determinante, em outras condições, em outros estágios do desenvolvimento da formação material torna-se determinado, isto é, estabelecido, e o determinado torna-se um fundamento determinante do funcionamento e da orientação das transformações de todos os outros aspectos do todo dado. 20
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°Cf. Hegel, Werke cit., p. 258. Ver Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 562. Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 566.
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Uma lei análoga é observada no conhecimento. Uma suposição dada torna-se fundamento apenas quando outras suposições forem deduzidas dela e desde que outras suposições sejam assim fundamentadas. E estas últimas serão fundamentadas unicamente graças a seu laço com o fundamento. Sendo fundamentadas, elas podem servir de fundamento para outras idéias, outras suposições e, em certas condições, fundamentar seu próprio fundamento. Tendo sido determinado por meio do estabelecimento de si mesmo e do fundamentado, o fundamento, segundo Hegel, não permanece em repouso, imutável, mas continua a se transformar e a se desenvolver. Ele começa como fundamento formal, depois torna-se fundamento real e, finalmente, transforma-se em fundamento completo. Hegel passa da categoria de fundamento para a categoria de condição. O laço da condição e do fundamento não se esgota, em Hegel, pelo fato de que a condição é a premissa do fundamento, a mediadora; a condição depende, ela própria, do fundamento e ela mesma é determinada por ele. E, efetivamente, o fato de que um ser dado seja ou não condição de um fundamento dado depende da natureza desse fundamento que, por seu funcionamento, exige condições rigorosamente determinadas. Supondo-se mutuamente e passando de um para o outro, por meio deles mesmos, a condição e o fundamento formam um todo, uma certa unidade de conteúdo e de forma e manifestam-se como um incondicionado "verdadeiro", como "uma coisa pensada a partir dela mesma" . Dessa forma, para Hegel, a coisa pensada representa a unidade ou a identidade do fundamento com a sua condição. Hegel escreve que: "Quando todas as condições de uma coisa pensável estão reunidas, ela entra na existência"24. A dialética da correlação do fundamento e da condição é apresentada aqui por Hegel de maneira bastante completa e em sua essência justa. O fundamento não pode efetivamente dar nascimento a esse ou àquele ser imediato, a não ser em condições rigorosamente determinadas que, sendo o ser-aqui, 23
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Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 590. Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 594.
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não estejam ligadas imediatamente com o fundamento dado, não dependam dele no seu aparecimento e na sua existência, mas, pelo contrário, possuam seu próprio fundamento em um outro. Sendo autônomo e independente, com relação a um fundamento dado, o ser-aqui é a condição do fundamento, mas não está menos ligado a ele (ao fundamento). O fato de que seja a condição do fundamento dado depende não apenas dele mesmo, mas igualmente do fundamento, de sua natureza, e é precisamente o fundamento que dita suas condições, determina qual ser-aqui é necessário para sua realização. A idéia de Hegel de que a condição, ainda que necessária para a realização do fundamento, não é a força motora que obriga o fundamento a dar nascimento ao fundamentado, que esta força motora está contida no próprio fundamento e que este se desenvolve sob a pressão de contradições internas que lhe são próprias, nos parece justa. Igualmente justa é a tese de Hegel segundo a qual as condições não permanecem indiferentes ao processo do estabelecimento do fundamento, mas, pelo contrário, são atraídas por esse processo, contribuem para a formação do fundamentado e, em uma determinada medida, transformam-se neste último, tornando-se um momento de seu conteúdo. No que concerne às afirmações de Hegel, de que o conteúdo do fundamento com suas condições conduz primeiro ao aparecimento da coisa pensada e depois ao aparecimento de sua existência, essas idéias não correspondem à realidade; isso é apenas uma conseqüência do idealismo de Hegel, em cujo quadro ele era obrigado a construir seu sistema de categorias. Da categoria de coisa, Hegel passa ao fenômeno que se apresenta como a existência da coisa anulando a si própria do interior dela mesma . Por meio do fenômeno, a essência reflete-se na outra e relaciona-se com ele de maneira determinada. A existência de um fenômeno não é assim nada além de outra relação. Hegel considera esta última como a verdade de toda a existência, como o modo geral de manifestação das coisas . A unidade da essência e da existência constitui em Hegel 25
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Hegel, Werke cit., p. 260. Hegel, Werke cit., p. 260.
a realidade . A realidade manifesta-se primeiro sob a forma de possibilidade que representa o que é essencial para a realidade, mas que ainda é abstrata e que se opõe à unidade concreta do real . Sendo abstrata, a possibilidade aparece como contingente em uma realidade concreta dada. Hegel considera como contingente o que "tem o fundamento de seu ser não em si mesmo, mas em um outro" . A unidade da possibilidade e da realidade constitui a necessidade. Considerada do interior, a necessidade manifesta-se como uma relação absoluta em si; sob sua forma imediata há a relação de substancialidade e de acidentalidadeSO, a qual, em decorrência, manifesta-se como relação causal desenvolvendo-se em interação . À base da interação encontra-se o conceito que constitui a verdade do ser e da essência. Por meio desses esquemas artificiais da correlação das categorias de essência e de fenômeno, de possibilidade, de realidade, de necessidade e de causalidade transparece, em Hegel, a dialética real, e, sob uma forma mistificada, exprime-se uma série de teses importantes que constituem um passo considerável no conhecimento das leis de relacionamento das formas gerais do ser, refletidas nas categorias em questão. É verdade que a ordem — aqui apresentada por Hegel — do movimento do pensamento de uma categoria a outra não reflete, na nossa opinião, o processo real do conhecimento humano. No conhecimento, o homem não vai do possível ao real, como diz Hegel, mas, pelo contrário, ele vai da realidade para a possibilidade, e não vai da necessidade à causalidade e à interação, mas sim da interação (correlação) à causalidade e à necessidade. Analisemos o movimento ulterior das categorias na lógica de Hegel. Segundo Hegel, com a passagem ao conceito, o pensamento sai da essência. Esta última é negada pelo conceito, o qual, em conseqüência, parece voltar sobre o ser e repetir o que já se passou sobre uma nova base. O ser e a essência 27
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Hegel, Hegel, Hegel, Hegel, Hegel,
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Werke Werke Werke Werke Werke
cit., cit., cit., cit., cit.,
p. p. p. p. p.
281. 284. 288. 299-300. 307.
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entram, sob uma forma anulada, no conteúdo do conceito e nele constituem todos os momentos necessários. O conceito é, portanto, a "verdade do ser e da e s s ê n c i a " 3 2 . Ou, então, em outros termos, ele é a "essência que volta sobre o ser como sobre uma simples imediação"33. O conceito, segundo Hegel, encerra três momentos: a universalidade, a particularidade e a singularidade . No conceito, esses momentos encontram-se em estado de interdependência e de correlações orgânicas. Eles perdem-se um no outro, dissolvem-se um no outro e manifestam-se como momentos confundidos do conceito. Hegel considera que no conceito é impossível reter todos esses momentos, um fora do outro, sob uma forma isolada. No decorrer do movimento ulterior do pensamento, diz Hegel, o conceito atinge a objetividade, prosseguindo assim o desenvolvimento de seus novos aspectos e fazendo-se sempre de modo mais concreto. Hegel recorreu às construções mais complexas e mais fantasiosas. Entretanto, o que torna válidas todas essas manobras astuciosas é que elas refletem algumas relações reais (captadas ou adivinhadas) entre as coisas ou no interior das coisas que, em virtude de sua repetição ocorrida alguns milhares de vezes, foram fixadas na consciência humana sob a forma de figuras lógicas determinadas. Da objetividade, Hegel passa à idéia. A idéia é a unidade do subjetivo e do objetivo, do conceito e da realidade. A categoria de idéia é uma categoria mais concreta do que as categorias precedentes; ela as inclui sob uma forma anulada e, todas juntas, elas apresentam-se como o vir-a-ser da idéia. "Os graus do ser e da essência objetiva examinados até o presente, assim como os graus do conceito e da objetividade, escreve Hegel, não são, nessa diferença que lhes é própria, alguma coisa imóvel, existindo de forma autônoma. Não, eles mostraram-se como dialéticos e sua verdade consiste em ser momentos da idéia . 34
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Hegel, Hegel, Hegel, Hegel,
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Werke Werke Werke Werke
cit., cit., cit., cit.,
p. p. p. p.
311. 312. 320. 387-8
Segundo Hegel, no decorrer de seu desenvolvimento, a idéia transpõe três graus. Ela manifesta-se primeiramente sob forma de vida, depois sob forma de conhecimento e, finalmente, sob forma de idéia absoluta. Transformando a realidade objetiva, o conceito realiza-se nela e a torna idêntica a ele mesmo. É dessa maneira que se completa a passagem à idéia absoluta. Essa categoria é a mais concreta de todas as que já examinamos até agora. Seu conteúdo é formado por todo o sistema do qual, em traços gerais, acompanhamos o desenvolvimento. "Pode-se dizer, escreve Hegel, que a idéia absoluta é o universal, mas não apenas enquanto forma abstrata à qual todo conteúdo particular opõese como alguma outra coisa, e sim enquanto forma absoluta à qual todas as determinações, toda a plenitude do conteúdo estabelecido por elas estão voltadas"36. É pela idéia absoluta que termina o processo do desenvolvimento lógico. Impregnada de toda a diversidade do conteúdo do movimento dialético das categorias, a idéia absoluta, a partir da forma ideal, transforma-se em seu contrário, "aliena-se", toma corpo e manifesta-se na qualidade de natureza, onde, sem ter consciência dela mesma, sofre um certo desenvolvimento e, depois de ter rejeitado a forma de ser físico que a tornou estranha, ela volta a seu elemento espiritual adequado e, no decorrer do processo de seu desenvolvimento ulterior, volta-se sobre ela mesma. Como podemos ver, Hegel, ao contrário de Aristóteles e de Kant, estabeleceu as categorias sobre uma base histórica e as apresentou em movimento e em desenvolvimento, em seu aparecimento e em sua formação. Entretanto, ele realizou tudo isso no plano da idéia pura, do pensamento puro, o que faz com que as categorias manifestem-se em sua obra não como graus do desenvolvimento do processo do conhecimento, pelo homem, do mundo exterior, mas como graus do desenvolvimento do pensamento puro e da idéia, em sua existência anterior à natureza. É por isso, se não foi por acaso, que, a despeito de seu gênio e de sua aptidão para prever a situação real das coisas, Hegel foi obrigado, para seguir os seus princípios idealistas e aplicá-los, a contradizer a todo instante a realidade e 36
Hegel, Werke cit., p. 409.
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dela afastar-se. Mas, apesar disso, Hegel conseguiu em seu sistema incrivelmente artificial e contraditório das categorias, reproduzir uma série de ligações e de leis profundas e universais. Depois de Hegel, numerosos filósofos burgueses tentaram criar sistemas de categorias, mas as soluções que eles propuseram não acrescentavam nada ao estudo do problema e constituíam um passo para trás em relação a Hegel. Examinemos algumas dessas teorias relativas à correlação dessas categorias. Wilhelm Windelband37, filósofo alemão, apresenta um sistema de categorias que é o seguinte: ele considera as categorias como funções sintéticas elementares do pensamento. Sendo diferentes tipos de síntese, elas são, segundo ele, diferentes formas de ligação ou de relação e existem sob o aspecto de noções e julgamentos correspondentes. Windelband divide primeiramente todas as categorias em dois grupos. Em um ele inclui as categorias que têm um "valor objetivo", que existem fora e independentemente do pensamento e que só por este último podem ser constatadas. No outro ele inclui as categorias que existem no pensamento e têm por isso mesmo apenas "um valor representativo". As categorias do primeiro grupo são chamadas de constitutivas e as do segundo, reflexivas. As categorias constitutivas, por sua vez, subdividem-se em categorias principais e categorias secundárias. Entre as categorias reflexivas, Windelband considera que a "diferença" é uma categoria determinante. Ele destaca que, sem a diferença, não se pode pensar nenhuma relação, nenhum sistema, e, portanto, nenhuma categoria, pelo fato de que essas categorias não representam nada mais do que diferentes formas de relação ou de síntese. A categoria de "diferença" está, segundo ele, ligada à representação. Sua função é o desmembramento da diversidade dada na representação, em elementos correspondentes, e sua síntese em novas associações que marcam a passagem da representação ao conceito. A diferença, no decorrer de seu desenvolvimento, transforma-se em "identidade", que Windelband define como um caso particular (limite) da diferença. A função da categoria de "identidade" é a comparação, a confrontação mútua dos diferentes elementos e o estabelecimento da identidade no seu 37
36
W. Windelband, Vom System der Kategorien, Tübingen, 1924.
conteúdo. As categorias de identidade e de diferença, segundo Windelband, estão indissoluvelmente ligadas e não podem funcionar uma sem a outra. "A comparação, ele sublinha, é impossível sem a diferença e, reciprocamente, a diferença é impossível sem a comparação" . A categoria de "identidade", em Windelband, nas condições correspondentes (quando o "grau do idêntico é relativamente pouco importante em relação ao diferente"), transformase em categoria de "conformidade". A categoria de "diferença" transforma-se em categoria de cálculo (quantidade), que representa a soma do diferente sobre a base de uma identidade dada. A categoria de cálculo, ocupando a função de medida, desenvolve-se em categorias de "graus", de "medida" e de "grandeza". Sobre a base da categoria de "diferença" e de "identidade", aparece toda uma série de categorias ditas lógicas. Trata-se antes de tudo da "abstração" da "determinação", da "subordinação", da "coordenação", da "divisão" e da "separação", que constituem o primeiro grupo; depois vêm as categorias da silogística, às quais Windelband relaciona as diferentes formas da dependência lógica. Ao número das principais categorias constitutivas, Windelband acrescenta as categorias de "realidade" e de "causalidade". Segundo elej elas são formas essenciais pelas quais deve ser pensada "a dependência recíproca real dos conteúdos" . Windelband deduz igualmente essas categorias, da função sintética do pensamento, de nossa faculdade de pensar um certo conteúdo como uma coisa ou como um processo necessário. Às categorias constitutivas secundárias, submissas à categoria de "realidade", Windelband acrescenta: a "propriedade inalienável", a "qualidade", o "atributo", o "modo", o "estado", a "substância", a "coisa em si"; às categorias secundárias, submissas à categoria de "causalidade", ele acrescenta: o "desaparecimento", o "aparecimento", o "desenvolvimento", a "ação", a "força", a "possibilidade", a "dependência teleológica", a "lei". No pensamento real, as categorias constitutivas e reflexivas, segundo ele, agem juntas. Isso se deve ao fato de que elas 38
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E. Lysinski, Die Kategoriensysteme der Philosophie der Gegenwart, Weida, 1913, p. 21. E. Lysinski, Die Kategoriensysteme cit., p. 23. 38
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provêm de uma mesma fonte — a atividade sintética do pensamento. Pode-se facilmente perceber que os princípios que guiaram Windelband na elaboração de seu sistema de categorias são bastante próximos dos de Kant, embora, no conjunto, seu sistema não seja semelhante ao sistema kantiano de categorias. Assim, como Kant, é da consciência, de certas funções da atividade do pensamento que ele deduz as categorias. E também como em Kant, elas são formas a priori determinadas e puras da consciência, por meio das quais o homem toma consciência e ordena o conteúdo daquilo que é percebido no processo de conhecimento do ser. A atividade sintética do pensamento, a partir da qual Windelband deduz as categorias e as suas relações, não é uma categoria primária e determinante, mas representa o reflexo dos processos sintéticos que se desenvolvem na realidade objetiva e na atividade prática, reproduzindo esses processos em condições especiais, criadas artificialmente pelo homem. Mas, sendo assim, ela não pode servir de ponto de partida para a elaboração de um sistema de categorias, para a dedução de certas categorias de outras categorias. Parece que é preciso procurá-la nos fatores objetivos, que condicionam o desenvolvimento do conhecimento humano e a formação das categorias correspondentes, para exprimir os aspectos e as conexões refletidas da realidade. O sistema de Günther é um exemplo da teoria subjetivista de categorias. Günther critica, a partir de uma posição idealista, as análises aristotélicas e kantianas do problema das categorias, que ele não considera satisfatórias. Em particular, ele não fica satisfeito com o fato de que Kant proíba a aplicação das categorias à "coisa em si" e a dedução desta última da consciência. Günther tem por objetivo "reduzir a forma cristalina de cada categoria a seu estado primeiro, maleável e informe... e compreender o 'corpo morto' das categorias, dadas a priori por Kant, a partir da vida empírica do espírito" . As categorias, segundo Günther, representam a forma dos pensamentos nos quais o espírito, no curso de sua autoconsciência, exprime-se a si mesmo e exprime sua própria vida. 40
M. Klein, Die Genesis der Kategorien in Processe des Selbstbewusst Werdens, Breslau, 1881, p. 9-10. 40
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Na qualidade de categoria determinante, que é a "mãe de todas as outras categorias", Günther apresenta a categoria de "relação", a qual, para ele, se revela idêntica ao pensamento. O pensamento, ou a relação (o que é a mesma coisa), segundo Günther, encerra em si mesmo dois momentos contrários ligados necessariamente entre si: o fenômeno e o número; um constituindo a categoria de "acidente" e o outro a categoria de "substância". Por intermédio da categoria de substância, a idéia de relação manifesta-se com idéia de substancialidade. Sendo único, o pensamento tem por correlato necessário o momento de dualidade. Graças à interação do um e do duplo, no processo da atividade do pensamento, são obtidas as seguintes categorias: o "único" e o "múltiplo", o "único" e o "universal". Relacionando-se com os contrários que se encontram em si mesmos como o "único" e o "múltiplo", o EU pensante estabelece a relação do todo e da parte. Analisando o "único" e o "múltiplo", do ponto de vista da unidade numérica que se encontra neles, o EU pensante estabelece relações quantitativas e, ao mesmo tempo, a categoria de "quantidade". A categoria de qualidade é estabelecida a partir da análise do ponto de vista de sua diferença. As categorias de qualidade e de quantidade manifestam-se como momentos da autoconservação e da auto-afirmação da substância e de sua objetivação. Encontrando-se em estado de repouso, o EU pensante é a relação da substância com os acidentes, a relação de si mesmo com seus diferentes estados, que mudam constantemente, passando de um para outro. Nesse caso, segundo Günther, o espírito pensante não está inerte, ele está vivo, é um princípio ativo que engendra os acidentes na qualidade de fenômenos determinados. É por isso que a relação da substância com os acidentes deve ser considerada como a relação da causa e da ação. Para Günther, as idéias de possibilidade, de realidade e de necessidade, que são os momentos do pensamento causal, estão, ligadas à idéia de causalidade. Dessa maneira, Günther, passo a passo, reproduz todas as categorias apresentando-as sob a forma de momentos da consciência que se desenvolve sobre sua própria base, de momentos do espírito pensante, sob as formas de objetivação e de autoafirmação deste último. 39
Opondo-se a Kant, Günther não encontrou nada melhor do que retomar certas idéias hegelianas do desenvolvimento das categorias. É verdade que, ao contrário de Hegel, que em seu sistema de categorias conseguira reproduzir a grande quantidade de leis reais da correlação das categorias, o sistema das categorias de Günther não reflete em nenhum lugar a situação exata das coisas, e esse sistema revela ser, além disso, o fruto da criação do seu autor, livre de qualquer objetividade paralisando o pensamento. Charles Renouvier, filósofo francês do século XIX, desenvolve um ponto de vista próximo ao de Günther, no que concerne à correlação das categorias. Para ele, as categorias são igualmente funções do processo psicológico, notadamente do pensamento e da percepção sensível. Em seu conjunto, segundo Renouvier, elas constituem a consciência, da qual são as leis, assim como os fenômenos, que Renouvier considera como o conteúdo das representações. Renouvier considera que a categoria de "relação" é a categoria primeira. Ela representa, em seu pensamento, a função mais simples da consciência, é uma lei universal, base de todas as outras categorias, que ele considera como diferentes formas de relações. Da massa geral das categorias, Renouvier distingue as categorias ligadas à relação de causa e efeito e denomina-as dinâmicas. Todas as outras categorias são reunidas por ele no grupo das categorias estatísticas. Às categorias estatísticas ele acrescenta as categorias de "qualidade" (relação qualitativa), exprimindo a relação de coordenação do gênero, da espécie e do indivíduo; de "quantidade", cuja função é a de designar uma maioria indeterminada e de negá-la, e essa categoria transforma-se em categoria de número quando a síntese de duas quantidades determinadas encontra-se realizada: de "duração", de "espaço" ou de "situação". A função dessas categorias, segundo Renouvier, encontra-se na expressão de uma duração indeterminada, na negação desta última e no estabelecimento de uma fronteira espacial sob forma de ponto, de linha, de superfície, de figura. Renouvier considera como categorias dinâmicas a categoria de "efeito", que exprime uma relação temporal; a categoria de "vir-a-ser" (aparecimento), que exprime a modificação no tempo; a categoria de "finalidade", que é concernente à relação do estado presente do ser vivo com seu estado futuro; a 40
categoria de "causalidade", que representa a síntese da ação e da força e a categoria de "individualidade", que é a síntese de todas as funções da consciência e portanto de todas as outras categorias. Todas as categorias consideradas, segundo a teoria de Renouvier, são aplicáveis apenas ao domínio dos fenômenos, que constituem o conteúdo das representações; esse domínio, segundo ele, representa a única realidade. O sistema de categorias de Renouvier é uma modernização original da teoria kantiana das categorias. Mas, a pior parte dessa teoria é, precisamente, a concepção subjetivista e idealista das categorias e de sua correlação que aí é incluída. A tendência materialista própria da filosofia crítica é, aqui, completamente rejeitada. Tudo o que existe realmente reduz-se aqui a um conjunto de fenômenos que estão submetidos às relações das categorias representando as funções da consciência e as diferentes formas de sua atividade. Eduard von Hartmann^l dedicou um grande espaço à elaboração de um sistema de categorias. Assim como Renouvier, Hartmann também entende por categoria as funções sintéticas elementares da consciência. É verdade que Hartmann, à diferença de Renouvier, que acha que essas funções são conscientes, considera que elas são inconscientes, que são uma "determinação lógica inconsciente", que estabelece uma "certa relação" . E Hartmann construiu seu sistema de categorias mediante o desmembramento do conteúdo da consciência em partes determinadas, para disso deduzir as relações das categorias correspondentes. Segundo Hartmann, no ponto onde acaba a relação as categorias deixam de existir. Apoiando-se na categoria de relação, E. Hartmann esforçase por colocar em evidência o conteúdo de todas as outras categorias. Cada uma delas é apresentada sob a forma de uma relação. Embora E. Hartmann esforce-se para mostrar a aplicação da maior parte das categorias na esfera real objetiva do ser, ele deduz, contudo, seu conteúdo e sua correlação da esfera ideal subjetiva, do princípio espiritual que é, para ele, a função 42
41 42
E. Hartmann, Kategorienlehre, Leipzig, 1923, t. 1-3. 0 . Spann, Kategorienlehre, Jena, 1939, p. 45.
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fundamental, o atributo da substância, e existe nesta última sob a forma do lógico e da vontade. Idealista desde a raiz, a teoria filosófica de E. Hartmann não reproduz a correlação necessária que existe entre as categorias. Em seu sistema, as categorias são colocadas uma ao lado das outras segundo as funções desempenhadas pela percepção sensível e o pensamento. Ele procura evidenciar as leis que determinam a interdependência das categorias; as categorias classificam-se, segundo ele, em grupos de acordo com o princípio da lógica formal e não segundo o lugar que cada uma delas ocupa no desenvolvimento histórico do conhecimento e da prática, nem na relação das formas gerais do ser refletidas no processo desse desenvolvimento. O ponto de partida no sistema de categorias de Wilhelm Wundt é igualmente o conceito de relação. Wundt considera, assim como os outros filósofos que analisamos, as categorias como noções puramente a priori, que exprimem as relações do pensamento lógico. Wundt cita a "forma" e a "matéria" como as principais categorias, para a formação das quais se faz necessário, antes de tudo, o exame de todo objeto da experiência. Segundo ele, elas encontram-se no ponto mais alto dos conceitos puros de relação e são ainda a base da classificação de todas as outras . A categoria de matéria, analisada ao mesmo tempo que a forma, resulta, segundo Wundt, na categoria de conteúdo. A relação do conteúdo e da forma, faz aparecer as categorias de "real" e de "formal", de "real" e de "possível", que são as categorias paralelas do conteúdo e da forma. Em seguida, depois de dar sua relação das categorias de conteúdo e de forma, todas as outras categorias dividem-se em conceitos puros de forma e em conceitos puros de conteúdo e de realidade. Wundt considera como conceitos gerais de forma as categorias do um e do múltiplo; os conceitos obtidos pela seqüência da diferenciação do conceito de múltiplo são os conceitos especiais de forma: a qualidade e a quantidade como dois aspectos a partir dos quais podemos analisar todo múltiplo, o 43
43
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E. Lysinski, Die Kategoriensysteme cit., p. 75.
simples e o complexo, e segundo os quais desmembra-se a qualidade; o singular e o múltiplo que são obtidos em decorrência da diferenciação da categoria de quantidade. Aos conceitos gerais de realidade (de conteúdo), Wundt acrescenta as categorias de "ser" e de "vir-a-ser" que, transformando-se, tornam-se as categorias de "substância" e de "causalidade". Wundt considera a substância como a base do ser e a causalidade como a correlação do ser. Relacionando-se uma à outra, a substância diferencia-se nela mesma (substância no sentido próprio do termo) e em acidente, enquanto que a causalidade diferencia-se em causa e efeito. Esses dois pares de categorias reúnem-se em seguida para formar o conceito de força que se divide em força potencial (inclusive na substância) e em força atual (manifestando-se na ação); a causalidade divide-se em causalidade substancial e em causalidade atual que, em seu desenvolvimento ulterior, transformam-se em causa e fim. Segundo Wundt, a categoria de fim é aplicável não apenas aos atos conscientes do homem, mas igualmente aos processos da natureza; a relação de finalidade está contida no próprio fundamento do ser, na substância em si. O idealismo manifesta-se aqui de forma particularmente clara. O sistema de categorias proposto por Wundt, apesar d"e um certo rigor lógico e da reprodução de algumas relações de categorias que existem na realidade (quantidade-um-múltiplo; conteúdo-substância-acidente; substância-causalidade-causa-efeito), é artificial, reúne de forma arbitrária as categorias, que não encontram entre elas uma correlação e uma interdependência necessárias. Por exemplo, nem na realidade, nem na consciência, a forma desmembra-se em um e em múltiplo, as categorias de "um" e de "múltiplo" não aparecem sobre a base da categoria de forma, como as apresenta Wundt. As categorias de "qualidade" e de "quantidade" não se manifestam em decorrência da diferenciação da categoria de "múltiplo". O aparecimento das categorias de simples e de complexo não nos parece estar ligado à qualidade etc. Logo, o sistema de categorias de Wundt não reflete, no final das contas, as leis reais de relação das categorias. E isso é normal porque o autor coloca-se em posições idealistas e por essa razão não pode voltar-se para a esfera da realidade na qual encontram-se os fatores que condicionam o movimento do pensamento de uma 43
categoria a outra, fatores que determinam sua correlação e sua interdependência. Hermann C o h e n 4 4 , filósofo alemão do fim do século XIX e começo do século XX construiu um sistema de categorias um pouco diferente daquele de Wundt e dos outros sistemas que analisamos anteriormente. Em sua teoria das categorias, Cohen parte de Kant. Mas ele o corrige sensivelmente. Em particular, ele suprime todas as tendências materialistas da teoria kantiana e nega a existência da "coisa em si", independentemente da consciência. Segundo ele, tudo o que existe no mundo depende da consciência, do "pensamento puro". Cohen deduz do pensamento puro não apenas as formas a priori da percepção sensível e do entendimento, mas também a "coisa em si", que se transforma em princípio lógico do conhecimento. De acordo com isso, o "pensamento puro", que engendra não apenas os conceitos, mas também o próprio objeto do c o n h e c i m e n t o ^ , constitui o princípio primeiro das categorias e de suas relações. Cohen considera as categorias como elementos do pensamento puro, conceitos elementares a priori. Ao mesmo tempo, as categorias são para ele formas fundamentais do julgamento ®. É por isso que, construindo seu sistema, Cohen esforçou-se para deduzir as categorias a partir dos juízos correspondentes. Ele divide os juízos segundo^ as quatro formas abaixo: 1) Juízos das leis do pensamento, 2) Juízos da matemática, 3) Juízos da ciência da natureza matemática, 4) Juízos do método. Cohen acrescenta as categorias de "origem", de "continuidade", de "identidade" e de "contradição" aos julgamentos das leis dos pensamentos. As duas primeiras categorias, segundo ele, são convocadas a produzir os elementos do pensamento puro, a terceira, a conservar sua identidade e a quarta, a reforçar a identidade pela negação de tudo o que não é idêntico. Dos julgamentos da matemática, Cohen deduz as categorias de "cálculo", "tempo", "número", "espaço" e "todo". A categoria de cálculo cria, segundo ele, a realidade do objeto 4
H. Cohen, Logik der reinen Erkenntnis, Berlin, 1902. Lysinski, Die Kategoriensysteme cit.. p. 83. Lysinski, Die Kategoriensysteme cit.. p. 84.
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da matemática. As categorias de tempo e de número produzem o conteúdo desse objeto sob a forma de diferença numérica ou de maioria indeterminada. A categoria de "todo" é convocada para refletir a unidade ideal da multiplicidade infinita do singular. Aplicado às ciências do espírito, o juízo geral, assim como o juízo de maioria, manifesta-se sob a forma de categoria de "sociedade", e o juízo de realidade sob a forma de categoria do indivíduo que, segundo Cohen, cria a realidade da moralidade. Os juízos da ciência da natureza matemática condicionam as categorias de movimento, de repouso da substância, de inércia, de lei, de função, de causalidade, de energia, de conceito, de objeto, de sistema, de natureza, de fim, de sujeito e de ação moral, assim como certas categorias especiais da ciência da natureza matemática. Ao contrário das categorias precedentes, que são um meio metafísico de produção dos objetos do conhecimento em seu isolamento, as categorias aqui apresentadas por Cohen desempenham um papel de meio de produção dos objetos do conhecimento em sua correlação, e é por isso que ele as considera como categorias de relação. Os juízos do método supõem as categorias de possibilidade, de consciência, de hipótese, de medida, de realidade, de singular, de grande, de cronologia, de necessidade, de geral e de particular. A necessidade da categoria de possibilidade não é fundamentada por Cohen, já que, segundo ele, ela explica-se sozinha. A categoria de consciência, para Cohen, é a premissa de toda possibilidade e graças a ela realizam-se todas as determinações importantes. A categoria de hipótese está colocada à base de todas as formas de possibilidade e com a categoria de medida está o meio de produção de objetos novos. A categoria de grandeza é destinada, por Cohen, à produção, a partir do pensamento puro, da realidade do singular e manifesta-se sob a forma de espaço e de tempo. Nas. ciências do espírito, a grandeza exprime-se sob a forma de cronologia e constitui igualmente um meio de definição da realidade. As categorias de "geral" e de "particular" têm por função estabelecer a ligação entre os objetos isolados. Para Cohen, a dedução das categorias a partir das diferentes formas de juízos reduz-se à determinação das funções que elas desempenham no processo do pensamento puro que cria a realidade. O sistema obtido não tem nenhum valor 45
científico, porque não reflete a correlação e a interdependência necessárias reais entre as categorias, mas apenas representa a aliança arbitrária de conceitos existindo no conhecimento social. No sistema de Cohen, as categorias são mais freqüentemente fixas e descritas do que deduzidas uma da outra, e é por isso que, se não for por acaso, nesse sistema, elas não se relacionam umas com as outras, mas simplesmente existem, umas ao lado das outras. Pelo fato de que o seu princípio de partida é idealista, Cohen concentra sua atenção não sobre a colocação em evidência das leis da correlação das categorias, mas sobre o estabelecimento de seu papel imaginário na produção do ser real a partir do pensamento puro. Paul Natorp desenvolveu o ponto de vista de Cohen sobre a correlação das categorias. Assim como Cohen, também Natorp esforça-se por criar seu sistema de categorias a partir da análise do ato do pensamento elementar que, para ele, é constituído pelo juízo. A essência do juízo e, portanto, do pensamento representa, segundo Natorp, uma forma de união da multiplicidade na unidade e, ao mesmo tempo, um certo desmembramento dessa unidade em multiplicidade. Analisando a atividade analítica e sintética do pensamento sob o aspecto exterior e interior, descobrimos, segundo Natorp, que há nela a quantidade e a qualidade. Natorp considera que o primeiro grau desta atividade elementar do pensamento é o estabelecimento da unidade quantitativa e a distinção do singular do um na qualidade de base da síntese quantitativa. O segundo grau é a repetição do ato de estabelecimento dessa unidade e da formação da multiplicidade, a qual, nesse grau, é indeterminada pelo fato de que a repetição pode realizar-se até o infinito. No terceiro grau, a repetição dessa mesma unidade quantitativa limita-se à formação de um todo. Em decorrência, a multiplicidade indeterminada transforma-se em multiplicidade determinada, isto é, em número. Em seguida, tudo se repete igualmente e forma uma nova multiplicidade indeterminada, depois um todo (um número novo etc., até o infinito). A correlação da unidade e da multiplicidade, segundo Natorp, constitui a qualidade. No primeiro grau do conhecimento, a qualidade aparece sob a forma de unidade qualitativa (identidade), no segundo grau, à unidade qualitativa acrescentam-se outras, e assim fica estabelecida a diferença que aqui 46
é indeterminada. No terceiro estágio do conhecimento, as identidades diferentes são generalizadas e uma nova unidade qualitativa aparece, considerada por Natorp como gênero, como unidade qualitativa dessa ou daquela multiplicidade. As sínteses qualitativa e quantitativa no desenvolvimento do pensamento, segundo Natorp, reúnem-se ulteriormente em uma nova síntese (síntese das sínteses) e formam a "relação". A síntese das relações conduz ao aparecimento de um sistema, depois de uma ordem geral. No primeiro grau da síntese das relações, estabelece-se uma série fundamental que existe de maneira imutável em todas as ordens e que representa a substância, alguma coisa de geral, determinando todas as mudanças que se produzem. O geral aparece primeiro sob a forma de tempo, comum a todas as transformações, e, em seguida, sob a forma de espaço, que engloba em um todo unido todas as relações (ordens). No segundo grau da síntese das relações (do conhecimento, da criação, o que é, segundo Natorp, a mesma coisa) estabelece-se a sucessão dos momentos no tempo, o que constitui a causalidade. No terceiro grau da síntese das relações estabelece-se a correlação das séries paralelas que representam a interação. Tudo o .que foi exposto na obra de Natorp concerne ao conhecimento, à síntese (e ao mesmo tempo à criação), e não a um ser concreto qualquer, mas ao ser em geral. Mas, ao lado desse grau de desenvolvimento do pensamento, Natorp distingue o grau do conhecimento, da síntese (da criação) do ser concreto, do objeto. No estágio do conhecimento (da síntese, da criação) do objeto, aparecem as categorias de modalidade, Natorp considera como primeira ação do pensamento, visando a síntese do objeto, o estabelecimento da possibilidade de uma tal síntese, depois a verificação dessa possibilidade pela experiência, isto é, na realidade, verificação que se manifesta sob a forma de determinação progressiva indeterminada e infinita e, enfim, pela dedução e indução completas, estabelece-se a necessidade, que Natorp identifica com a dependência lógica . Apesar do idealismo manifesto de Natorp, que considera o movimento do conhecimento de uma categoria para a outra, como o.processo da síntese (da criação), a partir do "pensà47
47
E. Lysinski, Die Kategoriensysteme cit., p. 109.
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mento puro", aspectos e laços gerais refletidos nas categorias, ele soube exprimir em seu sistema certas relações reais existentes entre as categorias. Sua apresentação do movimento do conhecimento indo do um ao múltiplo e depois voltando ao um, assim como a apresentação do estudo separado da qualidade e da quantidade com sua correlação, e, por meio dela, as relações fundamentais de causalidade e de necessidade, parece-nos correto. O filósofo alemão Alóis Riehl , desenvolveu um ponto de vista sobre a correlação das categorias que é essencialmente kantiano. Para ele, assim como para Kant, as categorias representam as funções do pensamento que se resumem ao estabelecimento da identidade. Esta última representará a única categoria. As outras categorias, segundo Riehl, são formas especiais de identidade. Assim, as categorias de espaço e de tempo aparecem, segundo ele, em decorrência da ação da função de identidade do pensamento sobre a sensação e a percepção; a categoria de substância aparece no decorrer da aplicação desta função do pensamento à grandeza do ser real, a "causalidade" manifesta-se em decorrência de sua aplicação às transformações temporais etc. Não é sem fundamento real que as categorias são declaradas como constituindo diversas formas de identidade. Sendo o reflexo de aspectos e de laços gerais da realidade, as categorias refletem incontestavelmente essa ou aquela identidade. Mas esta particularidade das categorias não permite estabelecer entre elas a correlação e a interdependência necessárias, nem representá-las em movimento, nem mesmo exprimir suas passagens recíprocas etc. A única solução à qual nós podemos chegar apoiando-nos sobre este índice das categorias, no decorrer da elaboração de seu sistema, é dividi-las em grupos de acordo com as formas particulares de identidade e dispor esses grupos uns ao lado dos outros, isto é, dar uma classificação lógica e formal. E foi precisamente isso o que fez Riehl. Na filosofia de Nicolai Hartmann , uma grande atenção foi dedicada à elaboração do sistema de categorias. 48
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A. Riehl, Der philosophische Kriticismus und seine Bedeutung für dis positive Wissenschaft, Leipzig, 1876/1877, p. 1-2. N, Hartmann, Der Aufbau der realen Welt. Grundriss der allgemeinen Kategorienlehre, Berlin, 1940. 48
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Hartmann apresenta o mundo sob a forma de um ser estratificado, portanto, uma das camadas da consciência. Assim, N. Hartmann suprime a questão fundamental da filosofia, transformando-a em uma questão particular da relação de uma camada do ser com a outra. O objetivo fundamental da filosofia, segundo ele, é o estudo do sistema (da estrutura) do mundo e a construção de um sistema de categorias que exprimam essa estrutura. As categorias, segundo Hartmann, são as diferenças e os traços fundamentais das camadas e dos graus do ser que é evidenciado. "Todas as diferenças fundamentais de domínio do existente — graus ou camadas, traços gerais, que dominem no interior das camadas e relações que os reúnem — tomam a forma de categorias" . É por isso que a teoria das categorias, para Hartmann, "é a ontologia fundamental, isto é, o estudo das bases gerais do ser que se diferenciam segundo as esferas do ser e constituem um domínio especial que se encontra sob o ser" *. Ignorar a questão fundamental da filosofia leva Hartmann à negação da unidade do mundo, tal como é compreendida pelos materialistas e os idealistas. Segundo ele, a unidade do mundo consiste em seu caráter estruturado e no fato de que todas essas camadas encontram-se em relação e em ligação determinadas que constituem um sistema definido. "Compreender a unidade do mundo real significa compreender esse mundo em sua construção e em seu desmembramento. A unidade que ele possui não é a unidade da uniformidade, mas a unidade da disposição e da elevação das variedades formadas de maneira tal que, dispostas de certa forma, as que são inferiores e grosseiras encontram-se na base e as que são superiores, que repousam sobre as primeiras, elevam-se acima d e l a s " 5 2 . Falando da relação das categorias com as camadas reais, N. Hartmann destaca que as primeiras estão contidas nas segundas e desempenham nelas um papel permanente, geral e dominante. Encontrando-se nas camadas reais concretas do ser, as categorias, segundo ele, podem entrar em uma camada, em várias ou em todas. 50
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S0 51 52
N. Hartmann, Der Aufbau der realen Welt, cit., p. 1. N. Hartmann, Der Aufbau der realen Welt, cit., p. 42. N. Hartmann, Der Aufbau der realen Welt, cit., p. 197.
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Como conseqüência, elas dividem-se em categorias específicas de camadas e em categorias fundamentais que, indo de alto a baixo (do intemporal mais complexo, do ideal eterno, até às camadas físicas mais simples), penetram todas as camadas e, exatamente por isso, unem-nas. Essas categorias que constituem a parte "baixa" (no fundamento) do ser, uma camada particular, são os princípios gerais da relação das categorias no interior das camadas particulares e entre as camadas . Formando uma camada especial, as categorias fundamentais dividem-se em três grupos: categorias modais, categorias elementares e leis categoriais. Ele acrescenta às categorias modais, as categorias de possibilidade, de realidade, de necessidade; às categorias elementares, as categorias que têm um caráter estrutural e que se manifestam sob a forma de termos opostos, como, por exemplo, o um e o múltiplo, a forma e a matéria, a qualidade e a quantidade, a continuidade e a descontinuidade etc.; às leis categoriais, acrescenta as categorias que definem o princípio de união das categorias no interior de uma camada, a disposição das camadas de categorias e a dependência que reina entre elas. N. Hartmann chama estas últimas de as leis da construção do mundo real. Essas leis, segundo ele, são a lei da implicação e as leis da unidade e da integridade das camadas. Essas três leis exprimem, segundo ele, a correlação e a dependência mútuas das categorias de uma camada, a prioridade da integridade do sistema das categorias sobre as categorias particulares e também o fato de que a essência de cada categoria encerra-se tanto nela mesma, como nas outras categorias que lhe estão ligadas. Hartmann analisa detalhadamente os princípios do conhecimento da relação das categorias no plano de uma camada, assim como entre as camadas, notadamente indicando que toda categoria particular é cognoscível unicamente na medida em que são cognoscíveis todas as outras categorias da camada; ele indica também que no conhecimento da correlação (coesão) das categorias de uma camada dada pode-se partir de qualquer categoria, que as categorias das camadas inferiores devem ser conhecidas partindo das categorias das camadas superiores e 53
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N. Hartmann, Der Aufbau der realen Welt, cit., p. 198-9.
que, apoiando-se sobre as categorias da camada inferior, pode-se representar a particularidade das categorias da camada superior etc. Em seus raciocínios sobre o caráter estratificado do ser, sobre a especificidade da estrutura de cada camada, sobre a presença, sob uma forma transformada, da estrutura da camada inferior na camada superior etc., Hartmann exprime de maneira confusa teses do materialismo dialético sobre as formas fundamentais do movimento da matéria e sua correlação no processo do desenvolvimento progressivo desta última. Ao lado de certos pensamentos justos que concernem às relações do geral e do particular, do inferior e do superior, Hartmann apresenta um grande número de teses errôneas, que visam a conciliar o materialismo e o idealismo, a operar a "ontologização" da consciência, a transformá-la do ideal em uma forma universal do ser fora do tempo e do espaço e, por isso mesmo, a criar a resposta idealista para a questão fundamental da Filosofia. Ao mesmo tempo, o sistema de categorias proposto por Hartmann ainda é uma construção idealista, que faz da Filosofia a ciência das ciências, determinando o lugar e a ligação recíprocas de todas as outras ciências, nas quais a fantasia suplanta a ausência de conhecimentos necessários. Em uma única palavra: Hartmann não apenas não conseguiu ir além de Hegel, mas ainda ficou atrás dele. Oskar Fechner construiu seu sistema de categorias a partir dos princípios idealistas e metafísicos. Ele rejeita todas as teorias tradicionais sobre as categorias, considerando-as falsas, e propõe sua solução, dita ontológica sobre o problema: "Nós não reproduzimos nada, escreve ele, nem as filosofias tradicionais, nem os conceitos estruturais e categoriais científicos, mas, sim, mediante uma análise profunda, procuramos compreender as categorias apresentadas e autenticamente ontológicas"^. Fechner, além da existência das coisas e da consciência dos indivíduos, reconhece a existência objetiva das ditas "objeções", idéias, e das "formações gerais", que não dependem do homem nem de sua consciência, residem em diferentes esferas, 54
0 . Fechner, Das System der ontischen Kategorien, Dammtor-Verlag, Hildesheim, 1961. 0 . Fechner, Das Syistem cit., p. 5. 34
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situadas fora da razão humana e são captadas pelo homem no processo de seu pensamento individual. As "objeções" (idéias gerais), segundo Fechner, são universais, eternas e imutáveis, transmitem-se de um sujeito empírico a outro e criam a aparência da modificação dos pensamentos . Cada "objeção", segundo Fechner, possui uma estrutura mental (formal) e objetiva (material). A primeira manifesta-se nos pensamentos (formações gerais); a segunda, nos objetos singulares. Cada objeto singular, segundo ele, representa uma certa associação de "objeções", e é por isso, segundo Fechner, que, conhecer um objeto particular é apontar sobre ele "objeções captadas" pelo pensamento empírico e compreendê-lo por meio destas. Partindo do fato de que os objetos singulares que constituem o mundo material são formados de "objeções" imutáveis, segundo a teoria de Fechner, o mundo é imutável em sua base, ele não possui desenvolvimento, existe eternamente em seu estado uniforme e não contraditório. Apoiando-se nessas teses metafísicas, Fechner critica Hegel, que apresenta o mundo em um estado de contradição, condicionando suas mudanças e seu desenvolvimento permanentes. Ele escreve que a "afirmação de Hegel, segundo a qual o processo mundial pode ser representado por meio do desenvolvimento dialético dos conceitos, flutuantes e contraditórios, é errônea. Na verdade, as "objeções" são sempre universais, constantes e formalmente livres de todas as contradições" 7. Esses princípios metafísicos e idealistas, em sua essência, são colocados por Fechner à base de seu sistema de categorias. Por categorias, Fechner compreende os "elementos estruturais ou as estruturas elementares de uma ou de várias esferas de objetivos" . A divisão das categorias em grupos particulares e, no interior dos grupos, em subgrupos, é efetuada por Fechner segundo os princípios da lógica formal; é por isso que todos esses grupos, subgrupos e categorias particulares, no sistema que ele propõe, não se encontrando em uma relação necessária, não são deduzidos uns dos outros, mas simplesmente coexistem. Fechner limita-se a fixá-los e a descrevê-los. 56
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0 . Fechner, Das System cit., p. S. 0 . Fechner, Das System cit., p. 20. 0 . Fechner, Das System cit., p. 37.
Archie J. Bahm dá uma classificação de categorias que repousa igualmente sobre a lógica formal. Embora o princípio fundamental da construção de seu sistema das categorias seja a relação de contradição, ele não mostra sua interdependência necessária, nem as passagens de uma a outra ou seu contrário. As diferentes formas das contradições desempenham, para ele, o papel de fundamento lógico e formal da divisão das categorias em diferentes grupos. Em particular, Archie J. Bahm distingue nove tipos de relações contrárias, das quais examinamos cinco: one-pole-ism, other-pole-ism, dualismo, aspectism que se manifestam sob duas formas (extremas e modificadas) e o organismo, como tipo central. No todo, ele distingue 26 pares diferentes de contrários polares^. Wolfgang Cramer construiu seu sistema de categorias no espírito hegeliano. Ele faz seu sistema repousar sobre o conceito do absoluto. O absoluto é o ponto de partida do movimento do pensamento, indo de uma categoria a outra, que se realiza por meio da autodeterminação do absoluto. Como unidade do imediato e do princípio de partida, o absoluto, segundo Cramer, tende à mediatização e à determinação e manifesta-se como sujeito de todas essas determinações e mediatizações. No processo de autodeterminação e de mediatização, o absoluto, para Cramer, descobre, um após o outro, os momentos de seu conteúdo e engendra as categorias correspondentes. Na passagem de uma categoria à outra, ele esforça-se para imitar Hegel: entretanto, a riqueza das idéias incluídas no sistema hegeliano de categorias não é encontrada nos esquemas que ele propõeBO. Bela von Brandenstein6l parte igualmente de Hegel para construir seu sistema de categorias. Entretanto, à diferença de Hegel, que toma o "ser puro" — nada idêntico — contraditório, por sua natureza e, portanto, sua mudança, como ponto de partida do movimento do pensamento puro de uma categoria a Lewis E. Hahn, Of shoes and ships and sealing-wax, and cabbages and kings, The Journal of Philosophy, Lancaster, 55(2): 55-6, 1958. Cf. W. Cramer, Aufgaben und Methoden einer Kategorienlehre. Kant-Studien, in Philosophische Zeitschrift, 1960/1961, t. 3, v. 52, p. 351-68. "Bela von Brandestein, Der Aufbau des Seins. System der Philosophie, Tübingen, 1950. 59
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outra, Brandenstein parte, por sua vez, da "realidade imutável" que, sendo eterna, impõe, por sua ação sobre alguma coisa, as modificações correspondentes e, no decorrer dessas modificações, engendra as categorias correspondentes. Fazendo um balanço do exame dos sistemas de categorias apresentados pelos filósofos burgueses posteriores a Hegel, é conveniente salientar que todos esses sistemas não constituem, em relação a Hegel, uma contribuição nova à pesquisa e ao estudo do problema da correlação das categorias, mas, na realidade, eles ficam aquém do sistema de Hegel. E não é por acaso que isso acontece. Um desenvolvimento ulterior frutífero da teoria das categorias só seria possível no plano do materialismo, a partir dos princípios da dialética formulados por Hegel. Em regra geral, os filósofos, dos quais nós já falamos, ignoravam, na elaboração de seus sistemas de categorias, tanto o materialismo como a dialética e, exatamente por isso, eram obrigados a repetir o que antes disseram Hegel, Kant e até mesmo Aristóteles. No presente caso, Othmar Spann tem toda razão quando escreve a respeito dos sistemas de categorias surgidos depois de Hegel: "Em relação a Hegel, todas as teorias modernas sobre as categorias são um passo atrás, já que, em vez de seguirem em profundidade os grandes pensamentos do idealismo alemão, caem na barbárie do gênero empírico e mecânico . . . "62. Os princípios da construção de um sistema de categorias da dialética, apresentados por Hegel, foram objeto de uma interpretação materialista, de um fundamento científico e de um desenvolvimento unicamente da filosofia marxista. A filosofia marxista apresenta, pela primeira vez, uma solução científica para o problema da correlação das categorias. Aplicado à ciência econômica, esse problema foi analisado, sob todos os ângulos, por Marx em seu Le capital e, aplicado à lógica dialética, ele foi analisado em Cahiers philosophiques de Lenin.
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0 . Spann, op. cit., p. 42.
2.
DO PRINCIPIO DE PARTIDA E DOS PRINCÍPIOS DE EDIFICAÇÃO DO SISTEMA DAS CATEGORIAS DA DIALÉTICA
Uma boa solução para o problema da correlação das categorias supõe, antes de tudo, uma escolha correta do princípio de partida, das categorias das quais se parte para que permitam, no processo de sua análise, que se efetue a passagem de uma categoria a outra e por ela mesma, a colocação em evidência das leis de sua relação recíproca e, por meio delas, as leis da relação recíproca das ligações e das formas universais do ser que elas refletem. À primeira vista, pode parecer que a definição das categorias de partida não é uma coisa muito difícil, já que o marxismo determina que, no estudo de todo objeto, se comece pelo aspecto ou pela relação fundamental e determinante. Entretanto, na realidade, tudo isso não é assim tão simples. Por exemplo, como fazer quando se tem a impressão de que os aspectos ou as relações fundamentais e determinantes não são apenas um, mas vários, e que eles são concernentes a diferentes domínios? Com o estudo das categorias, podemos nos encontrar precisamente nessa situação. Efetivamente, em toda filosofia, incluindo o materialismo dialético, há uma questão fundamental — a questão da relação do pensamento com o ser, cuja solução deixa sua impressão na resolução de todos os outros problemas filosóficos e, em última análise, determina o caráter da Filosofia, sua essência. É por isso que as categorias ligadas a essa questão e, em particular, as categorias de matéria e consciência devem necessariamente ser relacionadas com as categorias fundamentais e determinantes e a análise deve começar por elas. Mas, ao mesmo tempo, o materialismo dialético estuda os aspectos e as relações universais da realidade objetiva. E esses não são todos semelhantes. Há entre eles alguns que desempenham um papel fundamental e determinante e outros que são subordinados e determinados. Os clássicos do materialismo dialético, e em particular Lenin, consideravam como relações fundamentais e determinantes, na realidade objetiva, as relações recíprocas entre os aspectos opostos, isto é, a lei da unidade e da luta dos contrários. Em conseqüência, as categorias .55
que estão ligadas à lei da unidade e da luta dos contrários devem igualmente ser relacionadas às categorias de partida, pelas quais é preciso começar a análise. Sendo o reflexo dos aspectos, das ligações e das relações universais reais, as categorias são, ao mesmo tempo, os produtos da consciência, da atividade cognitiva dos homens. No conhecimento, há fatores fundamentais e determinantes que marcam toda atividade cognitiva e, em particular, seus resultados: são as categorias e sua correlação. Os fundadores do marxismo consideravam que a prática social é esse fator determinante do conhecimento. Engels escreveu: "É precisamente a transformação da natureza pelo homem, e não a própria natureza como tal, que é o fundamento mais essencial e mais direto do pensamento humano, e a inteligência do homem aumentou na medida em que ele aprendeu a transformar a natureza" . Se é assim, as categorias que refletem esse fator fundamental, determinante do conhecimento, devem igualmente ser consideradas como categorias de partida. Assim, no exame das categorias chocamo-nos com três fatores diferentes que são, cada um a sua maneira, fundamentais e determinantes e que podem desempenhar o papel de princípios de partida. Como resolver a questão de saber qual desses é um fator de partida, determinante, no momento do exame das categorias e quais categorias devem ser analisadas em primeiro lugar? Vejamos o que se produz se, na qualidade de ponto de partida, tomamos a questão fundamental da Filosofia, começando pela análise das categorias de "matéria" e de "consciência". Partindo da solução do problema da relação do pensamento com o ser, da consciência com a matéria, estabelecemos que as categorias são os produtos da consciência, que elas se formaram no processo de desenvolvimento do conhecimento, que seu conteúdo é emprestado da realidade objetiva, que elas são cópias, fotografias de certos aspectos e ligações do mundo exterior. Incontestavelmente, todos esses momentos colocados em evidência são muito importantes. Sem eles, não podemos compreender a essência das categorias e, sem termos com63
F. Engels, La Dialectique de la nature, Paris, Editions Sociales, 1952, p. 233. 63
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preendido sua essência, não podemos colocar em evidência sua relação real, sua ligação recíproca necessária. Mas, mesmo sendo importantes, os momentos discutidos não são suficientes, não encerram os princípios, partindo dos quais poderíamos estabelecer entre eles semelhante correlação. O que aconteceria se, no momento do estudo da correlação das categorias, apoiássemo-nos no fator essencial determinante que se relaciona com a realidade objetiva, na lei da unidade e da luta dos contrários? Como essa lei constitui o centro da dialética, ela permite-nos explicar a lei de sua correlação com as outras leis fundamentais e categorias da dialética, assim como a lei da ligação recíproca dos pares categoriais, pelo fato de que sua relação representa a manifestação concreta da unidade e da luta dos contrários. Mas essa lei, assim como a questão fundamental da Filosofia, não permite que se determine plenamente a correlação e a interdependência das categorias. Aplicando essa lei, não podemos estabelecer a ordem a que as categorias devem seguir. Dirij amo-nos agora ao terceiro fator fundamental determinante que se encontra no domínio do conhecimento: a prática. O conhecimento começa precisamente com a prática, que funciona e se desenvolve com base na prática e se realiza pela prática. É precisamente com base na prática que se formam as categorias nas quais são refletidas e são fixadas as ligações e as formas universais do ser. Desenvolvendo-se com base na prática, o conhecimento representa um processo histórico, no decorrer do qual o homem penetra cada vez mais profundamente no mundo dos fenômenos. Nesse processo, as categorias aparecem em uma ordem determinada cada uma delas em um estágio rigorosamente determinado do desenvolvimento do conhecimento. Fixando os aspectos e as ligações universais colocadas em evidência pelo conhecimento em um estágio dado do desenvolvimento, as categorias refletem as particularidades desse estágio e são, de certa maneira, graus e pontos de apoio para a elevação do homem acima da natureza, para o conhecimento desta. Em outros termos, as categorias, refletindo as ligações e os aspectos universais do mundo exterior, são, ao mesmo tempo, graus do desenvolvimento do conhecimento, momentos que fixam a pas.57
sagem do conhecimento de certos estágios do desenvolvimento a outros. A idéia, segundo a qual as categorias são graus, momentos determinados ou pontos centrais do processo do conhecimento, foi apresentada pela primeira vez, e com bastante precisão, por Lenin. Analisando a lógica de Hegel, na qual as categorias são representadas sob a forma de graus, de momentos do desenvolvimento da idéia que existe eternamente fora da natureza e antes da natureza, Lenin, em seus Cahiers philosophiques, salientou várias vezes que as categorias são graus, momentos do conhecimento. Expondo o conteúdo da categoria de lei, Lenin nota por exemplo, que "O conceito de lei é um dos graus do conhecimento, pelo homem, da unidade e da ligação, da interdependência e da totalidade do processo u n i v e r s a l " 6 4 . Sobre as categorias de essência e de fenômeno, ele escreve que: "O fundamental aqui é que o mundo dos fenômenos e o mundo em si são momentos do conhecimento da natureza pelo homem, graus, modificações ou aprofundamentos (do conhecimento)" . A categoria de substância, escreve ele, ainda, é "um grau essencial no processo de desenvolvimento do conhecimento humano da natureza e da matéria"66. E, para concluir, ele diz que: "Momentos do conhecimento... da natureza para o homem, eis o que são as categorias l ó g i c a s ' ^ . O aparecimento de toda nova categoria é necessariamente condicionado pelo curso do desenvolvimento do conhecimento. Ela aparece porque o conhecimento, penetrando sempre mais profundamente o mundo dos fenômenos, colocou em evidência novos aspectos e laços universais que não voltam mais para as categorias existentes e que exigem, para exprimir-se, ser fixados em novas categorias. Surgindo, toda nova categoria entra nas relações e ligações necessárias, determinadas com as categorias já existentes e, assim, ocupa um lugar particular, determinado pelo processo do conhecimento no conjunto do saber, no sistema geral das categorias. E se nós dispomos as categorias, na ordem em que elas apareceram no processo de desenvolvimento do conhecimento, será fácil encontrar o lugar, o papel e a 65
V. Lenin, op. cit., p. 142. Lenin, op. cit., p. 144. Lenin, op. cit., p. 149. V. Lenin, op. cit., p. 188.
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importância de cada categoria, de sua relação e de sua correlação. Daí a necessidade do tratamento dialético da história do pensamento, da ciência e da técnica, assim como a do estudo da história do pensamento, do ponto de vista do desenvolvimento do sistema de categorias. É conveniente destacar que é desse modo que Lenin formulava a missão ulterior do estudo da dialética de Hegel e de Marx. "Continuar a obra de Hegel e de Marx, deve consistir no tratamento dialético da história do pensamento humano, da ciência e das técnicas"68. "Une histoire de la pensée du point de vue du développement e de 1'aplication des concepts et catégories généraux de la logique — voilà ce qu'il faut!" *. Indicando que as categorias formaram-se em uma determinada ordem, não devemos, entretanto, pensar que elas seguiram-se historicamente. Algumas dentre elas apareceram ao mesmo tempo, a um mesmo grau do conhecimento. E ainda mais, depois de seu aparecimento, elas não conservaram sua forma original, mas transformaram-se, desenvolvendo-se em decorrência do desenvolvimento e da prática. Mas se for assim, como classificar as categorias para que elas exprimam o movimento do conhecimento de seus graus inferiores a seus graus superiores? De acordo com o método dialético, devemos considerar cada momento do todo estudado "no ponto de desenvolvimento de sua plena maturidade, na sua pureza clássica'"70. Levando isso em conta, devemos ligar cada categoria ao grau de desenvolvimento do conhecimento no qual seu conteúdo está mais desenvolvido, no qual ela adquire uma forma clássica. Considerando as categorias como graus do conhecimento, isto é, na ordem em que elas apareceram com base no desenvolvimento da prática social e do conhecimento do qual ela depende, poderemos não apenas reproduzir na consciência, 69
Lenm, op. cit., p. 138Lenin, op. cit., p. 167. * Texto em francês no original russo — "Uma história do pensamento, do ponto de vista do desenvolvimento e da aplicação dos conceitos e categorias gerais da lógica, se faz necessária!". K. Marx e F. Engels, Oeuvres choisies en trois volumes, Moscou, Editions du Progrès, 1976, t. 1, p. 535. 68 69
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numa certa ordem, as leis e aspectos universais da natureza, da sociedade e do pensamento humano, refletidos e fixados nas categorias, mas igualmente reproduzir o desenvolvimento do conhecimento, de seus estágios inferiores a seus graus superiores, isto é, apresentar sua história e sua teoria, assim como um método de conhecimento — uma lógica que será aqui efetivamente "uma teoria não das formas exteriores do pensamento, mas das leis do desenvolvimento de 'todas as coisas materiais, naturais e espirituais' ou seja, das leis de desenvolvimento de todo o conteúdo concreto do mundo e do conhecimento deste, isto é, apresentar o balanço, a soma, a conclusão da história do conhecimento do mundo"? . Nesse caso, para designar a lógica, a dialética e a teoria do conhecimento do materialismo, é preciso apenas três palavras: "são a mesma c o i s a " 7 2 . Tomando como ponto de partida a prática e a tese sobrs as categorias consideradas como graus do desenvolvimento do conhecimento, realizamos aqui, fora da elaboração do sistema de categorias e de leis do materialismo dialético, o princípio de identidade da dialética, da lógica e da teoria do conhecimento. Assim, as categorias de partida, na análise das categorias, devem ser aquelas que refletem o fator fundamental e determinante do desenvolvimento do conhecimento, isto é, as categorias da prática. Seguindo o desenvolvimento desse fator determinante (prática social), reproduzimos as categorias na ordem em que elas apareceram no processo da evolução do conhecimento e, assim, nós os apresentamos em sua correlação e em sua interdependência naturais e necessárias. Mas, tomando como ponto de partida, nesse estudo das categorias, os fatores que se referem ao domínio do conhecimento, não podemos e também não devemos ignorar a importância primordial da questão fundamental da Filosofia. Pelo contrário, o estudo das categorias deve começar pela análise da questão fundamental da Filosofia e, depois de haver determinado a ordem da análise das categorias a partir da ordem de seu aparecimento no processo de desenvolvimento do conhecimento, devemos analisar cada uma delas à luz dessa questão, no plano 1
"V. Lenin, op. cit., p. 90. "Lenin, op. cit., p. 304.
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de relação da matéria e da consciência. Depois, seguindo as categorias na ordem em que elas apareceram, em que elas se formaram no decorrer do processo de desenvolvimento do conhecimento, e colocando em evidência sua correlação e sua interdependência que apareceram sobre essa base, não podemos deixar de lado os laços (ligações) que existem entre os aspectos universais da realidade objetiva e que são refletidos nas categorias em sua interdependência. Pelo contrário, apresentando o conteúdo dessa ou daquela categoria, devemos sempre ter em vista esses aspectos e essas ligações reais, e devemos levá-los em consideração e apoiar-nos sobre eles. A decorrência do que acaba de ser dito é que o ponto de partida, no estudo das leis e das categorias do materialismo dialético, devem ser as categorias de matéria, de consciência e de prática. Os princípios diretivos da construção do sistema devem ser: primeiramente, a concepção das categorias como graus do desenvolvimento do conhecimento exprimindo a unidade do histórico e do lógico e, em segundo lugar, o princípio de identidade da dialética, da lógica e da teoria do conhecimento.
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III. MATÉRIA E CONSCIÊNCIA
Determinando o princípio de partida da construção do sistema de categorias da dialética, dissemos que era preciso empreender a análise a partir da revelação das leis de relacionamento entre a matéria e a consciência, visto que a descoberta da natureza das categorias, de sua correlação e de sua interdependência só é possível levando em consideração essas leis. É por isso que as primeiras categorias do sistema serão, obrigatoriamente, as categorias de matéria e de consciência. 1. A MATÉRIA O conceito de matéria encontra-se em todos os sistemas filosóficos, com as mais diversas acepções. Apesar da variedade de definições da matéria, dada pelos diferentes filósofos, os idealistas têm em comum tanto a negação da existência da matéria, como a negação de sua objetividade. Berkeley, por exemplo, representante do idealismo subjetivo, declara claramente que não há matéria, que nós nunca a vimos e que, se rejeitarmos o conceito de matéria, seu desaparecimento passará desapercebido, porque não designa nada. "Os senhores podem, escreveu ele dirigindo-se aos materialistas, se fizerem muita questão, usar a palavra 'matéria', onde outros empregam a palavra 'nada' "1. A rejeição da matéria não corresponde apenas aó sistema filosófico de Berkeley, que reduz o mundo a um conjunto de sensações, mas decorre 1
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V. Lenin, Oeuvres, t. 14, p. 24.
da maneira usada para defender o idealismo e a religião que ele escolheu. Outros representantes do idealismo subjetivo, embora não cheguem a negar abertamente a existência da matéria, reduzemna, contudo, ou a um conjunto de sensações (Mach) ou à possibilidade permanente de sensações (Mill, Poincaré) ou, ainda, a uma concepção racional da experiência original dos homens (Merleau-Ponty) etc. Diferentemente dos idealistas subjetivos, os representantes do idealismo objetivo, considerando que a matéria existe fora e independentemente da consciência humana e de suas sensações, colocam, em última análise, sua existência sob a dependência da consciência, do espírito. Na obra de Hegel, por exemplo, a matéria aparece em decorrência da atividade da "idéia absoluta" que, a um certo estágio de seu desenvolvimento, engendra a matéria (seu "ser outro") e começa a existir sob a forma de coisas materiais. No sistema filosófico de Leibniz, a matéria ocupa uma posição similar: à base do mundo encontram-se as mônadas, espécie de átomos espirituais que, para defender sua essência original, tomam a forma de matéria inerte e grosseira e, por isso mesmo, isolam-se umas das outras. É verdade que há idealistas que não colocam a existência da matéria na dependência do espírito, considerando que ela existe por si mesma. Mas, fazendo isso, eles conferem-lhe uma forma de existência (de ser), que é equivalente ao não-ser, isto é, ela representa não o ser real, mas apenas o ser possível. A transformação do ser possível em ser real depende da consciência (da "idéia", de Deus). No sistema idealista do filósofo Platão, por exemplo, a matéria ocupa exatamente esse lugar: ela existe independentemente da consciência, do espírito, da idéia, mas sua existência é apenas potencial; sob essa forma ela ainda é apenas nada. E para que ela se torne realidade, uma idéia e uma definição matemática devem ser-lhe acrescentadas, isto é, a realidade da matéria é dada precisamente pelo espírito, pela idéia. Diferentemente dessas teorias idealistas conseqüentes da matéria que acabamos de enumerar, e que não reconhecem sua existência objetiva, os idealistas não conseqüentes, como Kant, por exemplo, admitem a existência real, objetiva da matéria, mas negam que ela possa ser conhecida, consideram-na como .63
"uma coisa em si", transformando-a assim em uma "abstração vazia, sem vida". Entre os materialistas existem igualmente as concepções mais diversas da matéria. Mas todos concordam em reconhecer a existência objetiva da matéria, uma existência independente da consciência ou do espírito, sejam o que eles forem. É sabido que os filósofos chineses, indus e babilónicos da Antigüidade e os primeiros filósofos materialistas gregos consideravam como matéria esse ou aquele corpo concreto sensível, notadamente a substância mais expandida, que eles consideravam como o princípio primeiro de tudo o que existe. Para Thales, por exemplo, o papel da matéria era desempenhado pela água, para Anáximenes, pelo ar, e para Heráclito, pelo fogo. Tomando por matéria uma certa substância, esses filósofos esforçavam-se para explicar, a partir dela, a diversidade das coisas e dos fenômenos observados no mundo. Mas nenhum desses filósofos conseguiu mostrar de maneira mais ou menos convincente como toda essa diversidade aparecia a partir de uma única substância concreta. Era difícil de acreditar que a quantidade de coisas diversas são a água, o ar ou o fogo em seus aspectos cambiantes; é por isso que, em decorrência, os filósofos tomaram como matéria não mais uma substância, mas várias. Empédocles, por exemplo, já apresenta quatro substâncias: a água, o ar, o fogo e a terra. Ulteriormente, essa quantidade foi acrescentada ao infinito. Anaxágoras, por exemplo, considera que há uma quantidade inumerável de "sementes de coisas" (que desempenham o papel de matéria primitiva) como princípio primeiro. Demócrito afirma a mesma coisa e apresenta como matéria (princípio primeiro) a quantidade inumerável dos átomos. Os átomos e o conjunto de substâncias que eles formam foram considerados como matéria até o fim do século XIX e começo do XX. É precisamente essa a concepção da matéria que tinham os materialistas ingleses e franceses, assim como Feuerbach. A identificação da matéria com a substância desempenhou um papel importante no nascimento da crise da ciência da natureza, na junção dos séculos XIX e XX, quando foram descobertos o elétron e a radioatividade. Com a descoberta .64
do elétron, percebeu-se que o átomo não é absolutamente o último elemento do universo, mas que ele próprio é constituído por partículas menores — os elétrons. E ainda mais, ficou estabelecido que a massa do elétron varia, não permanece imutável como acreditava-se antes em relação à massa do átomo. Viu-se, então, que essa massa aumenta ou diminui de acordo com a aceleração ou o retardamento do movimento. No começo, pensou-se mesmo que o elétron não possuísse absolutamente massa própria, que toda a sua massa fosse de origem eletromagnética. Dessa maneira, a matéria dava a impressão de reduzir-se à eletricidade, logo, ao movimento. Foi nesse mesmo espírito que foi interpretada a radioatividade. A fissão do urânio (descoberto em 1894 por Becquerel) e depois, a do radium, foram consideradas como a transformação da substância em energia pura. De tudo isso, os idealistas tiraram imediatamente conclusões contrárias ao materialismo. Eles começaram a afirmar que a matéria havia desaparecido, que ela fora substituída pela energia, pelo movimento, e que o materialismo era refutado por todas as últimas descobertas das ciências etc. "A eletricidade, escreveu Lenin, torna-se um auxiliar do idealismo, já que ela destrói a antiga teoria da estrutura da matéria, decompõe o átomo e descobre novas formas de movimento material, tão diferentes das antigas, tão inexploradas, pouco estudadas, pouco habituais e tão 'maravilhosas' que torna possível a introdução fraudulenta de uma interpretação da natureza considerada como movimento imaterial (ou seja, espiritual, mental, psíquico). O que, era ontem o limite de nosso conhecimento das partículas infinitamente pequenas da matéria desapareceu, logo, conclui o filósofo idealista, a matéria desapareceu (mas o pensamento permanece). Todo físico e todo engenheiro sabe que a eletricidade é um movimento (material), mas ninguém sabe exatamente o que se move; assim, conclui o filósofo idealista, podemos enganar as pessoas desprovidas de instrução filosófica, fazendo-lhes esta proposta de sedutora 'economia': Imaginemos o movimento sem matéria"2. Torna-se necessário generalizar as últimas descobertas científicas, do ponto de vista do materialismo dialético, assim 2
V. Lenin, op. cit., p. 295.
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como defender o fundamento teórico do marxismo. E esse foi o trabalho de Lenin. Em Matérialisme et empiriocriticisme, Lenin apresentou uma análise das últimas descobertas das ciências e não apenas provou que elas não desmentiam o materialismo dialético, mas que, pelo contrário, elas confirmavam a sua veracidade (sua exatidão). Ele mostrou que o materialismo dialético não reduz e jamais reduziu a matéria aos átomos, nem a alguns outros elementos imutáveis, a nenhuma essência imutável, mas sim que o materialismo considera o mundo infinito em sua diversidade. O reconhecimento de elementos imutáveis e absolutos do mundo caracteriza apenas o materialismo metafísico. É por isso que a descoberta dos elétrons não desmente o materialismo em geral e, a fortiori, o materialismo dialético, mas apenas o materialismo metafísico. "A física, escreve Lenin, desviou-se para o idealismo principalmente porque os físicos ignoravam a dialética. Eles combateram o materialismo metafísico. . . com sua 'mecanicidade' unilateral e fizeram isso de maneira pouco apropriada. Negando a imutabilidade das propriedades e dos elementos da matéria até então conhecidos, eles esbarraram na negação da matéria, isto é, da realidade objetiva do mundo físico" . Religando o conceito da matéria ao da substância e ao conjunto dos átomos, os filósofos e os físicos de tendência metafísica consideravam os estados e as propriedades específicas da substância como propriedades gerais e necessárias da matéria. E é por isso que a evidenciação, com a descoberta do elétron e da radioatividade, da relatividade desses estados foi percebida por eles como a da falência da teoria da matéria, como a do desaparecimento da matéria. De fato, o que desaparecia não era a matéria, mas o limite de nossos conhecimentos sobre a matéria. "A matéria desaparece, escreve Lenin, isso quer dizer que desaparece o limite até o qual vai nosso conhecimento da matéria, conhecimento que agora se aprofunda; propriedades da matéria que antes nos pareciam absolutas, imutáveis, primordiais (impenetrabilidade, inércia, massa etc.) desaparecem, reconhecidas agora como relativas, inerentes apenas a certos estados da matéria" . 3
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3 4
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Lenin, op. cit., p. 272. Lenin, op. cit., p. 363.
Tudo isso, é óbvio, testemunha o caráter relativo de nossos conhecimentos sobre a estrutura da matéria, mas, em nenhum caso, anula a concepção marxista da matéria como realidade objetiva, existente fora e independentemente da consciência humana, que engloba todas as formações materiais: as que já são conhecidas e as que ainda são desconhecidas pe'a ciência. Os pesquisadores que se ocupam do desaparecimento da matéria a partir das descobertas da Física, das quais já falamos, e os seguidores de Mach que falam do envelhecimento do conceito de matéria, especulando sobre essas descobertas, manifestadamente confundiram a categoria da matéria com a teoria sobre a estrutura da matéria. Lenin, mostrando que é errado identificar a matéria com suas formas ou aspectos concretos, prova que o materialismo dialético reúne novamente o conceito de matéria à realidade objetiva e ao mundo exterior, que existe independentemente da consciência humana e que, segundo o materialismo dialético, tudo o que é realidade objetiva, tudo o que tem relação com o mundo exterior refere-se à matéria. É por isso que, para resolver a questão de saber se o elétron ou qualquer outro fenômeno recentemente descoberto relacionam-se à matéria, é preciso estabelecer se se trata ou não de uma realidade objetiva. A dependência de um fenômeno dado à realidade objetiva é a prova de sua dependência à matéria. Criticando os físicos e os filósofos que não negam a existência da matéria, mas estão inclinados a concluir a impossibilidade de conhecê-la, visto o caráter relativo de nossos conhecimentos, Lenin salientou que a matéria não é incognoscível não é uma "coisa em si", como diziam os agnósticos, mas que podemos conhecê-la, que ela é dada ao homem em suas sensações, que ela é copiada, fotografada pelos sentidos. Esta última tese, embora tenha sido reconhecida pelos materialistas pré-marxistas, não foi apresentada como fator necessário para desvendar o conteúdo do conceito de matéria e é por isso que ela não figurava nas definições da matéria dadas pelos materialistas. Generalizando as descobertas indicadas e desenvolvendo a teoria marxista da matéria, Lenin deu uma definição clássica da matéria: "A matéria é uma categoria filosófica que serve para designar a realidade objetiva dada ao homem por meio .67
de suas sensações, que a copiam, a fotografam, a refletem e que existe independentemente das sensações" . É conveniente considerar esta definição como clássica, porque ela opõe a concepção marxista da matéria às concepções exprimidas pelos representantes das diferentes correntes e escolas idealistas e metafísicas. Na realidade, a tese segundo a qual a matéria representa uma realidade, distingue a concspção marxista da matéria da concepção de Platão e da de Aristóteles, entre outras que consideravam que a matéria não possui existência real, mas apenas uma existência possível, qus ela não representa um ser real, mas apenas um não-ser. O relevo dado ao fato de que a matéria é uma realidade objetiva, existente fora e independentemente da consciência, distingue a idéia marxista da matéria das concepções idealistas. Em seguida, a tese segundo a qual a matéria não é uma realidade objetiva concreta qualquer, mas uma realidade objetiva em geral, distingue a concepção marxista da matéria, da concepção que tinham sobre ela os materialistas da Grécia antiga que identificavam a matéria com qualquer fenômeno qualitativamente determinado (a água, o ar, o fogo), ou ainda com um grupo de fenômenos (p. ex., a terra, a água, o ar e o fogo); esta tese distingue-a ainda da tese que tinha o materialismo mecânico pré-marxista que identificava a matéria com a substância. Enfim, a idéia segundo a qual a matéria é uma realidade objetiva, dada ao homem por suas sensações, diferencia a concepção marxista da matéria da concepção que têm sobre isso alguns agnósticos e, em particular, Kant, que reconhecia a existência da matéria, mas considerava que ela é inacessível aos nossos órgãos sensitivos, que é uma "coisa em si" incognoscível. Não é difícil perceber que a definição leninista da matéria é dirigida contra os idealistas, os metafísicos e os agnósticos, e ainda que ela visa exprimir o que distingue fundamentalmente a concepção materialista dialética desta questão em relação à concepção que têm sobre ela os representantes das outras tendências filosóficas. Entretanto, alguns autores não levam isso em conta e, interpretando livremente a definição leninista da matéria, desvirtuam seu significado. Segundo eles, "o relevo dado ao fato 5
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V. Lenin, op. cit., p. 169
de que a única propriedade da matéria é a propriedade de ser uma realidade objetiva, que nos é dada em nossas sensações, ocupou o primeiro plano na obra de Lenin, Materialisme et empiriocriticisme, em razão da luta contra um adversário concreto — o idealismo subjetivo". "A limitação da definição da matéria por essa tese, declaram eles, desarma-nos na luta contra um outro adversário e, em particular, contra as diferentes formas do idealismo objetivo". È por isso que eles consideram a definição mencionada acima insuficiente . Em nossa opinião, esses raciocínios são falsos. Eles partem do fato de que, ao lado da consciência humana, existe ainda uma consciência não humana, uma consciência em geral. E, por isso, indicar que a matéria representa uma realidade objetiva, existente fora e independentemente da consciência humana, não nos separa, segundo eles, do idealismo objetivo que pode igualmente considerar a matéria como uma realidade objetiva existente fora e independentemente da nossa consciência, mas que se encontra em uma certa dependência da consciência não humana, da consciência em geral (da idéia absoluta, da razão suprema, da vontade universal, de Deus etc.). Mas não há outras consciências além da consciência humana. A consciência universal apresentada pelos idealistas objetivos representa a mesma consciência humana, mas separada do homem e erigida em absoluta. Uma outra tendência errônea, em nossa opinião, nasceu da tentativa de certos autores considerar como matéria não o mundo objetivo sensível exterior existente independentemente da consciência humana, não a realidade objetiva, mas certas propriedades desse mundo, dessa realidade, como, por exemplo, o espaço, o tempo, o movimento. Este último ponto de vista é compartilhado por Hanz Klotz, Giinther Hõpfner e outros. "A energia, por exemplo, escreve Klotz, é, no sentido filosófico, a matéria" . "A matéria, declara Jantsch, é tudo o que existe fora da consciência, e deste tudo fazem parte também todas as relações, propriedades, aspectos e mudanças (energia), assim como a substância, o campo etc.". "Seria 6
7
Cf. Mysl Filozoficzna, (16) 1955, 2. "H. Klotz, "Ist die Energie Materie? Bemerkungen zu einem alten Problem' in Deutsche Zeitschrift für Philosophie, 1959, v. 2, p. 307. 6
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possível, no mais alto grau, podemos ler em Hõpfner, dizer sobre o sujeito do material que, em relação à consciência, ele é a matéria" . "O espaço e o tempo, nos quais se movem as formas e os fenômenos quantitativa e qualitativamente diversificados da matéria, representam a matéria" . Esses autores justificam seu ponto de vista, mediante o seguinte raciocínio: a matéria representa uma realidade objetiva. Todas as propriedades da matéria, com exceção da consciência, existem objetivamente, isto é, em relação à consciência elas representam a matéria. A tese segundo a qual a existência objetiva, independente da consciência humana, e suficiente para definir a matéria é correta. Mas os autores em questão utilizam-na em um plano em que ela não é aplicável, e disso eles tiram falsas conclusões. De fato, o marxismo concebe por matéria, enquanto realidade objetiva existente independentemente da consciência e refletindo-se nela, o mundo exterior, a realidade objetiva, na qualidade do todo, como o conjunto de todas as formas do ser objetivo, com todas suas propriedades características, com todas as relações que lhe são próprias. O objeto a partir do qual é abstraído o conceito de matéria é toda a realidade objetiva, todo o mundo exterior, toda a realidade que rodeia o homem, isto é, o mundo em sua totalidade. Mas, a tese aplicada ao objeto considerado como um todo, não é, em regra geral, aplicável aos diferentes aspectos, propriedades e relações desse objeto. Por exemplo, o conceito de "átomo" só pode ser-lhe aplicado como a um todo, mas ele é inaplicável às propriedades particulares, às partes e às relações que constituem o átomo. Não podemos, por exemplo, chamar de átomo o peso que caracteriza um átomo dado, os elétrons que entram em seu invólucro, o núcleo, a carga do núcleo etc. . . Todos esses momentos do átomo têm sua própria designação e outros conceitos correspondentes, elaborados especialmente para eles. Sua ligação com o átomo, sua dependência do átomo exprimemse pelo conceito "atômico", que é utilizado em sua característica. Usamos freqüentemente expressões como "peso atômico" 8
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G. Höpfner, Uber den Materiebegriff des dialektischen Materialismus, in Deutsche Zeitschrift für Philosophie, 1958, v, 3, p. 455. G. Höpfner, op. cit., p. 457. 8
9
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"núcleo atômico", "carga atômica", "invólucro eletrônico do átomo" etc. E o mesmo acontece com a categoria de "matéria". Ela é aplicável à realidade objetiva enquanto tudo, mas ela é inaplicável às suas diversas propriedades e relações. Todas essas propriedades e todas essas relações, pelo fato de que são propriedades e relações da realidade objetiva, refletem-se no conceito de matéria, mas não o constituem. Nós as chamamos de materiais, e isso é amplamente suficiente para salientar sua existência objetiva independente da consciência humana. Esforçando-se para demonstrar, por todos os meios, que o movimento, o espaço, o tempo e outras propriedades da matéria constituem a matéria, certos autores chegam a afirmar a existência de duas matérias. E são, então, obrigados a distinguir, por um lado, a matéria concebida no plano da questão fundamental da Filosofia e, por outro lado, a matéria que não está ligada a essa questão. A primeira é, para eles, toda propriedade objetiva e real da matéria — o espaço, o tempo, a energia etc.; a segunda distingue-se dessas propriedades. "Fora da ligação com a questão fundamental (na qual a matéria é tudo o que possui a propriedade de existência objetiva real — A. Ch.), quando do estudo da estrutura da realidade objetiva, escreve Hans Klotz, a matéria não é idêntica às suas propriedades, o que é óbvio" ". O resultado disso, no plano da questão fundamental da Filosofia, é que devemos utilizar um conceito dado da matéria nesse plano e, fora dele, um outro conceito. Uma tal afirmação não pode ser reconhecida como justa, porque ela vai de encontro ao princípio da unidade da gnoseologia e da ontologia no materialismo dialético, e, ainda mais, ela contradiz as regras elementares da lógica formal e, em particular, a lei de identidade que exige uma definição unívoca e uma determinação dos conceitos. Alguns autores, que estão de acordo com o pensamento de que não podemos identificar as diferentes propriedades da matéria à matéria enquanto todo, opõem-se a que, na definição da matéria, seja indicada sua diferença com relação às suas propriedades. Eles consideram que dessa maneira é possível 1
10
H. Klotz, op. cit, p. 308.
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confundir a questão de saber, que representa a matéria, com a questão de sua estrutura e de seus modos de existência. A definição do que representa a matéria, segundo eles, supõe unicamente a indicação relativa à sua existência, fora da consciência . A referência ao fato de que a matéria existe fora da consciência do homem mostra incontestavelmente o que representa a matéria, mas apenas o que ela representa com relação à consciência. Mas sua relação com a consciência só pode existir quando a consciência existe e esta não é eterna, ela aparece somente em condições muito precisas e existe apenas enquanto são reunidas essas condições favoráveis. A matéria* por sua vez, existe eternamente. Ela existe antes do aparecimento da consciência, existe em sua presença e existirá depois de seu desaparecimento, se isto acontecer. É por isso que, quando definimos a matéria, não temos o direito de limitar-nos ao estabelecimento de sua relação com a consciência. Indicando sua relação com a consciência, devemos igualmente salientar os traços que a caracterizam enquanto tal, fora da consciência. A diferenciação da matéria dessa ou daquela de suas propriedades é precisamente a característica que permite o esclarecimento do que representa a matéria, fora da consciência, nela mesma. As discussões relativas ao fato de que. a referência a esta característica leva a uma confusão entre a definição da matéria com a definição dos modos de sua existência, ou de sua estrutura, são artificiais. Dando relevo à diferença entre a matéria e suas propriedades, chegamos não ao conceito de estrutura, nem ao conceito de modo ou de forma de existência da matéria, mas ao conceito de matéria, ao que ela representa. Aqui é igualmente conveniente notar que, a divisão das características da matéria em três grupos (características da matéria, características dos modos de sua existência, características de sua estrutura), é absolutamente relativa. O que caracteriza os modos da existência e da estrutura da matéria caracteriza, igualmente, de uma maneira ou de outra, a própria matéria. E, exatamente por isso, não seria natural colocar 11
"Cf. R. Rochhausen, Gegen eine Erweiterung oder Einengung des Leninischen Materiebegriffts, in Deutsche Zeitschrift für Philosophie, 1959, v. 2, p. 298.
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obstáculos a que, na definição do conceito de matéria, recorra-se a certas características gerais concernentes às estruturas ou aos modos de existência da matéria. E, ainda mais, se levarmos em conta, nesse plano, a principal propriedade da matéria (ser uma realidade objetiva, existir fora e independentemente da consciência humana), que os autores desse ponto de vista consideram como sua única propriedade, opondo-a a todas as outras propriedades, que eles relacionam com os modos de existência ou de estrutura da matéria, não é difícil notar que ela não é nada mais do que um modo de existência da matéria. Isso testemunha mais uma vez o caráter artificial da divisão das propriedades da matéria em seus modos de existência e em sua estrutura, que a caracterizam. Se falamos das propriedades da realidade objetiva que temos o direito de utilizar para descobrir o conteúdo do conceito da matéria, e daquelas que não podemos utilizar, então será necessário, antes de tudo, dividir todas as propriedades da matéria em universais e particulares. As propriedades universais entram no conteúdo do conceito de matéria, queiramos ou não. No que concerne às propriedades particulares, características de um aspecto dado ou de uma forma concreta da existência da matéria ou de seus diferentes estados, elas não entram necessariamente no conteúdo do conceito de matéria e é por isso que elas não devem ser utilizadas em sua definição. 2.
MATÉRIA E FORMAÇÃO MATERIAL. ASPECTOS DA MATÉRIA
Sendo uma realidade objetiva, a matéria existe não sob o aspecto de uma massa homogênea, mas representa um todo desmembrado, do qual todas as partes, encontrando-se em correlação universal, estão em um certo isolamento e, em decorrência disso, manifestam-se como formações materiais autônomas. Às formações materiais estão ligados conceitos como o "corpo", a "coisa", o "fenômeno" (no sentido de coisa). Cada formação material representa, assim, uma parte da matéria, um de seus elos. Juntas, elas constituem a matéria. Sendo os elos de uma mesma matéria, as diferentes formações materiais (coisas, corpos, fenômenos) possuem toda .73
uma série de propriedades comuns que entram no conteúdo do conceito de matéria e é preciso notar que elas existem objetivamente, fora e independentemente da consciência humana, possuem características espaciais e temporais ,estão em movimento, têm seus próprios aspectos e ligações necessárias e contingentes, singulares e gerais, possíveis e reais, incluem a causalidade, a contradição e possuem todas uin conteúdo e uma forma, uma essência e um fenômeno etc. Mas, ao lado das propriedades e ligações universais próprias de cada formação material particular, o conceito de matéria inclui em si propriedades e ligações, que são características não de cada formação material particular, mas apenas de todo seu conjunto, isto é, do mundo em sua totalidade. Esses traços são, por exemplo, a eternidade da existência, a infinidade espacial. Cada formação material particular não é eterna. Sua existência tem um começo e um fim. Ela aparece, existe um certo tempo e depois desaparece, transforma-se em uma outra formação material. Nenhuma formação material é ilimitada, mas, pelo contrário, ocupa um lugar determinado e limitado no espaço. É apenas o mundo em sua totalidade que é eterno e infinito. A decorrência disso é que o conceito de matéria, no sentido estrito do termo, é inaplicável às formações materiais particulares (corpos, coisas, fenômenos). Seu objeto é apenas o mundo em seu todo, o conjunto das formações materiais. (O ponto de vista segundo o qual o conceito de matéria é aplicável a cada formação material, corpo, fenômeno e coisas é, entretanto, amplamente difundido.). Isso decorre necessariamente das leis da correlação do todo e da parte. De fato, cada formação material particular é uma parte da matéria. Mas nem tudo o que é próprio ao todo é próprio a cada uma de suas partes. Por isso, o conceito de todo não pode ser idêntico ao conceito de uma parte dada desse todo. As formações materiais por meio das quais, a cada momento dado, existe e manifesta-se a matéria estão organicamente ligadas entre elas e formam toda uma "série de grandes grupos bem delimitados" , que representam certos pontos 12
12
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F. Engels, La dialectique de la nature, p. 276.
centrais, graus do movimento da matéria do inferior ao superior e constituem formas particulares desta. Logo, o aspecto da matéria é apenas o conjunto das formações materiais representando, cada uma delas, um certo grau de seu desenvolvimento. A questão dos aspectos da matéria continua sendo até agora uma questão controvertida. Alguns opõem-se à divisão da matéria em diferentes aspectos; outros consideram que esta divisão é necessária e discutem entre si sobre o número de seus aspectos e sobre as formas de existência da matéria que devem ser considerados como seus aspectos. A divisão da matéria em dois aspectos — substância e campo — é bastante difundida. Entretanto, esse ponto de vista não nos parece fundamentado. Não se pode reduzir a matéria somente à substância, mas igualmente a dois aspectos como a substância e o campo. Primeiramente, isso decorre da descoberta do fato de que toda uma série de partículas que relacionamos anteriormente à substância (como p. ex., os mésons, os elétrons, os pósitrons) relacionam-se igualmente com o domínio do campo, já que elas formam os campos correspondentes, e as partículas que relacionamos anteriormente, unicamente com o campo (como, p. ex., os fótons e os gravitons), entram na composição da substância. Logo, não há uma diferenciação rigorosa entre a substância e o campo. Há toda uma série de formações materiais que inclui nelas uma e outra, isto é, elas relacionam-se simultaneamente com a subs'tància e o campo. Em segundo lugar, a própria substância não pode desempenhar o papel de um aspecto da matéria, porque ela integra nela formações materiais que representam graus os mais diversos do desenvolvimento da matéria. A divisão da matéria em dois grandes aspectos — a substância e o campo — é muito rudimentar e inexata. O ponto de vista de que existem não dois, mas uma grande quantidade de aspectos da matéria, parece-nos mais correto. Visto que o aspecto da matéria representa o conjunto de formações materiais que constituem um nó qualitativo determinado da matéria,, correspondente a um grau preciso de sua evolução, as particularidades características da formação material enquanto forma particular da existência da matéria são igualmente próprias ao aspecto da matéria. O aspecto da ma75
Savério ^mko .:
^
.
•Sposito
téria representa uma realidade independente e possui a faculdade de transformar-se em outros aspectos da matéria. 3.
DA SUBSTANCIALIDADE DA MATÉRIA
Se o problema da distinção da matéria, das formações materiais (corpos, coisas, fenômenos) e das propriedades for desenvolvido, conduzirá à necessidade de considerar a matéria como substância. Na qualidade de substância a matéria opõe-se não à consciência, mas às suas manifestações, entre as quais figura também a consciência. Enquanto substância, a matéria é a base do todo sendo. Todos os fenômenos observados no mundo não representam nada mais do que as diferentes manifestações de uma natureza material única, as diferentes formas de sua existência, seus diferentes estados e propriedades. Nesse plano, a consciência sendo uma função, uma propriedade de uma das formas da matéria — o cérebro — não se opõe às outras propriedades, mas constitui com elas uma mesma série. Como as outras propriedades da matéria, ela possui sua causa final, fonte de sua existência na matéria, seja qual for a forma de' organização desta última ou seu estado etc. É aqui que aparece de maneira particularmente clara a relatividade da oposição da matéria e da consciência da qual falou Lenin em Materialisme e emp¿riocriticisme 3. Analisando a matéria como uma substância manifestandose por meio da multiplicidade das formações materiais, dos fenômenos e das propriedades que existem no mundo, é preciso acreditar que esta substância representa alguma coisa de imutável e de absoluto. O reconhecimento de uma substância absoluta e imutável caracteriza unicamente o materialismo metafísico. O materialismo dialético não reconhece, por sua vez, nenhuma substância absoluta. A substancialidade da matéria, do ponto de vista do materialismo dialético, consiste no fato de que, modificando-se continuamente e passando de um estado qualitativo a outro, ela permanece sempre a mesma. Isso traduz-se, primeiramente, pelo fato de que ela conserva sua quantidade, e, em segundo lugar, ela não perde nenhum 1
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V. Lenin, op. cit., p. 152-255.
de seus atributos ou de suas propriedades. Se essa ou aquela propriedade desaparece em um certo ponto em certas formações materiais, ela reaparecerá necessariamente em outro lugar, em outras formações materiais . Em terceiro lugar, cada formação material (fenômeno) contém em potencialidade (em sua natureza), todas as propriedades da matéria, todos os seus atributos, pelo fato de que ela pode, em condições correspondentes, transformar-se em uma outra formação material (fenômeno). Por exemplo, segundo dados da ciência moderna, cada elemento químico, em certas condições, pode transformarse em um outro elemento químico, cada partícula "elementar" em uma outra partícula "elementar", uma substância em campo, um campo em substância etc. Se a substancialidade da matéria consiste no fato de que ela jamais perde seus atributos e suas propriedades e de que cada uma de suas formações (fenômeno) encerra nela mesma potencialmente essas mesmas propriedades é, então, absolutamente evidente que não podemos dizer quem, entre a matéria (substância) e as suas propriedades, é o primeiro, já que a matéria fora de suas propriedades e relações e antes delas nunca existiu. Ela existe apenas mediante as formações materiais particulares, passando uma pela outra e qualitativamente são determinadas e possuem propriedade universais e particulares. A única questão que podemos levantar aqui é a de saber quais são as formações materiais, os estados qualitativos, as propriedades e as relações que, na cadeia geral das correlações e das passagens recíprocas, são as primeiras ou determinantes em relação às outras (formações materiais, estados qualitativos, propriedades, relações). O que é primeiro ou secundário concerne, assim, não às relações da matéria com suas propriedades e correlações, mas às relações existentes entre as diferentes formas materiais (formações), as diferentes propriedades, as diferentes ligações, os estados qualitativos. 14
F. Engels escreveu sobre isso que: "A matéria permanece eternamente a m esm a... nenhum de seus atributos pode jamais perder-se e . . . em conseqüência disso, se ela tiver um dia de exterminar, com uma necessidade imperiosa, sua floração suprema, o espírito pensante, é preciso com a mesma necessidade que em outra parte qualquer e em outra hora ela o reproduza" op. cit., p. 46. 14
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4.
O REFLEXO
Segundo o materialismo dialético, a consciência não é uma propriedade universal da matéria, ela é própria apenas a certas formas altamente organizadas de sua existência e aparece somente em um certo estágio de seu desenvolvimento. Entretanto, a consciência representa não uma manifestação contingente da matéria, mas o resultado necessário de seu desenvolvimento progressivo, a forma superior da faculdade que lhe é eternamente própria — o reflexo. A consciência é uma das formas do reflexo própria a toda a matéria, a todas as coisas e fenômenos do mundo exterior . O reflexo representa a faculdade de uma formação material reagir de uma maneira determinada, sob a influência de uma outra formação material, e, através das modificações correspondentes de certas propriedades ou estados, a faculdade de representar ou de reproduzir as particularidades desta outra formação material. Partindo do fato de que, sobre cada formação material existente na realidade objetiva, age não apenas uma formação material qualquer, mas uma quantidade infinita de formações materiais, que lhe estão ligadas de uma maneira ou de outra, ela reproduz em si, em suas particularidades, em suas propriedades e suas modificações, as particularidades de todas as formações materiais que agem sobre ela . Refletindo em suas modificações os objetos agentes, a formação material não é passiva, mas ativa; ela própria age sobre as formações materiais que lhe estão ligadas, provocando nelas modificações que reproduzem suas próprias particularidades sob essa ou aquela forma condicionada pela natureza da formação material correspondente dada. 15
16
" A presença do reflexo como propriedade universal da matéria, escreve sobre isso o psicólogo soviético S. Rubinstein, significa que a sensação e os fenômenos psíquicos têm sua base e suas premissas no mundo material. Eles não são absolutamente estranhos em relação a tudo o que existe; eles não devem ser, por essa mesma razão, introduzidos do exterior; no próprio fundamento do mundo material, existem as premissas para seu desenvolvimento natural; eles representam uma forma específica superior da manifestação das propriedades, que toda natureza possui sob formas elementares qualitativamente diferentes" (S. L. Rubinstein, Ser e consciência, Moscou, 1957, p. 12. Original em russo). Cf. S. L. Rubinstein, op. cit., p. 11. 15
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Assim, o reflexo está ligado não apenas à ação de uma formação material sobre a outra, mas também à sua interação, em decorrência da qual cada formação material particular é. ao mesmo tempo, refletora e refletida. Ela reproduz sob uma forma específica as particularidades dos objetos e dos fenômenos que agem sobre ela e reproduz-se ela própria nas particularidades correspondentes desses objetos e desses fenômenos. Pelo fato de que todas as modificações surgidas na formação material, sob a ação de outras formações materiais, são resultado de uma ação não unilateral, mas bilateral, isto é, de uma interação, as particularidades não somente dos corpos que agem (os refletidos), mas igualmente dos corpos sobre os quais essas ações são conduzidas, isto é, os refletores, são representadas nessas modificações. É por isso que não é todo o conteúdo das modificações, surgidas na formação material em decorrência da ação de outras formações materiais sobre ela, que representa o reflexo destas últimas, mas somente o que é isomorfo a esse ou àquele aspecto dos objetos que agem. É verdade que esses aspectos são organicamente construídos com outros aspectos de modificações que não são representantes das modificações materiais agentes e não podem ser inteiramente separados destes últimos a não ser pela abstração. Essa idéia é expressa com precisão pelo filósofo soviético V. Tioukhtine: "As modificações ou as marcas no objeto refletido representam um produto total, integral, como resultado da interação dos objetos. Em outros termos, as características dos objetos agentes são adicionadas segundo a lei de sua interação, embora nas modificações do corpo refletor sejam cifradas ou codificadas as propriedades do agente, do refletor. O qu? se segue é que essas modificações não podem ser ainda captadas pelo reflexo em seu sentido exato. O reflexo propriamente dito realiza-se quando o que caracteriza a fonte do reflexo é desligado da marca, do produto total da ação e o que pertence ao suporte do reflexo é "anulado", "eliminado" . A partir disso, certos autores negam completamente a possibilidade do reflexo dos objetos agentes nas modificações sobrevindas da formação material em decorrência de sua inte1,7
V. S. Tioukhtine, Sobre a natureza da imagem, Moscou, 1963, p. 112. Original em russo. 17
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ração com eles. O reflexo, segundo eles, só pode estar ligado a modificações que aparecem em decorrência de ações orientadas unilateralmente do refletido sobre o refletor. Esse ponto de vista, em nossa opinião, é errôneo. Na realidade objetiva, não há ações puras, orientadas unilateralmente. Cada ação está necessariamente ligada a uma reação. Cada formação material representa um sistema de movimento relativamente estável, é ativa por sua natureza e, por isso, ela é não apenas um objeto submetido à ação de outras formações materiais que lhe estão ligadas, mas é igualmente ela própria um agente sobre estas últimas. Assim, não é uma ação orientada unilateralmente, mas a interação que é a ligação geral, universal das coisas e das formações materiais. E se a interação exclui o reflexo, isso significa que este não pode existir na realidade objetiva, isto é, que o reflexo é uma ficção. Os defensores desse ponto de vista referem-se habitualmente a Lenin, que escreveu que o reflexo é segundo em relação ao refletido, que ele não pode existir sem o refletido, enquanto o refletido existe independentemente do refletores. Visto isso, temos de raciocinar da seguinte maneira: a interação exclui todo primeiro absoluto e todo segundo absoluto, pelo fato de que ela é um processo bilateral. O reflexo é segundo em relação ao refletido, o que significa que no ponto onde há interação, não pode haver reflexo. Contudo, do fato de que o reflexo é segundo em relação ao refletido, e de que o refletido existe independentemente do refletor, não decorre que a interação exclui o reflexo. Como já o dissemos, na interação, cada uma das formações materiais age sobre a outra e provoca nela as modificações correspondentes, nas quais são refletidas suas particularidades e as particularidades da formação material que se modifica. É por isso que cada uma delas é, ao mesmo tempo, o refletor e o refletido, nela é representada uma outra formação material e ela própria é representada nessa outra. Quando ela desempenha o papel de refletor, os elementos do conteúdo de suas modificações, que reproduzem, sob uma outra forma, as particularidades da formação material agindo sobre ela, serão 18
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V. Lenin, op. cit., p. 68-9.
segundos com relação ao refletido, pelo fato de que eles dependem dele, e o representam no refletor. O refletido, nesse caso, aparece como independente do refletor. Poderemos sofrer a seguinte objeção: pelo fato de que o refletor age sobre o refletido e modifica suas particularidades, não se pode dizer que o refletido existe independentemente do refletor. Esta observação teria um sentido se, na qualidade de reflexo, nós considerássemos todo o conteúdo das modificações do refletor surgidas em decorrência de sua interação com o refletido, porque é somente nesse caso que o objeto refletido será representado no refletor sob a forma que ele tomou depois da ação do refletor sobre ele. Por reflexo, nós entendemos não todo o conteúdo das modificações do refletor, mas apenas a parte que representa o refletido, assim como ele é em si mesmo, isto é, independentemente do refletor. É praticamente possível separar esta parte do conteúdo das modificações, do outro, que depende de sua ação sobre o refletido e por isso mesmo e reproduzir as particularidades do refletido, no refletor. Por isso, é preciso colocar em evidência as leis da interação do refletido e do refletor e, apoiando-se nelas, estabelecer os desvios provocados pela ação de retorno do refletor sobre o refletido. O que é característico para uma formação material em interação também o é para uma outra. É por isso que não há aqui absolutamente um primeiro lugar, nem um segundo. Mas tudo isso só terá lugar quando os considerarmos como elementos iguais da interação e não sobre o plano do reflexo das particularidades de um nas modificações do outro. Se nós os examinamos sob esse ângulo, considerando a maneira como, no processo de sua interação, as particularidades de um fixam-se nas modificações do outro, a primazia absoluta do refletido com relação ao reflexo e sua independência com relação a este último e ao refletor serão incontestáveis. O ponto de vista oposto, isto é, o de que o reflexo é idêntico à interação, parece-nos igualmente incorreto. O reflexo está ligado à interação, representa um resultado desta última, mas não é idêntico a ela. A interação representa a influência recíproca de formações materiais ligadas entre si, que provocam certas mudanças nas propriedades, nos estados etc. de cada uma delas. O reflexo é apenas um dos momentos da correlação de formações materiais que se encontram em .81
interação, isto é, a propriedade de cada formação material de reproduzir, nas mudanças surgidas nela mesma, em decorrência da interação, certas particularidades de outras formações materiais agindo sobre ela. Logo, o reflexo não é a interação de um objeto sobre um outro, nem as mudanças que se produzem no decorrer desta, mas sim a faculdade de reproduzir nessas mudanças esses ou aqueles traços ou aspectos do objeto agente. Nesse plano, a identificação do reflexo com o movimento, com as mudanças sobrevindas na formação material em decorrência de outras formações materiais que ela sofre, não tem fundamento. O reflexo não é simplesmente a modificação do objeto sob a ação de fatores exteriores ou interiores, mas uma representação particular, nessas modificações, das particularidades dos fatores agentes. A modificação do objeto em decorrência de interações exteriores ou interiores representa não o reflexo, mas o movimento. Certos autores identificam igualmente o conceito de reflexo com o conceito de propriedade. Seu raciocínio é o seguinte: toda propriedade do objeto, sendo seu momento interior, manifesta-se e existe apenas em suas relações, na interação desse objeto com outros objetos. No decorrer da interação, um objeto reflete-se no outro. As propriedades desse objeto constituem a forma de seu reflexo em um outro objeto. Assim, as propriedades de cada objeto dado existem como reflexos de outros corpos. Sem dúvida alguma, o reflexo de uma formação material em uma outra está ligado à colocação em evidência de algumas de suas propriedades. Mas o reflexo não é idêntico às propriedades do objeto refletor. As propriedades do objeto refletor não representam uma forma de reflexo de outros objetos, mas, antes de tudo, uma forma de manifestação de sua essência. Não são as propriedades, mas suas mudanças, reproduzindo as particularidades dos objetos agentes, que são a forma de reflexo nele e em outros objetos. A única propriedade à qual pgdemos identificar o reflexo é a faculdade das formações materiais de representar nas mudanças de uma ou outra de suas propriedades outras formações materiais agindo- sobre elas. Mas, mesmo essa propriedade não constitui uma forma de existência do reflexo de alguns objetos em outros, ela é uma .82
forma da manifestação da natureza interna dos próprios objetos refletores. Assim, o reflexo é uma propriedade universal da matéria, que consiste na capacidade de reproduzir, das formações materiais, as particularidades de outras formações materiais agindo sobre elas, nessas ou naquelas modificações de seu estado ou de uma propriedade qualquer. A forma de reprodução das particularidades dos objetos agindo sobre ela, em uma formação material, é determinada pela sua natureza. É por isso que as formações materiais qualitativamente diferentes refletem as mesmas ações sob uma forma diferente. Assim como a matéria, em sua diversidade qualitativa é infinita, há, também, uma variedade inumerável de formas de reflexo. A modificação das formas do reflexo são particularmente observadas na passagem da matéria de um grau qualitativo de seu desenvolvimento a outro. Assim, na natureza inanimada, o reflexo toma a forma de uma reação física ou química em retorno, que coincide com a mudança do estado interno da formação material submetida às ações exteriores* . Com o surgimento dos organismos vivos, entre os quais o metabolismo é uma condição necessária para sua existência, o caráter de reflexo modifica-se. Ele torna-se biológico e manifesta-se como irritabilidade, como ação em retorno que depende não apenas da natureza do organismo refletor, mas igualmente de seu estado concreto, e na qual se manifesta, sob uma forma embrionária, uma certa regularidade de ações . Aqui, as interações do meio exterior refletem-se sob a forma de uma ação em retorno seletivo. Com a evolução da matéria viva, que é contínua pela adaptação sempre mais perfeita dos organismos ao meio, notadamente com o aparecimento dos organismos pluricelulares, a forma do reflexo, característica dos organismos vivos elementares, aperfeiçoa-se. Esse aperfeiçoamento caminha no sentido de uma especialização dos diferentes tecidos dos organismos vivos, tendo em vista ocupar certas funções bem determinadas de reflexo, e alguns tecidos especializam-se, particular e unicamente no reflexo (percepção, fixação) da ação e da excitação 9
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S. L. Rubinstein, op. cit., p. 13. F. Engels, op. cit., p. 179.
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que se segue, enquanto outros especializam-se na transmissão dessa excitação da parte do organismo em que se efetua a ação imediata a outra parte do organismo. Os tecidos que são especializados na função do reflexo distinguem-se progressivamente e formam um órgão especial, ou seja, o sistema nervoso que se torna uma espécie de mediador entre as diferentes partes do organismo e o mundo exterior e que exerce um controle sobre a ligação recíproca entre o organismo e as condições exteriores da existência e, ainda, contribui para estabelecer um equilíbrio entre o organismo e "as forças exteriores do meio ambiente" . O reflexo, pelo organismo, das forças exteriores, que têm para ele uma importância vital, é mediado pelo sistema nervoso e distingue-se em uma forma autônoma de irritabilidade chamada excitabilidade. O sistema nervoso, que surgiu primeiramente sob a forma de fibras e de células nervosas particulares, dispersas no corpo do animal, complica-se no decorrer da evolução dos organismos, tornando-se sempre mais perfeito. Algumas células nervosas unem-se estreitamente e formam núcleos nervosos que, por sua vez, unem-se entre eles e formam os centros, a medula espinhal e o cérebro. Assim, passo a passo, é constituído o sistema nervoso central. A forma do reflexo segue o desenvolvimento do sistema nervoso. Essa forma torna-se sempre mais flexível e aperfeiçoada e, com o surgimento do sistema nervoso central, adquire possibilidades que modificam fundamentalmente sua qualidade e, exatamente por isso, transformam-na em uma nova forma superior de reflexo. Com efeito, entre os organismos que não possuem sistema nervoso central, a correlação com o meio ambiente realiza-se por meio do reflexo e da formação de certas reações aos excitantes que têm uma importância vital para o organismo. Entre os organismos que possuem um sistema nervoso central, esta correlação realiza-se não apenas por meio do reflexo e da reação aos excitantes ligados à atividade vital do organismo, mas igualmente por meio do reflexo e da formação de reações determinadas aos excitantes, que não apresentam nenhuma importância para a vida do organismo, se sua ação precede no tempo à do excitante tendo uma importância vital. 21
I. P. Pavlov, Obras completas, 72- ed. 3, Moscou-Leningrado, 1951, t. 3, Parte 1, Livro 2, p. 124. Original em russo. 21
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A reação aos excitantes que não têm importância vital imediata para o animal, mas que precedem, algumas vezes no tempo, a ação dos excitantes que têm uma importância vital imediata para o organismo, leva o nome de reflexo condicionado, diferentemente da reação do organismo ao excitante que tem para ele uma importância direta e constitui o reflexo incondicionado. O reflexo condicionado elabora-se no processo da vida de um indivíduo, no curso de sua experiência pessoal, enquanto o reflexo incondicionado é inato, isto é, transmite-se de uma geração a outra. Dessa maneira, entre os animais que possuem um sistema nervoso central, os reflexos condicionados começam a desempenhar um papel importante na correlação do organismo com o meio, ao lado dos reflexos incondicionados. Graças a eles, esses animais reagem com precisão às modificações das condições de vida e a elas adaptam-se rapidamente. O reflexo condicionado, enquanto forma nova, mais elevada do que o reflexo, adquire, diferentemente de todas as formas precedentes ao reflexo que eram puramente biológicas, um caráter psíquico; é a partir deste reflexo que surge o psiquismo, forma nova, mais elevada do reflexo da realidade e qualitativamente diferente das precedentes. 5.
O PSÍQUICO E O FISIOLÓGICO
O reflexo psíquico é um sinal, uma imagem dos objetos do mundo exterior que agem sobre o organismo. O laço do psíquico com a atividade reflexiva condicionada não é fortuito. Um traço específico do reflexo condicionado, como já dissemos, é o reflexo dos fenômenos do mundo exterior que em si mesmos são indiferentes ao organismo, não desempenham nenhum papel era sua atividade vital, mas encontram-se, contudo, ligados aos fenômenos que têm uma importância biológica imediata. Esses fenômenos indiferentes manifestamse como sinais de outros fenômenos biológicos significantes para o organismo, representam estes últimos '. Sua ação sobre o 22
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I. P. Pavlov. Obras completas cit., p. 196.
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organismo equivale à ação de fenômenos biologicamente significantes, dos quais eles são os sinais, isto é, no momento de sua percepção, a partir de laços temporários formados no córtex surgem imagens de outros fenômenos biologicamente significantes que lhes estão ligados. Assim, o mecanismo do reflexo condicionado inclui como um dos momentos necessários o aparecimento (a reprodução) da imagem de um objeto biologicamente significante, a partir do sinal percebido — do fenômeno indiferente que se encontra em ligação mais ou menos determinada e estável com esse objeto. E é por isso que a sua formação é considerada como o princípio do surgimento do psíquico, da forma psíquica do reflexo da realidade. Numerosos psicólogos e filósofos unem o psíquico, como uma forma particular do reflexo da realidade, à atividade reflexiva condicionada. Entretanto, há entre eles divergências quanto à definição do órgão do psiquismo e o estágio de desenvolvimento do mundo animal no qual ele aparece. A questão é que a formação do reflexo condicionado é observada não apenas entre os animais que possuem um córtex, mas igualmente entre os que são desprovidos dele. Ainda mais, alguns autores consideram que os laços temporários específicos, permitindo o reflexo condicionado, surgem inclusive entre os protistas . É por isso que, reunindo o aparecimento' do psíquico à formação dos laços temporários, reflexos condicionados, devemos reconhecer a existência do psiquismo entre os organismos que não somente não possuem córtex, mas ainda não têm sistema nervoso. Por outro lado, o sábio russo Pavlov, depois de haver descoberto o laço da atividade psíquica e dos reflexos condicionados especialmente, salientou que o psíquico é uma função do cérebro-, resultado da atividade do córtex: "A atividade psíquica é o resultado da atividade psicológica de uma certa massa determinada do cérebro" . Ele disse também que: " . . . A atividade dos grandes hemisférios recebeu o nome de atividade especial, psíquica, de acordo com a maneira pela 23
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A. N. Léontiev, Ensaio sobre o desenvolvimento do psiquismo, Moscou, 1947. Original em russo, I. P. Pavlov, Reflexos condicionados, in Grande Enciclopédia Médica, t. 33, p. 43. Original em russo. 23
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qual nós a sentimos, percebemo-la em nós mesmos e supomos sua existência entre os animais, por analogia c o n o s c o " 2 5 . Apoiando-se na teoria de Pavlov, alguns autores recusamse categoricamente a reconhecer a existência do psiquismo entre os animais que não possuem sistema nervoso central, relacionando seu aparecimento apenas ao cérebro, ao córtex. Só podemos resolver essa disputa respondendo à questão de saber se todo laço temporário supõe o aparecimento da imagem do objeto refletido ou se o reflexo em imagem da realidade constitui uma função do cérebro, resultado da formação de conexões nervosas no cérebro, sendo dado que o psíquico, simplesmente não é nem os laços temporários, nem os próprios reflexos condicionados, mas sim as imagens dos objetos agentes que eles fazem surgir. A questão de saber em que estágio do desenvolvimento da matéria viva aparecem as primeiras imagens dos objetos do mundo^ exterior ainda não foi suficientemente estudada. O fato de que elas existem entre os animais superiores, possuidores de um córtex já foi provado, mas ninguém pode, com certeza, afirmar que elas existem também entre os animais que possuem um sistema nervoso menos desenvolvido, e menos ainda, que elas existem entre os protistas, que são desprovidos de sistema nervoso. A identificação do psíquico com o reflexo condicionado conduz necessariamente à deformação da correlação do psíquico com o fisiológico e, em particular, a reduzir o psíquico ao fisiológico e a eliminar o primeiro enquanto fenômeno particular, qualitativamente determinado. O psíquico é um dos aspectos interiores do reflexo que concerne a sua função refletiva social. O psíquico é o reflexo em imagem da realidade, surgido no processo da formação dos laços temporários. Sendo um aspecto do reflexo condicionado e representando no conjunto um fenômeno fisiológico, o psíquico está organicamente ligado ao fisiológico, aparece e existe sobre sua base, é uma conseqüência dela, uma propriedade particular.
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I. P. Pavlov, Obras completas cit., t. 4, p. 17.
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6. A CONSCIÊNCIA A atividade psíquica dos animais superiores, a um certo grau do desenvolvimento de seu sistema nervoso, do cérebro, transforma-se necessariamente em uma forma qualitativamente outra do reflexo da realidade — transforma-se em consciência. O aparecimento da consciência é condicionado pelo desenvolvimento do sistema nervoso, do cérebro. Entretanto, esse desenvolvimento nunca é insuficiente para que apareça a consciência. O aparecimento da consciência está ligado a fatores exteriores à fisiologia da atividade nervosa superior. Como propriedade da matéria altamente organizada, a consciência é, ao mesmo tempo, o produto do trabalho humano, o resultado do desenvolvimento social. Um sistema nervoso altamente desenvolvido cria apenas a possibilidade real do aparecimento da consciência; mas, a transformação dessa possibilidade em realidade está ligada ao trabalho. Foi precisamente sob a ação do trabalho que a forma psíquica do reflexo, própria aos ancestrais animais do homem, transformou-se progressivamente em consciência, em reflexo consciente da realidade. O ponto de partida desse processo foi o momento no qual uma espécie superior de macacos começou a utilizar objetos da natureza para obter um resultado ligado à satisfação de uma ou outra necessidade do organismo. No começo, essas ações constituíam apenas casos isolados, mas, pelo fato de que elas davam, em geral, resultados positivos, e de que «las contribuíam para a satisfação de uma ou outra necessidade, um reflexo condicionado elaborou-se a partir delas e, com esse reflexo, apareceu o hábito de utilizar, em certas condições, os objetos da natureza como "ferramentas". Esse hábito conduziu a mudanças fundamentais no comportamento desses animais. Sua ligação com a realidade ambiente foi, desde então, mediatizada pelos objetos da natureza. Uma tal complicação da ligação do organismo com o meio ambiente influenciou de maneira positiva o desenvolvimento do sistema nervoso e, em particular, o desenvolvimento do cérebro que, obrigado a criar novos laços e a cumprir novas funções cada vez mais complexas, desenvolveu-se e aperfeiçoou-se, o que, em compensação, exerceu uma influência benéfica sobre a "utilização das ferramentas" pelos macacos superiores. Essa atividade complicou-se e desenvolveu-se. A .88
um determinado estágio de seu desenvolvimento, os macacos superiores, quando da ausência da "ferramenta" necessária para a execução de um determinado ato, procuravam adaptar o objeto não adequado, modelando-o segundo a necessidade. Surge, então, a tendência de criar as ferramentas necessárias a partir de objetos da natureza. Pode-se observar tentativas de transformar um objeto que não é conveniente para uma função dada e de criar uma ferramenta necessária, mesmo entre os macacos atuais ®. O desenvolvimento dessa tendência entre os ancestrais animais do homem condicionou a transformação progressiva dos reflexos em atividade consciente, visando a modificação da realidade ambiente com a ajuda de ferramentas criadas para esse fim. Essa atividade tornou-se uma forma necessária de ligação entre os seres que se distinguem do estado animal, entre eles próprios, de um lado, e com a realidade ambiente, de outro. Essa atividade os coloca em relações determinadas independentes de sua vontade, e assim os reúne em um todo único, organicamente ligado. Para que tudo isso possa surgir, funcionar normalmente e desenvolver-se, uma certa coordenação das ações dos indivíduos que a formam é necessária. Mas isso. suporia tomar consciência dos objetivos e das tarefas, repartir as funções no processo de sua realização. Tudo isso tornaria necessária uma troca de pensamentos entre indivíduos que agem em comum. "Logo, os homens em formação chegariam a um ponto em que eles teriam reciprocramente alguma coisa para se dizer*'M. Cada nova necessidade condiciona também o aparecimento de meios para satisfazê-la. Um desses meios é a linguagem. Com a linguagem, a consciência recebeu uma forma material de existência correspondente a sua natureza social. Por meio dela, os pensamentos de um homem tornaram-se acessíveis a outros homens, a um grupo de homens. Sublinhando o laço orgânico da consciência com a linguagem, Marx e Engels escreveram: "A linguagem é tão velha quanto a consciência; a linguagem é a consciência real, prática, exis2
N. N. Ladiguina-Kots, Desenvolvimento das formas de reflexo no processo da evolução dos organismos, in Problemas de filosofia, 1956, v. 4, p. 101. Original em russo. F. Engels, op. cit., p. 174. 26
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tindo também, para outros homens, existindo, portanto, somente para eu mesmo também. . . "28. Por intermédio da linguagem, os homens trocaram idéias e chegaram a uma coordenação de sua atividade necessária para o trabalho coletivo e para a vida social. Sendo ligada ao trabalho e à sociedade que a engendrou, a consciência é dotada de uma natureza social, é um aspecto necessário da forma social do movimento da matéria, embora exista na consciência dos indivíduos que formam a sociedade. Com efeito, cada indivíduo, por intermédio da linguagem, dos meios de trabalho, dos modos de atividade, assimila a experiência acumulada pela sociedade e transmite sua experiência individual, encarnando-a em valores culturais e materiais criados — as formas da vida e da ação. O fato de que a consciência seja um aspecto da forma social do movimento da matéria, um "produto social" ' , é freqüentemente deixado de lado pelos autores que estudam o problema da consciência. A afirmação, segundo a qual a consciência representa o produto ou o resultado da atividade fisiológica do cérebro, é muito difundida. Não há dúvida de que a consciência está ligada a certos processos que se desenvolvem no cérebro, mas esses processos não têm condições para engendrar a consciência. Para que ela apareça, o ser possuidor de um cérebro deve necessariamente estar incluído em um sistema de relações sociais e agir em comum com outros homens; ou, em outros termos, deve viver uma vida humana, social. Logo, os processos fisiológicos do cérebro fazem nascer a consciência apenas em sua união ou, mais exatamente, em sua ligação orgânica com as atividades sociais determinadas que são executadas pelo sujeito, e não pela ligação com o exercício dessa ou daquela função social. Ainda mais, as ligações neurodinâmicas do cérebro, ou seja, as estruturas a partir das quais surge e funciona a consciência, estabelecem-se sob a ação de fatores sociais, da atividade prática. "O psiquismo do homem, escreve sobre isso o psicólogo soviético A. Léontiev, é uma função das estruturas cerebrais superiores, que se formam de maneira ontogénica no processo de assimilação das formas historicamente constituídas da atividade em relação 2 9
K. Marx e F. Engels, L'idéologie allemande, Paris, Editions Sociales, 1968, p. 59. K. Marx e F. Engels, L'idéologie cit., p. 59. 28
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ao mundo ambiente" . É por isso que não podemos admitir a afirmação de que a consciência é uma função, um produto, uma manifestação ou uma propriedade de interações fisiológicas, isto é, uma forma biológica do movimento da matéria. Ela é uma propriedade, um produto, um resultado de interações sociais, uma forma social do movimento da matéria, que encerra em si, sob uma forma anulada, todas as outras formas anteriores do movimento, notadamente as formas física, química e biológica. Levando tudo isso em conta, parece-nos mais correto falar dos laços da consciência, não com os processos fisiológicos do cérebro, mas com o próprio cérebro e não simplesmente com o cérebro, mas com o cérebro humano, porque é aqui que se exprimirá em uma certa medida a idéia do cérebro, órgão do pensamento, e este com a consciência, enquanto sua função, representam uma forma mais elevada do movimento da matéria do que a forma biológica. A impossibilidade de deduzir o superior do inferior é, freqüentemente, utilizada pelos filósofos burgueses, assim como pelos neotomistas, para "refutar" a teoria marxista, segundo a qual a consciência é uma propriedade da matéria. É sobre isso que Josef de Vries baseia sua crítica da resposta materialista à questão do laço da consciência e da matéria. "O materialismo dialético, escreve ele, afirma que todo o 'psíquico', todo o 'espiritual', é apenas uma função da matéria ou, mais exatamente, a função do sistema nervoso central, do cérebro" . "Nós consideramos a resposta materialista insuficente, já que explicamos o que é mais elevado, a alma, o espírito, a partir do que é inferior, a matéria. . . Seja qual for a grandeza das forças descobertas da matéria, elas permanecerão sempre insuficientes para produzir qualquer coisa de mais elevado, a alma ou o espírito" . Assim, o existente pode efetivamente engendrar alguma coisa de mais elevado do que ele mesmo? É claro que sim. Foi precisamente assim que se produziu a evolução da matéria. 30
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A. N. Léontiev, Sobre a abordagem histórica no estudo do psiquismo humano, in Ciência Psicológica na URSS, t. 1, p. 41. Original em russo. J. de Vries, Die Erkenntnistheorie des dialektischen Materialismus? Munique, Salsburgo Kiiln, 1958, p. 141. J. de Vries, op. cit., p. 166. 30
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Algumas formações materiais, em decorrência de interações, formam outras, mais complexas. E estas últimas, por sua vez, formam outras ainda mais complexas, e assim sucessivamente até o infinito. Tudo o que é novo, mais elevado, provém unicamente do inferior. Essa é uma lei universal da evolução da matéria. O filósofo alemão Walter Hollitscher, em seu artigo "Consciência e matéria" exprimiu esse ponto muito bem. "Uma nova forma determinada, ele escreve, provém unicamente de uma forma antiga determinada em suas condições interiores e exteriores, que são determinadas segundo as leis objetivas determinadas" . É verdade que podem-nos fazer uma objeção: a de que falamos da passagem de formações materiais ou de estados qualificativos a outros mais elevados. De Vries considerou a possibilidade da passagem do material ao espiritual como forma mais elevada e perfeita, do cérebro à consciência. No que concerne a essa passagem, não há nenhuma relação com a geração do superior pelo inferior, com a transformação do segundo em primeiro. A formação material não pode transformar-se em sua propriedade. Ela pode transformar-se unicamente em uma outra ou, mais exatamente, em outras formações materiais ou estados qualificativos. Transformando-se de uma formação material, ou de um estado qualificativo em uma outra, ela pode perder algumas propriedades e adquirir outras, além de modificar e desenvolver terceiras. É por isso que é totalmente inexato falar da passagem ou da transformação da matéria em consciência, pelo fato de que esta última é sua propriedade. Trata-se aqui apenas do aparecimento da consciência no processo da passagem ou da transformação de algumas formações materiais ou de alguns estados qualificativos em outros, do laço dessa propriedade com as interações e as estruturas nas formações materiais. À essa questão, o materialismo dialético e a ciência psicológica contemporânea dão uma resposta muito precisa: a consciência está ligada a algumas formações estruturais do cérebro e a algumas formas de interação dos homens, entre eles e com a natureza, e a algumas formas de sua atividade. Essa solução não satisfaz a De Vries, porque ela exclui 33
W. Hollitscher, Bewusstsein und Materie, in Weg und Ziel, Viena, 1964, v. 2, p. 112. 33
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a necessidade de explicar a consciência apelando para a "alma" e para Deus. Para ele é necessário mostrar que a "alma" e Deus existem e que sem eles é impossível explicar o aparecimento da consciência. Ê por isso que ele repudia a limine todas as tentativas de deduzir a consciência da matéria. Segundo ele, a consciência não tem nenhuma relação com a matéria, pelo fato de que ela extrai seu princípio de Deus, essência puramente espiritual. De Vries declara que não se pode encontrar a causa da primeira aparição da consciência sensível ou espiritual nesse mundo. Mas, levando isso em consideração, a saída para fora dos limites desse mundo torna-se inevitável, e essa saída contradiz completamente o materialismo dialético. A causa final de toda vida espiritual nesse mundo, prossegue De Vries, deve ser uma essência puramente espiritual. Mas, essa essência supra-universal, puramente espiritual, tomada exatamente nesse sentido, não dependente de nada além dela, é, em conseqüência disso, incondicionada, "absoluta", logo, essa essência constitui o que a religião chama, desde há muito tempo, pelo grande nome de Deus . Refutando, assim, a possibilidade de encontrar as causas do aparecimento da consciência no mundo realmente existente e sua explicação a partir da matéria, De Vries teria necessariamente de procurá-las fora desse mundo, em um mundo supranatural, isto é, no idealismo. Isso é normal, já que existem apenas dois caminhos para explicar a consciência (assim como para explicar qualquer outro fenômeno): o materialismo e o idealismo. Se nós repudiamos o primeiro, queiramos ou não, engajamo-nos no segundo. Sendo uma propriedade da matéria altamente desenvolvida, que se formou a partir do trabalho e das relações sociais surgidas entre os indivíduos no decorrer da produção dos meios necessários para a vida, a consciência representa uma forma nova, mais elevada do reflexo psíquico da realidade. Ela é uma fotografia, uma cópia, uma imagem particular desta. E, como qualquer outio fenômeno psíquico, ela também possui uma natureza ideal. A idealidade da consciência exprime-se no fato de que suas imagens constitutivas não possuem nem as propriedades 34
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J. de Vries, op. cit., p. 169-70.
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dos objetos da realidade refletidos nela, nem as propriedades dos processos nervosos a partir dos quais essas imagens nasceram. Elas não encerram nem um grão de substância, característica da realidade refletida e do cérebro. São, além disso, privadas de peso, de características espaciais e de outras propriedades físicas. Distinguindo-se fundamentalmente do material, o ideal lhe é organicamente ligado. Ele aparece e existe unicamente no material — no cérebro do homem — e é um produto da interação do homem com a realidade ambiente, por um lado, e do homem com outros homens, por outro lado. Seu conteúdo é determinado por essa realidade, a qual representa o reflexo. Destacando a ligação do ideal com o material e a dependência do primeiro com relação ao segundo, Marx salientou que: " ( . . . ) O movimento do pensamento é apenas a reflexão do movimento real, transportado e transposto para o cérebro do homem" . Constatando que a consciência aparece no cérebro, corpo material altamente organizado, a partir de conexões nervosas que se estabelecem, alguns autores sentem-se inclinados a considerá-la como um fenômeno material, como uma forma particular do movimento da matéria. A afirmação de que o psíquico (a consciência) é corporal e constitui uma forma particular do movimento da matéria, análoga às oscilações eletromagnéticas, não reflete a situação exata das coisas. A consciência não é um processo corporal, uma forma particular do movimento da matéria encontrando-se na mesma série de suas outras formas de movimento, não existe sob o aspecto de qualquer formação material, ao lado do cérebro, do homem e da sociedade, ela é uma propriedade particular do cérebro, o produto de processos que nele desenrolam-se em resposta à interação do homem com a realidade social e natural que o rodeiam, reproduzindo esta realidade, não sob a forma em que ela existe, nem sob a forma de propriedades, laços e processos materiais corporais, mas sob a forma de imagens ideais desprovidas de características físicas. Embora essas imagens apareçam a partir de processos corporais, de conexões materiais e, em particular, de conexões nervosas, elas não são idênticas a esses processos e laços. Seu conteúdo 35
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K. Marx, Le Capital, Paris, Editions Sociales, v. 1, p. 21.
é constituído não por esses processos e esses laços, não pelas propriedades características destes últimos, mas sim por cópias, fotografias particulares dos processos, das propriedades e dos laços correspondentes da realidade ambiente. Alguns autores falam da materialidade da consciência referindo-se à realidade de sua existência. A consciência, consideram eles, existe na realidade. Tudo o que existe na realidade é material; em conseqüência, a consciência é material. "O materialismo, escreve, por exemplo, I. Shipos, designa tradicionalmente, com a ajuda do conceito de matéria do Universo, o mundo real existente. Assim, tudo o que existe na realidade é 'material': não há nada de 'imaterial' no mundo... Nesse sentido, o pensamento é, ele próprio, material: existe realmente na qualidade de pensamento, de r e f l e x o " 3 6 . Podemos notar facilmente que os raciocínios de Shipos encerram uma certa inexatidão, que deforma a teoria marxistaleninista da matéria e do material. Segundo o materialismo dialético, tudo o que existe na realidade está longe de ser material. Não é material o que se relaciona com a matéria e a caracteriza como algo diferente da consciência, o que se manifesta como realidade objetiva, isto é, o que existe fora e independentemente da consciência. O pensamento e a consciência existem igualmente na realidade, mas não na qualidade de realidade objetiva, não materialmente, mas sob a forma de imagens dessa realidade, desprovidos de formas do ser que a constituem e das propriedades que os caracterizam, isto é, de forma ideal. Há duas realidades: a realidade objetiva que existe fora e independentemente da consciência e a realidade subjetiva engendrada pela primeira, da qual é o reflexo. A primeira realidade é, por sua natureza, material e a segunda é ideal. O método mais utilizado para basear a materialidade da consciência é o de considerar esta sob dois aspectos: gnoseológico e ontológico, com relação ao objeto refletido e com relação ao cérebro. Os partidários desse ponto de vista afirmam que se examinamos a consciência sobre o plano gnoseológico, com relação à realidade refletida, ela manifesta-se Problemas de Filosofia marxista-leninista. Artigos de autores húngaros, Moscou, Ed. Progresso, 1965, p. 424. Original em russo. 36
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como ideal, representa uma imagem ideal, uma fotografia, uma cópia de objetos e de fenômenos do mundo exterior; e quando a examinamos sobre o plano ontológico, como propriedade ou produto da atividade do cérebro, a consciência manifesta-se como fenômeno material . Esse ponto de vista não pode ser considerado justo pelo fato de que coloca a natureza da consciência na dependência da orientação da pesquisa, dos desejos subjetivos do pesquisador e de sua vontade. Com efeito, segundo esse ponto de vista, a consciência é ideal não em si mesma e não sempre, mas apenas quando a examinamos sob o plano gnoseológico, isto é, em relação ao objeto refletido. Desde que transportemos nossa atenção para sua ligação com o cérebro, nós a consideramos como uma propriedade deste, e ela perde então sua idealidade e torna-se um fenômeno material, no sentido em que "falamos, por exemplo, da materialidade da massa, da energia, do espaço, das relações sociais" . Segue-se que é o pesquisador quem decide se a consciência será ideal ou não. Se ele quiser examiná-la sob o plano gnoseológico ela será ideal, mas se ele interessa-se pelos aspectos ontológicos, a consciência perderá sua idealidade e se manifestará sob uma forma material, semelhante à massa, à energia e ao espaço. Entretanto, a natureza da consciência, assim como a de qualquer outro fenômeno, não pode depender do ângulo sob o qual nós a examinamos, nem da orientação do pesquisador. É verdade que a consciência, enquanto reflexo da realidade nas imagens ideais, manifesta-se em sua relação com a realidade, com o objeto refletido, mas ela é ideal em todas as suas relações e não apenas nessa aqui. A consciência é ideal por sua natureza, por sua essência, e como tal permanece, qualquer que seja a maneira como nós a consideremos: tanto em ligação com a realidade refletida, como com o cérebro, ou, ainda, em qualquer outra ligação. Na nossa opinião, Rubinstein tem razão quando escreve que "Na relação gnoseológica com a realidade objetiva, os fenômenos psíquicos manifestam-se como 37
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N. P. Antonov, Origem e essência da consciência, Ivanovo, 1959, p. 283; F. F. Kalhsin, Problemas fundamentais da teoria do conhecimento, Gork, 1957, p. 10; Y. A. Ponomariob, Psiquismo e intuição, Moscou, 1967, p. 64. Originais em russo. Ciências filosóficas, 1968, v. 3, p. 112. Original em russo. 37
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uma imagem desta. E é precisamente a essa relação da imagem com o objeto, da idéia com a coisa que está ligada à característica dos fenômenos psíquicos como ideais, é precisamente no plano gnoseológico que o psíquico manifesta-se como ideal, fi claro que isso não significa que os fenômenos psíquicos deixem de ser ideais quando eles são considerados sob um outro ângulo, por exemplo, como função do cérebro. A característica dos fenômenos psíquicos, como de qualquer outro fenômeno, não depende do ponto de vista segundo o qual eles são considerados" . Não é nem a natureza da consciência, nem sua essência que dependem do ângulo sob o qual a análise é feita, mas a evidenciação de alguns aspectos. Efetivamente, a idealidade da consciência — isto é, sua existência sob a forma de imagem, de cópia do objeto — só aparece em sua relação com o objeto, da mesma maneira que o fato de que ela é uma propriedade, uma função do cérebro, só é descobertono estudo de sua relação com este. Mas, será que sua idealidade desaparece, deixa de ser uma cópia do ideal, uma fotografia, quando reconhecemos que ela é uma propriedade do cérebro? É lógico que não. Depois da colocação em evidência dessas novas características, ela ainda permanece sendo uma imagem, uma cópia ideal, uma fotografia da realidade ambiente. Alguns autores emitem um ponto de vista que diferencia a consciência, por um lado, como reflexo da realidade, e, por outro, com uma aptidão para esse reflexo. O reflexo da realidade objetiva, segundo eles, é ideal, e a aptidão ao reflexo é material . Essa maneira de colocar a questão parece-nos correta. A aptidão ao reflexo da realidade nas imagens ideais e o reflexo em si são coisas muito diferentes. A primeira existe objetivamente, fora e independentemente da consciência, e por isso ela é material. Condiciona o aparecimento das imagens ideais que reproduzem a realidade e constituem a consciência, mas não se transforma ela própria nessas imagens, existe fora e independentemente delas. Ligado organicamente às imagens 39
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S. L. Rubinstein, op. cit., p. 41. K-H Oberländer, Einige Bemerkungen zum Verhältnis von Materie und Bewusstsein, in Wissenschaftliche Zeitschrift der Universität, Rostock, 1962, t. 3, v. 11, p. 204-5. 30
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indicadas, o segundo realiza-se e existe unicamente por meio delas. E por isso é ideal. A idealidade da consciência é, portanto, determinada pela idealidade das imagens através das quais, enquanto forma superior do reflexo, ela existe e reproduz a realidade que a rodeia. Existindo sob a forma de imagens ideais surgidas no cérebro do homem em decorrência da interação com a realidade que a rodeia, a consciência representa um reflexo subjetivo da realidade. A subjetividade da consciência exprime-se no fato de que ela existe como mundo interior, espiritual do homem-sujeito e da sociedade humana, que reflete o mundo exterior, a realidade objetiva. Mas, tudo o que constitui o mundo interior do sujeito, tudo o que entra na esfera de sua consciência, não depende dele. No mundo subjetivo do homem há aspectos e momentos que são condicionados pela realidade objetiva, que correspondem a ela e que não dependem nem .do homem-sujeito, nem da humanidade. Esses aspectos e esses momentos representam igualmente o objetivo no subjetivo e constituem uma forma particular da existência do mundo exterior no mundo interior do sujeito. A consciência, sendo assim o reflexo subjetivo da realidade objetiva, representa a unidade do subjetivo e do objetivo, a unidade do que depende do sujeito, do estado de seu sistema nervoso, de sua experiência individual, de sua situação social, de suas condições de vida etc. e do que não depende dele, mas que é condicionado pela realidade ambiente e a reflete. Surgida sob a ação do trabalho na qualidade de aspecto da vida social e de função do espírito humano, a consciência manifestou-se, antes de tudo, como uma tomada de consciência, pelo ancestral do homem, de seu ser^i, de sua própria existência, de sua separação do mundo exterior e de uma certa relação com este último. O animal não se distingue da realidade que o rodeia, não sabe que ela existe. Ele se confunde completamente com sua atividade vital. Para o animal, não há nenhuma relação com ele mesmo, nem com a realidade que o rodeia. "Onde existe uma relação, salientam Marx e Engels, ela existe pará mim. O animal 'não está em relação' com nada, não 41
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K. Marx e F. Engels, L'idéologie, cit., p. 51.
conhece, no final de contas, nenhuma relação. Para o animal, suas relações com os outros não existem enquanto relações" '. O selvagem, após haver adquirido consciência, percebe primeiro que ele existe, que está rodeado de objetos e que esses objetos apresentam certas relações e certas ligações entre eles e com ele próprio. Tomando consciência de seus instintos e de seus hábitos, ele progressivamente compreende o que se passa ao seu redor, em sua realidade ambiente. Assim, a consciência é a comprensão do que se produz na realidade ambiente. Mas a compreensão do que se produz não representa nada além de seu saber. Como conseqüência, a consciência é um certo saber. O mundo exterior é apresentado na consciência sob a forma de imagens produzidas no cérebro humano pela interação do homem com esse mundo. O conjunto dessas imagens que refletem a realidade ambiente constitui o saber do homem. Utilizando essas imagens e a informação que elas contêm sobre essas ou aquelas propriedades e ligações dos objetos e fenômenos do mundo exterior, o homem chega à compreensão do que se produz em torno dele. Assim, o saber é uma forma da existência da consciência. "O modo de existência da consciência e o modo de existência de qualquer outra coisa para ele, escreve Marx, é o saber"^. Ainda que a consciência manifeste-se como saber, ela está longe de lhe ser idêntica. A consciência existe não apenas sob a forma de conhecimentos, mas igualmente sob a forma de emoções, sentimentos, vontade etc. Por outro lado, todo o saber não constitui a consciência. O saber representa o conjunto de informações, sobre a realidade ambiente, do qual dispõe a sociedade humana. A consciência é formada unicamente pela rede de informações que entram no processo concreto do pensamento do sujeito e a partir dos quais elabora-se sua compreensão da situação. Em outros termos, a consciência não é todo o saber, mas somente aquele do qual o homem utiliza-se a cada momento dado, que nasce de seu cérebro, quando da compreensão dessa ou daquela situação concreta. 42
42 43
russo.
K. Marx e F. Engels, L'Ideologie cit., p. 59. K. Marx e F. Engels, Das primeiras obras, p. 633. Original em
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No decorrer de sua vida, de sua atividade prática, o homem passa progressivamente da tomada de consciência de alguns aspectos e de algumas ligações da realidade para outros, o que faz com que o conteúdo de sua consciência modifique-se constantemente. Ao mesmo tempo, o conjunto de conhecimentos que entram na esfera da consciência também muda continuamente. Alguns desses conhecimentos animamse e entram na esfera da consciência, enquanto outros, depois de ter cumprido sua função, saem da esfera da consciência e passam para o domínio do inconsciente. Alguns autores não levam esse fato em conta e incluem na consciência todo o saber do qual dispõe a humanidade, esteja ele contido ou não no processo do pensamento do sujeito, seja ele utilizado ou não para chegar à compreensão dessa ou daquela situação . Falando das leis da relação da consciência e do saber, temos em vista a consciência de um único homem. Mas também podemos tratar da consciência referindo-nos não apenas a um indivíduo, mas igualmente à sociedade. Nesse caso, o saber não será um modo de existência da consciência social? A totalidade do saber, o saber enquanto tal também não pode manifestar-se na qualidade de forma do ser da consciência social. No conteúdo da consciência social entra apenas a parte do saber que reflete, de uma maneira ou de outra, o ser social existente. O saber é um modo ou uma forma de existência da consciência que não existe nele mesmo, mas na medida em que chegamos, por meio dele, à tomada de consciência (intelecção, compreensão) de um estado de coisas dado. A tomada de consciência de certos momentos da realidade efetua-se seja introduzindo-os nos conceitos e representações correspondentes, dos quais dispõe o sujeito, seja descobrindo ou penetrando o sentido de novos aspectos e ligações do objeto considerado, anteriormente desconhecidos do sujeito. A tomada de consciência do objeto pela descoberta, nesse objeto, de novos aspectos e ligações estabelece o conhecimento. O que significa que a consciência manifesta-se igualmente como conhecimento da realidade. 44
A. Spirkin, Origem da consciência, Moscou, 1960, p. 9. Original em russo. 44
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Levando em conta o fato de que todos os conhecimentos dos quais o homem dispõe foram adquiridos no decorrer da evolução da consciência social e do reflexo da realidade, a parar de sua modificação na prática, é fácil perceoer que o conhecimento é um aspecto necessário da essência da consciência, sem o qual seu funcionamento e seu desenvolvimento são impossíveis. Embora sendo um aspecto necessário da consciência e uma forma de sua manifestação, o conhecimento não esgota o conteúdo desta, assim como também não exclui suas outras formas de manifestação. O conhecimento, como já dissemos, supõe a descoberta do novo, de novas propriedades e ligações do objeto do qual tomamos consciência. Mas a consciência não está sempre ligada ao reflexo do novo, ela pode funcionar igualmente no plano do conhecido, sobre a base de conhecimentos já existentes na sociedade. Esse ponto escapa a certos autores que, para caracterizar a consciência, indicam que ela está ligada apenas a novos momentos, anteriormente desconhecidos do sujeito, da realidade ambiente, do objeto do qual tomamos consciência. E por isso que ela manifesta-se apenas quando o sujeito defronta-se com uma situação desconhecida e que está ausente nos casos em que se repete o que já aconteceu uma vez, aquilo com que o sujeito já se defrontou várias vezes. O sábio alemão E. Schrõdinger desenvolve o seguinte tipo de ponto de vista sobre a consciência: "Penetram na esfera da consciência apenas as modificações ou as diferenças graças às quais uma nova corrente de fenômenos distingue-se das precedentes .. . " . Para ilustrar seu pensamento com exemplos, ele prossegue: "Nós tomamos o caminho habitual para ir para o trabalho, passamos do outro lado da rua, atravessamos sempre no mesmo lugar, pensando em outra coisa. Se produzir-se uma modificação na situação (p. ex., se o caminho estiver fechado e nós tivermos de contorná-lo), isso penetra na consciência. A ramificação do caminho é igualmente fixa. Se a situação apresenta diversas variantes (como, p. ex., às vezes vamos à universidade, às vezes ao instituto de física), nós escolhemos as variantes de nossas reações racionais (ou atravessamos ou 45
E. Schrödinger, Geist und Materie, Braunschweig, Yieweg, 1961, v. 2, p. 6. 45
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continuamos em frente) de maneira automática, completamente inconsciente. Assim, as diferentes variantes de ramificação colocam-se umas sobre as outras, em número infinito e somente as variantes novas, que não requerem treinamento, penetram na consciência" . "Eu poderia resumir as coisas da seguinte maneira: a consciência está ligada à educação da substância orgânica, à habilidade orgânica e inconsciente" ?. Assim, segundo Schrodinger, todo fenômeno está "ligado à consciência do sujeito apenas na medida em que ele é novo para o sujeito" , e tudo o que se repete "sai da esfera da consciência" . Schrodinger tem razão quando considera que as ações uniformes, que se repetem freqüentemente, são automática e inconscientemente efetuadas pelos homens. Mas isso não quer absolutamente dizer que eles não têm consciência da situação na qual eles se encontram, embora ela repita casos precedentes. Por mais automáticas que possam ser suas ações, os homens não podem deixar de estar conscientes do lugar em que eles se encontram, do que eles fazem, do que se produz na realidade que os rodeia. Em uma palavra, apesar do automatismo da execução dessa ou daquela ação, o homem não perde jamais a compreensão do que se passa mesmo que isso não tenha nada de novo, de diferente em relação a algo que já foi feito várias vezes. Isso é natural, já que essa compreensão é atingida não apenas pelo conhecimento, a colocação em evidência do que é supostamente novo, do que ainda é desconhecido, mas igualmente pela utilização das informações das quais dispõe o sujeito sobre a realidade que o rodeia, de conhecimentos do que já se repetiu muitas vezes. Mais acima falamos dos caminhos da compreensão do que se passa com o sujeito, por um lado, e com a realidade que o rodeia, por outro. Mas qual o papel que a compreensão do que se produz desempenha na vida dos homens? Ela é a condição necessária da orientação do homem na realidade. Apoiando-se sobre uma compreensão justa da realidade, sobre o conhecimento de certos aspectos e ligações necessários, o 46
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E. E. E. E.
Schrodinger, Schrodinger, Schrodinger, Schrodinger,
op. cit. op. cit. op. cit. op. cit.
homem, como se prevesse o futuro, reproduz sob a forma de imagens o que ainda não existe, mas que deve se produzir em decorrência dessa ou daquela modificação da realidade que o rodeia, dessas ou daquelas ações exercidas sobre ele. A partir desse reflexo antecipado da realidade, o homem fixa objetivos correspondentes e a eles submete seu comportamento e suas ações. A antecipação do futuro, baseada no conhecimento dos aspectos e ligações necessários dos fenômenos do mundo exterior e sobre a compreensão do que se passa na realidade ambiente, e a fixação, em conseqüência disso, constituem a função essencial da consciência. A execução dessa função é que distingue o comportamento do homem do comportamento do animal, a atividade racional do homem, das ações instintivas dos animais. "Uma aranha, escreve Marx, realiza operações semelhantes às do tecelão, e a abelha, pela estrutura de suas células de cera, confunde a habilidade de mais de um arquiteto. Mas o que distingue, antes de tudo, o pior dos arquitetos, da mais esperta das abelhas, é que ele constrói a célula em sua cabeça antes de construí-la na colméia. O resultado ao qual se chega com o trabalho preexiste idealmente, na imaginação do trabalhador'^. O reflexo antecipado da realidade pela consciência está não apenas na base da fixação do objetivo, na orientação racional do sujeito na realidade ambiente, mas igualmente na base da atividade criadora e transformadora, aspecto necessário do trabalho. Surgindo sob a ação imediata do trabalho que supõe a transformação da realidade segundo as necessidades da sociedade, com a ajuda das ferramentas criadas para esse fim, a consciência não apenas torna possível a compreensão dos atos executados, e cria uma imagem ideal do que deve resultar dessas ações, mas também coloca em correlação, reúne todas essas ações ao resultado final, isto é, a partir do conhecimento da situação efetiva das coisas e das possibilidades reais que ela condiciona, a consciência cria qualquer coisa de novo, que não existe na realidade e que, sendo expresso no sistema de imagens ideais, torna-se um plano real da atividade material transformando uma possibilidade dada da matéria em realidade. Sem esse plano preciso indicando os caminhos da transforma50
K. Marx, op. cit., p. 136.
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ção da realidade, segundo as necessidades do homem, a atividade prática, laboriosa, é impossível. Isso confirma o fato de que a consciência, aspecto necessário da atividade produtiva, forma-se e desenvolve-se ao mesmo tempo que esta última. Embora sendo esse aspecto prático que transforma a realidade objetiva da atividade em interesses da sociedade, a consciência não se confunde com essa atividade. Essa atividade é um processo material. "O trabalho, escreve Marx, é antes de tudo um ato que se passa entre o homem e a natureza. O próprio homem desempenha, nesse caso, frente a frente com a natureza, um papel de potência natural ( . . . ) . As forças das quais seu corpo é dotado, braços e pernas, cabeça e mãos, são colocadas em movimento, por ele, a fim de assimilar as matérias dando-lhes uma forma útil para sua vida" . Quanto à consciência, é, por natureza, ideal; ela é o reflexo, a fotografia, a cópia da realidade existente e a representação, repousando sobre esse reflexo (sob a forma de um sistema de imagens ideais e de relações), da realidade futura, que atualmente ainda não existe. Ela não é o processo real da criação de novas formações materiais, mas sim o modelo ideal do processo de criação e seu resultado, assim como o fator que controla o desenrolar da criação, confrontando constantemente a essemodelo os atos do sujeito e seus resultados. Assim, a consciência representa um reflexo consciente ideal por sua natureza, associado à compreensão, pelo sujeito, do que é refletido, reflexo que antecipa a realidade, representa de forma subjetiva o resultado de sua transformação e de seu desenvolvimento, e, a partir disso, torna possível a fixação do objetivo e a criação. Em uma palavra, a "consciência humana não reflete apenas o mundo objetivo, mas também o criado" . São somente todos esses momentos, em sua totalidade, em sua correlação e interdependência orgânicas, que constituem a essência da consciência, sua natureza específica. A tentativa de reduzir as particularidades da consciência unicamente ao reflexo da realidade conduz à supressão de sua especificidade qualitativa e a identificá-la com formas inferiores do reflexo. 51
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K. Marx, op. cit., p. 136. 52V. Lenin, op. cit., t. 38, p. 201.
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Certos críticos contemporâneos da teoria leninista do reflexo estabelecem da seguinte maneira seu raciocínio: interpretando a consciência como reflexo da realidade, o marxismo teria eliminado sua essência específica, pelo fato de que ele a identifica aos processos de reflexo, próprios aos organismos animais e vegetais e até mesmo às formações materiais da natureza inanimada. O filósofo iugoslavo Mihailo Markovic diz, por exemplo, que o reflexo "não é uma característica específica da consciência humana; a percepção dos animais, o reflexo das plantas e mesmo a interação dos objetos da natureza inorgânica são igualmente formas particulares do reflexo" . De acordo com esse ponto de vista, "do qual o representante mais característico é Lenin, além de muitos outros, entre os quais Todor Pavlov, Gajo Petrovic declara que toda nossa vida espiritual é, em sua essência, reflexo. E todas as formas de nossa consciência são apenas diferentes aspectos do reflexo subjetivo da realidade objetiva. Mas a consciência não é a única fonte de reflexo; a matéria possui igualmente uma propriedade próxima da sensação, a propriedade do reflexo. O reflexo é uma propriedade geral do mundo material. . . "54. É correto dizer que o reflexo é próprio de toda a matéria. Mas a decorrência disso não é a de que a consciência não seja o reflexo da realidade. A consciência representa uma forma superior do reflexo que é própria ao homem e que aparece apenas na sociedade, sobre a base da atividade produtiva transformando a realidade ao redor no interesse do homem. 13, por isso que, jogando alguma luz sobre a essência da consciência, nós não podemos ignorar o fato de que ela representa o reflexo da realidade. Porém, outra coisa é dizer que essas características são insuficientes para colocar em evidência a especificidade da consciência. Indicando que a consciência é uma forma superior do reflexo da realidade, devemos mostraias particularidades dessa forma de reflexo que a distingue das outras formas de reflexo da realidade. Essa particularidade reside no fato de que a consciência é o reflexo consciente da 53
M. Markovic, Humanizam i díjalektika, Belgrado, 1967, p. 129. G. Petrovic, Mladost, in Filozofija i marksizam, Zagreb, 1965, p. 252. 53
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realidade, a compreensão pelo sujeito, de seu ser e de seu relacionamento, com o que o rodeia; que ela está ligada à fixação do objetivo e à atividade, tendo em vista realizar os objetivos e, ao mesmo tempo, transformar a realidade; ou, em outros termos, essa particularidade reside no fato de que a consciência é um aspecto e uma condição necessários da atividade criadora. Nenhum desses traços pertence às outras formas de reflexo, anteriores à consciência. Mas, será suficiente, na definição da consciência, indicar apenas os momentos específicos que a diferenciam dos outros fenômenos, sem mencionar que ela é um reflexo, já que esse reflexo não a distingue de outras formas de reflexo? Não, isso não é suficiente. O reflexo da realidade é uma propriedade fundamental da consciência, que condiciona a possibilidade de existência de suas outras propriedades. Se a consciência perde sua faculdade de refletir a realidade, ela perde também, necessariamente, todas as suas outras propriedades. De fato, a tomada de consciência, pelo sujeito, de seu ser e de seu relacionamento com a realidade ambiente, na qualidade de índice de consciência, é apenas o reflexo da realidade; o sujeito não compreende o que se passa ao seu redor a não ser por meio do reflexo, por meio da utilização da informação obtida dessa maneira. A fixação da meta como função determinada da consciência apóia-se sobre as informações das quais o homem dispõe e que são concernentes às propriedades e às ligações da realidade ambiente, isto é, sobre os resultados do reflexo, e, em última análise, sobre o reflexo das necessidades do sujeito e ao mesmo tempo, de seu ser. Enfim, chegamos à atividade criadora da consciência. Vários autores que se opõem à concepção da consciência como reflexo da realidade pensam que o reflexo caracteriza o animal e não o relacionamento do homem com a realidade. O homem, declaram eles, é essencialmente criador. A atitude criadora, praticada com relação à realidade, é característica do homem. É por isso, segundo eles, que a consciência do homem deve ser considerada não como o reflexo da realidade, mas como sua criação. "Quando nós falamos da relação do homem e da consciência humana com o mundo, declara Mihailo Markovic, devemos partir do fato de que somos seres práticos, que antes de tudo nós trabalhamos. Essa é nossa característica fundamental. É por isso que ( . . . ) a propriedade do reflexo .106
não é típica da consciência humana. Da mesma forma como a teoria do conhecimento não é típica da filosofia marxista. O reflexo não é típico da consciência humana, porque ele existe igualmente na consciência dos animais. O que é típico para a consciência do homem e sua atitude em relação ao mundo é o fato de que esta atitude é criadora, ativa, prática" . Segundo os partidários desse ponto de vista, o homem não reflete, mas cria, transforma o mundo, e não o faz apenasquando age praticamente sobre ele, mas também quando o interpreta e o explica. Criticando a segunda tese de Marx sobre Feuerbach, segundo a qual os filósofos marxistas limitaram-se a interpretar o mundo de maneiras diferentes, sem fixar-se como missão transformá-lo, Gajo Petrovic escreve: "Uma interpretação do mundo que não signifique sua transformação é logicamente impossível... Quando o homem interpreta o mundo, ele muda, pelo menos, sua concepção do mundo e, modificando sua concepção do mundo, ele não pode deixar de modificar seu relacionamento com o mundo. Modificando sua concepção e sua conduta, ele influencia a compreensão e atividade de outros homens, que se encontram com ele em diferentes relacionamentos. É a prática que mostra até que ponto uma teoria modifica o mundo. Mas, em princípio, uma teoria filosófica não pode deixar de modificar o mundo. É impossível porque toda teoria filosofia e, em geral, toda interpretação do mundo significam uma certa criação do mundo" . Assim, segundo Petrovic, toda explicação, todo conhecimento do mundo constitui a criação, mas não o reflexo. O reflexo é incompatível com a criação. "Não há nada nela de criador" . "Como conseqüência, conclui Petrovic, a teoria leninista do reflexo não tem valor científico, ela é 'incompatível com a concepção marxista do homem enquanto ser criado, prático' . As tentativas de salvar a teoria do reflexo não têm muitas chances de sucesso" . 55
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Neki problemi G. Petrovic, G. Petrovic, G. Petrovic, G. Petrovic,
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teorije odraza, Belgrado, 1961, p. 140. op. cit., p. 256. op. cit., p. 257. op. cit., p. 250. op. cit., p. 256.
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Vejamos até que ponto esses raciocínios estão bem fundamentados. É exato que o traço distintivo do relacionamento humano com a realidade é a transformação desta no curso da atividade prática. E é igualmente exato que devemos partir desse fato para definir a essência da consciência, que surgiu a partir da atividade laboriosa dos homens e que constitui uma condição essencial de sua existência e de seu desenvolvimento. Mas disso não decorre absolutamente que a consciência apenas cria, sem nada refletir. A consciência não pode criar, não pode produzir nada de novo sem refletir a realidade, sem apoiar-se em suas propriedades e ligações necessárias refletidas nas leis de sua transformação e de seu desenvolvimento, porque tudo o que é novo, que aparece na realidade objetiva, graças ao homem, em decorrência da atividade criadora de sua consciência, deve submeter-se a leis objetivas, existentes fora e independentemente da consciência. Além disso, toda verdadeira criação é o reflexo e a realização na consciência e na realidade de possibilidades reais. É lógico que, se pela atividade criadora da consciência compreendemos a criação de qualquer idéia, corresponda ou não ela à realidade, seja ou não ela realizável, então o reflexo não será um aspecto necessário da consciência e essa criação não pode transformar a realidade, fazendo dela um meio de satisfazer as necessidades da sociedade. É por isso que ela não pode constituir a essência das relações do homem com a realidade. O relacionamento do homem com a realidade caracteriza-se unicamente pela criação que conduz a uma transformação real da realidade ambiente, ao estabelecimento de condições necessárias para a existência e a evolução da sociedade. Como decorrência disso, só é possível quando ela reside no reflexo da realidade existente e de possibilidades reais que lhe são próprias. Segundo os críticos da teoria leninista do reflexo, a atividade criadora da consciência não deve repousar sobre o reflexo, E se o reflexo é necessário, não será nunca para realizar a transformação prática da realidade, assim como também não será para a criação do novo, mas sim para conhecer o que já foi criado. É por isso que o reflexo realiza-se não na criação, nem no período que a precede, mas quando a atividade criadora já foi executada. "Ninguém poderia saber antecipadamente, escreve sobre isso Dragan Jeremie, qual seria a sociedade .108
iugoslava antes que os políticos e nosso povo tivessem começado a criá-la. Até 1950, ninguém poderia prever qual seria o trabalho dos conselhos operários. No começo, foi preciso observar seu trabalho na prática para, em seguida, compreender que era uma nova forma de gestão socialista dos meios de produção." Mais tarde, "a partir da prática, modificações foram-se produzindo em nosso sistema econômico. Em conseqüência, ele conclui, é preciso agir, criar, modificar e, em seguida, observar atentamente como se desenrolaram as ações, a criação, a transformação... "60. Segundo Jeremie, os homens criam cegamente, por acaso, sem saber o que resultará disso. É fácil compreender que tal criação, assim como a criação arbitrária das construções conceituais, não constitui a essência do relacionamento do homem com a realidade, a função necessária de sua consciência. A essência da atitude do homem em relação à realidade constitui a criação que repousa sobre o reflexo da realidade existente e de suas possibilidades reais, de seus aspectos e ligações necessários, das leis objetivas de sua transformação e de seu desenvolvimento. É precisamente a essa atividade criadora que a consciência está ligada, porque é precisamente ela que determina sua essência específica. Assim, qualquer que seja o ângulo sob o qual abordemos a característica da consciência, somos obrigados a nos referir ao fato de que ela representa o reflexo da realidade, reflexo específico que se distingue fundamentalmente de outras formas de reflexo próprias à matéria, mas que dela nada mais são do que o reflexo. A tese segundo a qual há, na consciência dos homens, pensamentos, conceitos, juízos que, mesmo sendo verdadeiros, na realidade nada refletem é habitualmente apresentada para refutar a concepção da consciência como reflexo da realidade. "Todos nós, escreve Petrovic, emitimos a cada dia juízos verdadeiros, de cuja veracidade não duvidamos absolutamente, embora não possamos responder à seguinte pergunta: 'O que eles refletem?' O juízo existencialista negativo, por exemplo, é verdadeiro, embora o que ele reflete não existe. Podemos interpretar esse juízo como um reflexo da realidade? O que Neki problemi teorije odraza, p. 141.
eo
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reflete o juízo: 'Os centauros não existem' ou, então, 'Não há quadrado redondo'? Todo o sistema dos juízos matemáticos é um sistema de juízos verdadeiros, embora seja difícil precisar o que eles refletem. O que reflete, pergunta-se o autor, o juízo de passado, de futuro, de possibilidade, de impossibilidade?'^. Esse raciocínio não tem nenhum fundamento real. Tem-se a impressão de que, para o autor, só se pode tratar de reflexo quando na consciência aparece a idéia de um objeto, de uma propriedade ou de uma relação, realmente existentes. Entretanto, isso está muito longe da realidade, já que a consciência fixa não apenas o que existe, o que é próprio a um objeto dado, mas igualmente o que não existe, o que não caracteriza o objeto. No primeiro e no segundo casos, os juízos nos quais realiza-se esta fixação são verdadeiros unicamente porque eles refletem a situação real das coisas. • Os juízos de passado, de futuro, de possibilidade e de impossibilidade são considerados por Petrovic a partir dessas mesmas posições. Ele acha que é possível refletir apenas o que existe no momento presente, no momento dado. Mas, os juízos sobre o passado, o futuro, o possível e o impossível concernem ao que não existe em um momento dado¡ ao que não existe no momento presente. O autor não leva em conta o fato de que o reflexo é não apenas imediato, mas também mediato. O reflexo imediato supõe um objeto refletido existindo realmente em um momento dado, enquanto que o reflexo mediato supõe que o objeto pode não existir realmente em um momento dado. Sua reprodução na consciência faz-se por meio do reflexo de outros objetos que permitem a expressão desse ou daquele juízo verdadeiro sobre ele. O que nos serve de base para pensar no que foi e no que será, quanto aos objetos realmente existentes? A reprodução na consciência do passado e do futuro, a partir do reflexo do presente, é possível porque o passado existe igualmente sob uma forma anulada no presente. Refletindo a essência dessa ou daquela formação material e descobrindo as leis de seu funcionamento e de seu desenvolvimento, reproduzimos, de uma maneira ou de outra, o processo de seu vir-a-ser, os graus transpostos de 61
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G. Petrovic, op. cit., p. 254.
seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, os traços que lhe são próprios. Sendo conhecida a essência da formação material existindo realmente e colocando-se em evidência os aspectos e tendências que lhe são próprios, podemos julgar no que se tornará essa formação material no futuro, em outras condições, e dizer como suas propriedades se transformarão, o que elas virão a ser. Esses juízos serão verdadeiros e refletirão a situação real das coisas. A veracidade dos juízos de possibilidade e de impossibilidade resolve-se também nesse plano. A idéia de possibilidade ou de impossibilidade repousa sobre o reflexo da realidade, dos aspectos e ligações que lhe são próprios e necessários, das leis da transformação. Para provar que o reflexo não é uma característica necessária da consciência, alguns se referem igualmente a fenômenos da consciência, como as emoções e a vontade, que não refletem nada na realidade. "Quando eu digo, escreve sobre isso Petrovic, que ele (o reflexo — A. Ch.) é incompatível com o fenômeno da consciência, penso que ele não pode explicar-nos porque, em que sentido e de que maneira todas as nossas ações conscientes refletem a realidade. O que reflete a vontade e a emoção? O amor, o ódio, a inveja, a maldade serão diferentes formas do reflexo de objetos exteriores aos quais eles se dirigem?" . Percebe-se facilmente que esses raciocínios repousam sobre uma compreensão estreita e simplista do reflexo. Segundo esse autor, só pode ser reflexo o que reproduz na consciência um objeto que se encontra diante de nós, enquanto que a consciência reflete não apenas os objetos que agem sobre os órgãos sensitivos do homem, mas também suas condições de vida, as relações econômicas nas quais ele se encontra. Ela reflete não apenas sob a forma de imagens ideais, reproduzindo esses ou aqueles aspectos dos objetos agentes, mas também sob a forma de emoções, de aspirações, de estados de espírito, de sentimentos. Estes últimos, em particular, refletem a importância, para o sujeito, dos fenômenos que agem sobre ele e sua atitude com relação a eles. Para provar que a consciência não pode ser um reflexo da realidade, alguns se referem às leis da correlação do sujeito 62
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G. Petrovic, op. cit., p. 254.
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com o objeto, que testemunhariam de fato que a consciência representa não o reflexo subjetivo da realidade, mas sua criação. Danko Grlic diz que os que consideram a consciência como um reflexo subjetivo do mundo objetivo "opõem claramente, e sem qualquer equívoco, o sujeito a toda realidade objetiva e assim excluem-na". "O que representa, pergunta ele, um determinado sujeito, se ele não é nem uma realidade material, nem uma realidade objetiva?". E ele mesmo responde: "Tratase então de uma ficção vazia, uma ilusão, uma invenção, alguma coisa irreal. . . " . A identificação do conceito de sujeito e do conceito de reflexo subjetivo da realidade objetiva deve reter nesse ponto nossa atenção. São, de fato, coisas extremamente diferentes. O sujeito — se não for o reflexo subjetivo da realidade, nem a consciência, mas sim um sistema material — a sociedade, formada pelos homens, a partir da produção, da partilha e do consumo de bens materiais, que são dotados de uma consciência e, por essa razão, estão em condições de refletir, em imagens subjetivas, a realidade objetiva. Sendo um sistema social material, o sujeito não se exclui da realidade objetiva, mas intervém na qualidade de uma de suas partes constitutivas, de uma das formas do seu ser. Ele age também sobre outras formas de existência da matéria que o rodeiam, reflete suas propriedades e suas ligações em imagens subjetivas que aparecem nele no curso dessa interação e, a partir da informação que elas contêm, transforma de maneira racional a realidade ambiente. Entretanto, não se deve pensar que Grlic ignora tudo isso. Ele sabe o que os marxistas entendem por sujeito e é por isso que ele se vê obrigado a deter-se especialmente sobre essa concepção. "Podemos dizer, ele escreve . . . que o sujeito da teoria marxista do reflexo representa um resultado histórica e socialmente condicionado, que decorre da interpenetração das leis dos fatores reais e do grau dado de desenvolvimento social. Mas a dialética, para certos 'teóricos', prossegue, não é a confusão de conceitos, um ecletismo insensato, que salva sua inconsequência por meio de frases sobre a interpenetração de pólos opostos. Pelo fato de que o sujeito é o produto de leis sociais, a tentativa de o introduzir na tese da imagem subjetiva do mundo objetivo é totalmente absurda. Nesse caso, 63
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Neki problemi teorije odraza, p. 134.
não seria apenas o sujeito que seria uma ficção, mas também todas essas leis econômicas, históricas e sociais, que consideramos ilusões não objetivas, ineficazes e vazias e que opõem-se à realidade" 64. Assim, o reconhecimento da consciência como imagem subjetiva da realidade objetiva deve, segundo Grlic, necessariamente transformar o sujeito em alguma coisa de ilusório, não efetivo, ou, em outras palavras, em uma ficção. Mas de onde vem tudo isso? Por que então a faculdade do sujeito de refletir, na consciência, sob uma forma subjetiva, a realidade objetiva deve excluir o sujeito dessa realidade? Por que essa faculdade deve transformá-lo em alguma coisa de irreal? Pelo contrário, é precisamente esse fato, isto é, a presença no sujeito da capacidade de um reflexo subjetivo da realidade objetiva, do seu conhecimento, que o transforma em um sujeito real, capaz de agir sobre o mundo ambiente e de transformá-lo de forma criativa, porque, como já dissemos, uma transformação que tende a uma meta da realidade pressupõe o conhecimento de suas propriedades e ligações necessárias, das leis do seu funcionamento, do desenvolvimento e das possibilidades que disso dependem. O sujeito privado da faculdade de refletir a situação real das coisas, de conhecer as leis do movimento e do desenvolvimento do mundo ambiente não está em estado de agir de maneira racional, de transformar praticamente a realidade, de criar o novo. Sem isso, ele não pode ser um sujeito real, válido. Isso significa que não é a presença, no sujeito, da faculdade do reflexo subjetivo da realidade objetiva, mas sua ausência, que transforma o sujeito em ficção, em alguma coisa de irreal. Um outro argumento é apresentado contra a concepção de que a consciência é o reflexo da realidade: se a consciência representa o reflexo da realidade, seu desenvolvimento deve necessariamente conduzir ao conhecimento definitivo da natureza e da sociedade. Mas, nesse caso, o mundo inteiro teria de ser contido em nossa consciência e, então, esta, como consciência humana, teria, a nosso ver, de desaparecer, perder sua atividade e transformar-se em um espelho-refletor u n i v e r s a l . Esse raciocínio, assim como o seu precedente, não tem u
Neki problemi teorije odraza, p. 133-4. Neki problemi teorije odraza, p. 134.
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nenhum fundamento real, não reflete a situação verdadeira das coisas. Primeiramente, o conhecimento humano nunca atingirá o ponto de desenvolvimento em que tudo será inteiramente conhecido, em que o mundo inteiro será refletido na consciência dos homens; isso é impossível, porque a realidade refletida não é estática, mas transforma-se e desenvolve-se continuamente. Em segundo lugar, nenhum desenvolvimento do conhecimento pode conduzir à transformação da consciência de um homem em consciência universal, porque as possibilidades de um indivíduo são sempre limitadas e ele não está em condições de possuir todos os conhecimentos dos quais dispõe a humanidade. Em terceiro lugar, o acréscimo dos conhecimentos dos homens não apenas não elimina sua atividade, mas a reforça pelo fato de que sua possibilidade criativa e seu campo de atividade alargam-se. A crítica da teoria marxista da consciência, considerada como reflexo da realidade, reserva um lugar importante para a demonstração da "falsidade" da tese leninista sobre a sensação como imagem subjetiva da realidade objetiva. Essa demonstração é feita, em geral, da seguinte forma: toma-se uma certa sensação, freqüentemente a sensação de cor, e mostra-se que ela não é uma cópia exata, uma fotografia das ondas luminosas de comprimentos correspondentes. Em seguida, conclui-se que a teoria leninista das sensações como cópias, imagens de objetos do mundo exterior é falsa. Procedem dessa maneira, em particular, A. James Gregor e H. B. Acton. Tem-se a impressão, diz Gregor, de que a declaração leninista, segundo a qual as sensações são cópias ou imagens de objetos, deve ser incontestável, mas mesmo uma análise preliminar será suficiente para evidenciar mais do que o caráter insensato dessa afirmação. "A primeira dificuldade, ele prossegue, surge com o exame dos simples predicados que devem ser atribuídos aos objetos do mundo exterior. O que temos em vista, por exemplo, quando dizemos de alguma coisa que ela é vermelha? A cor vermelha da qual partimos não pode ser concebida em um sentido pouco significativo, como uma 'cópia', um 'reflexo', ou uma 'fotografia' da onda luminosa de um comprimento de 647.760 milionésimos de milímetro" . 66
A. James Gregor, Lenin on the nature of sensations, in Studies on the left, 1963, v. 3, n. 2, p. 35. 66
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"A vibração do éter e a sensação da cor, escreve Acton, desenvolvendo a mesma idéia exposta acima, são muito diferentes uma da outra, embora pareça estranho supor que as cores percebidas sejam cópias, fotografias ou espelhos refletores da vibração" . Torna-se evidente, aqui, que esses autores dão aos termos "cópia", "fotografia" e "reflexo" o mesmo sentido que eles adquirem quando os empregamos para a concepção dos fenômenos físicos. Por cópia, eles entendem cópia física, por fotografia, clichê fotográfico, e por reflexo, reflexo do espelho. Isso é o que se destaca, em particular, da afirmação de Gregor: "Nós todos temos consciência do que entendemos quando falamos de 'imagens' no sentido de fotografia, pensamos na semelhança icônica — como se falássemos da semelhança de um retrato" . Mas Lenin dava um outro sentido a esses termos. Ele salientava que as sensações são imagens subjetivas das coisas, ideais, cópias, clichês ideais e não físicos . Sendo imagens subjetivas, isto é, existindo unicamente na consciência dos homens, as sensações sofrem a influência não apenas do objeto refletido, ou de suas propriedades, mas também do homem refletor, dependendo não apenas do objeto, mas também do sujeito, de seus órgãos sensitivos, de seu sistema nervoso, de seu estado psíquico. Em outros termos, a sensação é o resultado da interação do objeto com o sujeito, ela traduz a apresentação do objeto ao sujeito e, como todo fenômeno, não apenas exprime a essência do objeto agente, mas, ao mesmo tempo, a deforma. Não é por acaso que todo fenômeno, quando coloca em evidência a essência desse ou daquele objeto, não coincide com ela, mas dela distingue-se. Isso é ainda mais característico da sensação, que exprime a essência do objeto agindo sobre os órgãos sensitivos do homem, não sob uma forma material, mas sob uma forma ideal, subjetiva. Segue-se que a sensação não pode ser uma cópia literal e completa, um espelho refletor fiel aos objetos, mas sim uma 67
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A. B. Acton, The illusion of the epoch. Philosophical creed, Londres, 1955, p. 40. A. James Gregor, op. cit., p. 35. V. Lenin, op. cit., p. 121. 87
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reprodução modificada, segundo as particularidades do sujeito refletor, desses ou daqueles aspectos, propriedades, do objeto. Não se deve acreditar que isso tenha escapado aos críticos da teoria leninista do reflexo. Eles citam especialmente a passagem em que Lenin faz referência à subjetividade das sensações e o criticam. "Uma das tendências do marxismo contemporâneo, escreve sobre isso A. J. Gregor, dá uma interpretação das declarações de Lenin com um espírito crítico realista, isto é, afirma que a forma da sensação é subjetiva, enquanto seu conteúdo é objetivo. Em outros termos, a sensação de vermelho é uma forma subjetiva 'do conteúdo objetivo' da onda de comprimento dos 647.670 milionésimos de milímetro". " ( . . . ) Mas essa interpretação, ele prossegue, é vulnerável e podemos fazer a ela numerosas objeções'" . Em seu raciocínio contra a interpretação da sensação enquanto "imagem subjetiva do mundo objetivo", Gregor diz o seguinte: "Se consideramos que a sensação possui uma forma subjetiva e um conteúdo objetivo no sentido anteriormente citado, poderemos então dizer de forma precisa que as sensações 'refletem', 'representam', 'fotografam' a realidade? Não seria mais exato dizer que, nas melhores condições, as sensações 'assinalam' a 'realidade' (isto é, as ondas luminosas, os elétrons, os fótons etc.), que pode ser deduzida apenas por uma análise conceituai e uma construção lógica?'"? . O fato de que a sensação seja uma imagem subjetiva não exclui um outro fato, o de que ela reflete a realidade objetiva, da qual ela é uma cópia. A necessidade do pensamento abstrato, da análise lógica e da síntese para estabelecer a situação real das coisas e descobrir a essência do objeto agente sobre os órgãos sensitivos não mostra que a sensação não reflete a realidade, mas sim que ela reflete, copia seus aspectos exteriores, o que se encontra na superfície, isto é, o fenômeno. E o fenômeno, como já dissemos, não coincide com a essência, ele a deforma. Refletindo o fenômeno e os aspectos exteriores da realidade objetiva, a sensação não está em condições de nos fornecer o conhecimento da essência. É por isso que surge a necessidade do pensamento abstrato que, por meio da análise 70
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A. James Gregor, op. cit., p. 38. A. James Gregor, op. cit., p. 38.
lógica das sensações e da edificação de construções correspondentes, realiza a passagem do exterior ao interior e reproduz de maneira mais ou menos precisa a situação exata das coisas. É preciso salientar aqui que a passagem do exterior ao interior, da fixação do fenômeno nas sensações à reprodução da essência do objeto no processo do pensamento abstrato torna-se possível unicamente porque a realidade objetiva, seus aspectos e seus momentos são refletidos, são copiados nas sensações, porque é apenas apoiando-se sobre o conhecimento desses aspectos e propriedades próprios ao objeto refletido, existente objetivamente com relação à natureza, que o conhecimento teórico pode edificar construções conceituais, que reproduzirão a essência do objeto estudado no sistema dos conceitos abstratos. Assim, a subjetividade das sensações e o fato de que elas não estão em condições de fornecer o conhecimento da essência do objeto agente sobre os órgãos sensitivos não provam que elas não refletem a realidade objetiva. A segunda objeção de Gi'egor à subjetividade das sensações é igualmente sem fundamento. "Se, ele declara, apenas a forma subjetiva (as sensações) nos é imediatamente dada, quem pode nos garantir que podemos adivinhar o conteúdo objetivo da experiência sensível?" . Quando Lenin diz que a sensação é uma imagem subjetiva do mundo objetivo, ele entende por subjetividade a dependência das sensações ao sujeito, isto é, sua existência na consciência do homem, como formações ideais, espirituais. Sendo subjetivas por sua forma de existência, as sensações encerram, em seu conteúdo, momentos que, sob uma forma específica para o sujeito (sob a forma de imagens ideais conscientes), refletem os aspectos correspondentes do objeto agente sobre os órgãos dos sentidos do homem e têm "um conteúdo independente do sujeito,, independente do homem e da h u m a n i d a d e " , a presença desses momentos objetivos no conteúdo das sensações garante o fato de que a experiência sensível nos dá um conhecimento definido, verdadeiro, do mundo exterior, da realidade objetiva. Gregor entende a subjetividade a sua maneira. Para ele, a subjetividade das sensações designa a ausência no mundo das 72
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A. James Gregor, op. cit., p. 38. V. Lenin, op. cit., p. 125.
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propriedades das quais tomamos consciência por meio das sensações. É por isso, e não por acaso, que ele nega a existência no mundo ambiente de todas as propriedades colocadas em evidência pelos homens no processo do conhecimento. E ainda mais, ele faz a imputação dessa negação a Lenin. " ( . . . ) Agora, com o aparecimento da relatividade e da física nuclear, ele declara, não há mais qualidade única das 'coisas' que, em um certo sentido, não seja 'refutada'. Nem o comprimento, nem a extensão, nem a cor, nem o gosto, nem a forma, nem a estrutura, nem a impenetrabilidade podem apresentar-se como qualidades objetivas no sentido ontológico. Sob a pressão dessas considerações, Lenin foi obrigado a afirmar que a 'filosofia do materialismo' não deve designar qualidades definitivas do objeto percebido, com exceção da propriedade 'de existência incondicional fora da c o n s c i ê n c i a ' . Depois de ter feito de Lenin um subjetivista, Gregor escreve que: "Se nós só somos capazes de determinar corretamente, em parte, as propriedades objetivas da matéria, como podemos dizer que as sensações 'copiam', 'refletem' e 'fotografam' essas propriedades?" . No que concerne a Gregor, ele deve ter, é claro, liberdade para ter a representação que ele quiser para essa ou aquela propriedade da realidade ambiente. Mas, pelo fato de que ele confere a Lenin seu próprio ponto de vista, devemos deter-nos nesse particular e examiná-lo mais detalhadamente. Em primeiro lugar, nem a teoria da relatividade, nem a física nuclear refutaram a objetividade da existência das propriedades da matéria como o espaço, o tempo, a forma, a estrutura etc. Não é sua objetividade, sua existência fora e independentemente da consciência que é refutada, mas seu caráter absoluto, sua imutabilidade, sua independência com relação às formas concretas de existência da matéria. Em segundo lugar, falando da objetividade da existência, como propriedade única da matéria, em cujo reconhecimento está ligado o materialismo filosófico, Lenin não negava a existência, na matéria, de outras propriedades universais e específicas; como por exemplo, ele salientava especialmente que esta 7 4
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A. James Gregor, op. cit., p. 38-9. A. James Gregor, op. cit., p. 39.
é inconcebível sem o movimento, fora das características espaciais e temporais etc. Ele fazia referência não à ausência na matéria e nas formas concretas de seu ser dessas ou daquelas propriedades objetivas, mas à relatividade de nossas representações dessas propriedades, à inevitabilidade da modificação dessas representações no decorrer do desenvolvimento do conhecimento social e da prática. Mas, falando do caráter relativo de nossos conhecimentos dessas ou daquelas propriedades da realidade objetiva, Lenin destacava que elas trazem em si momentos de absoluto, que nem tudo em seu conteúdo muda com o desenvolvimento do conhecimento. Algumas idéias, teses, conceitos, por refletirem de forma justa esse ou aquele aspecto da realidade, permaneceram e constituem elos que formam uma corrente infinita da verdade absoluta. Logo, a afirmação de Gregor, segundo a qual "nós só podemos determinar corretamente uma parte das propriedades objetivas da matéria", é, simplesmente, muito errada, não corresponde à situação real. A prática social mostra que podemos determinar com precisão suficiente numerosas propriedades da realidade ambiente. Ela demonstra constantemente que nossas sensações refletem, copiam essas propriedades. Certos autores, e em particular Acton, apresentam o seguinte argumento contra a concepção marxista da sensação enquanto reflexo, cópia da realidade objetiva: "Se o sujeito perceptivo, ele declara, nunca tem acesso direto às realidades materiais que existem fora dele, mas tem apenas acesso às cópias que essas matérias produzem nele, então o sujeito não pode saber quais cópias são verdadeiras e quais são falsas, quais as que se assemelham e quais as que não se assemelham a seus originais" . Efetivamente, a realidade objetiva apresenta-se ao homem sob a forma de imagens subjetivas que são suas cópias, mas isso não significa que o homem não tenha acesso imediato à realidade objetiva. Esse acesso é aberto para ele pela atividade prática, no curso da qual, orientando-je pelas cópias ideais dos aspectos e ligações dessa realidade que se encontram em sua consciência, o homem transforma a realidade e assim ele próprio diz se essas cópias correspondem ou não ao original. 76
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H. B. Acton, op. cit., p. 37.
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Da mesma maneira, referem-se freqüentemente ao fato de que a concepção da consciência, como reflexo da realidade, não é específica do marxismo, que não representa o que o marxismo trouxe de novo para o estudo desse problema e que tal solução da questão é um feito não apenas de todos os materialistas pré-marxistas, mas também de certos idealistas. Alegando a concepção das sensações como cópias, fotografias e imagens de coisas, expressa por Lenin, A. James Gregor faz notar, por exemplo, que: "Tem-se a impressão de que Lenin adota esse tipo de representação identificando-se com o materialismo dos séculos XVII e XVIIF' ' . "A teoria do reflexo, escreve sobre isso Markovic, não é típica da filosofia marxista; desde Demócrito, ela foi defendida pelas diferentes formas do realismo ingênuo e do materialismo mecanicista. Esta teoria não exprime o elemento novo trazido por Marx à Filosofia'" . Segundo Branko Bosniak, se se trata da teoria do reflexo, é interessante lembrar que ela não é específica da teoria do materialismo filosófico. A teoria do reflexo foi apresentada pela primeira vez no sistema filosófico de Platão, que considerava que tudo o que existe (o real) deve ter seu modelo em alguma coisa de absoluto (a idéia) . . .'"79. A teoria do reflexo, declara Dano Grlic, "evidentemente não é um produto especial do pensamento marxista e os materialistas não são os únicos a aceitá-la. . . já que ela também é aceita por vários idealistas objetivos. Platão que, por coisas objetivas entende as idéias e também considera que o processo cognitivo desenvolve-se no plano do subjetivo está, sem dúvida alguma, de acordo com ela.. . "so. É verdade que a concepção da consciência como reflexo da realidade caracteriza não apenas o marxismo, mas também a filosofia pré-marxista. É também verdade que esta concepção não constitui o elemento novo trazido pelo marxismo à Filosofia. A filosofia marxista não nasceu do nada, ela é herdeira de tudo o que é racional, de tudo o que foi obtido pela filosofia precedente. É precisamente a esse racional que se relaciona a tese segundo a qual a consciência é um reflexo da realidade. 7 1
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"A. James Gregor, op. cit., p. 36. M. Markovic, op. cit., p. 129. ™Neki problemi teorije odraza, p. 108. "Neki problemi teorije odraza, p. 134. 78
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Tendo emprestado essa tese dos filósofos materialistas, Marx e Engels não a deixaram em sua forma primitiva, mas a desenvolveram. Eles a livraram de seu caráter contemplativo e mecanicista. Para Marx e Engels, o reflexo da realidade objetiva pela consciência não se produz passivamente, como no espelho, nem de forma estática, como pensavam os materialistas pré-marxistas, mas de maneira ativa, criativa, sobre a base e no decorrer da transformação prática da realidade. E tudo isso constitui precisamente o elemento novo introduzido por Marx e Engels na concepção do reflexo da realidade objetiva pela consciência, concepção da qual parte Lenin na elaboração da teoria do reflexo. Os críticos da teoria leninista do reflexo a apresentam como se ela não se distinguisse em nada das concepções da consciência, apresentadas pelos materialistas pré-marxistas. Alguns, como Gajo Petrovic e outros, consideram que o mérito de Marx e Engels foi o de considerar o homem como um ser criador e de assim ter transposto o caráter contemplativo do materialismo anterior, mas eles também afirmam que a teoria do reflexo contradiz a essência da teoria marxista, embora essas teses tenham sido apresentadas tanto nas obras de Marx e .Engels com nas de Lenin. Sobre isso Petrovic escreve que: "Eu sublinho que a teoria do reflexo é incompatível com a concepção marxista do homem, como ser criador prático. Quando digo isso, não afirmo absolutamente que essa teoria não se encontre nas obras de Engels e Lenin e mesmo nas de Marx" . "Os elementos da teoria do reflexo, ele prossegue, são descobertos até mesmo onde não esperávamos encontrá-los, como, por exemplo, na primeira parte da tese de Marx sobre Feuerbach, se a examinamos isoladamente. Em compensação, essa teoria encontra-se em contradição com toda a concepção marxista do mundo e do homem" . Outros ainda, percebendo a introdução feita por Marx, do momento da atividade na teoria do conhecimento, dizem que ele foi obrigado a adotar essa atividade para satisfazer sua teoria materialista do desenvolvimento social. ( . . . ) Para garantir, escreve Henry B. Mayo, o fundamento determinista de 81
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«G. Petrovic, op. cit., p. 255. s G. Petrovic, op. cit., p. 257. 2
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suas leis de aço da história, Marx tinha freqüentemente a tendência de adotar essa atividade (atividade do sujeito manifestando-se no processo de sua interação com a realidade que o rodeia — A. Ch.) e fazer dela alguma coisa que se assemelha às mais simplistas concepções de Engels e de Lenin, segundo as quais a consciência é um simples reflexo da matéria dialética'^. Os críticos da concepção leninista da consciência como reflexo da realidade não podem ou não querem compreender que essa tese não somente não contradiz a concepção marxista do homem enquanto ser prático criador, mas que ela é um aspecto necessário dessa concepção e que não apenas ela não conduz à diminuição da atividade do sujeito em sua influência sobre a realidade ambiente, mas ainda que ela torna possível o fundamento científico dessa atividade, descobrindo as condições da ação criadora do sujeito. No que concerne aos argumentos segundo os quais os idealistas objetivos compartilham a concepção da consciência como reflexo da realidade, e segundo os quais uma tal concepção caracteriza a teoria de Platão, esses argumentos não têm nenhum fundamento real. Para os marxistas, a concepção da consciência como reflexo da realidade está ligada à solução materialista da questão fundamental da Filosofia e constitui um aspecto necessário dessa solução. A consciência é secundária em relação à matéria, porque é engendrada por ela em um certo estágio de seu desenvolvimento e também porque é o reflexo da matéria que existe fora e independentemente dela. Nenhum idealista pode aceitar essa solução da questão. Para os idealistas, a consciência não é segunda em relação à matéria, ela é primeira, engendra a matéria, as coisas sensíveis e, de uma maneira ou de outra, reflete-se nelas. Para eles, não são as idéias que a constituem que são fotografias, cópias das coisas materiais, mas, pelo contrário, estas últimas é que são cópias das idéias. E isso é também precisamente o que acontece com a solução dessa questão na teoria de Platão. Parece-nos, então, muito claro que a concepção marxista da consciência, como reflexo da realidade, não apenas nada tem em comum com a concepção idealista e, em particular, com a concepção platônica, mas ainda que ela é diretamente oposta a elas. 83
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H. B. Mayo, Introduction of marxist theory, New York, 1960, p. 44.
Examinamos o conjunto dos principais argumentos apresentados por diferentes autores contra a concepção marxista da consciência como reflexo da realidade e vimos que eles não têm fundamento. A consciência é uma forma particular, superior do reflexo do mundo exterior e é unicamente por isso que ela pode orientar o homem na realidade ambiente e transformá-la, modificá-la de forma criativa.
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IV. AS CATEGORIAS COMO GRAUS DO DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO SOCIAL E DA PRÁTICA Com o surgimento da consciência, o reflexo da realidade, pelo sujeito, adquire um caráter consciente e manifesta-se, antes de tudo, sob a forma de conhecimento, chamado para assegurar à sociedade os conhecimentos necessários para a organização e o desenvolvimento da produção, assim como a transformação do meio ambiente no interese do homem. Estando ligado organicamente à atividade laboriosa dos homens e à prática, o conhecimento, como já fizemos observar, funciona a partir da prática e desenvolve-se da intuição viva ao pensamento abstrato, e do pensamento abstrato à prática, como critério de verdade. Repetindo um número infinito de vezes o ciclo: intuição viva-pensamento abstrato-prática, o conhecimento desenvolve-se, descobre novos aspectos e ligações e, em um certo estágio de seu desenvolvimento, começa a captar e a distinguir as propriedades e as ligações universais e a tomar consciência das leis universais da realidade e das formas universais do ser. Os aspectos e as ligações universais conhecidos exprimemse, como já dissemos, nas categorias que, sendo formas do reflexo do universal, são também, ao mesmo tempo, pontos centrais, graus do movimento do conhecimento inferior ao superior. Em que ordem realizou-se o conhecimento das formas universais do ser, das propriedades e das ligações universais da realidade? Em que ordem surgiram as categorias filosóficas e qual a relação existente entre elas, enquanto graus do desenvolvimento do conhecimento social? Vamos tentar aqui responder a essas perguntas. .124
1.
A RELAÇÃO ENTRE AS CATEGORIAS DA DIALÉTICA ENQUANTO GRAUS DO DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO
Sabemos que a forma primeira, a mais simples do aparecimento da consciência, é a tomada de consciência, pelo homem, de sua existência, a separação de si com relação à natureza e a compreensão de sua relação com ela. O animal não se distingue da realidade que o rodeia, ele não sabe que existe. "O animal, escrevem a esse respeito Marx e Engels, 'não está em relação' com nada, não conhece, somando tudo, nenhuma relação. Para o animal, suas relações com os outros não existem enquanto relações"!. É o homem que, tendo já adquirido a consciência, nota pela primeira vez sua existência e toma consciência de seu relacionamento com o mundo exterior. Desligando-se da natureza pelo trabalho, o homem toma consciência de sua autonomia e de seu relacionamento com o mundo exterior por meio da ação ativa que ele exerce sobre este último, transformando-o, segundo seu projeto, no interesse da sociedade. Isso condiciona o fato de que a relação do homem com o mundo exterior manifeste-se, antes de tudo, como uma interação com o mundo, cujo resultado é a transformação deste último. Esses momentos do relacionamento do homem com a realidade ambiente são captados por meio dos conceitos de correlação e de movimento. A separação em si, com relação à natureza, supõe a tomada de consciência pelo homem da espacialidade, da existência dos objetos fora dele e, ao mesmo tempo, do aparecimento da representação, depois do conceito de espaço, das características espaciais. O conhecimento das particularidades das transformações intervindo na realidade ambiente, em decorrência da atividade laboriosa, conduz à formação do conceito de tempo, como medida de toda modificação e de todo movimento concretos. Confrontando-se no processo do trabalho e na vida quotidiana com o particular, isto é, com os objetos, fenômenos, processos particulares, o homem distingue aqueles dentre eles 'K. Marx, F. Engels, L'idéologie alemande, p. 59.
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que,'estando de uma maneira ou de outra ligados a sua atividade vital, poderiam ser utilizados para a satisfação dessa ou daquela necessidade da sociedade e os concebia, no começo, como alguma coisa singular, inédita, jamais encontrada. Mas, à medida que foi descobrindo outros objetos, capazes de satisfazer a essa mesma necessidade, o homem os reuniu em um mesmo grupo e fez deles uma representação geral, depois um conceito, e assim executou a passagem, na consciência, no pensamento, do singular ao geral e, no curso do desenvolvimento ulterior da prática, ao universal. Tomando consciência do particular (objeto, processo, fenômeno) como singular, o homem julgava-o sob o ângulo de sua qualidade e esforçava-se para elucidar o que representava esse objeto. Nesse grau do desenvolvimento do conhecimento do objeto, as características quantitativas eram indiferenciadas e manifestavam-se como qualitativas. Mas, à medida que o homem passava de um objeto para vários, e comparando-os na prática e na consciência, ressaltava sua semelhança, isto é, o geral e o diferente (particular), ele começava a tomar consciência das características quantitativas. Cada aspecto da qualidade, cada uma de suas propriedades pareciam desdobrar-se; ao lado da manifestação do que ela representava, revelava também sua grandeza. As características qualitativas e quantitativas distinguidas nesse grau do desenvolvimento do conhecimento são consideradas pelo homem como coexistentes, independentes umas das outras. O desenvolvimento ulterior do conhecimento do objeto conduz à descoberta da correlação e da interdependência orgânicas das características qualitativas e quantitativas, de sua interpenetração e de sua passagem de uma a outra. Com o conhecimento da correlação entre os diferentes aspectos da qualidade, entre as características quantitativas e as passagens recíprocas da quantidade e da qualidade, o homem consegue tomar consciência de que a transformação de um aspecto, de uma propriedade, de um fenômeno é condicionada por uma certa modificação de um Outro aspecto, uma outra propriedade, um outro fenômeno. O que engendra o outro e condiciona seu aparecimento reflete-se no conceito de causa-, o que é engendrado e condicionado reflete-se no conceito de efeito. .126
O estudo da ligação de causa e efeito, mostra que, em certas condições, a causa engendra o efeito corespondente, que a ligação da causa e do efeito possui um caráter necessário. Surge, então, o conceito de necessidade. A necessidade é, antes de tudo, concebida como propriedade da ligação de causa e efeito. Entretanto, no decorrer do desenvolvimento do conhecimento, o conteúdo do conceito de necessidade vai precisando-se. Começa-se a considerar como necessários não somente os laços causais, mas também todas as ligações que se manifestam necessariamente em certas condições, e não apenas as ligações, mas também as propriedades e os aspectos, próprios ao objeto por sua natureza. As ligações necessárias estáveis, repetindo-se, começam a ser consideradas como leis, a ser concebidas mediante o conceito de lei especialmente criada pelo seu reflexo . Â medida que vão-se acumulando conhecimentos sobre as propriedades e ligações (leis) necessárias no domínio estudado da realidade, surge a necessidade de reunir todos esses conhecimentos em um todo único e de considerar todos os aspectos (propriedades) e ligações (leis) necessárias do objeto em sua interdependência natural. A reprodução, na consciência e no sistema, de imagens ideais (conceitos) do conjunto dos aspectos e ligações necessários próprios ao objeto representa o conhecimento de sua essência. O movimento em direção da essência começa com a definição do fundamento — do aspecto determinante, da relação — que desempenha o papel de célula original na tomada de consciência teórica da essência do todo estudado. A dedução (explicação), desde o princípio de partida, de todos os aspectos que constituem a essência do objeto supõe a análise do fundamento (do aspecto determinante, da relação) em seu movimento, seu aparecimento e seu desenvolvimento, porque é precisamente no curso de seu desenvolvimento que o fundamento faz nascer e transforma outros aspectos e relações do todo (do fundamentado) e assim forma sua essência. A representação da célula original (do fundamento) do todo estudado em movimento e em desenvolvimento presume a descoberta de tendências contraditórias que lhe são próprias, da luta dos contrários que condiciona sua passagem de um estado qualitativo a outro. Assim, o conhecimento, desenvolvendo-se, chega final.127
mente à necessidade da formação das categorias de "contradição", de "unidade" e de "luta dos contrários". Colocando em evidência a contradição própria do fundamento e seguindo seu desenvolvimento e sua resolução, assim como a transformação do objeto, o sujeito descobre que a passagem do objeto de um estado qualitativo a outro, efetua-se mediante a negação dialética de certas formas do ser por outros, a manutenção do que é positivo no negativo e a repetição do que já passou sobre uma nova base superior. Os conceitos de negação dialética e de negação da negação surgiram para refletir essa lei. O conhecimento do objeto não termina com a reprodução da essência na consciência. Ele vai ainda mais longe: por um lado, da essência ao fenômeno (as propriedades e as ligações contingentes exteriores explicam-se a partir dos aspectos e das ligações interiores), por outro lado, da essência da ordem primeira à essência da ordem segunda e assim sucessivamente até o infinito (à medida que descobrimos novas propriedades e ligações necessárias do objeto, são produzidas a elucidação teórica de sua essência e a elaboração de um sistema de conceitos por seu reflexo, que é sempre mais preciso e completo). 2.
ORDEM DE APARECIMENTO E DE APLICAÇÃO DAS CATEGORIAS DA DIALÉTICA NO CURSO DO DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO CIENTIFICO Pode-se observar a lei do movimento do conhecimento de uma categoria a outra no desenvolvimento dos conhecimentos científicos. Pelo fato de que as categorias são graus necessários do desenvolvimento do conhecimento social, o movimento de umas às outras deve necessariamente surgir em qualquer domínio do saber. Tomemos como exemplo a história do desenvolvimento do conhecimento dos fenômenos elétricos. Sabe-se que na Antigüidade o âmbar foi descoberto sob a forma de objetos particulares, existindo de forma autônoma. Com o manuseio do âmbar, do qual faziam jóias e ornamentos, os homens notaram que, friccionado, ele adquiria a faculdade de atrair outros .128
corpos. A primeira coisa que foi observada nesse fenômeno foi a ligação existente entre a faculdade do âmbar de atrair outros corpos e a fricção, e a ligação do âmbar, pela atração, com outros corpos, assim como as modificações condicionadas por essas ligações (interações), isto é, o movimento. Tudo isso no começo não passou de observações isoladas, concernindo certos casos de polimento do âmbar. Em seguida, à medida que esse fenômeno se reproduzia, os homens conceberam a idéia de que o âmbar era uma substância capaz de manifestar, por meio da fricção, propriedades elétricas. O desenvolvimento ulterior do conhecimento da eletricidade prosseguiu com a descoberta de novos corpos capazes de manifestar, por meio da fricção, propriedades elétricas e da formação, assim, de uma representação sempre mais geral da eletricidade. Na Grécia do século IV, antes de nossa era, por exemplo, a propriedade de atrair corpos leves por fricção foi observada em uma pedra preciosa chamada lynkurion. No fim do século XVI, o sábio inglês William Gilbert descobriu essa mesma propriedade no diamante, na safira, na ametista, no cristal de rocha, no enxofre, na resina e em outras substâncias. Em seguida, ficou estabelecido que a faculdade de uma substância de atrair por fricção outros corpos (mais. leves) pertencia a todos os corpos maus condutores de eletricidade. Finalmente, no começo do século XVIII (1729), o físico inglês Stephen Gray descobriu essa faculdade em corpos que eram também bons condutores de eletricidade. Ele estabeleceu, então, que se esses corpos fossem colocados sobre um suporte isolante, eles poderiam ser eletrizados por fricção. No decorrer dessas pesquisas, as características qualitativas e quantitativas dos fenômenos elétricos foram colocadas em evidência. Depois de haver descoberto a propriedade do âmbar de, friccionado, atrair outros corpos, os homens esforçaram-se, naturalmente, para compreender o que representava esse fenômeno, isto é, esforçaram-se para elucidar seu aspecto qualitativo. E para conseguir isso, eles compararam esse a outros fenômenos. Comparando os fenômenos elétricos com os fenômenos eletromagnéticos, Gilbert (1600) observou, por exemplo, que a força elétrica surge graças à fricção, que desaparece no momento do contato com alguns corpos, que atrai os mais diferentes corpos etc. Mais tarde, Guericke (1672) estabeleceu que ao lado da atração elétrica existe também a .129
repulsão elétrica. Em 1729 Stephen Gray, generalizando várias experiências com a eletricidade, concluiu que todos os corpos dividem-se em condutores e em isolantes. Algum tempo depois (1730), Du Fay estabeleceu que a eletricidade é qualitativamente heterogênea e que há dois tipos de eletricidade. Em 1749, Franklin descobriu que, no momento da eletrificação dos corpos, manifestam-se sempre dois tipos de eletricidade, iguais em qualidade. Alguns anos mais tarde, John Canton descobriu a faculdade que um corpo, colocado sobre um suporte isolante, tem de eletrificar-se, se dele for aproximado um outro corpo carregado de eletricidade etc. Assim, evidenciando uma após a outra, as propriedades da eletricidade, os sábios formaram uma idéia cada vez mais completa de sua qualidade. Depois de ter sido dada uma certa explicação sobre o aspecto qualitativo dos fenômenos elétricos, a atenção dos pesquisadores voltou-se em direção ao aspecto quantitativo e às características desses fenômenos. Charles Coulomb deu um passo decisivo no estudo do aspecto quantitativo da eletricidade. Utilizando um aparelho que ele havia criado para medir as forças de atração e de repulsão elétricas (balança de torsão), estabeleceu, em 1784, uma série de características quantitativas fundamentais da eletricidade. A partir do século XIX, observa-se a passagem ao estudo da correlação entre os diferentes aspectos quantitativos e qualitativos, assim como entre as características qualitativas e quantitativas dos fenômenos elétricos. Em 1826, o físico alemão Ohn provou que a resistência do condutor depende do comprimento desse condutor, da superfície de sua secção e de sua natureza. Bem mais tarde, o acadêmico russo Lenz e o físico inglês Joule estabeleceram que a quantidade de calor desprendida no momento da passagem da corrente elétrica em um condutor depende da resistência desse condutor, da intensidade da corrente e de sua duração. No decorrer da análise da correlação das características qualitativas e quantitativas dos fenômenos elétricos, foi feita a tentativa de estabelecer o laço de causa e efeito desses fenômenos e de colocar em evidência as causas que os condicionam. Assim, no começo do século XIX, o italiano Volta explicou que há o aparecimento de uma corrente elétrica quando metais diferentes são reunidos por uma articulação úmida. Em 1821, o francês Arago descobriu que a agulha imantada desvia-se .130
no campo de uma corrente elétrica; em 1831, Faraday explicou porque a rotação de um círculo de cobre provoca o desvio da agulha imantada etc. Os laços de causa e efeito, colocados em evidência nos fenômenos elétricos, foram apresentados como necessários, produzindo-se necessariamente em certas condições. Arago, por exemplo, apresentou como necessário o laço de causa e efeito no aparecimento de um campo magnético em torno de um condutor percorrido pela corrente elétrica; o laço do campo magnético e do desvio da agulha imantada foi apresentado como necessário por Oersted. As ligações necessárias mais importantes são concebidas mediante a categoria de lei. A dependência da resistência do condutor de sua substância, de seu comprimento e da superfície de sua secção, por exemplo, colocada em evidência por Ohm, foi chamada de lei. A quantidade de calor emitida no momento da passagem da corrente elétrica pelo condutor depende necessariamente da resistência do condutor, da intensidade da corrente e do tempo; isso foi expresso em uma lei da Física por Lenz e Joule. Por meio da categoria de lei foi concebida a ligação necessária, evidenciada por Faraday, entre a substância depositando-se sobre os elétrons e a quantidade de eletricidade que atravessa o eletrólito etc. À medida que houve o acúmulo de conhecimentos sobre os aspectos e as ligações (leis) concernentes aos fenômenos físicos, houve também a tentativa de estabelecer sua interdependência, de reuni-los em uma teoria única, isto é, de reproduzir na consciência a essência da eletricidade. O período do desenvolvimento do conhecimento dos fenômenos elétricos, que começou com a descoberta do elétron e do próton. é um exemplo do grau do movimento do conhecimento. Com a descoberta do elétron, portador de carga elétrica negativa, e depois com a descoberta do próton, cuja carga é positiva, o átomo foi considerado como uma formação material constituída por uma quantidade igual de elétrons e de prótons. A carga do corpo era explicada pelo fato de que, por determinadas razões, o número de elétrons não correspondia ao número de prótons. Se havia menos elétrons do que prótons, o corpo era considerado como tendo carga positiva, se havia mais elétrons do que prótons, o corpo era considerado como tendo carga negativa. Segundo essas concepções, a eletrificação dos corpos .131
não representava nada mais do que a criação neles de uma insuficiência ou de uma superabundância de elétrons para sua transmissão para outros corpos ou seu empréstimo destes últimos. Isso explicava porque o aparecimento de uma certa carga elétrica em um corpo acarreta necessariamente o aparecimento de uma carga oposta equivalente em um outro corpo. Partindo da interação dos elétrons e dos prótons, a divisão da carga entre os corpos carregados ou não-carregados no momento de seu contato, assim como o desaparecimento da carga no momento do contato de corpos carregados opostos e a introdução eletroestática etc. eram facilmente explicados. A descoberta do elétron, como parte constitutiva do átomo de qualquer substância, permitia igualmente a compreensão do fato de que certos corpos são condutores de eletricidade, enquanto outros corpos não o são. Esse fenômeno está ligado à estrutura da camada eletrônica dos átomos. Partindo da estrutura eletrônica, a essência de alguns fenômenos elétricos torna-se compreensível, como, por exemplo, a corrente galvânica, a termoeletricidade, a introdução eletromagnética etc. Dessa forma, o elétron constitui a base, o elo fundamental e decisivo a partir do qual poderia ser explicado o conjunto dos fenômenos elétricos, representando-os como um todo, como uma corrente única da manifestação da natureza eletrônica da substância. Nesse estágio de seu desenvolvimento, o conhecimento consegue captar a essência da eletricidade e compreender as propriedades (fenômenos) elétricas em sua ligação necessária e em sua interdependência. Assim, o desenvolvimento do conhecimento da eletricidade testemunha que o conhecimento começa com a colocação em evidência do particular, dos fenômenos particulares, de seu isolamento e que passa ao reflexo de sua correlação, de sua interação e da modificação (do movimento) desses fenômenos particulares, que ele acarreta. No começo, o particular era percebido como singular, depois, no curso da comparação com outros fenômenos (objetos) particulares, o geral distinguiu-se e houve o movimento do menos geral para o mais geral e, enfim, para o universal. No processo do movimento do conhecimento, do singular para o geral, efetua-se a evidenciação da qualidade e da quantidade do objeto estudado e a passagem da primeira à segunda, assim como sua correlação e, depois, .132
a passagem à causalidade, à necessidade, à lei, ao fundamento, à contradição e à essência. 3.
A RELAÇÃO DAS CATEGORIAS COMO PONTOS CENTRAIS, CONSIDERADA SOB O ÂNGULO DO DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO A lei do movimento do conhecimento de uma categoria a outra, que mencionamos acima, aparece claramente na história da Filosofia, na ordem do estudo das categorias e da elaboração das formas de movimento do pensamento filosófico. Para examinar esse ponto, deteremo-nos um pouco na história da Filosofia ocidental. Os primeiros filósofos gregos, Thales, Anaxímenes e Anaximandro davam uma importância excepcional às categorias de "ligação" e de "movimento". Essas categorias desempenhavam o papel de princípios iniciais na elaboração de suas concepções do mundo. O estudo das categorias de correlação e de movimento tornou necessária a análise dos conceitos de espaço e de tempo. Os filósofos da Antigüidade referiam-se aos conceitos de espaço para fundamentar o ser real das coisas e de seu movimento. Para a existência e o movimento das coisas, segundo eles, é preciso um lugar, isto é, o espaço. Lucrécio, por exemplo, dizia que se não houvesse nem espaço, nem lugar — o que nós chamamos de vazio — os corpos não poderiam encontrar-se em lugar algum e também não poderiam deslocar-se. A formação do conceito filosófico de espaço encerrou-se com a filosofia de Aristóteles que foi o primeiro a utilizar esse conceito como categoria. Considerando o espaço como um lugar ocupado alternadamente pelas coisas, ele relaciona essa categoria com o limite que separa um corpo do outro e assim reúne a categoria de espaço à categoria de relação. No que concerne ao conceito de tempo, apenas Aristóteles o estabeleceu definitivamente como categoria. Ò tempo, segundo Aristóteles, é uma característica do movimento que exprime nele a duração. O tempo, salientava Aristóteles, é apenas "o número do movimento" . Para mostrar a ligação 2
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Aristóteles, Phisique, Paris, I-IV t. 1, v. 1-4, p. 150.
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orgânica do tempo e do movimento, ele escreveu: " . . . medimos não somente o movimento pelo tempo, mas também o tempo pelo movimento, porque eles determinam-se reciprocamente; já que o tempo determina o movimento, do qual ele é o número, e o movimento, o tempo" . Nesse mesmo período desenvolveu-se a elaboração das categorias do "singular" e do "geral". Os primeiros filósofos gregos e, em particular, os representantes da escola de Mileto elaboraram suas concepções partindo do particular, do singular (da água, do ar etc), que tomava, para eles, a forma do ser dos fenômenos concretos, embora também desempenhasse o papel de princípio primeiro de tudo o que existe. Para Platão, a forma determinante do ser é o geral, as essências ideais gerais que constituem o mundo real; quanto ao particular, ao singular, Platão denomina-o o mundo das sombras, cópia imperfeita do mundo das idéias. Aristóteles empreende a tarefa de colocar em evidência dialética do singular e do geral, do geral e do particular. Considerando o mundo exterior, a realidade ambiente por meio do prisma do particular, do singular, os primeiros filósofos gregos estudavam os fenômenos que aí se desenvolviam sob o ângulo de sua qualidade. Os pitagóricos concentraram sua atenção no aspecto quantitativo dos objetos. No estudo desse problema, Empédocles e Anaxágoras deslocaram o centro da gravidade para a correlação da quantidade e da qualidade. Segundo Empédocles, por exemplo, a qualidade de uma coisa é determinada pela proporção na qual agrupam-se os quatro elementos ("princípios") que a compõem: a água, a terra, o ar e o fogo. Essa elaboração, e a transformação posterior, dos conceitos de qualidade e de quantidade e de sua correlação em categorias foi efetuada por Aristóteles. A filosofia de Aristóteles encerra o período do movimento do conhecimento do singular ao geral e, em conseqüência, da qualidade à quantidade e de sua correlação. Mas, encerrando uma etapa do movimento do conhecimento, Aristóteles começava outra. Ele analisa as categorias de "causalidade" e de "forma". A filosofia da Idade Média nada acrescentou à contribuição de Aristóteles na elaboração dessas categorias e também não trouxe nada de novo na análise das categorias 3
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Aristóteles, op. cit., p. 153-4.
de singular e de geral, que permaneceram, entretanto, sempre no centro das atenções. Mais tarde, a intelecção das categorias de causalidade e de forma entra, juntamente com a filosofia de Francis Bacon, nos tempos modernos. Ao contrário de Aristóteles, segundo o qual a causa original encontrava-se fora da matéria, Bacon considerava que as causas das coisas estão contidas nos elementos (as naturezas), a partir dos quais se forma a coisa, isto é, não fora da matéria, mas nela própria . Procedendo à análise da causalidade, Bacon pressentiu sua ligação com as categorias de forma e de lei (necessidade). Segundo ele, as causas das naturezas particulares (fenômenos, propriedades) são formas que não representam nada além de leis®. Na questão da concepção da forma, Francis Bacon deu um grande passo a frente de Aristóteles que, separando a forma da matéria, reconhecia a existência de uma matéria indefinida (informe) e de uma forma imaterial pura e, particularmente, a forma de todas as formas — Deus. Segundo a teoria de F. Bacon, a forma é inseparável da coisa material, existe nela mesma, determina sua natureza, é uma lei à qual esta coisa é submissa . Isso prova, precisamente, que a teoria de Bacon é que representa esse estágio da história da Filosofia, que corresponde ao grau de conhecimento ligado à colocação em evidência da ligação de causa e efeito e à formação dos conceitos de forma e de lei (necessidade). Mas esse estágio não se encerra com Francis Bacon. Encontramos o desenvolvimento da teoria da causalidade e de sua ligação com a necessidade em Spinoza, que salientou o caráter geral, universal da ligação da causa e efeito, identificando com a necessidade. Ao mesmo tempo, Spinoza colocou a questão da causa primeira, do fundamento dos fenômenos observados no mundo, da maneira pela qual as coisas começaram a existir e em que tipo de dependência elas encontram-se com relação à causa primeira; ele via na substância que, sendo 4
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F. Bacon, Oeuvres de Bacon: Nouvel Organon, Essais de morale et de politique de la sagesse des anciens, Paris, 1945, p. 86. F. Bacon, op. cit., p. 85-6. F. Bacon, op. cit., p. 150. 4
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sua própria causa, é também o fundamento de tudo o que existe. Prosseguindo o estudo da causalidade e da necessidade, começado por F. Bacon, Spinoza passa para um novo grau, um novo ponto nodal do desenvolvimento do conhecimento — passa às categorias do fundamento e do fundamentado. Mas, tomando a substância como fundamento de tudo o que existe e declarando-a eterna, infinita, imutável, Spinoza não podia explicar o aparecimento e a modificação das coisas e dos fenômenos limitados no espaço e no tempo. No começo de sua atividade filosófica, Kant fez a primeira tentativa para resolver esse problema — deduzir o fundamentado do fundamento. Segundo a hipótese de Kant, o surgimento e o desaparecimento dos mundos, das coisas e dos fenômenos é o resultado de tendências (forças) contrárias próprias à matéria — a atração e a repulsa. Tendo dado um passo no estudo da correlação do fundamento e do fundamentado, que consiste na colocação em evidência da natureza contraditória do fundamento e na explicação, a partir dela, do fundamentado (aparecimento e transformação das coisas e dos fenômenos particulares), Kant dedicou também uma grande atenção ao problema da lei, da necessidade, da forma, problema colocado e, de uma certa maneira, resolvido por F. Bacon e Spinoza. O período do estudo das categorias de necessário e de contingente, de conteúdo e de forma estende-se até Hegel que, na análise dialética dessas categorias, delimitou-as rigorosamente, colocando em evidência sua unidade contraditória, mostrando suas correlações e suas passagens de umas. às outras e que, dessa maneira, marcou o fim dessa etapa do movimento do pensamento filosófico. Mas isso não é o essencial da filosofia hegeliana. Ao nome de Hegel está ligado o estudo das leis do movimento do conhecimento dirigido para a essência. Desenvolvendo a idéia de Spinoza, segundo a qual a substância é sua própria causa, assim como a causa de tudo o que existe, e desenvolvendo também a teoria de Kant sobre a natureza contraditória da causa primeira, Hegel mostrou como a substância (o fundamento) desenvolve seu conteúdo e engendra a diversidade das formas do ser. Na qualidade de substância — de fundamento e de causa primeira de tudo o que existe — é encontrada em Hegel a "idéia absoluta" que, graças a sua natureza contraditória, no curso da negação .136
dialética de certas formas do ser por outras, cria e, ao mesmo tempo, fundamenta sua essência. Mostrando o processo do movimento do conhecimento em relação à essência, Hegel reconsiderou e colocou em uma ligação necessária e em uma dependência rigorosa todas as outras categorias da dialética. Mas foi Marx quem apresentou, com uma base materialista e científica conseqüente, leis da formação e do conhecimento da essência, aplicadas à formação capitalista. Como podemos ver, a ordem da elaboração das categorias na história da Filosofia corresponde, em seu conjunto, à relação entre as categorias enquanto graus do desenvolvimento do conhecimento social. 4. AS CATEGORIAS ENQUANTO GRAUS DO DESENVOLVIMENTO DA PRÁTICA SOCIAL O conhecimento das formas universais do ser dá-se no decorrer da atividade prática, no processo da transformação, orientada em direção a uma meta e à realidade. As ligações e as propriedades universais colocadas em evidência exprimemse não apenas nas imagens e conceitos ideais surgidos no decorrer do desenvolvimento do conhecimento, mas igualmente pelos meios de trabalho criados pelos homens e pelas formas de sua atividade humana. É por isso que, no curso da formação dessa ou daquela categoria, reflete-se não somente a especificidade do estágio correspondente ao desenvolvimento do conhecimento, mas também as particularidades de formas da atividade dos homens, formas de relacionamentos existentes entre eles, assim como as existentes entre eles e a natureza, que são dominantes no período considerado como sendo o do desenvolvimento histórico da sociedade. Por exemplo, a correlação, a interação e a modificação (movimento), concebidos pelo homem como formas universais do ser, nos primeiros graus do desenvolvimento do conhecimento, são momentos necessários e universais do trabalho, da transformação racional dos objetos da natureza em meios de existência. Com efeito, a atividade laboriosa tem por meta transformar esse ou aquele objeto ou fenômeno da natureza, por meio da ação de outro objeto (ferramenta) sobre ele, isto é, criar entre esses objetos uma certa ligação. No processo do trabalho, .137
colocando os objetos em uma outra ligação que não aquela encontrada em seu estado natural e fazendo-os agir uns sobre os outros, o homem conseguiu sua transformação no sentido que lhe convinha. Observando milhares de vezes esse fenômeno, ele concluiu, inevitavelmente, que tudo na realidade ambiente encontra-se em correlação, em interação e que tudo leva a modificações e transformações de um no outro. Ainda mais, é precisamente essa convicção de que os objetos do mundo exterior se encontram em correlação, agindo uns sobre os outros, e, em decorrência, a convicção de que eles podem transformar-se, que foi uma das condições necessárias para a organização consciente e o desenvolvimento ulterior da produção. Se o homem não soubesse ou não tivesse certeza de que os objetos que o rodeiam pudessem transformar-se, ele não teria começado a agir sobre eles, não teria igualmente organizado a produção. Na Antigüidade, o próprio funcionamento e o desenvolvimento da produção provaram não apenas que o homem conhecia a capacidade dos objetos do mundo exterior de se transformar, em decorrência de sua interação, mas também que ele utilizava com sucesso esse conhecimento em sua atividade laboriosa. A história do desenvolvimento da técnica testemunha a utilização da interação e das transformações que esta última implica, na atividade prática e, mais exatamente, no começo do desenvolvimento do conhecimento. Por exemplo, as primeiras formas de obtenção do fogo baseiam-se no friccionamento de dois objetos, assim como as primeiras máquinas elétricas basearam-se na interação, e assim por diante. A influência da atividade prática — e, em particular, das formas de ligação que se estabelecem na sociedade entre os homens, das formas de suas relações — sobre a formação das categorias, é expressa, por exemplo, pela maneira como se estabelece o fundamento da ligação e do movimento universais dados por Heráclito e que se baseiam na unidade (comunidade) da natureza primeira de tudo o que existe. Para provar que todos os fenômenos do mundo estão ligados e que passam uns pelos outros, a partir do fato de que eles têm uma natureza comum — o fogo —, Heráclito compara o papel desempenhado pelo fogo no mundo das coisas ao papel do ouro nas relações comerciais da sociedade humana. Esse filósofo dizia que tudo pode ser trocado pelo fogo e o fogo pode ser trocado por .138
qualquer coisa, assim como toda mercadoria pode ser trocada pelo ouro e o ouro por qualquer mercadoria. A ligação da teoria de Aristóteles sobre os quatro tipos de causas — final, normal, material, produtiva — na prática, é bastante evidente. Aristóteles expõe a base de sua teoria da causalidade, tomando, como exemplo, a construção de uma casa. Esse exemplo e o próprio fato de que Aristóteles tenha apresentado quatro tipos de causas mostram que ele procurava explicar o aparecimento das coisas na realidade ambiente por analogia com a criação no processo da atividade laboriosa dos homens. A dependência da formação das categorias da dialética, com relação à atividade prática, e o reflexo por elas desses ou daqueles aspectos e formas surgem igualmente na elaboração da concepção mecanicista da causalidade na filosofia prémarxista. Segundo essa concepção, as causas são forças exteriores que são aplicadas aos corpos para provocar o movimento. Essa representação da causa tem suas raízes na atividade laboriosa, exatamente na forma que ela possuía quando realizava-se essencialmente pela ação do organismo humano sobre o mundo exterior, assim como no mecanismo terrestre baseado na dualidade da relação de causa e efeito: um aspecto sendo ativo e o outro passivo. Mostrando o caráter limitado da noção prémarxista da causa como uma força agindo sobre o corpo, Engels escreveu: " ( . . . ) A idéia de força, pelo próprio fato de que tem sua origem na ação do organismo humano sobre o mundo exterior e também no mecanismo terrestre, implica que apenas uma parte é ativa e operante, enquanto a outra é passiva, receptiva . . . A idéia de dependência frente a frente com a prática e com as relações sociais foi aplicada por Marx e Engels a outras categorias da dialética e, em particular, às categorias do singular e do geral. Mostrando a ligação dessas teorias com as formas de vida e de atividade dos homens, Marx escreveu que: "O que diria, então old (o velho) Hegel se viesse a saber no outro mundo que o Allgemeine (o geral) em alemão e em nórdico, nada mais significa do que o Gemeinland (os bens coTF. Engels, La dialectique de la nature, p. 87.
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muns), e o Sundre, Besondere (o particular), nada mais é do que a parcela particular desligada dos bens comuns? Assim, portanto, as categorias lógicas resultam simplesmente de nossas relações humanas" . O resultado disso é que as categorias não são apenas graus do desenvolvimento da consciência, mas também graus do desenvolvimento da prática social dos homens, de suas relações entre eles e deles com a natureza. Desempenhando o papel de graus do desenvolvimento do conhecimento social e da prática, as categorias refletem não apenas as formas universais do ser, as propriedades e as ligações universais da realidade e suas leis universais, mas também as leis do movimento do conhecimento do inferior ao superior, as leis do funcionamento e do desenvolvimento do pensamento. " ( . . . ) As categorias do pensamento, escrevia Lenin, não são um formulário do homem, mas a expressão das leis que são obedecidas tanto pela natureza como pelos homens" . E, em outro ponto, ele escreve, citando a expressão de Hegel: "O movimento da consciência, 'assim como o desenvolvimento de toda vida natural e espiritual', baseia-se na 'natureza das essencialidades puras que formam o conteúdo da lógica' "; além disso ele salienta que: "A inverter: a lógica e a teoria do conhecimento devem ser deduzidas do 'desenvolvimento de toda vida natural e espiritual' " . As categorias, formando-se em uma certa ordem no curso do desenvolvimento do conhecimento social, estabelecem, entre elas, ligações e relações necessárias e assim formam a estrutura da atividade do pensamento dos homens, que se manifesta sob a forma de uma ordem lógica do conhecimento, sob formas universais do movimento do pensamento. No decorrer do conhecimento do objeto, o sujeito o concebe pelo prisma das categorias, que se criou em sua consciência e, realizando uma síntese categorial, coloca em evidência as propriedades e as ligações próprias a esse objeto e, em seguida, as formas específicas de sua manifestação em um domínio concreto da realidade. Ao mesmo tempo, o sujeito também coloca em evidên8
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K. Marx e F. Engels, Correspondance, Moscou, Ed. Progresso, 1971, p. 202. V. Lenin, Oeuvres, t. 38, p. 89. Lenin, op. cit., p. 86. 8
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cia as características qualitativas e quantitativas do objeto estudado, das ligações de causa e efeito que lhe são próprias e as leis de seu funcionamento e de seu desenvolvimento. À luz de tudo isso, a estrutura categorial que assegura o movimento do pensamento em direção à verdade é verificada em cada ação cognitiva e prática, em cada operação do pensamento e, em virtude de milhares de repetições e de confirmações, na prática, adquire um caráter de universalidade e de verdade. "Quando Hegel, observa V. Lenin, esforça-se — e às vezes ele chega mesmo a aplicar-se, a esmerar-se — para introduzir a atividade humana, propondo-se um fim nas categorias da Lógica, dizendo que essa atividade é um 'silogismo' (.Schluss), que o sujeito (o homem) desempenha o papel de um 'termo' da 'figura' lógica do 'silogismo' etc. ISSO NÃO É APENAS FORÇA, NÃO Ê APENAS UM JOGO. HÁ AQUI UM CONTEÚDO MUITO PROFUNDO, PURAMENTE MATERIALISTA. Ê PRECISO INVERTER: É PRECISO QUE A ATIVIDADE PRÁTICA DO HOMEM LEVE A CONSCIÊNCIA HUMANA A REPETIR MILHARES DE VEZES AS DIFERENTES FIGURAS LÓGICAS, PARA QUE ESSAS FIGURAS POSSAM GANHAR O VALOR DE AXIOMAS. NOTA BENE"U. Assim, sendo um produto da atividade cognitiva, as categorias refletem as particularidades dos estágios do conhecimento no próprio momento em que elas se formam e, por meio de relações necessárias surgidas entre elas — as leis do movimento do conhecimento do inferior ao superior, as leis do funcionamento e do desenvolvimento do pensamento; estando ligadas à prática, que coloca em evidência as formas universais do ser, as propriedades e as relações universais das coisas e as materializa nos meios de trabalho criados e nas formas de atividade — as categorias refletem, de uma maneira ou de outra, as leis do funcionamento e do desenvolvimento da atividade prática.
"V. Lenin, op. cit., p. 180-1.
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5.
O DESENVOLVIMENTO DAS FORMAS DO PENSAMENTO NO PROCESSO DO MOVIMENTO DO CONHECIMENTO DE UMA CATEGORIA A OUTRA
O problema da modificação das formas do pensamento no curso do desenvolvimento do conhecimento é desconhecido pelo materialismo metafísico e pela lógica formal. Na lógica formal, as formas do pensamento não são consideradas nem em movimento nem em desenvolvimento, mas sim como estáticas e imutáveis umas ao lado das outras; e a partir desse fato, os sistemas de classificação elaborados não refletem o processo histórico do surgimento e do desenvolvimento das formas do pensamento, nem colocam em evidência sua correlação e sua interdependência necessárias. Essa classificação das formas do pensamento é encontrada em Aristóteles, fundador da lógica formal, e em Kant, além de outros filósofos. Hegel procurou, pela primeira vez, apresentar as formas do pensamento em seu desenvolvimento. Para ele, o ponto de partida das formas do pensamento em movimento é o conceito, embora na realidade isso não seja correto. Historicamente, o conceito é precedido por toda uma série de outras formas do pensamento, formas mais simples cujo desenvolvimento prepara o terreno para seu aparecimento. O conceito é o resultado do desenvolvimento e da correlação de formas do pensamento, assim como o juízo e o raciocínio. É precisamente a partir do juízo e do raciocínio que nascem e se constituem os conceitos. Formando-se, o conceito nega-os e os inclui sob uma forma anulada na qualidade de momentos necessários de seu conteúdo. Para Hegel, o desenvolvimento do conceito e a descoberta, no decorrer desse processo, de certos momentos do conteúdo do conceito condicionam o surgimento dos juízos e dos raciocínios. O juízo, para ele, é o isolamento e a confrontação de momentos do conceito, assim como o singular, o particular e o universal. O juízo conserva essa função, mesmo quando ele não concerne o próprio conceito, mas o objeto, as coisas. Aplicado ao objeto, o juízo representa "o objeto nos diferentes momentos do conceito. Ele (o juízo — A. Ch.) contém o objeto na determinação do singular e na determinação do universal da mesma forma como a relação simples e desprovida de qualquer conteúdo do predicado com o sujeito — 'é' — .142
representa a cópula." . "No raciocínio, diz Hegel, devemos considerar o objeto de duas maneiras: primeiramente, em sua realidade singular" , e, em segundo lugar, em seu conceito. É por isso que aqui o objeto é representado seja como singular erigido em sua universalidade, seja, o que finalmente dá no mesmo, como universal tornado singular quando passa para sua realidade , é por isso que, segundo Hegel, o juízo deve representar a verdade, já que ele exprime nele mesmo a concordância ou a correspondência do conceito e da realidade. Mas esta correspondência do conceito com a realidade no juízo somente é atingida, segundo Hegel, no estágio mais elevado do desenvolvimento do juízo. No começo, este engloba apenas o imediato, apenas o que se encontra na superfície dos objetos, e é por isso que ele é o juízo do ser-aqui. Hegel construiu sua classificação dos juízos inteiramente baseado na correlação do singular e do geral e nas passagens do singular ao geral e vice-versa, assim como no movimento do exterior, do universal abstrato ao universal subjetivo, ao conceito. O juízo do ser-aqui engloba, então, apenas o laço exterior do singular abstrato com o universal abstraio. Em decorrência do desenvolvimento desse juízo, o singular e o universal voltam para eles mesmos por meio do seguinte elo: o particular. E a partir de então passam pela primeira vez a apresentar-se como determinados e não como abstratos. Em decorrência do desenvolvimento do juízo, e, em particular, do juízo de reflexão e de necessidade, dá-se o movimento do universal ao particular, que chega a unidade do universal e do particular. A partir desse momento, o juízo entra na esfera do conceito e continua a desenvolver-se. No processo desse desenvolvimento, o singular, por um lado, elevase até o universal por meio do particular e, por outro lado, o universal (igualmente por meio do particular) desce até o singular. Em decorrência, a verdadeira natureza do objeto singular assim como sua correspondência com um certo conceito aparecem e por esse fato conseguimos obter o saber verdadeiro. Assim, apesar do caráter artificial de sua classificação 12
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"Vollständige Ausgabe Durch einen Verein..., in Hegel's Werke, p. 125-6. G. W. F. Hegel: Wissenschaft der Logik, in Sämtliche Werke, Stuttgard, 1928, v. 5, p. 75. "Hegel, Wissenschaft der Logik, in Sämtliche Werke cit. 13
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dos juízos, Hegel teve sucesso em sua tentativa de exprimir a lei geral do movimento do conhecimento, pelo homem, do mundo ambiente. Sua tentativa de determinar o lugar e o papel correspondentes de cada juízo nesse processo do conhecimento da verdade está assentada sobre uma base objetiva. O raciocínio, segundo Hegel, é a representação completa do conceito. Ele é o ciclo de mediação de todos os seus momentos que se produz tanto no processo da passagem da natureza universal por meio da particularidade em direção da singularidade, como no processo que consiste em elevar a singularidade até o estado que lhe é idêntico, por meio do particular até o universal. O raciocínio, para Hegel, assim como o juízo, executa um movimento determinado, tem um desenvolvimento. Em suas formas inferiores, ele engloba apenas as correlações exteriores do singular, do particular e do universal; e em suas formas superiores, ele engloba as correlações internas, essenciais, necessárias. Os diferentes tipos de raciocínios são classificados por Hegel na ordem em que eles aparecem no processo do movimento do conceito, a partir da correlação exterior, contingente de seus movimentos (universal, particular, singular) — assim como ela aparece no raciocínio do ser-aqui — dirigida para a necessidade desta ligação que ela adquire em decorrência do desenvolvimento do raciocínio de reflexão e, daí, para a identidade, para a unidade imediata desses momentos, fixada na objetividade imediata do conceito, em sua transformação em coisas. Ao mesmo tempo, no processo desse movimento realiza-se a passagem dos momentos abstratos do singular, do particular, do universal para os momentos concretos, essenciais. Em seus esquemas, Hegel conseguiu captar uma lei efetiva do conhecimento do mundo objetivo, pelo homem. O conhecimento vai realmente da apreensão do mundo exterior, da compreensão das correlações abstratas do singular, do particular e do universal nas coisas, até o conhecimento e a representação, mais ou menos correta, de sua natureza interna, de seu aspecto essencial, portanto, o conhecimento vai do exterior, do geral superfical ao essencial, ao necessário — à lei. Tendo captado, embora confusamente, esta lei do conhecimento, Hegel classifica os diferentes tipos de raciocínio de maneira extremamente artificial. No conhecimento histórico .144
dos fenômenos do mundo ambiente, pelo homem, os raciocínios surgiram em uma ordem diferente daquela dada por Hegel. Por exemplo, antes de raciocinar do geral ao particular e ao singular, como é o caso para Hegel (mesmo se esse geral é superficial e abstrato), seria preciso primeiro elaborar representações gerais, separar o geral do particular, isto é, seria preciso primeiramente conduzir os raciocínios do singular ao particular e deste ao universal. É por isso que o primeiro tipo de raciocínio não poderia, em nenhum caso, ser o raciocínio que Hegel apresenta como o raciocínio do ser-aqui. Este raciocínio deveria ter sido o de indução. Entretanto, Hegel liga esse raciocínio ao segundo tipo, do segundo grupo de raciocínio, isto é, ao raciocínio de reflexão. Em seguida, os raciocínios condicionais e disjuntivos desempenharam um papel considerável (e, por esta razão, apareceram de forma verossímil) no estágio do movimento do conhecimento do geral superficial ao geral essencial, do exterior ao interior, do efeito à causa, isto é, no momento da elaboração dos conceitos gerais. Para Hegel, os raciocínios apareceram para relevar o conceito genérico comum em todas as suas particularidades e espécies. É evidente que os raciocínios em questão são utilizados para alcançar esse fim, mas em primeiro lugar isso é uma etapa ulterior de sua utilização e, em segundo lugar, isso não constitui sua função essencial. Na história do conhecimento, eles ocupam um outro lugar e desempenham um outro papel muito diferente deste. Assim, embora Hegel tenha pressentido toda uma série de leis profundas da passagem de certas formas do pensamento para outras, ele não conseguiu reproduzir seu movimento, e seu desenvolvimento reais por causa de seus princípios de partida idealistas. O desenvolvimento das formas do pensamento está inevitavelmente ligado ao desenvolvimento do conhecimento, a sua passagem por certos estágios e graus de desenvolvimento a outros. Com a passagem do conhecimento para estágios novos, superiores, de novos aspectos da realidade objetiva, novas relações e ligações, que exigem os meios correspondentes de expressão e de fixação aparecem. Tudo isso conduz necessariamente a modificações e a aperfeiçoamentos das antigas formas do pensamento e suscita novas formas destes novos tipos de juízos, de raciocínios e de conceitos. .145
Vejamos a evolução das formas do pensamento. A forma mais simples do pensamento é o juízo. É por isso que o desenvolvimento das formas do pensamento deve ser observado, antes de tudo, a partir do juízo. Nós já dissemos que conhecer o meio ambiente é, antes de tudo, perceber o particular como singular, colocar em evidência essas ou aquelas propriedades singulares que não eram encontradas anteriormente. Esse saber exprime-se e fixa-se nos juízos singulares do seguinte tipo: "O particular é o singular". No estudo da União Soviética, por exemplo, descobrimos várias propriedades que eram desconhecidas antigamente e que fixamos nos seguintes juízos: "A União Soviética está procedendo à construção do comunismo"; "Na União Soviética' impera a propriedade social dos principais meios de produção" etc. Outro exemplo: desde a Antigüidade, os homens perceberam que o âmbar, quando friccionado com a lã, ou com algum tecido de lã, apresentava uma propriedade insólita: a de atrair outros corpos. Eles não haviam observado propriedades semelhantes em outros corpos. Os homens exprimiram este conhecimento no juízo: "O particular é o singular"; "O âmbar adquire propriedades magnéticas pelo friccionamento". Todos esses juízos apresentam-se no começo como juízos singulares indeterminados pelo fato de que não sabemos se as propriedades fixadas neles pertencem também a outras formações materiais. O processo do conhecimento pode conduzir à demonstração, posterior, de que essas propriedades não pertencem a outros objetos de um grupo dado. Nesse caso, o juízo singular indeterminado torna-se determinado e exprime-se sob a seguinte forma: "Dentre todos os objetos desse grupo, apenas esse objeto possui essa propriedade, até então desconhecida"; "Dentre todos os S, um único S dado é P"; "Dentre todos os objetos estudados, apenas o âmbar adquire, por meio do friccionamento, propriedades magnéticas". Mas à medida que se alarga o círculo dos objetos estudados, à medida que aprendemos que a propriedade expressa em um juízo singular determinado não pertence aos objetos de um grupo dado, nem aos de outros grupos, o juízo singular determinado, desenvolve-se em um juízo singular seletivo: "Apenas este particular, e unicamente este, possui esta propriedade anteriormente desconhecida"; "Apenas o S dado e, unicamente ele, é P". .146
Se, no decorrer do estudo de outros objetos de um grupo dado, descobrimos que a propriedade encontrada no objeto anteriormente estudado, e que havíamos exprimido em um juízo singular indeterminado, pertence também a outros objetos estudados do grupo considerado, o juízo singular indeterminado transforma-se em um juízo singular do seguinte tipo: "O particular é o geral"; "Na União Soviética (mas não apenas na União Soviética) a propriedade social dos meios de produção existe"; "O âmbar (mas não apenas o âmbar) adquire, peló friccionamento, a propriedade de atrair outros corpos". O juízo, "o particular é o geral", indicando que o objeto particular dado possui a propriedade geral dada, destaca exatamente, por isso, o fato de que outros objetos particulares também possuem esta propriedade. É por isso que o juízo singular desse tipo transforma-se necessariamente em um juízo particular: "Certos objetos particulares possuem essa propriedade"; "Certos S são P", "Certos países europeus possuem a propriedade social dos meios de produção"; "Certas substâncias adquirem, por fricção com outras substâncias, a propriedade de atrair alguns outros corpos". Mas o desenvolvimento posterior do conhecimento também pode seguir uma outra orientação. Quando do estudo de outros objetos do grupo dado podemos descobrir que eles possuem todos a propriedade considerada. O iuízo particular indeterminado torna-se então um iuízo geral: "Todos os S são P"; "Todos os países socialistas possuem a propriedade social dos meios de produção"; "Em todos os países socialistas é aplicado o princípio: 'De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo seu trabalho'"; "Todas as substâncias, em certas condições, adquirem propriedades magnéticas". O juízo geral manifesta-se, antes de tudo, como juízo indeterminado, porque não sabemos, a princípio, se a propriedade pertence somente aos objetos considerados ou se ela pertence também aos objetos de outros grupos. O desenvolvimento do conhecimento pode conduzir à evidenciação do fato de que os objetos de uma série de grupos estudados não possuam a propriedade indicada. Nesse caso, o juízo geral indeterminado transforma-se em um juízo geral determinado: "Dentre todos os grupos de objetos estudados, apenas o grupo considerado possui a propriedade em questão"; "Dentre todos os S, apenas os S dados são P"; "Dentre todos os .147
países contemporâneos, somente nos países socialistas existe a propriedade social dos meios de produção"; "Dentre todos os países contemporâneos, é apenas nos países socialistas que é aplicado o seguinte princípio: 'De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo seu trabalho' ". Se fica estabelecido que essa ou aquela propriedade das formações materiais está ausente em todos os outros grupos, o juízo geral determinado desenvolve-se em um juízo geral seletivo: "Apenas os objetos em questão e, unicamente eles, possuem essa propriedade"; Apenas os S em questão e, unicamente eles, são P"; "Apenas os países socialistas e, unicamente eles, aplicam o seguinte princípio: 'De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo seu trabalho' ". Mas à medida que há o desenvolvimento do conhecimento, pode parecer que essa ou aquela propriedade fixada em um juízo geral indeterminado pertence a objetos que se relacionam com outros grupos. Nesse caso, o juízo geral transforma-se em um juízo mais geral: "Todos os S (mas não apenas eles) são P"; "Todos os países socialistas (mas não apenas eles) têm uma produção mercantil"; "Todos os países socialistas (mas não apenas eles) têm um Estado". Esse juízo mais geral se- desenvolverá, por sua vez, em dois sentidos: por um lado, ele se desenvolverá no plano horizontal, isto é, pode transformar-se em um juízo seletivo, e, por outro lado, ele se desenvolverá no plano vertical, transformando-se em um juízo ainda mais geral e assim sucessivamente, enquanto não forem evidenciadas as propriedades universais, isto é, as propriedades que são próprias a todos os objetos do grupo estudado ou a todos os objetos em geral. Assim, no estágio do movimento do conhecimento do singular ao geral e ao universal, os juízos desenvolvem-se dos singulares para os juízos particulares e em seguida para os universais. Ao mesmo tempo, cada um dos grupos indicados desenvolve-se por sua vez, indo dos juízos indeterminados aos juízos determinados e depois aos seletivos, isto-é, a consciência leva, por um lado, a uma procissão, uma separação do particular, e, por outro lado, a uma evidenciação do geral e do universal. Todas as formas de juízo examinadas fixam apenas o que é dado imediatamente a nossa observação, o que se encontra à superfície dos fenômenos, e por isso seu valor cognitivo não .148
é grande. Por exemplo, se considerarmos todos esses juízos do ponto de vista da verdade, descobrimos que, nesse estágio do conhecimento, os juízos gerais (contrariamente aos juízos singulares e particulares cuja verdade é incontestável, já que eles fixam o que é) são problemáticos, porque não podemos observar em uma primeira tentativa — e, aliás, não é apenas em uma primeira tentativa que não podemos observar — todos os objetos dessa ou daquela classe mais ou menos extensa. É por isso que a conclusão, de que todos os objetos dessa ou daquela classe possuem uma propriedade geral é hipotética. Baseia-se em uma simples repetição e no fato de que todos os objetos observados do grupo dado possuem essa propriedade. Mas o conhecimento não pára nesse estágio de desenvolvimento, com a constatação das propriedades gerais, ele esforça-se para explicar as propriedades gerais dos objetos a partir de sua natureza, esforça-se para penetrar no interior das coisas. Os homens constróem hipóteses relativas às causas que condicionam o aparecimento dessas ou daquelas propriedades gerais. A suposição das causas dessa ou daquela propriedade exprimese no juízo de possibilidade: "É possível que esta circunstância seja a causa do fenômeno estudado"; "É possível que S seja P"; "É possível que a condutibilidade elétrica de um condutor dependa de seu comprimento"; "É possível que as propriedades químicas dos elementos dependam da carga do ponto de partida"; "É possível que a diferença de velocidade dos corpos em queda livre provenha da resistência do ar". Nesses juízos, é o laço hipotético do efeito com sua causa que se encontra fixado. No estudo do laço de causa e efeito, habitualmente, não é construída uma única hipótese, mas sim várias, e é por isso que o juízo de possibilidade é substituído pelo juízo disjuntivo, o primeiro transformando-se no segundo. "S é P ou PI"; "A condutibilidade elétrica de um condutor depende ou de seu comprimento ou da composição de sua substância"; "As propriedades químicas dos elementos dependem ou da carga do centro ou do peso atômico"; "A diferença de velocidade dos corpos em queda livre a um ponto dado da terra depende seja da resistência do ar seja da diferença de sua aceleração". Verificando a correlação dessa ou daquela suposição, chegamos a conseqüências que devem necessariamente produzir-se se a causa suposta é a causa real da propriedade estudada. .149
Esse movimento do pensamento exprime-se no juízo condicional: "Se S é P, então SI é PI"; "Se a condutibilidade elétrica de um condutor depende de sua secção, os condutores de grande secção, qualquer que seja a composição de sua substância, devem conduzir eletricidade"; "Se as propriedades químicas dos elementos dependem da carga do núcleo, as propriedades do elemento mudam ao mesmo tempo em que se modifica a carga do núcleo". Os resultados da verificação da presença real do efeito suposto são fixados em juízos categóricos, nos quais o que é estabelecido exprime-se sob uma forma incondicional: "S é P"; "S não é P"; "A modificação da carga do núcleo de um elemento químico dado levou à transformação desse elemento (em um outro elemento químico)"; "Um fio condutor de seda grosso não conduz a eletricidade". O juízo categórico fixa o que existe e por isso ele é, na verdade, um juízo de realidade, contrariamente ao juízo de possibilidade, do qual tratamos no começo do estudo de causa e efeito. A partir dos resultados estabelecidos pela verificação, concluímos, diante da presença ou da ausência de um laço de causa e de efeito entre os fenômenos estudados também sob a forma de juízos categóricos, que "S é P"; ou "S não é P"; "A condutibilidade elétrica de um condutor não depende de sua secção"; "As propriedades químicas de um elemento dependem da carga do núcleo"; "As propriedades químicas de um elemento não dependem do peso atômico". Mas, diferentementemente dos juízos categóricos que fixam os resultados da verificação, e que são juízos de realidade, os juízos dados são juízos de necessidade, porque fixam não apenas o que existe, mas também o que se produz necessariamente em certas condições: "S é necessariamente P"; "As propriedades químicas dos elementos dependem necessariamente da carga do núcleo"; "A condutibilidade elétrica de um condutor depende necessariamente da composição de sua substância". Assim, no processo do movimento do efeito à causa, do exlerior ao interior e ao necessário, realiza-se a passagem dos juízos de possibilidade, por meio dos juízos disjuntivos, condicionais e categóricos, para os juízos de realidade e de necessidade. Os juízos disjuntivos, condicionais e categóricos manifestam-se sob formas de elos de uma corrente reunindo nova.150
mente os juízos de possibilidade aos juízos de realidade e de necessidade. Da colocação em evidência das ligações particulares necessárias, o conhecimento, em seu desenvolvimento, dirige-se para a essência — para a reprodução da correlação necessária dos aspectos interiores das formações materiais estudadas. Nesse estágio do movimento do conhecimento, aparecem novos tipos de juízos. Se observarmos bem os juízos analisados mais acima, notaremos facilmente que alguns dentre eles fixam o que se encontra na superfície, o que existe, o que aparece e existe em toda sua imediatez, como unidade do contingente e do necessário, enquanto que outros fixam as ligações necessárias. Em primeiro lugar, o necessário ainda não está bem distinguido, separado do contingente, e, em segundo lugar, esse necessário é pensado enquanto tal, sem ligação com o contingente. Os primeiros juízos, como já vimos, apareceram no estágio do movimento do conhecimento do singular ao geral, os segundos no estágio da passagem do efeito à causa, do exterior ao interior e ao necessário. Engels classifica o primeiro grupo de juízos, de singularidade, e o segundo, de juízos de particularidade. Os juízos de singularidade são caracterizados pelo fato de que eles fixam o ser-aqui, o ser enquanto fato. Eles ainda não exprimem os aspectos interiores dos objetos, dos fenômenos; não refletem, não reproduzem as ligações internas necessárias. Por exemplo, "a fricção engendra o calor", "a carga do núcleo do hidrogênio é um próton", "o urânio é radioativo". Em todos esses juízos está fixado o que existe, o que já foi descoberto. Aqui, o interior, o necessário não é refletido, a natureza dos fenômenos ou das propriedades fixadas não é explicada. Mas o homem, como já vimos, não se limita a fixar o ser-aqui. Ele esforça-se para explicar esse ser a partir das ligações e de suas relações internas, isto é, o homem esforça-se para compreendê-lo como necessário. A expressão do conhecimento do necessário concretiza-se, como já dissemos, nos juízos de necessidade, que representam os juízos de particularidade, porque fixam a ligação necessária de um grupo particular de fenômenos com um outro grupo particular de fenômenos em condições particulares, rigorosamente determinadas: "Todo movimento mecânico transforma-se, por fricção, em calor"; "O .151
urânio, depois de uma desintegração alfa transforma-se em tório"; "O radium, passando por uma desintegração alfa, transforma-se em radônio"; "Todos os elementos químicos, cuja carga do núcleo torna-se igual a duas unidades, adquirem as propriedades químicas do hélio". Todos os juízos citados são juízos particulares, já que fixam a ligação necessária de certos fenômenos particulares com outros fenômenos particulares, em condições particulares, rigorosamente determinadas. No primeiro juízo é fixado o fato de que uma forma particular do movimento da matéria (movimento mecânico) transforma-se em uma outra forma de movimento particular (em calor), em condições particulares, rigorosamente determinadas (por fricção). No segundo juízo exprime-se a ligação necessária, cujo conteúdo reside no fato de que um elemento químico particular (o urânio) transformase em um outro elemento químico (o tório), em condições particulares, rigorosamente determinadas (no momento de sua desintegração alfa) etc. Em decorrência do desenvolvimento do conhecimento e na medida em que se acumulam os conhecimentos de diversos aspectos gerais necessários desse ou daquele grupo de fenômenos, os homens, tendo distinguido um aspecto fundamental, decisivo e geral, reproduzem, passo a passo, o conjunto dos aspectos necessários internos dos fenômenos estudados, sua essência. Nesse estágio do conhecimento, eles formulam juízos de universalidade, como por exemplo: "Toda forma de movimento da matéria, em condições rigorosamente determinadas em cada caso, pode transformar-se e transforma-se inevitavelmente em uma outra forma de movimento da matéria"; "Um elemento químico, em condições rigorosamente determinadas, pode e deve necessariamente transformar-se em um outro elemento químico". Esse juízo fixa não apenas o ser-aqui, não apenas o que existe, mas igualmente o que se produz necessariamente; e não somente uma ligação necessária particular, mas o sistema de ligações necessárias que engloba todos os objetos de um grupo dado e todos os seus aspectos fundamentais. O juízo dado é, por sua forma e por seu conteúdo, o desenvolvimento posterior, superior dos conhecimentos do grupo de fenômenos limitados por esse juízo, que fixa a ligação de cada objeto do grupo dado com qualquer outro objeto desse grupo. Nesse juízo, são conferidas a cada objeto do grupo .152
dado todas as propriedades que pertencem a um grupo dado de objetos (tanto as já reveladas, como as que ainda não o foram), e isso pelo fato de que se exprime o conhecimento de que cada objeto pode, em condições determinadas, vir a ser um outro objeto qualquer, transformar-se em qualquer outro objeto e, dessa maneira, manifestar as propriedades de cada um deles. O aparecimento, nesse ou naquele domínio da ciência, de um tipo dado de juízos, é uma prova direta de que nesse domínio a ciência alcançou o conhecimento da essência dos objetos estudados. Abordemos agora, rapidamente, as transformações dos raciocínios e dos conceitos no processo do movimento do conhecimento de um grau ao outro. No primeiro estágio do movimento do conhecimento, aparece o raciocínio indutivo, no qual, a partir de várias premissas que fixam fatos singulares, chega-se à conclusão de que essa ou aquela propriedade, ligação ou relação, pertence ou não pertence a todos os objetos do grupo estudado. Nos raciocínios indutivos, o pensamento vai do singular ao geral e ao universal. Os raciocínios dedutivos aparecem no estágio em que se estabelece o laço de causa e efeito e de necessidade. No raciocínio dedutivo,. o pensamento vai do geral ao particular, do geral ao geral, do singular e do particular ao singular e ao particular. Os raciocínios dedutivos apresentam-se sob numerosas formas. No estágio da descoberta do laço de causa e de efeito e do estabelecimento da necessidade, os raciocínios dedutivos aparecem sob a forma de um silogismo categórico disjuntivo e de um silogismo categórico condicional. Quando, após ter enunciado uma série de teses sobre as supostas causas desse ou daquele fenômeno (efeito) e tê-las verificado, raciocinamos e, conseqüentemente, exprimimos nossos pensamentos com um silogismo categórico disjuntivo. Por exemplo, temos duas suposições concernentes à causa da condutibilidade elétrica. Como causas, citamos a composição da substância e a secção do condutor. No decorrer da pesquisa, estabelecemos que uma suposição é exata, enquanto que a outra não o é. Exprimimos tudo isso no seguinte raciocínio: "A condutibilidade elétrica pode depender tanto da secção como da composição da substância do condutor. Entretanto, no final, ficou estabelecido que a condutibilidade elétrica não depende da secção do condutor, logo, ela depende da composição da substância". .153
No momento da verificação dessa ou daquela suposição relativa à causa de um fenômeno dado, quando procedemos a conclusões, a partir desta suposição, e quando verificamos como isso acontece na realidade, e, ainda depois, quando resolvemos a questão de saber se o laço dado é ou não o da causa e efeito, exprimimos nossos pensamentos mediante um silogismo categórico condicional. Por exemplo, quando estudamos a causa da propriedade que certos corpos têm de conduzir a eletricidade, raciocinamos da seguinte maneira: "Se a condutibilidade elétrica depende da secção de um condutor, modificando-a, podemos fazê-lo de tal maneira que em um caso esse condutor conduza a eletricidade e em outro caso não o faça mais. Modificando a secção de um condutor feito de cobre, não obtivemos resultado na tentativa de impedi-lo de conduzir a eletricidade. Isso significa que a propriedade de conduzir eletricidade não depende da secção do condutor. . . Então, se a condutibilidade elétrica depende da composição da substância do condutor, quando modificamos essa composição, chegamos aos seguintes resultados: no primeiro caso, o condutor conduz a eletricidade, enquanto no segundo ele não o faz. O fio de cobre conduz a eletricidade, mas o de seda não a conduz. Isso significa que a condutibilidade elétrica depende da composição da substância do condutor". As conclusões tiradas dos resultados da verificação dessa ou daquela suposição, exprimem-se, como já o dissemos, nos juízos de necessidade. E isso significa que eles refletem aspectos e propriedades próprias a todos os objetos e fenômenos, compreendidos em toda a extensão do sujeito do juízo dado. Por isso, os juízos de necessidade podem ser usados para o entendimento do saber, que entra em seu conteúdo e que, a cada objeto concreto e a cada caso particular, refere-se ao domínio compreendido pelo juízo indicado. Essa utilização desses juízos pode-se dar tanto no lugar que lhes é próprio, como quando reproduzem os laços de um aspecto da formação material com um outro, ou, ainda, no estágio do movimento do conhecimento, indo da colocação em evidência dos aspectos particulares comuns a objetos estudados à reprodução de sua essência, (do conjunto dos aspectos internos necessários) ou, ainda, finalmente, no estágio da utilização desses ou daqueles conhecimentos na atividade prática dos homens. Esse movimento do pensamento exprime-se por meio do silogismo cate.154
górico. Por exemplo: "A carga do núcleo, sendo igual a um próton, condiciona propriedades químicas, cujo conjunto caracteriza o hidrogênio. Ou ainda: "Toda mercadoria tem seu valor. O dinheiro também é uma mercadoria. Isso significa que o dinheiro deve ter um valor". Assim, os diferentes tipos de raciocínio não são fixos, dados uma vez por todas, existindo um ao lado do outro e um independentemente do outro. Eles estão em movimento, em desenvolvimento, em uma ligação orgânica necessária, condicionada pelo processo evolutivo do conhecimento, por suas passagens de um grau a outro. Usando os juízos e os raciocínios, os homens elaboram e formam representações e conceitos nos quais fixam o que é conhecido. E esses conceitos e essas representações são, de certa forma, pontos centrais do complexo e contraditório caminho do conhecimento do mundo ambiente. Refletindo o processo do movimento e do desenvolvimento do conhecimento, e formando-se no decorrer desse processo, os conceitos não permanecem imutáveis, mas, pelo contrário, eles modificam-se e desenvolvem-se à medida que há o desenvolvimento e a modificação de seu conteúdo. No primeiro estágio do conhecimento, no estágio da intuição viva, aparecem e formam-se conceitos concretos que refletem o objeto ou o fenômeno na totalidade de suas propriedades e de seus aspectos. Mas esse concreto nesse estágio é apenas sensível. É uma representação desordenada, caótica do todo e, por essa razão, o conceito confunde-se, aqui, com as representações, aparece como uma representação concreta sensível. Depois, quando o sujeito conhecedor analisa os dados concretos sensíveis, começa a distinguir os diferentes aspectos e propriedades dos objetos estudados e passa do singular para o geral, e então aparecem e se formam conceitos abstratos que refletem apenas certos aspectos dos objetos e dos fenômenos. Mas, à medida que o conhecimento humano em desenvolvimento penetra na essência das formações materiais estudadas, reproduz na consciência, passando de um elo a outro, todo o sistema de ligações e de relações necessárias e internas, então aparecem novamente conceitos concretos. Mas esse concreto, ao contrário do concreto que apareceu no estágio inicial do conhecimento, não é uma representação visual, sen.155
sível e caótica do todo; ele reflete a natureza interna das formações materiais. Essas são algumas leis do desenvolvimento das formas do pensamento no processo do movimento do conhecimento de uma categoria (um grau) a outra. Examinamos a transformação das principais formas do pensamento, no decorrer do desenvolvimento do conhecimento social, e vimos que elas estão ligadas a estágios determinados do desenvolvimento do conhecimento social, à intelecção de formas universais determinadas do ser, de ligações e de propriedades universais da realidade, refletidas pelas categorias filosóficas correspondentes. Isso indica que as categorias filosóficas são graus do desenvolvimento do conhecimento e que sua relação, refletindo íeis universais determinadas do ser, exprime a lei do funcionamento e do desenvolvimento do conhecimento. A parte que se segue nesta nossa obra será dedicada à análise das diferentes categorias e leis da dialética, que serão consideradas na ordem em que elas aparecem no processo do desenvolvimento do conhcimento social e da prática.
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V. O PARTICULAR, O MOVIMENTO, A RELAÇÃO
1. O PARTICULAR Para o materialismo dialético, o movimento e o repouso relativo, compreendidos como um dos momentos do movimento, são, por sua natureza, próprios à matéria. O movimento condiciona "a corrente", a modificação permanente da matéria; o repouso acarreta o equilíbrio do movimento, a transformação da matéria, como se interrompesse a corrente contínua, obrigando-a a "parar" nesse ou naquele lugar e a manter-se nesse ou naquele estado, embora a corrente contínua do movimento apareça como descontínua, como um conjunto de diferentes sistemas de movimento. Com base em cada um desses sistemas, constitui-se uma formação material, uma coisa particular, ou naquele estado, embora a corrente contínua do movimento constitui uma coisa concreta, cuja natureza é determinada pela forma do movimento que a constitui. Sendo eterno como a matéria, o movimento absoluto assim como o repouso relativo condicionam a existência eterna da matéria, mediante as formações materiais particulares, encerradas no espaço e no tempo. O particular é, portanto, uma forma universal da existência da matéria. E aqui relacionam-se conceitos de "corpo", de "coisa" e de "objeto". 2. O MOVIMENTO a) O CONCEITO DE MOVIMENTO
O movimento como forma universal do ser da matéria foi analisado pelos pensadores, logo no começo do desenvolvimento .157
da Filosofia, como forma particular da consciência social. Entre os primeiros filósofos gregos, por exemplo, o movimento desempenhou o papel de principio inicial, a partir do qual procuraram explicar todos os fenômenos observados na realidade ambiente. Tomando como princípio primeiro uma ou outra substância concreta, eles mostraram que todas as formas do ser observadas no mundo apareceram em decorrência de certas transformações dessa substância (princípio primeiro), e que, sendo diferentes estados de uma mesma natureza, elas estão organicamente ligadas, passando uma pela outra e pelo princípio inicial. Tomando como princípio primeiro o apeiron, uma matéria indeterminada, por exemplo, Anaximandro dizia que: "O infinito é o princípio primeiro do existente, porque é dele que tudo nasce e nele tudo se destrói. É dele que 'se desligaram os céus e os mundos em geral', cujo 'número é infinito' e eles todos perecem depois que um tempo bastante considerável tenha decorrido desde seu aparecimento; e todos eles executam um movimento circular desde tempos imemoriais. ..". É evidente que na obra de Anaximandro a universalidade do movimento desempenha o papel inicial de sua teoria do mundo exterior. Encontramos uma tese análoga a essa em Thales, que toma como princípio primeiro a água, e também em Anaxímenes, que toma esse princípio no ar. Simplicius afirma, por exemplo, que na obra de Anaxímenes, o princípio primeiro das coisas (o ar), em decorrência de modificações que lhe são próprias, é, às vezes, uma determinada substância, às vezes outra substância: quando se rarefaz, ele torna-se fogo; comprimindo-se, ele torna-se vento e depois nuvem; comprimindose ainda mais, torna-se água, depois terra e depois pedra; e todo o resto nasce dessas substâncias. Simplicius acrescenta que Anaxímenes reconhece que o movimento é eterno e que acarreta as transformações das coisas. A idéia de universalidade do movimento é expressa de maneira particularmente clara por Heráclito. Ele diz que a morte do fogo é o nascimento do ar, a morte do ar é o nascimento da água; da morte da terra nasce a água, da morte da água nasce o ar, da morte do ar nasce o fogo e vice-versa. .158
Assim, os filósofos gregos reconheciam a universalidade do movimento dos fenômenos da realidade e elaboravam, a partir dela, sua concepção do mundo. Salientando que o homem descobre o movimento no estágio inicial do conhecimento e que essa forma universal do ser é conceitualizada já nas primeiras concepções filosóficas do mundo, Engels escreveu que: "Quando submetemos ao exame do pensamento a natureza ou a história humanas, ou ainda nossa própria atividade mental, o que temos como primeiro resultado é o quadro de um entrelaçamento infinito de relações e de ações recíprocas, no qual nada permanece como era, no lugar onde estava anteriormente e como estava, mas em que tudo muda, modifica-se, vem a ser e perece.. . Essa maneira primitiva e ingênua, porém fundamentalmente correta, de encarar o mundo, foi a maneira adotada pelos filósofos gregos da Antigüidade, e o primeiro a formulá-la de modo claro foi Heráclito. . . "1. Os primeiros filósofos gregos da Antigüidade concebiam o movimento com um processo de destruição de um e do surgimento (sobre essa mesma base) do outro. Eles colocavam o conceito do movimento, da transformação em primeiro plano, deixando, dessa maneira, de lado, a estabilidade. Somente um pouco mais tarde é que outros filósofos e, em particular, os eleatas se interessaram pela estabilidade. Ao contrário dos jónicos, eles colocaram a estabilidade como princípio inicial, erigiram-na como absoluta e chegaram finalmente a negar o movimento, porque para eles, tudo o que existe baseia-se no todo único, imutável e homogêneo, preenchendo tudo. Sobre o ser, escreveu Parmênides: "Há mil sinais de que o sendo não pode ser engendrado e é imperecível, inteiro em seu corpo, contínuo, imóvel, sem começo nem fim'*. Empédocles retoma o conceito do movimento, mas conserva igualmente a estabilidade. Suas quatro "raízes" (a terra, a água, o ar e o fogo), que constituem os objetos e os fenômenos do mundo exterior, são eternas e imutáveis. Por isso o movimento para ele não é o surgimento de uma coisa e o desaparecimento de outra, como era o caso para os filósofos X 2
F. Engels, Anti-Diihring, Paris, Editions Sociales, 1950, p. 52. Y. Battistini, Trois présocratiques, Paris, 1969, p. 113.
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de Mileto, assim como para Heráclito. Para Empédocles o movimento representa apenas um descolamento de raízes e seu diferente reagrupamento. Ele diz que: "Nada do que é mortal tem seu nascimento ou seu fim determinado pela morte que tudo leva. Os elementos apenas associam-se e, uma vez misturados, eles se disassociam. Nascimento é apenas um nome dado pelos homens para um momento desse ritmo das coisas" . Essa questão é resolvida de forma semelhante por Anaxágoras. Ele sustentava que as palavras "aparecimento" e "desaparecimento" não eram empregadas corretamente pelos helénicos, porque, na verdade, não há coisas que apareçam, nem que desapareçam, mas cada coisa é formada pela mistura das coisas existentes ou delas se separa. Assim, seria mais correto dizer "misturar-se" no lugar de "aparecer", e no lugar de "desaparecer", "desintegrar-se". Esse mesmo conceito pode ser encontrado em Demócrito. Os átomos eternos e imutáveis constituem, segundo ele, a base de tudo o que existe, o movimento resume-se apenas a seu deslocamento, sua reunião e sua separação. Caracterizando a doutrina de Demócrito, Aristóteles escreveu, por exemplo, que: "Demócrito e Leucipo, pelo contrário, depois de terem estabelecido as figuras, tiram delas a alteração e a geração: a separação e a união dessas figuras produzem a geração; e a corrupção, e sua ordem e sua posição, a alteração" . Plutarco, analisando a teoria de Demócrito, escreveu que, para ele, "os seres infinitamente numerosos, invisíveis e indiferenciáveis, não sendo possuidores de qualidades (internas), nem submissos a uma ação (exterior), habitam um espaço vazio; quando eles reaproximam-se, chocam-se ou entrelaçam-se e, dentre essas acumulações (assim formadas), algumas parecem ser a água, outras o fogo e as terceiras parecem ser plantas e, finalmente, as quartas, o homem; para Demócrito, elas são apenas (na realidade) formas indivisíveis... como ele as chama, e, além delas, nada mais existe". Aristóteles desenvolveu posteriormente a teoria do movimento e da correlação. Ele retomou o ponto de vista dos jónicos e de Heráclito, que consideravam o movimento como o aparecimento de uma coisa e a destruição de outra. Restabe3
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Y. Battistini, op. cit., p. 155. "•Aristóteles, De la génération et de la corruption, Paris, 1951, p. 10. 3
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lecendo o que haviam dito os primeiros filósofos gregos, ele incluía, sob uma forma anulada, em sua teoria do movimento e da correlação, as concepções de filósofos que se seguiram a esses primeiros, tais como Empédocles, Anaxágoras e Demócrito. Segundo Aristóteles, o movimento não é apenas a destruição e o aparecimento, mas igualmente o crescimento e a diminuição, assim como o deslocamento dos corpos no espaço. Aristóteles distinguia seis formas de movimento: "há seis espécies de movimento: a geração, a corrupção, o crescimento, a diminuição, a alteração e a modificação local" . Destacando a eternidade do movimento, o fato de que "o movimento sempre existiu e existirá o tempo todo" , Aristóteles une-o novamente à natureza e às coisas materiais, porque considerava qüe o movimento é uma característica universal das coisas e que não existe sem elas. "A natureza é o princípio do movimento e da modificação" . E em outra parte do mesmo texto ele diz que: " . . . não há movimento fora das coisas" . A filosofia de Aristóteles encerra a formação da categoria do movimento. Embora ele não a tenha incluído entre as dez categorias que distinguia, utilizava-a como um conceito unificador para categorias como as de "posição", "posse", "ação" e "sofrimento". No período imediatamente posterior de seu desenvolvimento, a filosofia materialista tende a erigir em absoluto a forma mecanicista do movimento da matéria. Nos séculos XVII e XVIII esta foi uma tendência dominante, e o movimento é, então, interpretado como um deslocamento dos corpos no espaço. Encontramos essa concepção em Descartes e em Holbach, que escreveu que: "O movimento é um esforço pelo qual o corpo muda ou pelo menos tende a mudar de lugar, isto é, a corresponder sucessivamente a diferentes partes do espaço. . ." . A concepção do movimento como deslocamento dos corpos no espaço é limitada e, por essa razão, incorreta, 5
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Aristóteles, Organon, I. Catégories, II, Paris, 1946, p. 72. «Aristóteles, Physique, Paris, 1931, t. 2, v. 5-8, p. 138. 'Aristóteles, Physique cit., Paris, 1926, t. 1, v. 1-2, p. 88. Aristóteles, Physique cit., p. 90. P. Holbach, Systéme de la nature ou des lois du monde physique et du monde moral, Londres, 1769, p. 13. 5
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Ela não inclui a diversidade das transformações próprias à matéria. As transformações que se produzem, por exemplo, no núcleo atômico, no organismo vivo, na sociedade etc. não são apenas simples deslocamentos. Uma definição científica do movimento foi dada, pela primeira vez, pelos fundadores do materialismo dialético e, em particular, por Engels que escreveu que: "o movimento, aplicado à matéria, é a modificação em geral" . Ele "inclui todas as mudanças e todos os processos que se produzem no universo, da simples mudança de lugar até o pensamento" . O movimento é um atributo da matéria, sua propriedade fundamental. É por isso que ele está indissoluvelmente ligado a ela. Não houve, não há e não pode haver matéria sem movimento, nem movimento sem matéria. A lei de correspondência da massa e da energia é testemunha desse laço indissolúvel entre a matéria e o movimento. Segundo essa lei, a cada quantidade determinada de massa corresponde uma quantidade muito precisa de energia. Toda modificação da massa é acompanhada de uma transformação correspondente de energia e, inversamente, toda transformação de energia acarreta uma modificação correspondente de massa. Certos filósofos e físicos burgueses não reconhecem o laço orgânico do movimento com a matéria, eles "estabelecem" a possibilidade de uma redução da matéria ao movimento e, baseados nisso, consideram a energia como primeira e determinante, considerando que a matéria é uma das formas de energia. Para provar seu ponto de vista, eles se referem à transformação da substância em luz e, notadamente, à transformação do elétron e do pósitron em dois ou três fótons, considerando-os como a transformação da matéria em energia pura. "A matéria, escreve, por exemplo, o sábio norte-americano Roy K. Marshall, é uma das formas de energia. Em certas condições, a transformação da matéria em energia pura, ou da energia pura em matéria, é possível"^. É evidente que os partidários desse ponto de vista têm uma concepção pré-marxista, metafísica da matéria como substância e que, dessa forma, eles deformam a realidade. A transformaw
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F. Engels, Dialectique de la nature cit., p. 252. "F. Engels, La dialectique de la nature cit., p. 75. R. K. Marshall, The nature and things, New York, 1951, p. 47. 10
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ção de elétrons e de pósitrons em fótons — partículas de luz — não é a transformação da matéria em energia (movimento puro), mas sim a transformação de uma forma de matéria em outra forma, porque toda realidade objetiva é matéria. Não apenas a substância relaciona-se com a matéria, mas também uma variedade infinita de formas do ser, já conhecidas, assim como as ainda desconhecidas. Sendo uma realidade objetiva, existindo fora e independentemente da consciência humana, a matéria não pode desaparecer total ou parcialmente, nem se transformar em qualquer coisa de imaterial. Ela existe eternamente, passando continuamente de um estado ou aspecto qualitativo a outro. E o mesmo acontece com o movimento. Estando organicamente ligado à matéria, ele não pode desaparecer ou se transformar em nenhuma outra coisa que não seja o movimento, porque sua quantidade permanece sempre a mesma. Salientando a eternidade da matéria e do movimento, assim como sua ligação orgânica, Engels escreveu que: "A matéria sem o movimento é tão inconcebível quanto o movimento sem a matéria. O movimento é, portanto, tão impossível de ser criado e destruído quanto a própria matéria. . .". E mais adiante ele diz que: " . . . a quantidade de movimento existente no mundo permanece constante"i3. b) O MOVIMENTO E O REPOUSO
Quando apresentamos o movimento como uma propriedade fundamental da matéria, não podemos nos esquecer de indicar sua outra propriedade — uma certa estabilidade e invariabilidade. A matéria "flui" continuamente, transformase, mas, mesmo se transformando a esse ou àquele grau, ela permanece imutável, em repouso. É preciso observar, aqui, que certos autores compreendem o repouso em um sentido restrito, portanto, de maneira incorreta. Eles consideram que o repouso é a ausência de movimento, sob essa ou aquela relação. Por exemplo, toma-se um corpo que se encontra em estado imóvel em relação à Terra e diz-se que esse corpo está em estado de repouso em relação 13
F. Engels, Anti-Dühring cit., p. 92.
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à Terra. Para confirmar essa idéia, referem-se habitualmente à característica do repouso que é dada por Engels em sua obra Anti-Diihring, na qual ele cita um caso análogo como exemplo de repouso. Mas, nessa referência são freqüentemente omitidas as passagens que mostram o caráter limitado desse exemplo. Engels, quando descrevia o caso em questão, indicava também que a noção de repouso é tomada aqui em um sentido mecânico, e que o corpo está em repouso apenas do ponto de vista da forma mecânica do movimento da matéria . De fato, se a forma mecânica do movimento é o deslocamento dos corpos no espaço, então, o repouso, no quadro dessa forma do "movimento será, naturalmente, a ausência de deslocamento, a "ligação" com um certo lugar. Além disso, os autores que citam esse exemplo de repouso não precisam a que forma de movimento ele é aplicável, permitindo, dessa maneira, que se entenda que ele é um exemplo clássico do repouso em geral e é exatamente por isso que eles deformam a concepção marxista do repouso e sua essência. Sendo o contrário do movimento, o repouso representa, entretanto, não a ausência de movimento, mas sua forma particular, ou seja, o movimento em equilíbrio. De fato, o sistema solar é um sistema em repouso, não porque ele seja isento de movimento (ele está em movimento constante e diversificado), mas porque há um equilíbrio entre suas diferentes partes: o átomo de uma substância, enquanto formação material, possui o repouso não porque ele está imóvel, assim como suas partes, mas porque é um sistema de movimento relativamente estável das partículas "elementares", um sistema de equilíbrio. É precisamente isso, ou seja, a presença de um movimento em equilíbrio, e não a ausência de movimento, que é uma propriedade universal do repouso. Se o repouso é igualmente movimento, movimento em equilíbrio, então as teses do materialismo dialético, assim como "o repouso é um movimento do movimento" e "o repouso é um caso particular do movimento", tornam-se perfeitamente claras. O sistema de movimento relativamente estável que constitui uma coisa dada não esgota todo o movimento dessa coisa. Ao lado do movimento em equilíbrio, próprio a uma formação 14
14F. Engels, Anti-Diihring cit., p. 92.
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material, produzem-se transformações contínuas, tanto no quadro desse sistema, como nas relações dele com outros sistemas de movimento relativamente estável. Por exemplo, em um átomo, ao lado do sistema relativamente estável, do movimento dos elétrons em redor do núcleo, dos prótons e de outras partículas, produzem-se certas modificações no estado energético das partículas "elementares". O elétron pode passar de uma órbita a outra, perdendo uma certa quantidade de energia ou mesmo adquirindo-a; o átomo pode perder um ou vários elétrons e, em interação com outros átomos, pode constituir um sistema de movimento relativamente estável e mais complexo etc. Em uma única palavra, paralelamente ao movimento em equilíbrio, no quadro, e ao lado desse movimento, produz-se uma massa de outras transformações e de outros movimentos. Todas essas transformações incorporando-se até um certo momento ao sistema de movimento dado, relativamente estável, não comprometem o equilíbrio de suas diferentes partes. Mas desde que essas transformações atinjam um nível em que elas ultrapassem o quadro do sistema de movimento relativamente estável, o equilíbrio é perturbado, o sistema fica arruinado e, em seu lugar, aparecem um ou outros sistemas de movimento relativamente estável, representando novas formações materiais ou novas coisas. Nesses novos sistemas de movimento relativamente estável produz-se a mesma coisa: as transformações que afetam alguns de seus elementos não influem, no começo, sobre seu equilíbrio e permanecem em seu quadro. Mas, a seguir, desde que um certo nível seja atingido, essas transformações destroem esses sistemas e fazem aparecer sistemas novos, e assim por diante. c) O MOVIMENTO E O DESENVOLVIMENTO
Se o movimento condiciona a passagem constante da matéria de um estado estável a outro, a destruição contínua de formações materiais e o aparecimento de novas formações que as substituem, a questão que se coloca é a de saber qual é a tendência de todas essas transformações, qual é o sentido do movimento e o que aparece no lugar das formações materiais destruídas que desaparecem? .165
Segundo a teoria do movimento circular, todas as transformações observadas no mundo transpõem os mesmos estágios, voltando, a cada vez, à posição de partida, isto é, elas descrevem um círculo. Esta idéia foi formulada de maneira muito precisa pelos filósofos gregos da Antigüidade (Thales, Anaximandro e Anaxímenes). Tomando como princípio primeiro algo considerado como um apeiron, Anaximandro, por exemplo, dizia que: "O infinito é o princípio primeiro da existência, porque é dele que tudo nasce e nele tudo se destrói". É do apeiron que "se desligaram os céus e, em geral, todos os mundos", "que perecem todos depois que um tempo bastante considerável tenha decorrido desde seu aparecimento; e eles todos executam um movimento circular, desde tempos imemoriais. . .". Em sua forma mais categórica, que supõe a repetição literal e absoluta dos estágios já transpostos, a idéia do movimento circular foi expressa pelos pitagóricos que consideravam que todos os 760.000 anos, tudo no mundo, volta a seu estado inicial e repete os estágios já transpostos. "Os pitagóricos acreditavam, escreve sobre isso Eudeme, um dos alunos de Aristóteles, que eu falaria novamente a vocês, que teria nas mãos esta mesma vara, que vocês estariam sentados no mesmo lugar e que me escutariam. . . " . Segundo uma outra teoria, as transformações que se produzem no mundo não se fazem segundo um círculo, mas têm uma tendência à destruição, à morte, a ir ao encontro do que é cada vez menos perfeito. Entre essas teorias, encontramos também as do "movimento inverso", da "regressão" etc. O astrônomo inglês James Jeans desenvolve uma teoria desse tipo. Generalizando, em seu livro O movimento das estrelas, sua experiência no estudo do Universo, ele declara que esse Universo "vive sua vida e vai do nascimento à morte como todos nós, já que a ciência não conhece nenhuma outra transformação além da passagem para a velhice e nenhum outro progresso além do movimento em direção ao túmulo" . O materialismo dialético reconhece tanto o movimento em círculo, como o retorno para trás (regressão), mas não consi15
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L. Vaciliev, Espaço, tempo e movimento, Petrogrado, 1923, p. 7. Original em russo. J. Jeans, The stars in their courses, Cambridge University Press, 1948, p. 152. 15
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dera essas como tendências dominantes. A tendência dominante, no mundo material, é o movimento progressivo, as transformações que conduzem à passagem do inferior ao superior, do simples ao complexo, isto é, o desenvolvimento. A tese do materialismo dialético sobre o desenvolvimento que se produz na realidade objetiva é confirmada, de forma evidente, pelos dados das ciências contemporâneas, notadamente das ciências da natureza e da sociedade. A ciência moderna, por exemplo, afirma que a luz irradiada no Espaço por corpos incandescentes transforma-se, em certas partes do Universo, em partículas "elementares", que possuem uma massa de repouso, isto é, transforma-se em partículas de substâncias que se acumulam em grandes quantidades, formam os átomos de elementos químicos, depois as moléculas de algumas substâncias. Em decorrência da interação, essas partículas materiais se aquecem, condensam-se e, a um certo estágio de seu desenvolvimento, formam os corpos celestes, sobre os quais, à medida que as condições necessárias aparecem, como por exemplo, sobre a Terra, combinações mais complexas de substâncias orgânicas nascem e, desenvolvendo-se, transformam-se em organismos vivos. Os organismos vivos depois de aparecerem não permanecem imóveis, mas, seguindo as modificações do meio ambiente e a ele adaptando-se, transformam-se, passam de menos perfeitos para mais perfeitos, de simples para mais complexos e, em particular, passam de simples bolinhas de substância viva, desprovidas de estrutura celular, para organismos unicelulares, e de organismos unicelulares, os mais simples, aos organismos pluricelulares e, finalmente, passam de seres dotados unicamente de excitabilidade a seres dotados de sensações e de rudimentos de pensamento elementar. Na história da sociedade humana, observamos o mesmo processo. A humanidade começou a existir sob uma forma muito simples, a sociedade primitiva, depois conheceu o regime escravagista, que é mais elevado e mais complexo do que o da comunidade primitiva, em seguida, o regime feudal, o regime capitalista e, enfim, o socialista, erguendo-se cada vez a um grau mais elevado, passando a uma forma cada vez mais perfeita de vida social. Assim, a história da natureza, da mesma maneira que a história da sociedade, mostra que, no processo da passagem da .167
matéria de formações materiais ou de estados qualitativos a outros, aparece uma tendência ao desenvolvimento, isto é, ao movimento progressivo, à modificação indo do inferior ao superior. O reconhecimento do desenvolvimento é um dos princípios de partida fundamentais do materialismo dialético. Entretanto, na literatura marxista, não encontramos uma concepção única do movimento. Existem variados pontos de vista sobre esse assunto. Levando em conta o laço que existe entre nosso tema e o problema do desenvolvimento, vamos nos deter um pouco sobre ele. Certos autores entendem por desenvolvimento as diferentes transformações que se produzem na natureza, na sociedade e no conhecimento. V. Molodtsov, por exemplo, emite o seguinte ponto de vista: "Por desenvolvimento, no sentido mais amplo da palavra, a dialética marxista entende as diferentes transformações dos objetos da natureza, dos fenômenos da vida social, assim como as modificações do conhecimento que o homem tem do mundo objetivo" . Mas se o desenvolvimento é qualquer modificação, então não há nenhuma diferença entre desenvolvimento e movimento, e os conceitos de "desenvolvimento" e de "movimento" designam a mesma coisa. Entretanto, a análise da teoria dos fundadores do materialismo dialético, concernente ao movimento e ao desenvolvimento, mostra que eles davam um sentido diferente a essas duas noções e também que não as identificavam. Efetivamente, se o movimento e o desenvolvimento designassem a mesma coisa, Engels, definindo a dialética, não teria dito que ela é "a ciência das leis gerais do movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento" . Não se junta com um "e" palavras que significam a mesma coisa. Se o movimento e o desenvolvimento fossem noções iguais, Marx e Engels teriam criticado os materialistas anteriores a eles, não pela negação do desenvolvimento, como é o caso, mas por haverem-no reduzido a uma forma mecânica, porque os materialistas pré-marxistas reconheciam algumas modificações, 17
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V . Molodtsov, A dialética marxista sobre o desenvolvimento na natureza e na sociedade, Moscou, 1953, p. 31. Original em russo. F. Engels, Anti-Diihring cit., p. 171-2. lr
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tais como o deslocamento dos corpos no espaço. Além disso, se Marx e Engels entendessem por desenvolvimento todas as modificações, Engels, analisando o processo da moagem dos cereais, não teria podido dizer que nenhum desenvolvimento tinha lugar no decorrer desse processo, já que as transformações eram nele muito evidentes. Tudo isso mostra que esse ponto de vista não está de acordo com a teoria dos clássicos do marxismo-leninismo relativa ao desenvolvimento. Ao contrário dos partidários do ponto de vista que acabamos de examinar, que reduz o desenvolvimento a qualquer modificação, os partidários de outro ponto de vista agem de maneira exatamente diversa. Eles definem corretamente o desenvolvimento como movimento, "segundo uma linha ascendente, como um processo infinito de renovação, de surgimento do novo e de deterioração do antigo", e declaram ainda que, todas as modificações são um movimento, segundo uma linha ascendente, o nascimento do novo e a deterioração do antigo, o que o materialismo dialético compreende o movimento como desenvolvimento. "A natureza, assim como essas diferentes partes, declara A. Vislobokov, encontra-se em um movimento perpétuo, em uma mudança perpétua, e esse movimento segue uma linha ascendente, indo das formas inferiores às formas superiores"* . "É o movimento, a mudança a cada instante, da existência de todos os objetos materiais que constituem o mundo material, prossegue ele, que é o conteúdo do processo do desenvolvimento da matéria dos graus inferiores aos graus superiores"20. O resultado é o mesmo: identificação do movimento e do desenvolvimento. A única diferença é que os autores do primeiro ponto de vista dissolvem o desenvolvimento no movimento, enquanto que os do segundo, pelo contrário, dissolvem todo o movimento no desenvolvimento. F. Kalsine e A. Fourman fundamentam de maneira um pouco diferente a identificação de qualquer mudança com o desenvolvimento. Eles estão de acordo quanto ao fato de que, ao lado do desenvolvimento — movimento do inferior ao superior na realidade objetiva — há outras formas de mudanças e, 9
A. Vislobokov, A indissolubilidade da matéria e do movimento, Moscou, 1955, p. 29. Original em russo. A. Vislobokov, A indissolubilidade cit., p. 33. 19
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em particular, o movimento circular, as mudanças regressivas etc. Mas, pelo fato de que todas essas mudanças são sempre aspectos de um processo mais complicado de desenvolvimento, que condiciona seu aparecimento, devemos considerá-los como momentos, elos do movimento progressivo, isto é, do desenvolvimento. " ( . . . ) A mudança, escreve Fourman, pode-se dar em qualquer direção: do simples para o complexo, do complexo para o simples, em círculos etc. Mas se começarmos a procurar o porquê da realização dessa ou daquela mudança regressiva ou circular, poderemos descobrir que sua causa encontra-se sempre em um processo mais complexo e mais geral do desenvolvimento.. . Isso significa que todos os processos da natureza inanimada e da natureza viva devem ser considerados como diferentes aspectos ou momentos do desenvolvimento geral e progressivo do mundo" . A respeito desse juízo, é preciso dizer, antes de tudo, que nem todos os movimentos circulares e mudanças regressivas — mas longe disso — são engendrados pelo processo geral de desenvolvimento; vários dentre eles são aspectos, elos desse ou daquele processo geral da degradação, da desagregação desse ou daquele sistema, e é por isso que eles não podem, absolutamente, ser considerados como momentos do desenvolvimento. No que concerne aos movimentos circulares e às mudanças regressivas, que se desenrolam no quadro de um sistema em desenvolvimento, também estes não são momentos do desenvolvimento, já que o desenvolvimento representa o movimento do inferior para o superior. No melhor dos casos, podemos considerá-los como condições do desenvolvimento se o movimento do sistema do inferior para o superior for impossível sem eles. Mas a condição do desenvolvimento e seu momento estão longe de ser a mesma coisa. Fazendo desse ou daquele movimento circular ou mudança regressiva um desenvolvimento, unicamente porque ele está ligado a esse ou àquele processo mais geral do desenvolvimento, o autor mostra uma aproximação unilateral, porque ele se limita a considerá-lo apenas como uma parte do todo. O movimento circular, sendo uma parte de um todo mais geral, manifesta-se, ele próprio, como um todo possuidor de suas próprias partes. 21
Livro de leitura sobre a filosofia marxista, Moscou, 1960, p. 142-3. Original em russo. n
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O autor não leva em conta esse aspecto das coisas. A parte e o todo são noções correlativas; todo fenômeno é, ao mesmo tempo, parte e todo. Sob uma certa relação ele manifesta-se como parte, enquanto que, sob uma outra relação, ele aparece como todo. Por exemplo, a mudança de nossa Terra em relação às mudanças do sistema solar é uma parte, mas, em relação às mudanças do mundo vegetal e animal que vivem sobre ela, é um todo; as mudanças de nosso organismo em relação às mutações da espécie humana são uma parte e, em relação às modificações das células ou dos órgãos que as constituem, são um todo. Segue-se que não devemos nos limitar a considerar esse movimento circular unicamente como uma parte desse ou daquele todo, mas sim estudá-lo como um todo e, portanto, resolver a questão: um movimento circular ou uma mudança regressiva são um desenvolvimento? Respondendo a essa questão, chegamos necessariamente à conclusão de que as mudanças regressivas e os movimentos circulares não se relacionam ao desenvolvimento, mas que o desenvolvimento é apenas o movimento do inferior ao superior. Denominando todo movimento de desenvolvimento, os autores, cujo ponto de vista acabamos de analisar, consideram-se vitoriosos na tentativa de ultrapassar a estreiteza da concepção metafísica relativa a essa questão. Mas, na realidade, embora de forma invertida, a estreiteza metafísica também está presente em seu ponto de vista. Os metafísicos reduzem toda mudança, inclusive o desenvolvimento, a uma única forma de movimento, notadamente ao simples deslocamento dos corpos no espaço. Já os autores do ponto de vista em questão declaram, contrariamente, que toda mudança, inclusive o deslocamento dos corpos no espaço, é um desenvolvimento. Dialético não é o que vê o desenvolvimento onde ele não existe, mas sim o que representa a realidade em toda a sua diversidade, sem confundir progresso e regressão, aquele que vê na massa das mudanças o que intervém no desenvolvimento — o movimento progressivo que, "apesar de todos os acasos aparentes e de todos os retornos para trás, . . .termina por aparecer" . 22
K. Marx e F. Engels, Etudes phylosophiques, Paris, Editions Sociales, 1961, p. 45. 22
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Ao contrário dos autores que identificam totalmente o conceito de desenvolvimento com o de movimento, S. Meliukhin distingue-os, mas apresenta como critério de sua diferenciação momentos e aspectos que não constituem a essência específica do desenvolvimento. Ele considera, por exemplo, a integralidade, o caráter lógico e a espontaneidade das mudanças do estado qualitativo de uma formação material como principais particularidades do desenvolvimento. "A noção de desenvolvimento, ele escreve, caracteriza apenas a mudança integral, lógica e espontânea do estado qualitativo de um sistema dado, como um todo único" . Incontestavelmente, esses traços caracterizam o processo de desenvolvimento, mas não lhe são específicos. E eles caracterizam igualmente o movimento circular e as mudanças regressivas. A especificidade do desenvolvimento é constituída não pela integridade, o caráter lógico ou a espontaneidade das mudanças das formações materiais, mas pelo caráter progressivo das mudanças, pela passagem do inferior ao superior, do menos perfeito ao mais perfeito. É precisamente esse caráter que os clássicos do marxismo tomaram como critério do desenvolvimento. O autor ignora e, portanto, deforma o conceito de desenvolvimento. Não é por acaso que ele dá o nome de desenvolvimento tanto à mudança das formações materiais, indo do inferior ao superior, como à mudança do superior ao inferior. Partindo desse critério de desenvolvimento, o autor termina por pensar que as mudanças irreversíveis devem ser consideradas como desenvolvimento. Seu raciocínio é o seguinte: O Universo não é um sistema integrado, no qual todos os elementos estariam em uma ligação funcional única, mas representa "o conjunto da multiplicidade infinita de sistemas relativamente autônomos, na qual cada um está ligado ao outro, mas cada um desenvolve-se de maneira completamente independente" . Por isso o Universo não se modifica inteiramente do inferior ao superior: algumas das formações materiais que o constituem (sistemas relativamente autônomos) se desenvolvem do inferior ao superior, outras desenvolvem-se no sentido contrário, e outras, ainda, seguem um movimento 23
24
23S, Meliukhin, Sobre a dialética do desenvolvimento da natureza inorgânica, Moscou, 1960, p. 10. Original em russo. S. Meliukhin, Sobre a dialética cit., p. 158. 24
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circular. Mas há algo comum a todas essas mudanças, e isso é o fato de que elas são irreversíveis e de que não repetem totalmente os estados já transpostos. Por isso não devemos considerar o desenvolvimento como um movimento progressivo, mas como uma mudança irreversível. "Em relação ao conjunto do Universo, escreve Meliukhin, podemos falar não de desenvolvimento progressivo, mas de mudança irreversível, que supõe a impossibilidade de retorno completo aos estados já transpostos. Os processos de desenvolvimento progressivo são apenas casos particulares de sua mudança irreversível geral, pelo fato de que esta última encerra não apenas a complicação das ligações e das formas do movimento, mas igualmente a degradação e a desintegração dos sistemas materiais" . V. Koziutinski defende um ponto de vista análogo. Em seu artigo "De la direction du développement des objets cosmiques". ele escreve: "Qual é, então, o critério de desenvolvimento dos sistemas cósmicos e dos elementos que os constituem? Se o desenvolvimento se resumisse principalmente a uma mudança seguindo uma linha ascendente, a resposta seria clara: o critério do desenvolvimento é o grau de "complicação" da estrutura, das ligações e das formas de movimento da matéria, atingidas pelo sistema. Mas, desde que a matéria inanimada não se desenvolve em um sentido preferencial, e desde que o desenvolvimento dos objetos cósmicos consiste em sua passagem a novos estados qualitativos, que dão a impressão de ser, a cada vez, originais e únicos em seu gênero, mas que nem sempre são mais complexos do que os estados que os precedem, é preciso introduzir, então, um novo critério de desenvolvimento O desenvolvimento pode ser determinado como processo de transformações qualitativas irreversíveis do objeto. No desenvolvimento "ascendente", o novo significa ao mesmo tempo a ascenção a um novo grau qualitativo. Mas o desenvolvimento "ascendente" é apenas uma das direções do desenvolvimento irreversível dos objetos cósmicos, uma das ramificações de processos extremamente complexos que se desenrolam na Metagaláxia" . 25
26
S. Meliukhin, op. cit., p. 159. V. Koziutinsky, Sobre o sentido de desenvolvimento dos objetos cósmicos, in Ciências filosóficas, 1961, v. 4, p. 91-2. Original em russo. 25
26
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Nesses raciocínios é ressaltado o caráter não fundamentado das conclusões relativas à necessidade de expandir a noção de desenvolvimento e de estender, a todos, os processos irreversíveis. Esses autores descobriram que o movimento do inferior ao superior não engloba todos os processos que se desenrolam no mundo, que existem ainda os movimentos circulares e descendentes. A partir disso, eles concluíram que o conceito de desenvolvimento como movimento do inferior ao superior é insuficiente, que é preciso substituí-lo por um outro conceito que possa englobar todas as mudanças observáveis. Segundo eles, esse conceito seria o da irreversibilidade das mudanças. Ele caracteriza tão bem o movimento do inferior ao superior, como os movimentos circulares e as mudanças regressivas. Vêse então, claramente, que as tentativas desses autores para expandir a noção de desenvolvimento, qualificando de desenvolvimento qualquer mudança que intervenha na realidade objetiva, decorrem da vontade de mostrar o caráter universal do desenvolvimento. Afirmando que toda mudança não é desenvolvimento e que, ao lado dos processos de desenvolvimento, observamos movimentos circulares e mudanças regressivas, não estaremos colocando em dúvida a universalidade do desenvolvimento? É evidente que não. O desenvolvimento é uma propriedade universal da matéria, necessariamente própria a todas as formações materiais. Ele existe sob a forma de capacidade à complicação e à passagem do inferior ao superior. Sendo próprio a toda a matéria e a cada formação material, esta capacidade, como qualquer outra, aparece apenas em condições adequadas. Onde essas condições reúnem-se, há necessariamente mudança do inferior ao superior, do simples ao complexo; onde essas condições não são criadas há, ou movimento circular, ou mudanças regressivas. As formações materiais que participam do movimento circular ou sofrem mudanças regressivas não perdem a capacidade de passar do inferior ao superior. Essa capacidade conserva-se sob todas as transformações e mudanças, manifestando-se desde que as condições favoráveis sejam reunidas. A idéia segundo a qual a capacidade de passagem do inferior ao superior é necessariamente própria da matéria e de que ela se manifesta necessariamente onde são criadas condições correspondentes foi exposta de uma maneira particular.174
mente clara por Engels: "A matéria move-se em um ciclo eterno: ciclo que, é bem verdade, só executa sua revolução nas durações pelas quais nosso ano terrestre é apenas uma unidade de medida suficiente, ciclo no qual a hora do supremo desenvolvimento, a hora da vida orgânica e, ainda mais, a hora em que vivem os seres que têm consciência deles mesmos e da natureza é medida com tanto mais de parcimônia quanto o espaço no qual existem a vida e a consciência de si; ciclo no qual todo modo de vida finito de existência da matéria — seja ele o Sol ou nebulosas, animal singular ou gênero de animais, combinação ou dissociação química — é igualmente transitório e no qual nada é eterno, a não ser a matéria em eterna mudança, em eterno movimento, e as leis segundo as quais ela se move e se modifica. Mas, qualquer que seja a freqüência e qualquer que seja o inexorável rigor com os quais o ciclo se complete no tempo e no espaço; qualquer que seja o número dos milhões de sóis e de terras que nascem e que perecem; por maior que seja o tempo necessário para que, em um sistema solar, as condições de vida orgânica estabeleçam-se, mesmo que apenas em um único planeta; por mais numerosos que sejam os seres orgânicos que terão primeiro de aparecer e perecer antes que saiam de seu seio animais com um cérebro capaz de pensar e, mesmo que eles encontrem, apenas por um curto lapso de tempo, condições próprias a sua vida, para em seguida ser exterminados sem piedade, ainda assim, temos a certeza de que. . . se ela (a matéria) tiver um dia de exterminar sobre a Terra, com uma necessidade imperiosa, sua floração suprema, o espírito pensante, será preciso que, com a mesma necessidade, em algum outro lugar e em alguma outra hora, ela o reproduza" . Desse raciocínio de Engels destaca-se o fato de que os clássicos do marxismo, considerando o movimento da matéria do inferior ao superior como uma evolução, levavam em conta movimentos circulares infinitos próprios à matéria, a presença de mudanças regressivas e o caráter temporário da existência de cada sistema, de cada formação material. Analisamos vários pontos de vista relativos à concepção do desenvolvimento, diferentes, todos eles, do que havíamos 2,7
27F. Engels, La dialectique cit., p. 45-6.
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exposto anteriormente, e acreditamos que a teoria mais justa do desenvolvimento é a que o considera como um movimento progressivo, segundo uma linha ascendente, como mudança no decorrer da qual se produz a passagem do inferior ao superior, do simples ao complexo, do menos perfeito ao mais perfeito. 3. A RELAÇÃO As diferentes formações materiais, sendo sistemas de movimento relativamente estáveis, não coexistem simplesmente, mas agem umas sobre as outras, provocando mudanças mútuas e encontrando-se, assim, em correlação e interdependência determinadas. A ligação é a relação entre os objetos da realidade. Mas nem toda relação é liaação. O conceito de "relação" é mais vasto do que o de "ligação". Esse conceito engloba não apenas a ligação entre os fenômenos da realidade, mas igualmente seu isolamento, sua separação, não apenas sua interdependência, mas também uma certa independência, uma relativa autonomia. A ligação é uma relação entre dois fenômenos quando a modificação de um supõe uma certa transformação do outro, quando a essa ou àquela modificação em um correspondem essas ou aquelas modificações no outro. Por exemplo, o movimento do corpo está organicamente ligado a sua massa, já que a modificação do primeiro acarreta necessariamente a modificação da segunda; as propriedades químicas dos elementos estão ligadas à carga do núcleo atômico, porque sua modificação acarreta uma certa modificação dessas propriedades; os organismos animais e vegetais estão em correlação com o mundo exterior: mudanças precisas do meio acarretam necessariamente mudanças correspondentes nos organismos; as ferramentas de trabalho estão em correlação com o objeto do trabalho e toda modificação da ferramenta provoca uma modificação rigorosamente determinada do objeto. Por sua vez, a transformação do objeto do trabalho acarreta certas modificações das ferramentas de trabalho etc. O isolamento (a separação) é uma relação entre os fenômenos da realidade feita de tal forma que as mudanças de um deles não afetam os outros fenômenos, não acarretam mudanças nestes últimos. Por exemplo, os princípios morais da sociedade .176
e a natureza exterior estão em estado de isolamento, as modificações dos princípios morais não acarretam uma mudança da natureza e vice-versa, as mudanças na natureza não modificam os princípios morais. Fenômenos como a natureza biológica do homem e a luta de classes, as jazidas de carvão e de ferro etc. não estão ligados entre si. Uma modificação de um não acarreta uma modificação de outro. Dando esses exemplos de correlação e de isolamento (separação), nós não queremos absolutamente dizer que a correlação é particular a certos fenômenos, enquanto o isolamento é exclusivo de outros. No caso da correlação que consideramos mais acima, há igualmente isolamento, assim como no caso de isolamento há também correlação. A única diferença é que, em certos casos, a correlação está em primeiro plano, enquanto que, em outros, é o isolamento, a separação. Tendo fixado por meta mostrar o que representa a correlação, escolhemos, naturalmente, exemplos em que ela aparece de maneira particularmente clara, em que ela predomina sobre o isolamento. E procedemos da mesma forma para mostrar o que representa a separação (o isolamento). A correlação e a separação (o isolamento) existem conjuntamente e caracterizam todos os fenômenos, sem exceção. No mundo, todos os fenômenos estão, ao mesmo tempo, ligados e isolados. Eles estão ligados sob certas relações e não o estão sob outras; neles são produzidas tanto mudanças que supõem outras correspondentes em outros fenômenos, como mudanças que não implicam absolutamente em correspondentes. O núcleo atômico, por exemplo, está organicamente ligado à camada eletrônica, embora esteja, ao mesmo tempo, separado dela (isolado). Nesse núcleo produzem-se modificações que acarretam modificações correspondentes na camada eletrônica, e outras que não a afetam. Assim, a modificação da carga do núcleo acarreta uma modificação de sua camada eletrônica. Mudanças, como a troca permanente de mésons, que se efetua entre os núcleos que é acompanhada por suas transformações uns nos outros, não acarretam nenhuma modificação da camada eletrônica, assim como uma modificação nesta última e, em particular, a perda ou a aquisição de elétrons não acarreta mudanças no núcleo. A relação organismo-meio é um exemplo manifesto da unidade da ligação e da separação (isolamento). O organismo .177
está indissoluvelmente ligado ao meio e, ao mesmo tempo, está separado dele; porque o organismo possui uma certa autonomia, conhece um certo isolamento. Algumas mudanças no meio engendram necessariamente mudanças no organismo, enquanto outras não o fazem. Apenas as mudanças do meio que concernem aos aspectos e aos fatores ligados à atividade vital do organismo influem sobre ele. As mudanças do meio que não afetam a atividade vital do organismo não acarretam mudanças para ele. As idéias de separação, de isolamento da existência dos fenômenos e de sua correlação surgiram com o nascimento da Filosofia. Assim, entre os primeiros filósofos gregos, a correlação desempenhou um papel de princípio inicial na explicação dos fenômenos observados na realidade ambiente. Tomando como princípio inicial uma substância ou um fenômeno natural (a água, o ar, o fogo), os filósofos da Antigüidade mostraram que todos os fenômenos observados no mundo provinham de modificações dessa substância (fenômeno) e que, sendo diferentes estados de uma mesma natureza, eles estão organicamente ligados, passam um no outro e no princípio inicial. A idéia da correlação universal dos fenômenos foi muito claramente exprimida por Heráclito que tomava o fogo como princípio inicial e dele fazia o fundamento de toda separação e de toda ligação. Nas teorias dos primeiros filósofos gregos, a correlação era compreendida como a passagem dos fenômenos uns nos outros. Mas logo depois, esse ponto de vista foi substituído por um outro, segundo o qual a correlação manifesta-se sob a forma de junção e de disjunção mecânicas dos mesmos elementos invariáveis. Esse ponto de vista foi particularmente desenvolvido por Empédocles e Anaxágoras. Foi somente Aristóteles quem conseguiu superar esse ponto de vista limitado. Para ele, a correlação é a interdependência das coisas. Ele ensina que tudo o que é correlativo a qualquer outra coisa é expresso em relação às coisas que estão em interdependência. Aristóteles foi o primeiro a denominar de categoria o conceito de "relação", dando-lhe, dessa maneira, o caráter geral necessário. A categoria de "relação" foi, em seguida, desenvolvida por Kant, para quem a relação compreende, ao mesmo tempo, a .178
ligação e a separação. Ele destacava que, no juízo, os conceitos estão, ao mesmo tempo, ligados e separados, e que todo juízo fixa tanto a presença de ligação, como sua ausência. Por exemplo, o juízo "o lobo é um animal" exprime que o lobo está ligado aos animais e também que ele está separado de todos os outros animais, com exceção de seus semelhantes, isto é, dos lobos. Desenvolvendo a justa idéia de que a ligação e a separação são dois aspectos que se condicionam em qualquer relação, Kant deu um grande passo à frente na resolução desse problema. Mas, ao mesmo tempo, deu um passo atrás. Ele negava a presença da correlação dos fenômenos no mundo exterior, na realidade objetiva. Para ele, a correlação é introduzida no mundo dos fenômenos pelo sujeito pensante. Hegel opunha-se a essa afirmação de Kant. Ele afirmava que a correlação e as relações são, por natureza, próprias às coisas. É precisamente por meio das relações que as coisas manifestam sua essência. Hegel dizia que: "Tudo o que existe encontra-se em relação, e essa relação é a verdade de toda existência" . Embora demonstrasse que a ligação e a relação são próprias às coisas, Hegel estava longe de adotar posições materialistas. Ele acreditava que as relações são, por sua natureza, ideais, que elas constituem momentos ou graus do desenvolvimento da idéia absoluta que existe fora e antes do mundo material e das coisas sensíveis. Além da concepção dialética das relações desenvolvida pelos filósofos já citados, aparece na história da Filosofia uma concepção metafísica, cujos partidários erigiam em absoluto o isolamento, a separação e, de uma maneira ou de outra, negavam a correlação dos fenômenos da realidade. Essa concepção nasceu do fato de que, em um determinado estágio do desenvolvimento da consciência social (séculos XV e XVI), os sábios passaram do estudo do mundo em seu conjunto, como se fazia anteriormente, ao estudo dos objetos particulares, que formavam esse mundo, e de suas propriedades. Eles distinguiram os objetos uns dos outros, desmembraram-nos em partes e examinaram cada uma delas separadamente, fora de qualquer laço com as outras partes e objetos. Esses modo de pesquisa 28
G. W. F. Hegel, Werke, Vollständige Ausgabe, Berlin, 1843, t. 6, p. 267. 28
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engendrou o hábito de considerar o mundo, a realidade como um conjunto de corpos, de propriedades e de elementos isolados, sem nenhuma ligação entre eles. Essa concepção filosófica das relações dos fenômenos da realidade foi elaborada de uma maneira ou de outra por Francis Bacon e John Locke. Dentre os filósofos burgueses contemporâneos, são os partidários da teoria pluralista que a adotam. Segundo essa teoria, cada objeto apresenta-se como alguma coisa encerrada em si mesma, portanto, não pode haver ligação entre os objetos. Em oposição aos metafísicos que erigiram o isolamento em absoluto e negaram a correlação dos fenômenos da realidade, e também em oposição aos idealistas que deduzem a correlação da consciência, o materialismo dialético acredita que esta última é uma forma universal do ser, própria a todos os fenômenos da realidade. Todos os fenômenos que existem no mundo representam elos de uma matéria única, "um conjunto coerente de corpos" . Por exemplo, segundo os dados da ciência, a Terra tem uma certa ligação com o Sol e os outros planetas do sistema solar. O Sol é um elo da Galáxia que encerra uma grande quantidade de outras estrelas ligadas entre elas. A Galáxia faz parte de um sistema ainda mais imenso e, nos limites desse sistema, está ligada a uma série de outras formações estelares etc., até o infinito. Observamos um fenômeno análogo, quando penetramos a matéria. De fato, todo corpo celeste representa um conjunto de diferentes substâncias ligadas entre elas de diferentes maneiras; cada substância é um conjunto de moléculas ligadas entre elas de uma maneira bem determinada; a molécula é um conjunto de átomos em ligação recíproca; o átomo é um conjunto de partículas "elementares" ligadas entre elas. A ligação dos corpos celestes efetua-se por meio dos campos de gravitação. A ligação das substâncias que constituem um corpo assim como a ligação dos átomos na molécula e da camada eletrônica com o núcleo atômico realizam-se por meio dos campos de gravitação e eletromagnéticos. A natureza viva e a natureza inanimada, o mundo vegetal e o mundo animal, a natureza e a sociedade, os diferentes 29
29
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F. Engels, Dialectique cit., p. 76.
aspectos da vida social, os fenômenos da consciência e do conhecimento estão todos ligados entre eles de forma determinada. Logo, na realidade, tudo está em correlação, "cada coisa (fenômeno, processo etc.) está ligada a uma outra coisa qualquer'^. 4.
O ESPAÇO E O TEMPO
Como já fizemos observar, a matéria, que possui um movimento absoluto e um repouso relativo, existe não sob a forma de massa totalmente homogênea, mas divide-se em um conjunto de formações materiais particulares. Cada formação material particular, enquanto parte do mundo material, possui uma certa extensão e está em correlação, de uma maneira ou de outra, com outros objetos e formações materiais particulares que a rodeiam . A extensão das formações materiais particulares e a relação entre cada uma delas com as outras formações materiais que a rodeiam é o espaço. Pelo fato de que a matéria possui como próprio um movimento e um repouso relativo, cada formação material particular não é eterna, mas aparece em decorrência da negação de formações materiais determinadas que lhe são anteriores, transpõe certos estágios de desenvolvimento e desaparece, transformando-se em outras formações materiais, isto é, ela possui uma duração determinada de existência e está em relação determinada com as formações materiais que a precedem e com as que a seguem. A duração da existência das formações materiais e a relação de cada uma delas com as formações anteriores e posteriores é o tempo. Os idealistas, como de regra, negam a existência objetiva do tempo e do espaço. Assim, por exemplo, Berkeley, representando o idealismo subjetivo, reduz o mundo a um conjunto de sensações e declara que todo laço ou extensão existe apenas no espírito, na consciência, e que não há, fora da consciência 30
V. Lenin, Oeuvres t. 38, p. 210.
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e de nossas sensações, nem espaço, nem tempo. O tempo, segundo Berkeley, transforma-se em nada se afastamos a sucessão de idéias em nosso espírito. Outros representantes do idealismo subjetivo têm um ponto de vista semelhante, como por exemplo Ernest Mach, físico e filósofo austríaco da segunda metade do século XIX e começo do século XX. Para ele, o tempo e o espaço representam sistemas ordenados (ou harmonizados) de séries de sensações. Kant acreditava que o espaço não constitui a propriedade das coisas, mas que, assim como o tempo "que não é alguma coisa que exista em si, ou que pertença às coisas", ele representa "exatamente uma forma de sentimentos exteriores", uma forma de intuição, que o homem utiliza para abordar o mundo dos fenômenos, por meio da qual ele as percebe" . Poincaré apresentou igualmente um ponto de vista subjetivo do espaço e do tempo. Segundo ele, o tempo e o espaço são apenas conceitos elaborados pelo homem, para sua comodidade. A concepção idealista do espaço e do tempo caracteriza a maioria dos filósofos burgueses contemporâneos, assim como certos físicos que, não sabendo adotar o ponto de vista do materialismo dialético, para explicar estes ou aqueles fenômenos físicos, tendem para o idealismo. Assim, o astrônomo inglês J. Jeans reprova o materialismo dialético por fazer do espaço e do tempo "qualidades primeiras" e por acreditar que todos os fenômenos podem ser inteiramente representados no espaço e no tempo, quando a física moderna mostra que o espaço e o tempo são próprios apenas aos aspectos exteriores das coisas e que não caracterizam os processos internos . Segundo Jeans, só pertence ao espaço e ao tempo o que está na superfície, os processos internos existem fora do espaço e do tempo, isto é, representam uma espécie de mundo à parte. O físico contemporâneo Arthur Eddington também não reconhece a realidade do espaço e do tempo para o mundo das partículas elementares. Referindo-se a esses estados da matéria ele declara que: "Para tais estados, o espaço e o tempo não existem — ou pelo menos eu não tenho nenhuma razão para 31
32
siKant's Werke, Berlim, 1904, t. 3, p. 55. J. Jeans, The new background of science, Cambridge, 1933, p. 81.
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pensar que eles existam" . Os materialistas que, ao contrário das diferentes concepções idealistas do espaço e do tempo, consideram que a matéria, a natureza são primeiras, iniciais, determinantes e que a consciência, o espírito são segundos, derivados da matéria e que constituem uma propriedade da matéria que aparece apenas em um estágio determinado de seu desenvolvimento, reconhecem a existência objetiva e real do espaço e do tempo, existência independente da consciência. Segundo o materialismo dialético, o espaço e o tempo são propriedades fundamentais da matéria, formas determinadas de sua existência, formas objetivamente reais do ser. "O Universo, escreve Lenin, é apenas matéria em movimento, e essa matéria em movimento só pode mover-se no espaço e no tempo" . Se o espaço e o tempo são propriedades fundamentais da matéria, formas de sua existência, é totalmente normal e necessário que eles estejam em ligação orgânica com a matéria. Mas, na história da Filosofia, foi a opinião contrária que prevaleceu por muito tempo. Os filósofos acreditavam que o espaço e o tempo, embora existindo objetiva e independentemente da consciência, não estavam absolutamente ligados à matéria, não dependiam dela. Essa idéia já fora exposta de maneira bastante clara pelos filósofos gregos da Antigüidade, e, em particular, pelo pitagórico Archytas de Tarente, em cuja obra encontramos a afirmação de que o espaço existe realmente e de que ele lembra uma imensa caixa na qual encontram-se coisas e números separados, e que ele não depende das coisas e que pode existir sem elas. Demócrito reconheceu igualmente a independência do espaço com relação às coisas materiais. Segundo ele, o espaço existe sob a forma de um vazio, no qual movem-se os átomos. Aristóteles expôs um ponto de vista semelhante; é verdade que ele não falou de espaço vazio, mas escreveu que o espaço é apenas um lugar ocupado alternadamente pelas coisas. Foi Newton que, em sua teoria do espaço absoluto, desenvolveu a tese da independência do espaço com relação à matéria, que tornou-se um pilar da física clássica. Segundo 33
34
A. S. Eddington, The nature of the physical world, New York, The Macmillan Company, 1929, p. 198. V. Lenin, op. cit., t. 14, p. 181. 33
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essa teoria, o espaço não está ligado às coisas de forma necessária, não depende delas; ele é eterno, imutável e imóvel, enquanto que as coisas particulares dependem do espaço, existem no espaço, movem-se com relação a ele. Na história da Filosofia, houve tentativas de ligar o espaço à matéria, às coisas materiais. Giordano Bruno (Itália, Renascença), por exemplo, tentou disseminar a idéia de que não existe nenhum espaço vazio, que o espaço está indissoluvelmente ligado à matéria e em especial ao éter, o qual, sendo penetrável, incorpora todas as coisas existentes. Descartes reúne de maneira mais clara o espaço à matéria. Para ele, o espaço não está ligado a uma forma qualquer da matéria, como dizia Bruno, mas a todas as formas de sua existência. A verdade é que ele praticamente caiu em um outro extremo identificando o espaço à matéria. A tese da ligação orgânica do espaço com a matéria foi igualmente sustentada por outros filósofos e, em particular, por Spinoza (Holanda, séc. XVII), segundo o qual o espaço é um atributo da matéria, e pelo filósofo inglês John Locke (1632/1704), que identificava o espaço à grandeza dos corpos, à sua "extensão". Os materialistas pré-marxistas que salientaram, com justa razão, a ligação do espaço e da matéria, pensavam, entretanto, que o espaço é o mesmo para todos os corpos, que possui as mesmas qualidades e obedece às mesmas leis, o que manifestamente não corresponde à situação real das coisas e é o resultado da influência metafísica própria do materialismo prémarxista. Apenas o materialismo dialético rompeu definitivamente com a metafísica na interpretação da correlação do espaço e da matéria. Ele considera que o espaço não está apenas organicamente ligado à matéria, às coisas materiais, mas também que depende igualmente da matéria, de suas formas de existência e que não é, em conseqüência, o mesmo para todos os corpos, mas que muda de uma forma de existência da matéria a outra. Assim, por exemplo, os gazes, cuja atração molecular é tão fraca que as moléculas podem deslocar-se em todas as direções, possuem relações espaciais determinadas. Os líquidos caracterizam-se por outras relações espaciais: suas moléculas têm uma atração muito mais forte e, por esse motivo, elas não podem mover-se livremente, seus movimentos são atrapalhados .184
pelas moléculas vizinhas e deslocam-se apenas com elas. Outras relações espaciais existem, por exemplo, nos sólidos, nos metais em que as moléculas e os átomos estão dispostos em uma ordem rigorosa e formam uma rede cristalina estável. As aquisições da física contemporânea e, em particular, a teoria geral da relatividade são um poderoso testemunho da dependência imediata do espaço com relação à natureza das formações materiais. Segundo essa teoria, as características espaciais dependem da divisão e do movimento das massas em atração, isto é, da densidade da matéria que constitui essa ou aquela parte do Universo e de suas forças de atração (campos de gravitação), que ela determina. Em particular, nas partes do Universo caracterizadas por uma forte densidade de matéria e por grandes forças de atração, o espaço curva-se tanto mais quanto a densidade e a força de atração cresçam. O problema da matéria e do tempo é análogo. Durante muitos anos, acreditou-se que o tempo não estava ligado à matéria, não dependia da natureza das formações materiais, mas existia em si mesmo, corria de maneira regular, repetindo o mesmo ritmo. Spinoza, por exemplo, escreveu que: "A duração é a continuação indefinida da existência. . . ela não pode jamais ser determinada pela própria natureza da coisa que existe; nem pode ser determinada pela causa eficiente"35. Essa idéia foi levada ao extremo por Newton que acreditava que o tempo, enquanto tal, era absoluto, que existia em si mesmo, independente dos acontecimentos; que corria de forma igual, uniforme. A separação do tempo da matéria, dos acontecimentos que se davam na realidade objetiva, pode ser encontrado igualmente na literatura filosófica soviética. Certos filósofos soviéticos defendem e desenvolvem a teoria de um tempo puro que não será preenchido, nem "sujado" por nenhum acontecimento Como tempo puro, eles propõem o tempo futuro. O futuro, efetivamente, não está preenchido pelos acontecimentos, como é o caso do presente e do passado. Mas, por enquanto, ele não é real, é apenas um tempo possível. Por isso não é válido compará-lo aos acontecimentos presentes, podemos confrontálo apenas com acontecimentos possíveis, com acontecimentos que se produzirão no futuro. E desde que colocamos a questão 35
Spinoza, Ethique, Paris, 1908, p. 64.
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nesse plano, a "pureza" do tempo futuro desaparecerá imediatamente, este verificar-se-á "sujo", preenchido pelos acontecimentos, e precisamente pelos acontecimentos futuros. O materialismo dialético não reconhece nenhum tempo puro existindo fora e independentemente dos acontecimentos que têm lugar nesse mundo. O tempo, assim como o espaço, está organicamente ligado à matéria, depende dessa ou daquela forma de sua existência. A dependência do tempo com relação às formas de existência da matéria é confirmada pelos dados mais recentes da ciência da natureza contemporânea. Por exemplo, segundo a teoria da relatividade, o decorrer do tempo, seu ritmo dependem da densidade da substância desse ou daquele sistema e das forças de atração que agem entre os corpos dados: quanto mais a densidade da substância é elevada, tanto mais lentamente corre o tempo. A dependência do espaço e do tempo, com relação à matéria, sua determinação pelas formas concretas de existência da matéria decorrem necessariamente do fato de que o espaço e o tempo estão organicamente ligados ao movimento. Com efeito, mesmo o movimento mecânico é testemunha dessa correlação. Por exemplo, a distância percorrida por um corpo em movimento uniforme é determinada pelo produto do tempo, pela velocidade. A distância é a medida do espaço; a velocidade, a medida do movimento. Portanto, o espaço é, aqui, determinado pelo movimento e pelo tempo. A dependência da duração da existência de certas partículas "elementares" com relação à sua velocidade testemunha igualmente que o tempo depende do movimento. Por exemplo, o méson existe tanto mais tempo, quanto maior for sua velocidade. Isso se encontra confirmado em certas teses da teoria da relatividade e, em particular, no fato de que, em um sistema em movimento, comparado a um sistema em repouso, as relações espaciais modificam-se, reduzem-se, e poderíamos mesmo dizer que o corpo é comprimido no sentido do movimento, que os períodos temporais aumentam e que o escoar do tempo torna-se mais lento. Se o espaço e o tempo estão ligados ao movimento, e se o movimento é um atributo da matéria, o tempo e o espaço estão, no entanto, organicamente ligados à matéria, dependem das formas de seu movimento e, portanto, de sua existência. .186
A característica do espaço é a de ser tridimensional. A representação das três dimensões do espaço é dada por três linhas perpendiculares uma a outra, passando por um único e mesmo ponto do espaço. Uma delas vai da esquerda para a direita, a outra de cima para baixo e a terceira da írente para trás. Esses três eixos são totalmente suficientes para que possamos, deslocando-nos paralelamente a eles, atingir qualquer que seja o corpo e localizá-lo no espaço. Certos filósofos idealistas contestam essa tese, afirmando que as três dimensões não são absolutamente necessárias para todos os corpos, nem para todos os seres. Ernest Mach, por exemplo, acreditava que os átomos dos elementos químicos não são tridimensionais. Por isso, segundo Mach, "nós não devemos representar-nos os elementos químicos em um espaço com três dimensões" . Outros representantes do idealismo e, em particular, os espiritualistas, procuraram justificar um espaço com quatro dimensões e seres também com quatro dimensões. O professor Zelner, espiritualista, chegou a recorrer ao seguinte raciocínio: Admitamos que existam seres com duas dimensões, que só podem deslocar-se da esquerda para a direita, para frente e para trás, mas não de baixo para cima. Eles seriam parecidos com um peixe chato, por exemplo, o linguado, colocado em um aquário chato, e privado da possibilidade de se deslocar para o alto e para baixo. Esses seres viventes não sabem nada da terceira dimensão espacial que nós conhecemos, já que somos seres de três dimensões. É por isso que, para chegar ao centro do círculo, esses seres só podem deslocar-se no sentido do raio e, assim, eles cortarão forçosamente a circunferência. Quanto a nós, podemos chegar ao centro do círculo de outra maneira, seguindo a terceira dimensão, isto é, aproximando-nos do alto para baixo e de baixo para o alto. Segundo Zelner, nós, os seres de três dimensões, estamos em relação aos seres de quatro dimensões como os seres de duas dimensões estão em relação a nós mesmos. Efetivamente, não podemos chegar ao centro de uma esfera evitando sua superfície, nem podemos entrar em uma casa sem passar pela porta ou pela janela etc., porque só conhecemos três dimensões e todas elas passam pela superfície das formações indicadas (esfera, 36
36
E. Mach, Erhaltung der Arbeit, Praga, 1872, p. 54-5.
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casa); os seres sobrenaturais que conhecem outras direções podem penetrar na esfera ou na casa sem passar por sua superfície. Daí todas as maravilhas sobrenaturais que não podemos compreender nem explicar, a partir do ponto de vista de nosso espaço de três dimensões. Esses raciocínios mostram o quanto a quarta dimensão é necessária a certos filósofos para fundamentar a existência de Deus e todo o misticismo. Quanto às teorias físicas de um espaço com quatro, cinco, ou mesmo um número infinito de dimensões, não têm nada a ver com as afirmações que acabamos de examinar e refletem certas leis do mundo objetivo sem, entretanto, invalidar a tese do espaço de três dimensões. Quando os físicos falam de quatro dimensões, eles consideram, na verdade, quatro coordenadas, das quais três se relacionam ao espaço e a suas dimensões e a quarta é o tempo. A mesma coisa acontece quando se fala em espaço pluridimensional. Quando os físicos ou os matemáticos falam de dimensões, eles, habitualmente, têm em vista não somente as dimensões do espaço, mas igualmente as de outros aspectos e propriedades das coisas, que são em número infinito. Tudo isso não enfraquece em nada a teoria do espaço de três dimensões, mas simplesmente mostra que os termos "espaço de quatro dimensões", "espaço de várias dimensões" ou "espaço de n dimensões" não correspondem a seu conteúdo, mas são empregados para definir as características que ultrapassam grandemente o quadro das dimensões espaciais. Ao contrário do espaço, o tempo possui apenas uma dimensão, ele vai sempre em um único sentido: para a frente, do passado para o presente e depois para o futuro. Não podemos mudar a disposição dos momentos nem modificar o curso do tempo, porque o tempo é irreversível. Outra particularidade do tempo e do espaço é que eles são infinitos. Embora a matéria exista apenas mediante formações materiais limitadas no espaço e no tempo, enquanto tudo, ela é infinita. Cada formação material, colocada à parte, possui suas relações espaciais, mas é apenas .um elo da corrente das coisas materiais. Cada coisa está ligada a uma quantidade infinita de outras coisas, e é por isso que as relações espaciais de uma coisa, de uma formação material transformam-se imediatamente em relações espaciais de outras coisas, e assim até .188
o infinito. Embora a existência de cada formação material seja marcada por um começo e um fim, já existia antes dela um número infinito de formações materiais, da mesma maneira que, depois de seu desaparecimento, existirão outras formações materiais. O desaparecimento de uma conduz ao surgimento de outra e, assim, sucessivamente. O mundo nunca teve começo, nem terá fim, ele existia e existirá eternamente. Entretanto, o caráter infinito do espaço e do tempo é contestado pelos representantes das diferentes escolas idealistas, assim como pelos teólogos. Os teólogos resumem o caráter finito do mundo, no espaço e no tempo, à doutrina religiosa da criação do mundo por Deus. Deus, segundo eles, tem uma existência eterna e não tem necessidade nem de espaço, nem de tempo. O espaço e o tempo apareceram, dizem eles, depois da criação do mundo, que Deus situou no espaço e no qual Ele deixou um lugar para a marcha dos acontecimentos. Os teólogos propõem-se a aceitar sua doutrina do espaço e do tempo como uma fé e recusam-se a qualquer discussão sobre seu fundamento e sua lógica. Quando, por exemplo, perguntavam para Luther: "Onde se encontrava Deus e o que Ele fazia antes da criação do mundo?", ele respondia que Deus estava sentado em um bosque de bétulas e preparava açoites para os que fizessem perguntas desse tipo. Nos últimos tempos, a noção de um mundo limitado no tempo e no espaço é freqüentemente ligada à teoria da relatividade, a algumas de suas teses e deduções. Segundo a teoria da relatividade, a julgar pela densidade da substância e pelas forças de atração que condiciona, o Universo representa uma esfera fechada, limitada no espaço. Concluir pelo caráter finito do mundo no espaço, resulta em equações da teoria geral da relatividade, que supõem que a matéria é repartida de forma homogênea nesse espaço. Entretanto, os últimos dados da astronomia mostram o contrário: a divisão da matéria no espaço é extremamente heterogênea ?. Também não tem nenhum fundamento dizer que o mundo é finito no espaço e no tempo, referindo-se ao processo de expansão do Universo. O fato de que os sábios observem o 31
V. Ambartsumian, Alguns problemas metodológicos da cosmogonia, 1957, p. 6. Original em russo. 37
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deslocamento de raios espectrais na direção do vermelho, quando observam a luz proveniente das estrelas, foi utilizado para concluir que a parte observada do Universo está em expansão, que as galáxias afastam-se umas das outras a uma velocidade inacreditável, atingindo, para algumas estrelas mais afastadas, a velocidade de 120.000 a 170.000 Km/s. Levando em conta que a velocidade na qual as galáxias afastam-se umas das outras e a posição em que foram observadas, os sábios calcularam a época em que essa matéria em recessão ainda permanecia junto, isto é, eles estabeleceram quando começou essa dilatação suposta da matéria. Isso representa de 2 a 5 milhões de anos. Os idealistas e os teólogos imediatamente tiraram conclusões correspondentes. Assim, foram criadas teorias, segundo as quais todo o Universo tem por começo um átomo pai, criado por Deus, isto é, o mundo teve um começo no tempo, portanto, ele também é limitado no espaço . O papa Pio XII, baseando-se nessas reflexões, decidiu acrescentar uma correção à Bíblia e declarou que o mundo foi criado não há 7.500 anos, mas há vários milhões de anos. É evidente que esses são raciocínios incorretos. O erro, nesse caso, reside no fato de que leis próprias a algumas partes do Universo são estendidas para todo o Universo. Do fato de que a parte observada do Universo esteja em expansão não decorre absolutamente que as outras partes também estejam expandindo-se. Elas tanto podem estar em dilatação, como em contração. E é mesmo muito provável que algumas partes do Universo estejam dilatando-se, enquanto outras estejam contraindo-se, ou ainda que em um momento elas se dilatam e no outro se contraiam.
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VI. O SINGULAR, O PARTICULAR E O GERAL
1.
CRITICA DAS CONCEPÇÕES IDEALISTAS E METAFISICAS DO SINGULAR E DO GERAL
O problema do singular e do geral nasceu ao mesmo tempo que a Filosofia. A formação de representações da realidade exterior, do mundo em seu conjunto e a interpretação dos fenômenos que aí se produzem supõem que uma explicação seja dada quanto ao aparecimento e às relações das diferentes coisas e quanto a sua essência comum. Não é, portanto, por acaso que todos os filósofos se interessaram por essa questão e tentaram, de uma maneira ou de outra, resolvê-la Na história da Filosofia manifestam-se claramente duas tendências para a resolução desse problema: tendência realista e tendência nominalista. Os partidários da primeira afirmam que o geral existe de forma autônoma, independentemente do singular. Alguns dentre eles consideram que o geral, por sua própria natureza, existe sob a forma de idéias, de essências ideais, enquanto que outros declaram-no material, existindo fora e independentemente da consciência. Platão, por exemplo, conferia ao geral uma forma ideal de existência; o geral manifestava-se, para ele, como conceitos gerais, como idéias particulares e autônomas, existindo fora e independentemente da sociedade humana. Para os filósofos de Megara (Euclides, Stilpon), o geral tomava a forma de idéias de "bem", de "razão" e de "Deus". O filósofo inglês .191
contemporâneo George Moore* exprime o geral como relações espaciais e outras relações. Segundo os filósofos burgueses contemporâneos, George Santayana , Alfred Whitehead3 e outros, o geral é feito de essências ideais, absolutamente independentes de coisas materiais. Os eleatas (Xenófanes, Parmênides, Zenon) acreditavam que o geral é material, que ele é "um" — uma massa única, imutável, idêntica a ela mesma e que tudo ocupa. Para o filósofo da Idade Média, Roscelin, o geral existia sob a forma de uma classe de objetos singulares, como o exército, o povo etc. Quanto ao singular, os partidários dessa tendência declaravam-no ou inexistente ou secundário, dependendo do geral e sendo por ele engendrado. Além disso eles o consideravam temporário, transitório, surgido sob a influência direta do geral e desaparecendo em condições correspondentes, enquanto o geral era constante, imutável, eterno. Por exemplo, as escolas de Eléia e de Megara negavam a existência real do singular. Elas declaravam que as coisas e fenômenos singulares são uma aparência, uma miragem. Platão considerava as coisas singulares como o mundo das sombras. Whitehead demonstra o caráter transitório do singular. As coisas singulares, segundo ele, tendo características espaciais e temporais, são finitas, cambiantes, aparecem e desaparecem. Seu aparecimento é condicionado pelo geral, por essências ideais, eternas, existentes fora do mundo espacial-temporal que observamos. Os representantes da segunda tendência, a nominalista, afirmam, pelo contrário, que não é o geral mas sim o singular, que possui uma existência real. O geral é o produto da atividade do pensamento dos homens e existe apenas em suas consciências, sob a forma de nomes gerais, designando objetos singulares. A teoria de William Occam, filósofo da Idade Média, fornece um exemplo da concepção nominalista do singular e do geral; ele declara que o geral não existe realmente na realidade objetiva, mas que é um produto do pensamento, que existe 2
'G. E. Moore, Some maine problems of philosophy, Londres-New York, 1953. G. Santayana, The real of essence, New York, 1927. A. N. Whitehead, Science and the modern world, Cambridge, 1933. 2 3
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apenas sob a forma de conceito, sinal de numerosas coisas singulares. Entre os filósofos contemporâneos, a concepção nominalista do singular e do geral é aceita, por exemplo, por Chase , W. Hugh.5 e Cassius . Hugh, por exemplo, considera que os conceitos gerais são ficções que não refletem nada, mas que confundem os homens, introduzindo entre eles mal-entendidos e conflitos. Segundo ele, apenas as coisas singulares existem na realidade, e é por isso que apenas os conceitos singulares e individuais têm um verdadeiro valor. Decretando que apenas o singular existe realmente, os nominalistas resolvem de diferentes maneiras a questão da forma de sua existência. Alguns dentre eles (William Occam e Richard Midlton) consideram que o singular existe sob a forma de objetos materiais isolados, outros (Berkeley) afirmam que ele existe sob a forma de sensações, e outros, ainda (Leibniz), sob a forma de "mônadas", átomos espirituais únicos em seu gênero. Houve na história da Filosofia tentativas de ultrapassar os defeitos e a estreiteza das concepções realistas e nominalistas do singular e do geral (Aristóteles, Duns, Scotus, Bacon, Locke e Feuerbach). Entretanto, eles também não conseguiram chegar a nenhuma solução científica-do problema, porque partiam do fato de que apenas o singular tem uma existência verdadeira, enquanto que o geral existe somente sob a forma de um aspecto, de um momento do singular. Erigindo o singular em absoluto, esse ponto de vista aproximava-se do nominalista e impedia a elucidação do problema. Apenas a filosofia marxista conseguiu definitivamente ultrapassar os defeitos próprios aos nominalistas e aos realistas e dar uma solução justa e científica para essa questão. 4
6
S. Chase, The tyranny of words, New York, 1938. W. Hugh, Semantics. The nature of words and their meaning, New York, 1941. J. K. Cassius, The rational and the superrational, New York, 1952. 4
5
6
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2.
A RELAÇÃO DO SINGULAR E DO GERAL
Como já demonstramos nos parágrafos precedentes, as formações materiais estão em correlação, em interação e modificam-se mutuamente. Essas modificações são próprias a cada formação material, porque cada uma delas possui seu próprio ambiente, diferente do das outras, sua própria série de estados qualitativos, que diferem das séries anteriores, e sua própria história presente nela sob uma forma anulada. Tudo isso condiciona em cada formação material a existência de propriedades e ligações que são próprias apenas a ela mesma. As propriedades e ligações que são próprias apenas a uma formação dada (coisa, objeto, processo) e que não existem em outras formações materiais constituem o singular. O singular para cada coisa é, por exemplo, o fato de que ela ocupa um lugar dado no espaço, que ela é constituída justamente por moléculas dadas e que, exposta a uma alta temperatura, ela emite fótons dados etc. Cada formação material, possuindo propriedades e ligações singulares, representa essa ou aquela forma de existência da matéria, uma forma particular de seu movimento. É por isso que, em cada formação material, ao lado do singular, do que não se repete, deve haver o que se repete, o que é próprio não apenas a ela, mas também a outras formações materiais (coisas, objetos, processos). As propriedades e ligações que se repetem nas formações materiais (coisas, objetos, processos) constituem o geral. O que é geral nessa ou naquela coisa é, por exemplo, o fato de que ela existe objetivamente, independentemente de uma consciência qualquer, que ela está em movimento, que possui características espaciais e temporais. O geral no homem é o fato de que ele é um ser vivo, que vive em sociedade, que sua essência é determinada pelas relações de produção correspondentes, que ele é dotado de uma consciência, reflete o mundo ambiente por meio de um sistema de imagens ideais, possui uma familia etc. O resultado do que acaba de ser dito é que o singular e o geral não existem de maneira independente, mas somente por meio de formações materiais particulares (coisas, objetos, processos), que são momentos, aspectos destes últimos. Cada .194
formação material, cada coisa representa a unidade do singular e do geral, do que não se repete e do que se repete. Existindo sob a forma de aspectos, momentos das formações materiais particulares (coisas, processos), o singular e o geral estão organicamente ligados um ao outro, inter penetramse e só podem ser separados no estado puro por abstração. A correlação do singular e do geral no particular (formação material, coisa, processo) manifesta-se como correlação de aspectos únicos em seu gênero, que são próprios apenas a uma formação material dada, e a aspectos que se repetem nesse ou naquele grupo de outras formações materiais. A correlação do singular e do geral no particular manifesta-se igualmente na transformação do singular em geral e, viceversa, no processo do movimento e do desenvolvimento das formações materiais. Essa lei pode ser observada nas transformações das propriedades dos vegetais no momento de sua transplantação. Os biólogos acreditam que algumas plantas, submetidas a condições de vida diferentes, adquirem faculdades de adaptação e que, quando a ação de fatores correspondentes é reforçada, essas faculdades de adaptação transformam-se em propriedades gerais que caracterizam primeiro uma parte dos exemplares de uma espécie e depois toda a espécie. Como exemplo, podemos nos referir às modificações de algumas propriedades das plantas selvagens que crescem nos Cáucasos. Na região de Kazbek, essas plantas selvagens têm, em geral, favas revestidas de pelos e as plantas com favas sem pelos são raras. O fato de haver favas sem pelos é aqui singular e é também algo que pertence apenas a algumas plantas. Mais para o Oeste, as plantas com favas sem pelo predominam claramente, embora ainda haja 25% de plantas com favas recobertas de pelo. Ainda mais para o Oeste, todas as favas são desprovidas de pelos. Assim, quando as condições de existência das plantas mudam, a propriedade singular (favas sem pelo) torna-se geral e a propriedade geral (favas recobertas por uma camada de pelo) torna-se singular, excepcional. Abordamos aqui a correlação do singular e do geral. Mas é conveniente distinguir especialmente a correlação do particular e do geral. Se o singular é uma propriedade que não se repete, e que é próprio apenas a uma formação material dada (coisa, objeto, processo), o particular é a própria formação material, a própria coisa, o próprio objeto, o próprio processo. O par.195
ticular é simplesmente o singular, mas é igualmente o geral. O particular é a unidade do singular e do geral. A correlação do particular e do geral representa uma correlação do todo e da parte, em que o particular é o todo e o geral é a parte. Sendo uma parte do particular, "todo o geral engloba, apenas aproximativamente, todos os objetos particulares", e "todo particular entra, de maneira incompleta, no geral'" , já que ele possui o singular ao lado do geral e que, ao lado das propriedades repetitivas, há propriedades únicas em seu gênero, que são próprias exclusivamente a ele. Em uma certa medida, cada formação material particular, em condições adequadas, pode transformar-se em uma outra formação material (por exemplo, cada elemento químico em um outro elemento químico, cada partícula "elementar", em uma outra partícula "elementar", a substância em um campo físico, o campo físico em uma substância), porque "todo particular" é religado, por milhões de passagens, a particulares de um outro gênero (coisas, fenômenos, processos) e "existe apenas nessa ligação que conduz ao geral" . Efetivamente capaz, em condições adequadas, de transformar-se em uma outra formação material (coisa, objeto, processo), cada particular encerra em potencial as propriedades dessas outras formações materiais (coisas, objetos, processos) e pode, portanto, ser considerado como sendo-lhe idêntico, isto é, como geral. 7
8
3.
O GERAL E O PARTICULAR
Se estudamos um objeto dado, do ponto de vista das categorias de "singular" e de "geral", colocamos em evidência, por um lado, as propriedades e as ligações de caráter único, próprias somente a esse objeto e, por outro lado, as que se repetem e que são próprias a toda uma série de objetos. Mas, freqüentemente na prática, não se trata de evidenciar o que é único (não repetitivo), mas de estabelecer a identidade (a se7 8
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V. Lenin, Oeuvres, t. 38, p. 345. Lenin, op. cit.
melhança) e a diferença entre os objetos confrontados. Tornase, portanto, necessário opôr o geral ao particular e não ao singular. O que distingue os objetos confrontados constitui o particular e o que exprime sua semelhança é o geral. Assim, a predominância da propriedade privada na sociedade capitalista e da propriedade social na sociedade socialista representa o particular dessas sociedades, na medida em que esse traço distingue uma da outra. Da mesma forma, a exploração do homem nos países capitalistas e sua ausência nos países socialistas é o particular. O singular apresenta-se sempre como particular, porque, sendo próprio apenas a uma formação material dada, ele a distingue de qualquer outra formação material. Assim, um fenômeno único, tal como a instauração do poder dos Sovietes, pela primeira vez na URSS, representará sempre o particular para a URSS e marcará a diferença entre ela e qualquer outro país. No que concerne ao geral, seu comportamento é cambiante. Ele pode, seguindo a natureza de suas relações, desempenhar, tanto seu próprio papel, como o papel do particular. Nesse caso, em que ele anuncia a semelhança das formações materiais confrontadas, ele encarna o geral, mas quando as distingue umas das outras, então, desempenha o papel do particular. O fato, por exemplo, de que a ditadura do proletariado na Bulgária existe sob a forma de democracia popular constitui o geral se compararmos esse país com a Polônia, com a RDA ou mesmo com a Hungria; e, ao mesmo tempo, se compararmos a Bulgária com a URSS, esse mesmo fato tornar-se-á o particular, o regime da democracia popular distinguindo então a Bulgária da URSS, onde a ditadura do proletariado afirma-se sob a forma de República dos Sovietes. É conveniente observar, quando se fala da faculdade que o geral tem de assumir o papel de particular, que isso não é absolutamente próprio a qualquer geral. Para desempenhar a função de particular, o geral deve poder distinguir as formações materiais umas das outras. E essa faculdade não pertence a qualquer geral. Por exemplo, as propriedades e as ligações comuns a todas as formações materiais (objetos, coisas, processos) não podem distinguir as formações materiais. Assim, a .197
presença, em cada coisa, de uma causa que seja a origem de sua existência, de uma forma e de um conteúdo determinados, de ligações e de propriedades necessárias e acidentais, de uma essência etc. não pode assumir o papel do particular, pelo fato de que tudo isso caracteriza qualquer coisa ou formação material. Abarcando todas as formações materiais, o geral exprime apenas, quaisquer que sejam suas relações, a semelhança, a identidade e não pode, portanto, distingui-las umas das outras. Cada formação material representa, portanto, a unidade do geral e do particular, a unidade do que a identifica a outras formações materiais, assim como a unidade do que a distingue. É conveniente tirar dessa lei a seguinte conclusão para a prática e o conhecimento: se cada formação material é a unidade do geral e do particular, então, para poder formar uma representação exata de um objeto dado é necessário colocar em evidência o que o identifica e o que o distingue de outras formações materiais. Assim, se quisermos compreender a essência do poder de Estado da URSS de hoje, devemos explicar em que ele assemelha-se e em que ele difere do poder de Estado nesse ou naquele país capitalista, e do poder que existia na URSS no período da passagem do capitalismo para o socialismo, ou do poder nos países de democracia popular. Somente assim estará completa e exata nossa representação da natureza do poder em questão, de seu conteúdo e de sua forma, de sua essência e da especificidade de suas manifestações nas circunstâncias dadas. Prossigamos. Se cada formação material, cada domínio da realidade possui necessariamente o geral e o particular, então, para resolver os problemas práticos, teremos de levar em consideração não somente o geral que se repete, mas também o particular próprio a um único domínio, a uma única formação material. Isso determina a diversidade das formas e dos caminhos para a resolução de um único e mesmo problema prático. Podemos citar, a título de exemplo, a diversidade das formas que toma a realização da revolução socialista em diferentes países, em função da diversidade das particularidades nacionais e da evolução histórica. Por exemplo, na União Soviética, a revolução socialista teve lugar em uma época em que, em todos os outros países do mundo, o poder pertencia aos exploradores, à burguesia que se recusava a ceder, o que explica porque a revolução efetuou-se sob a forma de uma insurreição armada. Em outros países (Bulgária, Romênia, .198
RDA etc.), a revolução socialista desenrolou-se em outras condições, que permitiram a instauração da ditadura do proletariado por vias pacíficas. As diferentes condições nas quais se desenrolaram as revoluções socialistas na URSS e em outros países de democracia popular não deixaram de influir na forma que a ditadura tomou, assim como na resolução de certos problemas sociais. Assim, a ditadura do proletariado na União Soviética foi realizada sob a forma de República dos Sovietes, enquanto que em outros países mencionados ela tomou a forma de democracia popular. Na União Soviética, a burguesia foi privada de seus direitos políticos, o que não aconteceu em outros países, e um sistema político com um partido único tomou o seu lugar, enquanto que em certos países de democracia popular reina o pluripartidarismo. 4.
A CORRELAÇÃO DO GERAL E DO PARTICULAR NO MOMENTO DO MOVIMENTO DA MATÉRIA DO INFERIOR PARA O SUPERIOR
O movimento da matéria, de suas formas inferiores para suas formas superiores, faz nascer propriedades e ligações novas, consecutivas ao aparecimento de novas correlações, que constituem a essência de uma forma nova, superior, do movimento da matéria. Sabemos que toda forma superior do movimento da matéria encerra nela mesma sua forma inferior modificada e que por isso tem muitos traços comuns (o geral) com ela. Entretanto, esses traços comuns (o geral) diferem dos que existem entre as formações materiais que se encontram na mesma etapa de desenvolvimento e que são refratados mediante a especificidade das formas superiores do movimento e só podem ser compreendidos na qualidade do elo que liga o inferior ao superior. Consideremos, a título de exemplo, o átomo de um elemento químico e a molécula formada pelos átomos desse elemento. A molécula contém os átomos, portanto, essas duas formações possuem vários traços comuns. Assim, as mesmas partículas "elementares" é que os compõem, portanto, a intera.199
ção condiciona, no fim das contas, a existência de algumas propriedades comuns nessas formações. Mas se no átomo essa interação se produz diretamente na superfície do fenômeno, na molécula, pelo contrário, ela é refratada através da interação dos átomos; e estes últimos, sendo o resultado da interação de partículas "elementares" que constituem o átomo, nem por isso representam alguma coisa de menos nova em relação à interação das partículas elementares. Depois de serem refratadas mediante essa nova interação, as propriedades do átomo manifestam-se sobre a superfície de uma maneira completamente diferente daquela como se manifesta no átomo livre. O geral ganhará um aspecto ainda mais cambiante se confrontarmos o átomo e um organismo vivo. As propriedades inerentes ao átomo serão várias vezes "refratadas" — mediante a interação dos átomos, das moléculas e das proteínas; por isso, sua manifestação no organismo vivo, será ainda mais modificada. Segue-se que o que é geral (comum) às formações materiais, que representam diferentes etapas da evolução da matéria, é muito pobre, insuficiente para caracterizar essas formações, para exprimir sua essência. Nas formações materiais que pertencem ao estágio inferior, esse geral relaciona-se apenas aos elementos do conteúdo que, de uma maneira ou de outra, subsistiram e estão presentes nas formações materiais do estágio superior, e isso ainda sob o aspecto que eles tomaram depois de ser "refratados" mediante as interações que constituem a forma superior do movimento, isto é, sob uma forma modificada. No que concerne às formações da forma superior do movimento da matéria, esse geral que exprime apenas o que une essa formação às formações inferiores também não é capaz de exprimir sua essência. Esse geral deixa de lado exatamente o que a formação material adquiriu durante sua progressão, o que a distingue das formações surgidas nos estágios anteriores de desenvolvimento. Para compreender o significado verdadeiro desse geral e suas relações com a essência das formações materiais confrontadas, é preciso preencher as lacunas existentes entre essas formações, restabelecendo os estágios do desenvolvimento que as separam. Citamos, a seguir, conceitos significativos de Engels, que constam da obra Dialectique de la nature: "Se colocarmos à parte duas coisas extremamente diferentes — como um meteorito e um homem, por exemplo — e os aproximarmos, não sairá disso grande coisa, no máximo .200
veremos que os dois têm em comum o peso e outras propriedades físicas gerais. Mas entre eles intercala-se uma série infinita de outras coisas naturais e de outros processos naturais que nos permitirão completar a série do meteorito ao homem e de designar o lugar de cada um na conexão natural e, como conseqüência, poderemos conhecê-los"9. Restabelecendo os momentos do desenvolvimento que separam as formações materiais comparadas, seguimos a passagem da matéria em evolução, de uma formação material a uma outra: de uma formação material representando um estágio do desenvolvimento a uma outra representando um outro estágio, do inferior ao superior. E exatamente por isso colocamos em evidência o lugar real, a significação real do geral, assim como do particular e, ao mesmo tempo, a essência das transformações materiais estudadas. A correlação entre o geral e o particular nas formações materiais que pertencem a um único e mesmo estágio do desenvolvimento apresenta um aspecto algo diferente. Aqui o geral é que constitui sua essência, o que elas adquiriram atingindo esse estágio do desenvolvimento, suas ligações e aspectos necessários e particulares surgidos nesse momento. Por exemplo, o geral, para os países que chegaram ao estágio capitalista, indica o que surgiu nesses países depois que eles abordaram esse estágio de desenvolvimento. E isso é, notadamente, a dominação da propriedade privada capitalista dos meios de produção, o modo de produção baseado no assalariado e a exploração dos operários privados de meios de produção, além da chegada da burguesia ao poder, a instauração de sua ditadura etc. Isso constitui, na essência, a formação sócio-econômica capitalista. No que concerne ao particular próprio às formações materiais que pertencem a um único e mesmo estágio de evolução, o geral não exerce nenhuma influência sobre a essência, sendo apenas uma forma particular de sua manifestação, um modo particular de sua existência. A conclusão que podemos tirar disso, para a prática e o conhecimento, é a seguinte: se o geral, no seio de formações materiais que pertencem a diferentes estágios de desenvolvimento não caracteriza nem a essência da formação material do 9
F. Engels, La dialectique de la nature, p. 235.
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estágio inferior nem a essência da formação material do estágio superior, a comparação dessas formações materiais deve-se basear essencialmente sobre diferenças e não sobre sua semelhança, isto é, sobre o particular e não sobre o geral. Assim, quando confrontamos o Estado socialista com o Estado capitalista, descobrindo, por um lado, o geral e, por outro lado, o particular que os caracterizam, o que importa sobretudo é prestar atenção ao particular, ao que os distingue. O estudo das formações materiais de um único e mesmo estágio de desenvolvimento deve-se basear essencialmente no particular que os distingue um do outro e não em sua semelhança, sua identidade. É só então que poderemos explicar sua essência e, analisando-os sucessivamente, seguir a multiplicidade das formas de sua manifestação.
.202
VII. A QUALIDADE E A QUANTIDADE
1. OS CONCEITOS DE QUALIDADE E DE QUANTIDADE Como já observamos, cada coisa representa a unidade do geral e do particular, o que indica sua semelhança com outras coisas e o que as distingue. Mas, o que distingue uma coisa das outras, ou o que indica sua semelhança, é uma propriedade. Assim, a coisa caracteriza-se por uma quantidade infinita de propriedades diferentes. Algumas dentre elas indicam o que ela representa, outras indicam, suas dimensões, sua grandeza. Por exemplo, as propriedades da água, assim como sua faculdade de dissolver algumas substâncias, de matar a sede e o fato de que ela seja constituída pelo oxigênio e o hidrogênio etc. indicam o que ela representa e o que ela é. As propriedades que testemunham o volume da água e seu peso caracterizam-na do ponto de vista de sua grandeza. O conjunto das propriedades que indicam o que uma coisa dada representa e o que ela é constitui sua qualidade. Na literatura filosófica, encontramos definições as mais variadas de categorias de qualidade e de quantidade. Numerosos autores consideram que a qualidade é o conjunto de propriedades que constitui determinismo interno da coisa e a distingue das outras coisas. A definição da qualidade como determinismo interno da coisa é insuficiente, já que não coloca em evidência o conteúdo da categoria considerada, não permite que seja distinguida, não apenas de toda a série de outras categorias da dialética, mas também da categoria de "quantidade", que lhe é organicamente ligada. .203
Efetivamente, o determinismo de uma coisa é não apenas sua qualidade, mas igualmente sua quantidade. Ò determinismo do cloro, por exemplo, inclui não somente o fato de que, em condições habituais, ele é um gás de cor amarelo-esverdeada, nocivo e ativo, que se liga diretamente com a maioria dos metais e de outros corpos etc., mas igualmente o fato de que a carga de seu núcleo atômico é 17, de que a camada eletrônica de seu núcleo comporta 17 elétrons e sua molécula dois átomos, que a ligação entre os átomos estabelece-se na molécula com a ajuda de dois elétrons, que ele é 2,5 vezes mais pesado do que o ar, que a 0°C e sob pressão normal seu peso específico é de 3,214 gramas, que sua temperatura de fusão é de 100,98°C e sua temperatura de ebulição é de 34,05°C etc. Logo, o determinismo interno do cloro inclui não apenas suas características qualitativas, mas igualmente as quantitativas. E isso é válido também para qualquer formação material, assim como para qualquer coisa ou qualquer fenômeno. O "determinismo interno" é insuficiente para distinguir a categoria de "qualidade" da categoria de "essência" e de "conteúdo", porque essas últimas refletem igualmente o determinismo interno da coisa na unidade dialética de seus aspectos quantitativos e qualitativos. Esse "determinismo interno" também é insuficiente para definir a qualidade, assim como para representá-la como um conjunto das propriedades que distinguem uma coisa das outras, como sendo ligada ao que distingue e, finalmente, como sendo algo que traduz apenas a especificidade da coisa. A qualidade inclui não apenas as propriedades que distinguem uma coisa das outras, mas igualmente as que indicam sua semelhança com elas. Por exemplo, a posse de um núcleo atômico, no qual entrem prótons, nêutrons e outras partículas "elementares", e de uma dupla camada eletrônica, além do fato de ser um metal alcalino, que se liga facilmente aos halogênios, decompõe a água, expelindo hidrogênio, e dissolve-se nos ácidos, são componentes essenciais da qualidade do lítio. Mas todas essas propriedades repetem-se em. outras substâncias e, assim, exprimem não apenas a diferença, mas também a semelhança do lítio com outros elementos químicos. A qualidade de toda coisa representa a unidade do singular e do geral, do geral e do particular. .204
Reunindo a qualidade ao singular, ao particular, os autores do ponto de vista mencionado acima reduzem o geral, o que se repete nas coisas, direta ou indiretamente à quantidade. A idéia de que a categoria de "quantidade" reflete somente o que é o geral nas coisas diferentes é tão incorreta quanto a idéia de que a categoria de "qualidade" reflete apenas a diferença. A categoria de "quantidade", assim como a categoria de "qualidade", fixa não somente o geral (a semelhança), mas igualmente o particular (a diferença). Por exemplo, entre as características do hidrogênio, do lítio e do sódio, há não apenas o fato de que seu átomo possui, em sua camada eletrônica exterior, um elétron (propriedade geral), mas igualmente o fato de que cada um desses elementos possui um peso atômico específico. Assim, embora a categoria de qualidade reflita o que distingue uma formação material dada de outras formações materiais, esse traço não constitui seu conteúdo específico, da mesma forma como na categoria de "quantidade" o reflexo do geral nas coisas não constitui seu conteúdo específico. As duas categorias refletem tanto a semelhança como a diferença das coisas. O reflexo da diferença entre as coisas é o conteúdo específico das categorias do "particular" e do "singular" e não o da categoria de "qualidade". O reflexo da semelhança é o conteúdo específico das categorias do "geral", da "identidade", e não o da categoria da "quantidade". Certos autores identificam a qualidade às propriedades fundamentais . A definição da qualidade como propriedade fundamental ou conjunto de propriedades essenciais não pode ser considerada como exata. Se todas as propriedades essenciais das coisas relacionam-se à qualidade, apenas o domínio do não-essencial deve pertencer à quantidade . Mas, na realidade, nem todas as características quantitativas de uma coisa são essenciais. Apenas algumas dentre elas são essenciais e necessariamente ligadas a sua natureza. Por exemplo, é essencial, para cada elemento químico, que o número de prótons que entra em seu elemento atômico seja rigorosa1
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íUemov, Coisas, propriedades e relações, Editora da Academia de Ciências da URSS, 1963, p. 39. Original em russo. M. N. Rutkebiych, Materialismo dialético, 1959, p. 329. Original em russo. 2
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mente determinado, assim como o número de átomos de sua molécula. Essa particularidade é claramente exposta na lei química da composição constante da substância. O fato de que toda mudança afeta as características quantitativas dadas acarreta necessariamente a modificação da essência do fenômeno correspondente, sua transformação em um outro fenômeno, testemunha de seu caráter essencial. Por exemplo, a grandeza da velocidade de 7.910 m/s é essencial para o vôo "terrestre" porque seu crescimento, mesmo que seja de apenas um metro por segundo, transforma o vôo terrestre em um vôo cósmico. São essenciais para um vôo cósmico as grandezas da velocidade do corpo: 7.911 e 11.188 m/s; a diminuição da primeira transforma o vôo cósmico em vôo terrestre, o crescimento da segunda transforma o movimento cósmico elíptico em parabólico. É essencial para o oxigênio a presença, em sua molécula, de dois átomos (Oa); o aumento de um átomo acarreta a transformação do oxigênio em uma nova substância qualitativa, o ozônio (O3). Para o óxido de carbono (CO), a presença, na molécula, de um átomo de carbono e de um átomo de oxigênio é essencial porque o aumento de um átomo de oxigênio conduz à transformação do óxido de carbono em gás carbônico (CO2). Em conseqüência disso, a definição da qualidade como propriedade essencial já é inexata pelo fato de que ela elimina o limite entre a qualidade e a quantidade e conduz à confusão entre as características qualitativas e quantitativas. Decretando as características quantitativas com não-essenciais, os autores do ponto de vista considerado não relacionam, entretanto, todas as propriedades não essenciais das coisas às características quantitativas. Entre as características quantitativas, elas conservam unicamente as propriedades ligadas à intensidade, à grandeza, ao número, ao volume, ao grau de maturidade de uma coisa, de um fenômeno etc., ligadas a seu crescimento. Eles só relacionam à qualidade as propriedades essenciais. O resultado disso é que as coisas possuem, além de suas propriedades que constituem a qualidade e a quantidade, propriedades que não são nem qualitativas, nem quantitativas. Mas será que propriedades que não constituem nem o aspecto qualitativo nem o aspecto quantitativo de uma coisa podem pertencer a essa coisa? É óbvio que não. As catego.206
rias de "qualidade" e de "quantidade", desdobrando uma coisa em aspectos, excluem-se mutuamente e, quando há ligação entre eles, englobam todas as suas propriedades e todo seu conteúdo. Tudo o que há em uma coisa, seja quantidade, seja qualidade, indica ou o que a coisa representa ou, então, sua grandeza, sua dimensão. Não há, nem pode haver propriedades fora da qualidade e da quantidade de uma coisa. É por isso que todas as propriedades que não são concernentes às dimensões de uma coisa, nem à sua grandeza, seu volume, seu número, à velocidade de seu deslocamento ou à intensidade de sua cor etc. relacionam-se com sua qualidade. Entre essas propriedades, há algumas essenciais, que são sempre próprias à coisa, em qualquer que seja a condição e em todos os estágios de seu desenvolvimento, propriedades sem as quais a coisa não pode existir, e há também outras, que não são essenciais, que se manifestam em certas condições, em certos estágios de sua existência e que desaparecem em outras condições, em outros estágios. A qualidade do cobre, por exemplo, será sempre relacionada não apenas ao fato de que ele é um metal de cor vermelha, muito maleável, bom condutor de eletricidade e de calor, mas igualmente ao fato de que ele liquidifica-se entre 1.083°C e 2.360°C e torna-se gasoso a uma temperatura superior a 2.360°C, e ainda que ele fica coberto por uma camada cinzaesverdeada etc., sob a ação do ar, da umidade e do gás sulfuroso. O principal critério de dependência dessa ou daquela propriedade à qualidade de uma coisa não é seu caráter essencial, mas sua capacidade para caracterizar essa coisa, partindo do que ela representa, e indicar o que ela é. É fácil observar que não apenas o primeiro grupo de propriedades do cobre (propriedades essenciais) mas igualmente o segundo (propriedades não-essenciais) indicam o que ele representa, o que ele é, e é por isso que todas essas propriedades devem entrar na composição de sua qualidade, porque todas elas são características qualitativas. O fato de pertencer ao essencial ou ao não-essencial em uma coisa é o critério de distinção não da qualidade e da quantidade, mas da própria essência do fenômeno. Assim, a definição da qualidade como conjunto de propriedades essenciais e da quantidade como conjunto de propriedades nãoessenciais representa, na realidade, a identificação das catego.207
Tíiseu Savério Sposito Maria Incarnação "Bétrão Sposito
rias de "qualidade" e de "quantidade" com as categorias de "essência" e de "fenômeno". Parece-nos mais exato definir a qualidade como o conjunto das propriedades que indicam o que uma coisa dada representa, o que ela é, e a quantidade como o conjunto das propriedades que exprimem suas dimensões, sua grandeza. Essa definição destaca os momentos específicos do conteúdo das categorias de "qualidade" e de "quantidade", que as distinguem uma da outra e também das outras categorias da dialética, e conferem a elas a autonomia e a autodeterminação necessárias. Falando da qualidade e da quantidade, temos em vista aspectos, propriedades e características determinadas das coisas. Entretanto, a qualidade e a quantidade são próprias apenas às coisas, embora pertençam igualmente às suas propriedades. Por exemplo, cada ângulo é uma das propriedades do triângulo, mas possui igualmente uma qualidade e uma quantidade rigorosamente definidas. O fato de que ele seja formado por círculos partindo de um mesmo ponto e de que ele tenha outras propriedades constitui sua qualidade, enquanto que sua grandeza concreta, sua dimensão, expressa em graus, constituem sua quantidade. Tomemos um outro exemplo: uma das propriedades da água é a de dissolver o sal de cozinha. Entretanto, assim como a água, essa propriedade possui qualidade e quantidade. As particularidades que caracterizam o processo de dissolução e indicam o que ele representa são a qualidade dessa propriedade, e o quanto de sal a água pode dissolver, ou dissolveu, constitui sua quantidade. 2.
O PROBLEMA DA MULTIPLICIDADE DAS QUALIDADES DAS COISAS
A aplicação das categorias de "qualidade" e de "quantidade" às diferentes propriedades das coisas permite encontrar a solução do seguinte debate: uma coisa possui uma ou várias qualidades? Na literatura filosófica soviética, há dois pontos de vista diretamente opostos sobre essa questão. Certos autores con.208
sideram que cada coisa possui apenas uma qualidade . Outros acreditam que elas possuem várias qualidades . Qual desses dois pontos de vista é o correto? Parece-nos que o segundo é o mais exato. A necessidade de reconhecer nas coisas uma mutiplicidade de qualidades decorre do fato de que a coisa possui uma multiplicidade de propriedades, cada uma das quais tem sua qualidade, diferente das outras propriedades e da coisa em si. É verdade que, a uma primeira aproximação, pode parecer que a definição de qualidade que demos contradiz o fato de que a coisa possui uma multiplicidade de qualidades. Com efeito, se a qualidade da coisa é o conjunto de propriedades que indica o que a coisa representa, a coisa deve, então, possuir uma única qualidade, porque todas as propriedades que constituem esse ou aquele determinismo qualitativo entram de uma maneira ou de outra nesse conjunto. Esse raciocínio seria incontestável se a coisa, em todas as suas relações e sob qualquer condição, manifestasse todas as propriedades indicando o que ela representa. Na realidade, não é assim. Em diferentes relações e sob diferentes condições concretas, a coisa manifesta propriedades diferentes, rigorosamente determinadas, específicas de cada caso concreto. E se é assim, em certas relações e sob certas condições, a coisa representará isso e, em outras, aquilo, e em certas condições e em certas relações ela terá uma qualidade e, em outras, uma outra. A propriedade que surgirá em primeiro plano sob uma relação dada, em condições dadas, representará a coisa nessa relação e nessas condições, e sua qualidade será considerada como a qualidade da própria coisa. Em outros termos, pelo fato de que, em diferentes relações e sob condições diferentes da existência da coisa, ela manifeste ou não todas as suas propridades, mas propriedades rigorosamente determinadas, ela pode ser considerada não apenas sob 3
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Materialismo dialético cit., Caderno 1, p. 48. B. P. Rojin, A dialética marxista-leninista como ciência filosófica, 1957, Ed. da Universidade Estatal de Leningrado, p. 66-7; Original em russo; I. B. Andreev, Passagem das mudanças quantitativas às qualitativas — o principal elemento "da dialética", in Problemas do materialismo dialético, 1960, Ed. da Academia de Ciências da URSS, p. 90-1; Original em russo. Uemov, op. cit., p. 34-42. 3
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o ângulo de sua qualidade particular e fundamental, mas igualmente do ponto de vista da qualidade dessa ou daquela propriedade que ela possua. Por exemplo, representando uma substância particular, constituída por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio, a água, por meio do estado líquido de gotas, pode manifestar-se como líquido e mostrar, dessa maneira, sua qualidade de líquido; pelo fato de que ela é capaz de dissolver algumas substâncias, ela pode ser considerada como seu dissolvente etc. Segue-se que cada objeto, fenômeno, além de suas qualidades fundamentais, que exprimem sua natureza específica, pode possuir também uma grande quantidade de qualidades não fundamentais que aparecem em certas condições e que estão ausentes em outras. Por isso, a perda, pela coisa, dessa ou daquela qualidade não acarreta a perda necessária de sua qualidade fundamental e de suas outras qualidades não fundamentais. Por exemplo, a perda, pela água, de uma qualidade, ou seja, do estado líquido, no momento de sua passagem a um outro estado de agregação (vapor ou gelo), não acarreta a perda de sua qualidade como substância particular, constituída de hidrogênio e de oxigênio. Há pontos de vista os mais diversificados sobre a questão da qualidade e da quantidade. Certos filósofos negam completamente a objetividade das diferenças qualitativas, acreditando que elas são apenas aparência, ou, então, eles simplesmente deixam de reconhecer a existência de um ou de vários estados qualitativos e negam a multiplicidade infinita dos outros. Assim, por exemplo, Thales acreditava que a multiplicidade das qualidades observadas representava a. mudança de aspecto de uma única e mesma qualidade, ou seja, a água. Anaxímenes pensava mais ou menos a mesma coisa e colocava o ar no papel de qualidade universal. Da mesma maneira Heráclito, que reduzia todos os fenômenos do mundo à manifestação de uma mesma e única qualidade — o fogo. O filósofo inglês Locke dividia a qualidade em dois grupos: qualidades primárias (existindo independentemente da consciência do homem) e qualidades secundárias (condicionadas pela especificidade dos órgãos sensitivos) . Ele relacionava, às primeiras qualidades, a extensão, o movimento, o repouso etc., e às segundas, a cor, o gosto, o odor etc. A divisão de todas as qualidades em primárias e secundárias tornava possível uma conclusão idealista. E esta foi .210
formulada por Berkeley. Ele achava que Locke não era conseqüente quando afirmava que algumas qualidades são dependentes do sujeito e outras não. Todas as qualidades, declarava Berkeley, dependem do sujeito, ou seja, dependem dele o movimento, o repouso, a extensão e não apenas a cor, o odor e o gosto, porque todas as qualidades podem ser reduzidas, em última análise, às nossas sensações. E daí ele chegava a sua conclusão: todas as qualidades são diferentes sensações; não há nada além de MIM e de minhas sensações. Embora Berkeley identificasse todas as qualidades às sensações, ele também distinguia o sujeito perceptivo como o único real. Assim, ele cometia a mesma inconseqüência que reprovava em Locke. Hume observou essa inconseqüência em Berkeley e, desenvolvendo ainda mais seu princípio, chegou à negação da existência objetiva não apenas das coisas e de suas qualidades, mas também daquele que é o sujeito perceptivo. Hume raciocinava da seguinte maneira: se todas as qualidades que percebemos são nossas sensações subjetivas, então a consciência de si mesmo também é subjetiva, porque ela só se manifesta no momento em que experimentamos esse ou aquele estado que nos é próprio, como a fome, o cansaço, a dor, uma certa posição do corpo etc. É por isso que não apenas as diferenças das coisas, mas também o próprio Eu que as percebe devem ser considerados como um conjunto de sensações. Assim, Hume mostrou que a redução dessa ou daquela qualidade às sensações subjetivas conduz necessariamente não apenas à negação da existência real de todas as coisas, de todos os fenômenos, mas também à redução do mundo ambiente ao mundo subjetivo do EU e, em última análise, à negação desse mesmo EU. Os partidários do materialismo dialético, contrariamente aos filósofos que negam a objetividade das qualidades, acreditam que as características qualitativas existem de forma objetiva, fora e independentemente da consciência humana e que elas são as relações e as propriedades universais das formações materiais, formas universais de seu ser.
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3.
LEI DA PASSAGEM DAS MUDANÇAS QUANTITATIVAS ÀS MUDANÇAS QUALITATIVAS E VICE-VERSA
Primeiramente, tem-se a impressão de que a qualidade e • a quantidade comportam-se uma para com a outra de maneira independente. Por exemplo, as mudanças quantitativas não são acompanhadas por mudanças qualitativas. Entretanto, as mudanças quantitativas não acarretam mudanças qualitativas apenas até um certo limite e em um quadro determinado. Os limites nos quais as mudanças quantitativas não acarretam ' mudanças qualitativas exprimem a medida. Assim, as mudanças qualitativas aparecem apenas no momento em que as mudanças quantitativas saem dos limites de uma medida dada. A destruição de uma medida, em decorrência da ultrapassagem, pela quantidade, dos limites rigorosamente determinados em cada caso preciso, não significa, entretanto, que uma coisa dada (ou um fenômeno dado) tenha entrado em um estado incomensurável. A quantidade e a qualidade, fora dos limites de uma medida, não se comportam de forma caótica, mas, pelo contrário, mostram-se ligadas uma à outra, interdependentes, e constituem uma nova medida. Por exemplo, quando a temperatura do gelo atinge 0°C, isso acarreta a mudança de qualidade desse gelo: ela transforma-se em água. Mas a água não é um caos de quantidade e de qualidade, ela possui uma medida, notadamente uma escala de temperaturas bem definida: de 0°C a 100°C. A ultrapassagem desses limites implica, por sua vez, transformações da qualidade da água, destruição de sua medida e a entrada no quadro de uma nova medida. Em outros termos, a transformação de um estado qualitativo em outro é a passagem de uma medida a uma outra. O momento da realização dessa passagem, segundo Hegel, pode ser classificado de nó, e uma série de tais momentos ou nós, de linha nodal. Assim, a matéria desenvolve-se pelo desenlaçar ininterrupto de alguns nós e a criação de outros. Um exemplo dessa linha nodal é fornecido pelo quadro de classificação periódica dos elementos de Mendelev, em que cada elemento representa um nó natural, formado pelo crescimento de uma unidade da carga do núcleo (carga do núcleo de hidrogênio — 1
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um próton; do hélio — dois prótons; do lítio — três prótons; do berílio — quatro prótons etc). Assim, o aparecimento de uma nova qualidade está necessariamente ligado a uma mudança de qualidade, ou, em outros termos, toda mudança qualitativa é o resultado de mudanças quantitativas e por elas são provocadas. Essa lei caracteriza um dos aspectos essenciais do processo de movimento e de desenvolvimento da matéria e é por isso que ela foi formulada como uma das leis fundamentais da dialética, das quais Engels definiu da seguinte maneira a essência: " ( . . . ) Na natureza, de uma forma claramente determinada por cada caso singular, as mudanças qualitativas só podem ter lugar por acréscimo ou retração quantitativos da matéria ou do movimento (como dizemos geralmente, de energia)"5. Em outros termos, toda mudança qualitativa é o resultado de certas mudanças quantitativas. Uma qualidade nova, surgida em decorrência de mudanças quantitativas determinadas, não se comporta de maneira passiva com relação a essas últimas, mas, pelo contrário, exerce uma influência de volta, acarretando também mudanças características quantitativas rigorosamente determinadas. Por exemplo, o volume da água é diferente daquele do vapor, no qual transforma-se a água, quando ela muda de qualidade. E essa nova quantidade é diretamente condicionada pela nova qualidade: uma interação determinada das moléculas que caracterizam o estado gasoso da substância, notadamente da água. Assim, o desenvolvimento faz-se por meio da mudança de quantidade e de qualidade, mediante a passagem das mudanças quantitativas às mudanças qualitativas e vice-versa. Os metafísicos negam habitualmente a correlação e as passagens recíprocas da quantidade e da qualidade. Os préreformistas, por exemplo, acreditam que toda mudança é apenas uma mudança de quantidade, que os objetos não se modificam qualitativamente. O naturalista e filósofo suiço Bonnet (1720/1793), em particular, acredita que um organismo adulto já está pré-formado no embrião e que passando para o estado adulto ele não se modifica qualitativamente, mas simplesmente aumenta de volume sob todas as relações, manifestando sempre 5
F. Engels, La dialectique de la nature, p. 70.
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as qualidades presentes, que se encontravam dissimuladas no estado embrionário. Ao contrário dos pré-reformistas e, em geral, dos evolucionistas, partidários da teoria que nega as modificações qualitativas e que reduz todas as mudanças a mudanças quantitativas, o naturalista francês Georges Cuvier (fins do séc. XVIII e começo do XIX) afirmava, por exemplo, que a única forma possível de modificação era a forma qualitativa. Segundo sua teoria, as modificações entre os animais e os vegetais, assim como o desaparecimento de certas espécies e o aparecimento de outras, são o resultado de catástrofes repentinas que se abatem sobre a Terra. Em decorrência dessas catástrofes, as velhas formas animais e vegetais desapareciam completamente, enquanto que outras apareciam. No período que se escoa entre essas catástrofes, não há nenhuma modificação no mundo animal nem no vegetal. O botânico holandês Hugo de Vries (1848/1935) defende um ponto de vista análogo: a transformação de uma espécie em outra executa-se igualmente em decorrência de uma espécie de explosão — mutação — e, no período entre duas mutações, não há nenhuma modificação. Ele escreveu que: "Chego à conclusão de que o progresso no mundo da vida produziu-se por pulsões. Durante milênios, tudo permaneceu calmo. . . De vez em quando, entretanto, a natureza procura criar qualquer coisa de novo e de melhor. Ela capta uma vez uma espécie, outra vez outra espécie. A força criadora entra em movimento e, sobre uma base antiga e até então imutável, surgem formas novas" . O filósofo contemporâneo norte-americano, Sidnay Hook, considera falsa a tese da correlação e do intercondicionamento da quantidade e da qualidade. Ele escreve que: " ( . . . ) Embora as quantidades e as qualidades possam modificar-se e a relação entre suas modificações possa ser descrita por funções contínuas e descontínuas, é absurdo dizer que a quantidade torna-se qualidade ou que a qualidade torna-se quantidade'" . A quantidade, segundo Hook, não pode transformar-se em 6
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H. de Vries, Die Mutationen und die Mutationsperioden bei der Entstehung der Arten, Leipzig, 1901, p. 38. S. Hook, Dialectical materialism and scientific method, Manchester, 1955, p. 20. 6
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qualidade, porque esta última precede logicamente a quantidade e não pode existir sem ela. "Não podemos, ele declara, falar das quantidades sem supor a existência das qualidades, mas também não podemos falar das qualidades em situações em que a existência das quantidades é problemática. . . Ninguém pode, falando literalmente, definir a quantidade de qualidades tais como a inocência e a perfeição" . A afirmação de que a qualidade precede logicamente a quantidade é correta, No conhecimento, o homem foi historicamente do conhecimento da qualidade à colocação em evidência, à tomada de consciência da quantidade. Mas isso não quer dizer que as mudanças qualitativas não são a conseqüência de mudanças quantitativas. No conhecimento, somos, às vezes, obrigados a ir em sentido contrário ao da realidade. Aristóteles já havia revelado esse fenômeno indicando que o primeiro, na realidade, é o último no conhecimento e vice-versa, o primeiro no conhecimento é o último na realidade. Efetivamente, na realidade, o processo desenvolve-se das mudanças quantitativas às mudanças qualitativas (da causa ao efeito). Enquanto que no conhecimento, procedemos da qualidade à quantidade (do efeito à causa). É óbvio que isso não significa que as ligações e as relações do conhecimento não refletem as ligações e as relações do mundo exterior, mas testemunha apenas que, ao lado dessas leis que são fotografias feitas a partir das leis universais da realidade, o conhecimento possui igualmente leis, ligações e relações que são condicionadas por sua natureza e que são próprias apenas a ela. Por isso é preciso tratar da realidade com base nas leis dessa mesma realidade. A afirmação de Sidnay Hook de que a qualidade pode existir sem a quantidade é totalmente inexata. Os exemplos que ele dá de uma qualidade pura, com exceção das características quantitativas, não são de qualidades puras. A "inocência" e a "perfeição", que ele cita como qualidades puras, não são qualidades puras. Como todo fenômeno, como toda propriedade, elas têm características quantitativas e, notadamente, um certo grau de manifestação. Além disso, elas estão organica8
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S. Hook, Dialectical cit.
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mente ligadas a toda uma série de mudanças quantitativas, próprias ao homem. Contrariamente às doutrinas metafísicas, o materialismo dialético apóia-se sobre dados das ciências da natureza e reconhece não apenas as mudanças quantitativas e qualitativas, e sua correlação, mas considera também que essa é uma das leis fundamentais do movimento e do desenvolvimento da matéria. 4.
SALTO. TIPOS DE SALTOS
As mudanças quantitativas e qualitativas têm suas particularidades. As mudanças quantitativas são, habitualmente, lentas, progressivas, dissimuladas e contínuas; as mudanças qualitativas, pelo contrário, são bruscas, evidentes, constituindo uma ruptura de gradação e de continuidade. Por isso, as mudanças qualitativas são chamadas de saltos. O salto é o processo de passagem de uma coisa de um estado qualitativo a um outro que é acompanhado por uma ruptura de continuidade. O salto, que se distingue das mudanças graduais quantitativas por seu caráter evidente, seu ritmo relativamente rápido, não se realiza sempre da mesma maneira. . A forma concreta de realização do salto, seu ritmo dependem da natureza da formação material em que se executa a passagem de um estado qualitativo a outro, das condições concretas nas quais efetua-se essa passagem. Como há uma quantidade muito grande de formações materiais, de natureza diferente, também pode haver um número infinito de formas de salto. Entretanto, a diversidade das formas de saltos pode ser reduzida a dois tipos: os saltos que se produzem sob a forma de ruptura e aqueles que se desenvolvem, gradualmente, sob a forma de uma acumulação gradual dos elementos da nova qualidade e do enfraquecimento dos elementos da antiga qualidade. Um dos traços principais do salto-ruptura é o fato de que ele se produz brutalmente, impetuosamente, e afeta toda a qualidade em seu conjunto. Um exemplo disso pode ser dado por uma explosão de dinamite ou de pólvora, que acarrete uma brusca transformação da substância em uma nova qualidade. Em decorrência da explosão, a substância inicial desaparece e, em seu lugar, aparecem novas substâncias. Um exemplo de salto sob a forma de ruptura é dado pela trans.216
formação do elétron e do pósitron em dois fótons, quando eles se chocam. A colisão dessas partículas "elementares" produz um clarão que marca o surgimento de novas partículas elementares e o desaparecimento das partículas iniciais. Na sociedade, um exemplo de salto sob a forma de ruptura pode ser dado pela revolução social que se efetua mediante a insurreição armada. No decorrer dessa revolução, produz-se uma transformação impetuosa das formas antigas das relações humanas em novas formas, que atingem todos os aspectos fundamentais da vida. A particularidade do salto sob a forma de acumulação gradual dos elementos da nova qualidade e do enfraquecimento dos elementos da antiga qualidade é a de produzir-se de forma relativamente lenta; no curso desse salto, a qualidade não se transforma nem inteira, nem rapidamente, mas aos poucos. Um exemplo desse tipo de salto pode ser dado pelo surgimento de novas espécies de vegetais e de animais, que se estende por centenas de milhares de anos e se produz em decorrência da acumulação gradual de novas propriedades correspondentes à evolução do meio ambiente, pela transformação gradual de certas funções e da morfologia desses ou daqueles órgãos. Na sociedade, esse tipo de salto é característico, por exemplo, da evolução da língua. O aparecimento de uma nova língua é o resultado de uma longa acumulação de elementos de uma nova qualidade e do enfraquecimento dos elementos da antiga qualidade. No curso do desenvolvimento, da prática e do conhecimento sociais, palavras novas aparecem e se acumulam e, com o tempo, essas palavras começam a fazer parte do vocabulário, enquanto que as palavras velhas tornam-se inúteis, supérfluas e caem no esquecimento. De maneira análoga é que se modificam certas formas gramaticais. À medida que as modificações de fundo léxico e de estruturas gramaticais tornam-se mais importantes, uma nova qualidade da língua torna-se precisa e uma nova língua vai-se formando. Falando dos saltos-ruptura e dos saltos que se realizam por acumulação gradual dos elementos da qualidade nova e do enfraquecimento da antiga qualidade, tomamos como base de sua distinção o caráter do desenvolvimento do salto. O salto-ruptura é súbito, brutal e engloba a qualidade em seu conjunto, em todos os seus aspectos e suas ligações. O salto que se realiza por acumulação gradual dos elementos da qua.217
lidade nova desenvolve-se lentamente e modifica a qualidade aos poucos e gradualmente. Mas, para classificar os saltos, podemos apoiar-nos não apenas no caráter de seu desenvolvimento, mas também no caráter das transformações qualitativas que se produzem em decorrência desse ou daquele salto. Como já dissemos, cada coisa, além de sua qualidade fundamental, possui também uma multiplicidade de outras qualidades não fundamentais que, sendo qualidades das propriedades particulares da coisa, representam-na sob esses ou aqueles aspectos ou condições. A mudança da qualidade fundamental e da qualidade não fundamental da coisa produz-se sob a forma de saltos, mas esses saltos são completamente diferentes quanto ao seu fundamental. O salto, no curso do qual modifica-se a qualidade fundamental da coisa, supõe a destruição radical do fundamento qualitativo presente, a modificação da essência da formação material. O salto, no curso do qual modifica-se a qualidade não fundamental da coisa, não acarreta a destruição radical de seu fundamento qualitativo, de sua essência, mas condiciona mudanças qualitativas determinadas da coisa, no quadro do mesmo determinismo qualitativo, nos limites da mesma essência. O primeiro tipo de salto representa a forma revolucionária das mudanças qualitativas e o segundo representa a forma evolucionista. A revolução é, portanto, um tipo particular de salto que, em seu curso, a passagem à nova qualidade é acompanhada pela destruição radical do antigo fundamento qualitativo e pelo aparecimento de uma formação material que tenha um fundamento qualitativo novo, uma essência nova. No que diz respeito à evolução, ela é, nesse caso, uma noção oposta à da revolução e designa um outro tipo de salto, isto é, o salto em cujo curso a passagem à nova qualidade realiza-se no quadro da essência dada da coisa, sem a destruição radical de seu fundamento qualitativo presente. A passagem de uma formação sócio-econômica a outra, assim como a passagem de um elemento químico a outro, ou a transformação de uma partícula "elementar" em outra, são exemplos de revolução. Por exemplo, a transformação do rádio em radônio, a passagem do capitalismo ao socialismo etc. serão revoluções. Como caso de passagem evolucionista de um estado qua.218
litativo a outro, podemos citar a passagem da substância de um estado de agregação a outro, como, por exemplo, do gelo à água, da água ao vapor e vice-versa, a passagem do capitalismo pré-monopolista ao capitalismo monopolista, a passagem do socialismo ao comunismo etc. Certos autores utilizam os conceitos de evolução e de revolução em um sentido um pouco diferente . Por revolução eles entendem um salto-ruptura e não toda modificação em cujo curso produz-se a destruição radical do fundamento qualitativo da coisa, e por evolução, eles entendem um salto que se realiza por acumulação gradual dos elementos da nova qualidade e do enfraquecimento gradual dos elementos da antiga qualidade. A identificação da revolução com o salto-ruptura e da evolução com a passagem de um estado qualitativo a outro, por acumulação dos elementos da nova qualidade e o enfraquecimento dos elementos da antiga qualidade, não nos parece justificada. A revolução distingue-se da evolução não pela forma com que se realiza a passagem de uma qualidade a uma outra, mas pelo caráter, a profundidade, o grau de transformação da coisa, se essa passagem é acompanhada da destruição radical da qualidade existente, da transformação da coisa em uma outra coisa ou simplesmente de uma modificação de seu aspecto, de um desenvolvimento no quadro do próprio fundamento qualitativo. Outros autoresio entendem por revolução as mudanças qualitativas e por evolução as mudanças quantitativas. Entretanto, embora a utilização dos conceitos de "revolução" e de "evolução" nesse sentido esteja profundamente enraizado na literatura filosófica, esta significação não constitui o conteúdo específico das categorias em questão, não é sua significação categorial. O que é fundamental e específico no conteúdo desses conceitos é que um deles — "revolução" — designa um salto, que supõe a destruição radical do antigo fundamento quali9
L. V. Vorobiov, V. M. Kagarov, A. E. Furman, As categorias e leis fundamentais da dialética materialista, Ed. da Universidade Estatal de Moscou, 1961, p. 220-39. Original em russo. N. I. Borin, A lei de passagem das mudanças quantitativas às qualitativas, 1960, p. 21. Original em russo. 9
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tativo cia formação material existente e o surgimento de uma nova formação material, enquanto que o outro — "evolução" — designa um salto que supõe a passagem de uma formação material de um estado qualitativo a um outro, no quadro de um fundamento qualitativo dado, no quadro de sua essência. São esses momentos do conteúdo dos conceitos em questão que lhes conferem a autonomia e o caráter categorial necessários. Os conceitos de revolução e de evolução são universais, aplicáveis a todos os domínios da realidade. Entretanto, esses conceitos adquirem um caráter específico quando são utilizados para exprimir as leis da passagem de um estado qualitativo a outro, nesse ou naquele domínio concreto da natureza ou da vida social. Se na natureza, a revolução é sempre um salto que provoca a destruição radical do antigo fundamento qualitativo, em alguns domínios da vida social, nos quais o desenvolvimento está ligado à ação de um fato subjetivo, a revolução não será absolutamente a passagem de uma qualidade a uma outra, que é acompanhada pela destruição radical do fundamento qualitativo presente, mas apenas a passagem que engendra formações mais perfeitas, isto é, a passagem do inferior ao superior. No que concerne aos saltos ligados à destruição radical do fundamento qualitativo presente, em decorrência dos quais opera-se a passagem de uma formação mais aperfeiçoada a uma formação menos aperfeiçoada, isto é, do superior ao inferior, estes não representam uma revolução, mas uma contrarevolução. Uma revolução é, por exemplo, a passagem do poder político de uma classe historicamente condenada a uma classe progressista, como o dos senhores feudais para a burguesia, ou o da burguesia para o proletariado. E a contrarevolução é o restabelecimento provisório da dominação econômica e política da classe historicamente condenada e destruída no curso da revolução. A evolução aplicada a fenômenos sociais dados manifesta-se como reforma ligada, como já sabemos, a mudanças qualitativas no quadro do próprio fundamento qualitativo e mudanças que não colocam em questão a essência do regime econômico ou político da sociedade. Tendo indicado a diferença entre as mudanças reformistas e revolucionárias, Lenin escreveu que: "A ciência histórica nos diz que o que distingue uma mudança reformista de uma mu.220
dança não reformista em um regime político dado é, em geral, que, no primeiro caso, o poder permanece nas mãos da antiga classe dominante, e que, no segundo caso, o poder passa das, mãos dessa classe para as de uma nova" !. Mas ao mesmo tempo ele destacava que: "seria absolutamente falso pensar que, para lutar diretamente a favor da revolução socialista, possamos ou devamos abandonar a luta pelas reformas. Não é isso absolutamente. Nós não podemos saber em quanto tempo alcançaremos o sucesso e em que momento condições objetivas permitirão o acontecimento dessa revolução. É preciso que sustentemos qualquer melhoria, toda melhoria real da situação econômica e política das massas" . Desde que a passagem de um estado qualitativo a outro efetua-se por meio de saltos, no que concerne às transformações da sociedade, assim como às relações sociais, e ainda a qualquer outro problema concreto, é preciso ser revolucionário, não ter medo de derrubar tudo o que já está ultrapassado, tudo o que já envelheceu. Pelo fato de que os saltos, em decorrência dos quais produz-se a passagem da antiga qualidade à nova qualidade, não têm o mesmo caráter, nem a mesma forma, é preciso, na prática, que, no momento de uma ação consciente sobre esse ou aquele processo da transformação de uma qualidade a outra, estudemos minuciosamente a situação e que escolhamos a melhor forma de salto, correspondente às condições concretas dadas, porque somente dessa maneira estaremos livres de erros e poderemos realmente acelerar o curso objetivo dos acontecimentos. Os clássicos do marxismo-leninismo conferiram sempre uma grande importância a essa questão primordial e souberam utilizar as leis de mudanças qualitativas em sua atividade prática. Levando em conta as condições concretas ou uma nova situação, eles freqüentemente apresentaram uma forma de passagem a uma nova qualidade no lugar de uma outra forma já elaborada e adotada porque, em condições novas, a anterior correspondia menos ao fundo do problema do que a nova. Por exemplo, nos anos 70 do século XIX, K. Marx e F. Engels, levando em conta o fato de que na Inglaterra e nos EUA não 1
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"V. Lenin, Oeuvres, t. 18, p. 588. V. Lenin, op. cit., t. 23, p. 174. 12
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havia o aparelho burocrático que caracterizava os outros países capitalistas, e também que esses países ainda não estavam extremamente militarizados, fizeram uma exceção quanto a esses países, no que concerne às formas da passagem ao socialismo. Se em todos os outros países, segundo Marx e Engels, essa passagem tivesse de ser efetuada sob a forma de insurreição armada, na Inglaterra e nos EUA, pelo contrário, ela poderia dar-se pela via pacífica. Em seguida, quando o capitalismo entrou em seu último estágio de desenvolvimento — o imperialismo, e quando a tendência ao fascismo do Estado e à hipertrofia do aparelho burocrático e militar tornou-se característica de vários países capitalistas, essa exceção perdeu seu fundamento real e deixou de corresponder à nova situação. Por isso Lenin, no começo do século XX, substituiu a tese de Marx e de Engels por uma tese nova emitindo a idéia de que, na época atual, a passagem ao socialismo é impossível por via pacífica e que esta só é possível sob a forma de insurreição armada — de ruptura. Mas, depois de fevereiro de 1917, quando na Rússia um concurso de circunstâncias (dualidade do poder, fraqueza da burguesia russa e de seu governo provisório etc.) criou a possibilidade de uma passagem pacífica do poder para o proletariado, Lenin substituiu o slogan de insurreição armada pelo de tomada do poder por via pacífica, obtida pela modificação da composição .dos Sovietes, graças à eliminação dos mencheviques e dos S.R. e a satisfação da exigência da devolução de todo o poder aos Sovietes. Mas, depois dos acontecimentos de julho, quando os mencheviques desempenharam abertamente o papel de valetes da burguesia, que o período de dualidade do poder chegou ao fim e que todo o poder já se encontrava nas mãos da burguesia e de seu governo provisório, o período pacífico da revolução também chegou a seu fim. Nessas novas condições, a única forma possível e justa para conseguir a vitória da revolução socialista tomou-se a insurreição armada. Por isso Lenin colocou na ordem do dia a insurreição armada que, como sabemos, conduziu à derrubada da burguesia e ao estabelecimento da ditadura do proletariado. A tese de Lenin sobre a insurreição armada, como a forma melhor adaptada para a conquista da ditadura do proletariado nas condições do imperialismo, correspondeu durante muito tempo à situação real das coisas e permaneceu aplicável a qualquer país capitalista. Entretanto, com a vitória do socia.222
lismo na URSS e, em particular, com o surgimento do sistema mundial do socialismo surgiu também a necessidade de precisar e de desenvolver essa tese de acordo com as novas condições do desenvolvimento social. O XX Congresso do PCUS, generalizando a experiência da revolução socialista em diferentes países e analisando a nova situação internacional (nascimento, desenvolvimento e fortalecimento do sistema socialista mundial, enfraquecimento geral do capitalismo e agravamento de suas contradições, crescimento dos efetivos, do grau de organização e da coesão da classe operária, alargamento do número de seus aliados objetivamente interessados na luta contra o imperialismo, aumento dos efetivos dos partidos comunistas e operários e de seu prestígio), apresentou e criou a idéia da possibilidade, nas condições atuais, de efetuar, em alguns países, a revolução socialista pela via pacífica, assim como a de utilizar o parlamento burguês. Essa idéia foi desenvolvida e firmada no Programa adotado no XXII Congresso do PCUS. Esse programa destaca, em particular, que: "Nas atuais condições, em alguns países capitalistas, a classe operária, sob a direção de sua vanguarda, tem a possibilidade de, baseada em um confronto popular e operário ou em outras formas eventuais de acordo e de colaboração política de diversos partidos e organizações sociais, unir a maioria do povo, conquistar o poder de Estado sem guerra civil e de fazer passar os principais meios de produção para as mãos do povo. Apoiando-se na maioria do povo e opondo-se resolutamente aos elementos oportunistas, incapazes de renunciar à política de conciliação com os capitalistas e os agrários, a classe operária pode infligir uma derrota às forças antipopulares, reacionárias, e conquistar uma sólida maioria no parlamento, transformando-o de um instrumento ao serviço dos interesses da classe da burguesia em um instrumento ao serviço do povo trabalhador, além de desenvolver amplamente a luta extraparlamentar das massas, quebrar a resistência das forças da reação e criar as condições necessárias para a realização pacífica da revolução socialista"* . 3
Rumo ao comunismo, compilação dos documentos do XXII Congresso do Partido Comunista da União Soviética, (17-31 de outubro de 1961), Moscou, Edições em línguas estrangeiras, p. 517, 1961. 13
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VIII. A CAUSA E O EFEITO
1.
A EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS DA CAUSALIDADE NA FILOSOFIA PRÉ-MARXISTA
Com o nascimento da Filosofia surgiu uma certa concepção da causa. Entretanto, entre os primeiros filósofos, ela era extremamente confusa e indeterminada. Para eles a causa ainda não se distinguia do princípio primeiro, da matéria que se encontra à base das coisas e dos fenômenos existentes. Na filosofia grega, ela adquire primeiramente a forma de água (Thales), de ar (Anaxímenes) e de fogo (Heráclito), que engendram, no curso de sua transformação todos os fenômenos observados no mundo. Em seguida, a causa é representada por átomos eternos e imutáveis, que se distinguem entre eles por sua forma, posição, ordem e que formam, quando se chocam, diferentes corpos. Aristóteles caracterizava da seguinte maneira a concepção dessa questão que havia em Leucipo e Demócrito: eles "admitem que há certas diferenças (os átomos — A. Ch.), que são as únicas causas de todo o resto dos fenômenos. Entretanto, eles reduzem essas diferenças a apenas três: a forma, a ordem e a posição" . Mais tarde, foram considerados como causas todos os fatores que condicionam o aparecimento de coisas particulares. Para Platão, esses fatores eram: a matéria informe, uma idéia determinada, a relação matemática e a idéia de "bem supremo". Segundo sua teoria, cada coisa particular aparece em decorrên1
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Aristóteles, Métaphysique d'Aristote, Paris, 1879, p. 43-4.
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cia da interação do não-ser (matéria) com o limite (limitação matemática). O modelo da coisa em formação é essa ou aquela idéia, que penetra na coisa sensível e, com a relação matemática, constitui sua essência. O elemento motor dessas transformações é a idéia de "bem supremo", situado fora e acima delas. Aristóteles agrupa esses fatores em quatro tipos distintos de causa: 1.°) — a material, que representa a matéria participando da formação da coisa; 2.°) a formal, que comunica uma forma à matéria; 3.°) a produtiva, que une a forma à matéria no processo de formação da coisa; e 4.°) — a finalista, que representa o objetivo que se realiza no curso do aparecimento da coisa. Aristóteles explica o processo do aparecimento das coisas por analogia com sua criação pelos homens. Não foi por acaso que, para exprimir a manifestação das quatro causas, ele tomou exemplos da prática da criação, pelos homens, desses ou daqueles valores materiais. Em particular, ele cita o exemplo da construção de uma casa, em que o material de base desempenha o papel de causa material; o plano, o papel de causa formal; o trabalho do arquiteto e sua experiência, o de causa produtiva; o objetivo que deve ser realizado ao fim da construção, o de causa final. Ele escreveu que, nesse caso, a arte e o construtor são o começo do movimento; o produto é "o porquê" (,o objetivo) ; a terra e as pedras são a matéria; a concepção é a forma. A concepção aristotélica da causalidade dominou durante muito tempo na história da filosofia. A filosofia da Idade Média nada acrescentou à contribuição de Aristóteles na elaboração dessas categorias. Utilizando sua teoria das causas formal e final, ela foi inteiramente absorvida pelo fundamento da existência de Deus e da criação divina do mundo sensível. Francis Bacon deu um passo a frente no conhecimento da causalidade. Embora ele reconhecesse as quatro causas aristotélicas (material, produtiva, formal e final), só conferiu, entretanto, uma importância categorial a uma delas: a causa formal que, para ele, encontra-se não fora da coisa, como era para Aristóteles, mas na própria coisa, porque ela representa a lei de existência da coisa . 2
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F. Bacon, Oeuvres de Bacon, Nouvel Organum, Paris, 1845, p. 138.
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Ao contrário de F. Bacon, Hobbes rejeita as causas formal e final e considera como reais apenas duas causas: a produtiva (para ele, eficaz) e a material. Por causa produtiva, ele entende o conjunto de propriedades (acidentes) do corpo ativo que acarreta mudanças correspondentes no corpo passivo; por causa material, o conjunto de propriedades (acidentes) do corpo passivo que assegura o aparecimento dessas mudanças . Se F. Bacon, na definição de causa, apoiava-se no fato de que ela pertence ao domínio interior da coisa, à sua natureza, Hobbes, por sua vez, concede, à causa, o domínio exterior, liga-a aos acidentes, às propriedades flutuantes e acessórias; enfim, a reduz à ação de um corpo sobre o outro. Em Spinoza, igualmente, a causa situa-se fora dos fenômenos concretos singulares dos corpos: "Toda coisa singular ou, em outros termos, toda coisa finita e que tem uma existência limitada não pode existir, nem ser determinada a agir, se ela não for determinada a isso, por uma outra causa, que é ela própria finita e que tem igualmente uma existência limitada...4, Entretanto, o próprio Spinoza percebe o caráter restrito dessa concepção da causalidade e procura atenuá-lo. Ele coloca a questão da necessidade de pesquisar as causas da existência das coisas nas próprias coisas e, a esse respeito, apresenta o conceito de causa sui. Por "causa sui", ele entende "aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza só pode ser concebida como existente" . É verdade que a causa de sua existência, segundo Spinoza, pode ser contida somente no mundo tomado em seu conjunto, na natureza absoluta infinita. Quanto às coisas finitas, as causas de sua existência estão contidas não nelas mesmas, mas fora delas, em outras coisas finitas. A idéia extremamente progressista de que a natureza encerra nela mesma a causa de sua existência, e de que não tem absolutamente necessidade de uma forma exterior, fora dela mesma, desempenhou um grande papel na luta contra o idealismo e a religião, mas ela era insuficiente para ultrapassar a concepção metafísica da causalidade, que reduzia o laço de causa e efeito à ação de um corpo sobre o outro. É por isso que não é de 3
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T. Hobbes, Hobbes Selections, Chicago, 1930, p. 94-5. "Spinoza, Ethique, Paris, 1908, p. 43. Spinoza, op. cit., p. 13.
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espantar que a causa sui de Spinoza não tenha trazido nenhuma modificação para a concepção de causalidade da época. Nas ciências da natureza, assim como na Filosofia, continuavam a entender por causa a ação de uma força exterior sobre essa ou aquela coisa. Encontramos essa definição da causa em Newton, nos materialistas franceses do século XVIII etc. As causas, escreve, por exemplo, Newton, são as forças que é preciso conferir aos corpos a fim de produzir o movimento. Holbach salienta, por sua vez, que: "Uma causa é um ser que coloca um outro em movimento ou que produz alguma mudança nele"6. Reduzir a causa do aparecimento e do desenvolvimento de uma coisa à ação de uma outra coisa acarreta toda uma série de dificuldades para o domínio do conhecimento. Efetivamente, o conhecimento de uma coisa supõe o conhecimento de sua causa. Aristóteles já sabia disso. Então, se a causa de uma coisa dada está contida em uma outra coisa, para conhecer a coisa dada devemos também conhecer a outra coisa, a que é a causa da primeira. Mas o conhecimento da segunda coisa supõe a colocação em evidência de sua causa que, por sua vez, encontra-se em uma terceira coisa, cuja causa encontra-se ainda em uma quarta coisa. E assim sucessivamente até o infinito. Em conseqüência, o conhecimento de qualquer coisa conduz-nos necessariamente ao infinito e supõe o conhecimento de um número infinito de outras coisas, o que, é claro, é irrealizável. Spinoza já havia observado isso e chegara à conclusão da impossibilidade de um conhecimento adequado das coisas singulares. É verdade que os filósofos e os naturalistas do século XVin, que haviam apresentado o princípio metafísico de causalidade, não viam a contradição que necessariamente o acompanha. Guiando-se por esse princípio, não somente eles não duvidavam da possibilidade de conhecer a coisa estudada, mas ainda consideravam-no como suficiente para obter um conhecimento completo de todo o Universo, para explicar qualquer fenômeno que tivesse acontecido no passado e para prever qualquer acontecimento do futuro . Isso é explicado pelo 7
P. Holbach, Systeme de la nature ou des loix du monde physique et du monde moral, Londres, 1769, p. 13. P. Laplace, Essai philosophique sur les probabilites, Paris, 1920, p. 8. 6
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fato de que eles reduziam todos os fenômenos, todas as mudanças ocorridas no mundo a simples deslocamentos mecânicos e acreditavam que podiam explicá-los a partir das leis da mecânica clássica. O nível de desenvolvimento da física de então permitia, desde que se conhecesse a força que agia sobre os corpos, as coordenadas e a velocidade de seu movimento em um dado instante, determinar suas coordenadas e sua velocidade em qualquer outro momento do futuro. Mas se essa concepção de laço de causa e efeito é aceitável, em uma certa medida, para explicar os fenômenos do movimento mecânico simples em que a mudança do estado de um sistema isolado não está ligada à mudança de sua qualidade, ela é absolutamente inaceitável para explicar os fenômenos de outras formas, mais complexas, de movimento, cujo aparecimento está ligado a certas mudanças qualitativas condicionadas não tanto pela ação de forças exteriores, como pela interação no interior do objeto. Hegel foi o primeiro a chamar a atenção para o caráter restrito e contraditório da concepção metafísica da causalidade. Mostrando que a aproximação metafísica do laço de causa e efeito dos fenômenos conduz necessariamente a um infinito errôneo (cada fenômeno que desempenha o papel de causa e de efeito tem, por sua vez, sua causa em outros fenômenos etc.), Hegel recusou essa concepção de causalidade e propôs uma solução dialética para o problema. Segundo ele, a causa e o efeito estão em interação dialética. A causa, sendo uma substância ativa, age sobre a substância passiva e acarreta nessa certas mudanças que produzem nela um efeito. A substância passiva exerce uma ação de retorno e anula, dessa maneira, a ação da substância ativa e, assim, de substância passiva ela transforma-se em substância ativa e começa a interferir em relação à primeira substância ativa como alguma coisa de inicial, isto é, como causa. Graças à interação, a causa e o efeito, segundo Hegel, passam um pelo outro, mudam de lugar e, ao mesmo tempo, manifestam-se um frente ao outro, de uma só vez, como causa e efeito. Como conseqüência, quando se dá o conhecimento do fenômeno, não há necessidade de considerar um número infinito de outros problemas que se unem a ele, é suficiente estudar sua interação. Conhecendo-a, conhecemos também a causa e, ao mesmo tempo, a natureza dos dois fenômenos. Foi .228
assim que Hegel, baseado na interação da causa e do efeito, anulou, de fato, o caráter limitado da concepção metafísica da causalidade. Tomando como ponto de partida a interação da causa e do efeito, Hegel aproximou-se muito da concepção marxista da causalidade. 2.
A CONCEPÇÃO MARXISTA DA CAUSALIDADE
A definição da causa como fenômeno que condiciona o aparecimento de um outro fenômeno e do efeito como fenômeno engendrado pelo primeiro fenômeno está amplamente difundida na literatura filosófica . Mas essas definições de causa e de efeito parecem-nos insuficientes. Elas não permitem a captação da diferença existente entre a concepção marxista da causalidade e a do materialismo mecanicista pré-marxista. Segundo essas definições, a causa de qualquer fenômeno encontra-se fora dele, em um outro fenômeno. Essa tese servia de ponto de partida para a concepção da causalidade feita pelos materialistas pré-marxistas, que consideravam a causa como a ação de um corpo sobre o outro e o efeito como mudanças surgidas nesse segundo corpo. O materialismo dialético não nega as ações exteriores e suas possibilidades de acarretar mudanças correspondentes nos fenômenos submetidos a essa ação. Mas, não reduz a causa do aparecimento e da existência de fenômenos às ações exteriores que eles sofrem, nem procura essa existência no exterior, em outros fenômenos, mas no próprio fenômeno, em sua natureza interna. É verdade que o termo "fenômeno" pode ser utilizado não somente no sentido de "corpo", de "coisa", de "formação material", mas igualmente no sentido de manifestação, à superfície da essência de uma coisa, de um corpo, de uma formação material. Será possível que a utilização, nesse sentido, da 8
Materialismo dialético, Moscou, 1962, p. 262. Redação de A. B. Makarov, A. V. Vostrikov e E. N. Tchesnákov. Original em russo. N. A. Mussabaeva, O problema da causalidade na filosofia e na biologia, Alma-Ata, 1962, p. 9. Original em russo. 8
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palavra "fenômeno" possa nos ajudar a evitar os erros observados nas definições já estudadas da causa e do efeito? Não, já que uma tal utilização do termo "fenômeno" não salva a situação, não evidencia a essência da concepção dialético-materialista da causalidade. Com efeito, se o fenômeno representa o aspecto exterior de uma coisa, a forma da manifestação, à superfície de sua essência, então, quando definimos a causa como fenômeno que engendra um outro fenômeno e o efeito, como sendo esse segundo fenômeno engendrado pelo primeiro, reduzimos, exatamente por esse processo, o laço de causa e de efeito às ligações exteriores, às ligações dos aspectos, das propriedades exteriores, das formações materiais. Na realidade, o laço de causa e de efeito é próprio não somente aos aspectos exteriores dos objetos, não somente ao domínio dos fenômenos, mas igualmente aos aspectos internos e necessários, ao domínio da essência, assim como à correlação do interno com o externo, da essência com o fenômeno. Portanto, se partimos da definição da causa, como um fenômeno que engendra um outro fenômeno, engendrado pelo primeiro, chegamos inevitavelmente à negação da existência das causas internas e do laço de causa e efeito entre os aspectos internos e externos de uma coisa, entre a essência e o fenômeno. Decretar como causa o conjunto de circunstâncias necessárias ao aparecimento desse ou daquele fenômeno (efeito) é uma tentativa de ultrapassar os defeitos dessas definições da causa . Esse ponto de vista sobre a causa, embora sendo uma reação à tendência de reduzir a causa à ação exterior, não é novo. Ele foi desenvolvido pelo positivista John-Stuart Mill. "A causa, escreveu ele, é, filosoficamente falando, a soma total das condições positivas e negativas do fenômeno, tomadas em conjunto, a totalidade de toda espécie de contingências cuja presença acarreta necessariamente o efeito" . O defeito dessa definição da causa reside no fato de que, dissolvendo a causa no conjunto dos fatores necessários ao aparecimento desse ou daquele fenômeno, esquecemos o essencial, o que constitui uma parte fundamental do conteúdo da 9
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L. B. Vorobiov, V. M. Kaganov, A. E. Furman, As categorias e leis fundamentais da dialética materialista, Moscou, 1962, p. 60. Original em russo. J. S. Mill, System of logic, 6? ed., Londres, 1865, v. 1, p. 372. 9
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categoria de causa, ou seja, o momento da atividade, o fato de que a causa é um elemento motor, que impulsiona as mudanças correspondentes nas coisas e nos fenômenos. Parece-nos mais correto definir a causa como a interação de dois ou mais corpos ou, ainda, como a interação de elementos ou aspectos de um mesmo corpo acarretando certas mudanças nos corpos, elementos ou aspectos, agindo uns sobre os outros, e o efeito como as mudanças surgidas nos corpos, elementos e aspectos agindo uns sobre os outros, em decorrência de sua interação. Foi precisamente assim que os fundadores do materialismo dialético e, em particular, Engels definiram a causa: " ( . . . ) A ação recíproca é a verdadeira causa finalis das coisas"H. A interação conduz à modificação dos corpos ou aspectos em interação, assim como ao aparecimento de novos fenômenos e à passagem de um estado qualitativo a outro. Por exemplo, a interação das classes antagônicas condiciona o aparecimento do Estado, a mudança do sistema social e de estado e a passagem da sociedade de uma formação sócio-econômica a uma outra. A causa da corrosão do metal está na interação química dos metais e dos gases presentes no ar assim como na água e nas substâncias que nela. são dissolvidas. A causa do aparecimento da corrente indutiva em um circuito fechado, deslocando-se em um campo magnético, é a interação do circuito fechado e do campo magnético. A causa da incandescência do filamento de uma lâmpada elétrica não é a corrente elétrica que a atravessa, como pensam certos autores , mas a interação da corrente elétrica com a substância da qual é feito o filamento. Tornando evidentes as raízes do caráter limitado e da insuficiência da concepção da causa como ação unilateral dessa ou daquela força sobre o objeto, a coisa, Engels salientou a idéia de que a causa de todo fenômeno é dupla e que ela representa a interação de duas partes, ou melhor: "Todos os processos naturais são duplos, baseiam-se na relação de pelo menos duas partes agentes, a ação e a reação. Então, a idéia de força, pelo fato de ter sua origem na ação do organismo humano sobre o mundo exterior e, em seguida, 12
F . Engels, La dialectique de la nature, p. 234. As categorias da dialética materialista, Moscou, Original em russo. U
1!í
1957, p. 93.
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da mecânica terrestre, implica que apenas uma parte seja ativa, operante, e que a outra seja passiva, receptiva. . . A reação da segunda parte, sobre a qual a força age, aparece mais do que tudo como uma reação passiva, como uma resistência" 13. Mais adiante ele diz que: "A força de refração da luz tanto é inerente à luz, quanto aos corpos transparentes. No que concerne à aderência e à capilaridade, a força encontra-se seguramente tanto na superfície sólida, como na líquida. Para a eletricidade de contato é, de qualquer forma, certeza que os dois metais contribuem e a "força de afinidade química", quando encontrada, mostra que, nesse caso, as duas partes combinam" . Mesmo os partidários do materialismo mecanicista, que apresentaram a idéia da causa como ação mecânica de um corpo sobre o outro, foram obrigados, quando da elaboração de sua teoria da causalidade, a levar em conta de uma maneira ou de outra, a retroação do segundo corpo sobre o primeiro. Com efeito, segundo seu ponto de vista, o estado futuro (efeito) do movimento mecânico de um corpo depende do estado desse corpo (das coordenadas e da velocidade de seu movimento) em um dado momento e da força que age sobre o corpo durante todo o movimento, isto é, da interação dos corpos considerados. Segue-se que, do ponto de vista do materialismo dialético, a noção de causa designa a interação dos corpos ou dos elementos, dos aspectos de um mesmo corpo, que acarreta em mudanças correspondentes nos corpos, elementos e aspectos em interação. O conteúdo do conceito de "efeito" é constituído pelas mudanças que aparecem nos corpos, elementos e aspectos em interação, em decorrência de sua interação. 14
3.
CAUSALIDADE E NECESSIDADE
O laço entre a causa e o efeito que ela acarreta, é necessário. O laço de causa e efeito representa, portanto, uma das forças da existência da necessidade. Esse momento é destacado, com justa razão, por David Bohm em seu livro Causali13 14
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F. Engels, op. cit., p. 87. F. Engels, op. cit., p. 87.
dade e contingente na física moderna. "A causalidade. . . é uma forma particular, mas muito difundida da necesidade" . O caráter necessário do laço de causa e efeito é reconhecido por vários autores . Ao mesmo tempo, certos autores acreditam que não é cada laço de causa e efeito que é necessário, mas que há efeitos que estão ligados às suas causas de maneira necessária, e efeitos que estão ligados às suas causas de maneira contingente. Esses autores justificam seus pontos de vista pelo fato de que todos os fenômenos (tanto os necessários, como os contingentes) têm uma causa para seu aparecimento. Se for assim, a ligação causal, segundo eles, pode-se manifestar tanto sob uma forma necessária, como sob uma forma contingente . Que os fenômenos contingentes tenham causas que os produzam é verdade, mas disso não decorre absolutamente que a ligação desses fenômenos (efeitos) com as causas que os engendrou seja contingente. Uns ou outros fenômenos são considerados contingentes, não porque eles não decorrem necessariamente de suas causas, mas porque são engendrados por causas contingentes. A destruição das sementes pelo granizo é reconhecida como contingente não porque a interação do gelo com os organismos vegetais (causa) não condicione necessariamente a destruição desses últimos (efeito), mas porque essa interação, o granizo, nessa época do ano, é apenas o resultado do acaso, não decorrendo nem da natureza das condições climáticas, nem do lugar, nem das leis do funcionamento e do desenvolvimento dos vegetais. A morte de um homem, em decorrência da queda de uma pedra, que cai de um telhado, sob o efeito do vento, deve-se ao acaso não porque a ligação da causa (interação de uma pedra, de um certo peso e do organismo humano) com o efeito (a morte do homem) seja contingente. Ela é necessária. O choque de uma pedra de tamanho adequado sobre a cabeça de um homem acarreta necessariamente a morte desse último. A morte do homem é 15
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D. Bohm, Causality and chance in modem physics, Londres, Routledge and Kegan Paul Ltd., 1957, p. 2. Problemas de causalidade na física contemporânea, Moscou, 1960, p. 380. Original em russo. N. A. Mussabaeva, op. cit., p. 108. 13
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contingente porque a causa que a acarreta é contingente, condicionada por toda uma série de circunstâncias. Da natureza da pedra e do homem não decorre necessariamente sua colisão. Essa colisão poderia não ter acontecido, isto é, a causa poderia não se apresentar, mas como ela se produziu, porque o choque teve lugar, o efeito — a morte do homem — tornou-se necessária e inevitável. Outros autores, e, em particular, Mário Bunge, reconhecem igualmente a existência do laço contingente de causa e efeito. Bunge acredita que seu domínio de manifestação é o movimento dos microcorpos, no qual a situação de um acontecimento (causa) não condiciona a necessidade do aparecimento de um outro acontecimento (efeito), como acontece no domínio do movimento dos macrocorpos, mas somente a probabilidade de seu aparecimento. Ele denomina esse laço de causa e efeito de "determinismo estatístico" (statistical déterminacy)í%. Como exemplo, provando o dito caráter contingente do laço de causa e efeito no micromundo, é citado o caso da passagem dos elétrons através da abertura de um diafragma situado em sua trajetória. Como sabemos, os elétrons idênticos que se deslocam na mesma direção não caem em um mesmo ponto, mas dispersam-se sobre todo o écran. Concluímos disso que o laço da causa (o elétron em movimento) e do efeito (seu ponto de impacto sobre o écran não é necessário, unívoco, mas que, aqui, a mesma causa e as mesmas condições engendram os efeitos os mais diversos. Será essa dedução exata? Em nossa opinião, ela é incorreta. O fato de que os elétrons, depois de haver transposto a mesma abertura, terminem em pontos diversos do écran, não exclui o caráter necessário do laço de causa e efeito, concernente a esse impacto. Embora os elétrons estejam em interação com um mesmo objeto (o diafragma), essas interações não são, entretanto, absolutamente idênticas. No diafragma, com o qual os elétrons estão em interação, assim como no meio ambiente que eles atravessam quando se dirigem para o écran, cada elétron provoca, em sua passagem, certas mudanças e, por esse 18
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M. Bunge, Causality, Harvard Unrversity Press, p. 14-7.
fato, cada elétron não está em interação nem com o mesmo objeto, nem com o mesmo meio, mas com objetos e com meios cada vez diferentes. É por isso que não podemos dizer que, em todos os casos, a causa é a mesma. Existe, nesse caso, tantas causas diferentes quanto são os elétrons em movimento. Cada uma delas condiciona necessariamente a queda do elétron sobre um ponto dado do écran. Em outros termos, embora cada elétron em movimento possua diferentes possibilidades de cair sobre esse ou aquele ponto do écran, somente uma dentre elas realiza-se e, precisamente, realiza-se aquela para a qual estão reunidas as condições adequadas, e ela o faz de maneira necessária. O laço da causa (interação do elétron, do diafragma e do meio ambiente) e do efeito (sua queda sobre um ponto preciso do écran) é necessário. O que será contingente aqui não é a queda desse ou daquele elétron sobre esse ou aquele ponto do écran, mas a divisão dessas quedas sobre o écran, pelo fato de que cada elétron, em seu movimento, tendo seu meio ambiente específico, entre em interações únicas em seu gênero, que condicionam sua queda em um ponto dado do écran. O ponto da queda de outros elétrons não depende necessariamente do ponto da queda do elétron indicado e encontra-se com ele e com todos os outros em relações contingentes. É isso, precisamente que condiciona o caráter estatístico das leis das partículas em movimento. O raciocínio de G. Svetchnikov a esse respeito parece plenamente justificado. Ele escreve que: "Na interação das micropartículas e dos microcorpos existe um traço particular, que determina o caráter estatístico da mecânica quântica. . . No interior de um macroambiente dado produzem-se microprocessos que exercem uma influência fundamenatl sobre o comportamento de um microobjeto considerado, mas que são não essenciais para o macroambiente em seu conjunto, considerado do ponto de vista da física clássica. Isso conduz a que o ambiente macroscópico dado possa ser realizado por todas as combinações dos microprocessos; essas combinações distinguem-se entre elas no nível microscópico, mas não são discerníveis no nível macroscópico. Cada combinação dada dos microscópicos que se desenvolvem no quadro de um ambiente macroscópico dado acarreta um comportamento bem definido do microobjeto. A interação do microobjeto e dos micropro.235
cessos que constituem o mieroambiente dado condiciona seu comportamento... Segundo essas concepções, o caráter estatístico da mecânica quântica é a expressão do fato de que, por um lado, o movimento de cada microobjeto individual depende de sua interação com um número considerável de microprocessos, que constituem seu ambiente real e, por outro lado, a mecânica contemporânea considera o ambiente de um microobjeto dado de maneira macroscópica, sem uma análise detalhada da estrutura microscópica desse ambiente" . O caráter necessário do laço de causa e efeito foi situado, na base da explicação do movimento das partículas "elementares", pelo filósofo alemão Herbert Hõrz. Analisando o comportamento das partículas elementares, quando de sua passagem através de uma fenda estreita, ele escreve: "A queda da partícula sobre um ponto determinado do écran situado atrás da fenda é condicionada de maneira causal... A partícula encontra-se necessariamente em um ponto determinado do écran. Esse é o resultado do fato de que à causa relacione-se o conjunto de todas as condições necessárias e suficientes, que conduziram a isso" . A partícula elementar em movimento encontra-se, segundo Hõrz, em numerosas ligações causais com o meio ambiente. Qualquer modificação, por mais leve que seja, no comportamento da partícula, é o resultado da ação da causa correspondente que lhe é diretamente ligada. O conjunto dessas causas determina a orientação do movimento da partícula e sua queda sobre um ponto dado do écran. Falando do laço necessário de causa e efeito no movimento dos microobjetos, é conveniente lembrar que, em virtude da diferença essencial entre o microobjeto e o macroobjeto e, em particular, pelo fato de que o primeiro representa a unidade das propriedades corpusculares e ondulatórias, é impossível observar esse laço e traduzi-lo sob a forma de leis dinâmicas adequadas. A natureza da micropartícula, ao contrário do macrocorpo, não permite a definição simultânea e exata de sua posição e de sua velocidade. Quanto mais o lugar da micro19
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0 Problema da causalidade na física contemporânea, p. 355-6. Original em russo. Hörz, Zum Verhältnis von Kausalität und Determinismus, DZFPh, n. 2, p. 155-7, 1963. 1S
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partícula for determinado com precisão, tanto mais sua velocidade ou sua impulsão se tornará imprecisa. E, pelo contrário, quanto mais a velocidade seja definida com precisão, tanto mais será impreciso seu lugar. Essa circunstância exclui a posssibilidade de prever de forma unívoca o comportamento futuro do objeto, tendo como base o conhecimento de sua posição no momento presente. Certos físicos e filósofos, que identificam o princípio de causalidade com o determinismo mecânico (dito determinismo de Laplace), que permite, a partir do conhecimento da velocidade e da posição de um objeto em um momento dado, calcular sua posição e sua velocidade em um outro momento, deduziram, da relação de indeterminismo, a impossibilidade de aplicar o princípio da causalidade ao micromundo. Gerhard Hennemann diz que é precisamente em relação à questão da possibilidade de prever o curso dos futuros processos naturais que aparece o conflito entre as concepções causais da física clássica e os dados da mecânica quântica. Ao mesmo tempo em que a primeira considera como evidente que todo fenômeno da natureza está completamente determinado, e pode também ser determinado no futuro, a mecânica quântica, escreve ele, recusa-se a reconhecer a possibilidade de prever até o fim o curso futuro dos acontecimentos na natureza, e exatamente por isso destrói a convicção, segundo a qual todos os fenômenos da natureza estão submissos a um condicionamento causal universal ' . Arthur Lukowsky, tendo em vista o princípio de indeterminismo de Heisenberg, escreveu que: "(...) Esses dados revolucionários da física moderna levaram à questão de saber se as noções fundamentais da física clássica perderam seu fundamento, ou pelo menos seu fundamento na esfera do fenômeno atômico. No caso da lei da causalidade, essa dúvida parece absolutamente necessária. . ."22. Mesmo Heisenberg, que, pela primeira vez, estabeleceu a relação dos indeterminados, chegou a essa conclusão. A teoria quântica "conduz necessariamente a formular leis, exatamente 2 1
G. Hennemann, Das Verhältnis der Quantenmechanik zur Klassischen Physik, Bonn, 1947, p. 16-7. A. Lukowsky, Uber die Entwicklung des Kausalbegriffes, in KantStudien, 1955/1956, vol. 47, p. 362. 21
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em sua qualidade de leis estatísticas, e a rejeitar o determinismo de forma categórica" . Paulette Fevrier classifica a teoria quântica de indeterminista, porque não pode "indicar medidas tais que, a partir de seu resultado, possamos prever com certeza o resultado de qualquer medida anterior" . Todos esses raciocínios sobre a impossibilidade de aplicar o princípio de causalidade ao micromundo vêm do fato de que a essência desse princípio é a questão da possibilidade de predizer com uma certeza unívoca o comportamento futuro do objeto, partindo de suas coordenadas e de sua impulsão presentes. Entretanto, isso não é verdade. A essência do princípio de causalidade, na realidade, é o reconhecimento do fato de que todo fenômeno pode ser condicionado de forma causal e de que o laço de causa e de efeito é necessário. A previsão do comportamento futuro do objeto é a conseqüência do reflexo mais ou menos completo do laço de causa e efeito na consciência, assim como nas teorias elaboradas, e a evidenciação de toda uma série de momentos que marcam de forma suficientemente exata o estado inicial do objeto e o caráter de sua interação com o meio ambiente, no processo do movimento. A mecânica quântica, no estado atual de seu desenvolvimento, não dá nem um nem outro. É por isso que ela só pode exprimir, no momento atual, o laço de causa e efeito, no domínio do micromundo, sob a forma de lei estatística. Focalizamos aqui os pontos de vista que negam o caráter necessário do laço de causa e efeito no micromundo e constatamos que eles não resistem a uma análise . Mas, ao lado desse ponto de vista, há outros que negam completamente o laço necessário da causa e efeito e que o consideram contingente, mesmo no que concerne ao macromundo. Entre esses autores, encontramos particularmente Robert Havemann. Ele explica a tese do laço necessário de causa e efeito como uma sobrevivência do materialismo mecanicista. "No mecanicismo clássico, escreve ele, a causalidade designou a ligação como absolutamente necessária entre causa e efeito. Na concepção do mundo mecânico clássico, uma 23
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W. Heisenberg, Das Naturbild der heutigen Physik, Hamburgo, 1955, p. 28. P. Fevrier, Determinisme et indeterminisme, Paris, 1955, p. 9. 23
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causa, em condições correspondentes, só pode ter um efeito, ou seja, aquele que ela produz. Então, 'X engendra necessariamente Y'. Nessa fórmula, encontramos a antiga concepção materialista mecanicista da causalidade. Nossa concepção da causalidade deve ser outra... De uma causa nasce apenas um efeito, entretanto, cada causa pode ter várias possibilidades. E aquele dos efeitos possíveis que se manifesta é objetivamente contingente"25. Ele escreveu mais adiante que: "Se uma causa engendra um certo efeito sem necessidade e pode produzir toda uma série de efeitos diferentes, então um desses efeitos será sempre contingente"26. Assim, segundo Havemann, a causa está ligada a seu efeito de forma contingente, engendra-o, mas não poderia absolutamente engendrar um outro. A idéia do autor, segundo a qual uma mesma causa, em condições semelhantes, pode engendrar não apenas um efeito, mas uma grande quantidade de efeitos diversos, é inexata e contradiz o estado real das coisas. De fato, o hidrogênio reunido ao oxigênio na proporção de 2 por 1, em condições adequadas, sempre resulta em água; a água a 100°C e sob pressão normal transforma-se em vapor; um elétron que entra em interação, nas condições requeridas, engendra, com um pósitron, um par de fótons; um fuzil carregado sempre atira se pressionarmos o gatilho. Se, em um dos casos, o efeito esperado não se produz, por exemplo, se a água não ferve a 100°C, se um fuzil não dispara depois de apertado o gatilho, isso mostra não que o laço de causa e efeito é contingente, mas que uma das condições foi violada, que a causa necessária não agiu e que uma outra causa entrou em ação, produzindo um outro efeito, que não o esperado. Na análise desses casos, podemos desembaraçar a causa da nãorealização do efeito esperado e, assim, demonstrar o caráter necessário do laço de causa e efeito. Quando Havemann escreve que toda causa tem uma grande quantidade de possibilidades diferentes e pode engendrar uma série de efeitos, ele está identificando manifestamente a causa ao objeto, à coisa. O objeto (coisa, processo) tem R. Havemann, Dialektik ohne Dogma? Naturwissenschaft und Weltanschauung, Reinbeck, Hamburgo, 1964, p. 99-100. R. Havemann, op. cit., p. 86. 23
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efetivamente uma grande quantidade de possibilidades de mudanças e de transformações. Mas o objeto e a causa são coisas muito diferentes. A identificação da causa com o objeto caracteriza apenas o materialismo metafísico. O materialismo dialético não entende por causa o objeto, a coisa, mas a interação dos objetos, das coisas ou dos elementos e dos aspectos que formam o objeto, a coisa; e, por efeito, as mudanças surgidas nos corpos, nos elementos e nos aspectos em interação. Uma mesma interação, em condições apropriadas, não acarreta mudanças diferentes, mas apenas idênticas. Por exemplo, o hidrogênio, aquecido e sob a pressão de 5.000 atmosferas, mistura-se com o ozônio para formar o gás amoníaco ( N H 3 ) . O objeto pode efetivamente engendrar diferentes mudanças (efeitos), mas isso deve-se ao fato de que ele entra em diferentes interações. Assim, o hidrogênio em interação com o oxigênio forma a água, em interação com o flúor, produz o gás fluorídrico (HF), em interação com o cloro, produz o gás clorídrico, em interação com o carbono, a uma temperatura de 1400/1800°C, produz o etilênio ( C 2 H 4 ) e a uma temperatura superior a 1800°C, produz o acetileno (C2H2) etc. Embora em todos esses casos figure sempre uma mesma substância, o hidrogênio, as causas são nele diferentes. No primeiro exemplo, a causa é a interação do hidrogênio com o oxigênio, no segundo com o flúor, no terceiro com o cloro, no quarto com o carbono. Assim, embora cada objeto tenha a possibilidade de acarretar uma grande quantidade de efeitos diferentes, isso não significa absolutamente que todos esses efeitos serão engendrados por uma mesma causa. Cada um deles terá sua própria causa, ou seja, a interação concreta à qual está necessariamente ligado o aparecimento de um efeito preciso. A presença de uma grande quantidade de possibilidades diferentes nas formações materiais não exclui, portanto, o laço necessário de causa e efeito. Mas, se todo fenômeno está ligado a uma causa que o engendra, então a existência do contingente e do acaso não estaria sendo posta em dúvida? É precisamente com base nisso que os representantes do materialismo metafísico negavam a existência objetiva do acaso. O reconhecimento do caráter de necessidade de todo laço de causa e efeito acarreta a negação da existência objetiva da contingência somente quando permanecemos em posição no .240
materialismo mecanicista na compreensão da causalidade, isto é, quando entendemos por causas os próprios corpos, quando um corpo desempenha o papel de suporte da causa e um outro corpo é o suporte do efeito. Se, por causa, entendemos a interação dos corpos ou dos elementos que constituem um único e mesmo corpo, e por efeito, entendemos as mudanças que se produzem nos corpos ou nos elementos, em decorrência de sua interação, o reconhecimento do laço necessário de causa e efeito não conduz à negação da contingência. Com efeito, os corpos ou os elementos que os constituem podem entrar em interação, mas eles podem igualmente não o fazer; se eles entram em interação, essa acarretará necessariamente, neles, as mudanças correspondentes. Por exemplo, o hidrogênio pode ou não entrar em interação com o flúor, mas se ele entra nessa interação, a formação do ácido fluorídrico é inevitável, em condições apropriadas. Assim, a esfera de existência da contingência não é a correlação de causa e efeito, mas a dos elementos que causam a interação dos corpos e dos elementos que os constituem.
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IX. O NECESSÁRIO E O CONTINGENTE
1. OS CONCEITOS DE NECESSIDADE E DE CONTINGÊNCIA Há várias definições diferentes das categorias de necessário e de contingente. Robert Havemann esforça-se em tirar da dialética, da possibilidade e da realidade o conteúdo das categorias de "necessidade" e de "contingência". Seu raciocínio é o seguinte: quando, nos manuais teóricos falamos dessa ou daquela necessidade ou lei, descrevemos não o que é na realidade, não o que se passou, mas o que deve produzir-se de acordo com a lei. E não pode ser diferente, ele prossegue, porque apenas as possibilidades são definidas com necessidade. A transformação das possibilidades em realidade está ligada às contingências. Elas podem transformar-se em realidade e podem não se transformar. " ( . . . ) Se uma coisa é definida apenas como possível, segundo a lei e com a necessidade, ela só pode aparecer na realidade de forma contingente. Sendo apenas possível, ela pode aparecer ou não e, se ela aparece, isso se produz sem necessidade, somente de forma contingente*. A idéia segundo a qual a necessidade existe apenas como possibilidade é falsa, contradiz o estado real das coisas. Os aspectos e as ligações necessárias existem não somente na possibilidade, mas igualmente na realidade. A presença de oito prótons no núcleo atômico do oxigênio e de um próton no R. Havermann: Dialekik ohne Dogma? Weltanschauung, p. 90. 1
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Naturwissenschaft und
átomo do hidrogênio é inevitável, necessária não somente para os átomos do hidrogênio e do oxigênio que aparecerão, mas igualmente para aqueles que já apareceram e existem. É absolutamente a mesma coisa no que concerne às relações dos átomos de sódio e de cloro na molécula do sal de cozinha. Ê necessário para todas as moléculas do sal, tanto para as que existem atualmente, como para as que ainda não existem, mas que podem aparecer. Reunindo a realização da possibilidade necessária à contingência, Havemann deforma igualmente o conteúdo da categoria de "possibilidade", identificando-a à categoria de "contingente". Efetivamente, a possibilidade é definida por ele como o que pode ser e o que pode não ser. Mas esse traço específico não é o da possibilidade, e sim o da contingência. A possibilidade designa não o que pode surgir ou não, mas o que acontecerá em certas condições. O elo intermediário entre a possibilidade e a realidade não é a contingência, como pensa esse autor, mas as condições concretas. Se elas são reunidas, a possibilidade não pode deixar de se transformar em realidade, ela realiza-se necessariamente e torna-se realidade. Isso se produzirá em qualquer lugar e sempre, desde que haja possibilidade e as condições correspondentes. "Sabemos, diz F. Engels, salientando a inevitabilidade da realização dessa ou daquela possibilidade, quando do aparecimento de condições que lhe correspondem, que o cloro e o hidrogênio, em certos limites de temperatura e de pressão e sob a ação da luz, iuntam-se em uma explosão para formar o gás clorídrico e, tendo consciência disso, sabemos também que isso se dá sempre e em qualquer lugar, desde que as condições citadas estejam reunidas... " . Se a realização da possibilidade real, em presença das condições correspondentes, não fosse necessária, o homem não poderia organizar a produção, porque não conseguiria fazer com que certas ações produzissem mudanças rigorosamente determinadas. A existência e o desenvolvimento da produção, da atividade laboriosa dos homens demonstram que a possibilidade, em condições apropriadas, realiza-se com necessidade e que certas 2
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F. Engels, La dialectique de la nature, p. 236.
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.ações não produzem quaisquer mudanças, mas apenas aquelas muito precisas. Em outros termos, a atividade prática mostra a existência objetiva e real da necessidade. Os clássicos da filosofia marxista e, em particular, Engels, mais de uma vez chamaram a atenção para esse aspecto do problema. Criticando Hume, que acreditava que fosse impossível demonstrar a existência objetiva da necessidade, ele escreveu que: " ( . . . ) A prova da necessidade está na atividade humana, na experiência, no trabalho: se eu posso produzir o post hoc, ele torna-se idêntico ao propter hoc"3. Havemann ignora tudo isso e, fiel a seu ponto de vista, crê que a atividade prática dos homens não se fundamenta na necessidade, mas na contingência, na probabilidade, que exprime esse ou aquele grau de possibilidade de um acontecimento contingente determinado. Por isso a atividade prática e a vida humana, em geral, segundo ele, estão constantemente ligadas a algum risco, porque na prática o resultado esperado é contingente e não necessário, isto é, ele pode ter ou não ter lugar. Também o homem, antes de empreender uma ação, deve medir todas as chances que podem assegurar seu sucesso. Todas as pessoas são incapazes de determinar o grau de probabilidade do resultado de suas atividades, que é passivo e não ativo. "Nossa vida, salienta Havemann, é sempre um risco. A cada nova empreitada, esforçamo-nos numa estimativa de nossas chances. E há mesmo alguns que não chegam jamais a cometer qualquer ato, já que são incapazes de fazer as contas exatas de suas chances" . Se fosse efetivamente assim, como prevê o autor, se todos os homens baseassem sua atividade na contingência, no acaso, a sociedade humana teria deixado de existir em razão da impossibilidade de organizar a produção contínua dos bens materiais. Mas nada de semelhante a isso acontece, unicamente porque o homem, em sua atividade, apóia-se não no acaso, mas na necessidade, guia-se não pelo que pode acontecer ou deixar de acontecer, mas pelo que acontecerá necessariamente, sob certas condições. Certos autores identificam as categorias de "necessidade" 4
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F. Engels, La dialectique cit., p. 232. R. Havemann, op. cit., p. 100.
e de "contingente" às categorias de "geral" e de "singular". O geral, segundo eles, sempre tem um caráter necessário, pelo fato de que é determinado por leis internas, pela essência interna dos fenômenos. O singular, como manifestação do geral, depende das condições exteriores e por isso ele possui necessariamente aspectos contingentes. A idéia segundo a qual o geral, determinado por leis internas, pela essência interna dos fenômenos, é necessário, é uma idéia em si justa. Mas disso não se segue absolutamente que todo geral é necessário. O geral pode manifestar-se ao mesmo tempo sob a forma de necessário e sob a forma de contingente, porque a repetição é condicionada não apenas pela presença de uma grande quantidade de formações materiais, de fenômenos tendo uma essência comum, submetidos às mesmas leis internas, mas igualmente pelo fato de que as diferentes formações materiais, os diversos fenômenos surgem e existem freqüentemente em condições semelhantes, que imprimem neles suas impressões. Por exemplo, a análise de várias gotas de água pode mostrar em todas elas a presença do sal. Então, a presença deste, em todas as gotas de água, representa uma propriedade geral. Mas será essa uma propriedade necessária da água? É lógico que não, porque ela não decorre da natureza interna dos elementos que constituem a água, mas é condicionada por um concurso de circunstâncias e, em particular, pelo fato de que a água, antes de surgir da terra, transpôs uma camada salina. O fato de que a água tenha passado através dessa camada salina e tenha também dissolvido o sal é contingente, porque ela teria podido igualmente ter deixado de atravessá-la. Mas se o geral não é idêntico ao necessário, se ele pode existir tanto como contingente quanto como necessário, segue-se que o contingente também não é idêntico ao singular; A essência específica do singular consiste no fato de que ele é único, enquanto que o contingente, como vimos, pode-se repetir. Além disso, um traço específico do contingente é o de ser condicionado pelas circunstâncias exteriores, enquanto que o singular pode ser o efeito da interação dos aspectos internos, das tendências, da manifestação de leis internas do desenvolvimento desse ou daquele processo, de uma formação material. Por exemplo, a vitória da revolução socialista na Rússia, em .245
1917, há muito tempo constitui um fenômeno único, mas ela deve sua explosão não a causas exteriores, mas interiores; ela foi o efeito necessário do desenvolvimento de processos internos, o que explica que ela seja considerada como necessária e não como um fenômeno contingente. O necessário traz, portanto, em si mesmo a causa de seu aparecimento e de sua existência e também se produz, inevitavelmente, nas circunstâncias adequadas, enquanto que a razão de ser do contingente não está nele mesmo, mas em uma outra coisa . A definição das categorias de "necessário" e de "contingente", a partir da categoria de causalidade, é em nossa opinião, justa, porque os conceitos de "necessário" e de "contingente" estão geneticamente ligados à causalidade, decorrem dela e representam o grau seguinte, depois da causalidade, do aprofundamento do conhecimento humano do mundo dos fenômenos. 5
2.
A CRÍTICA DAS CONCEPÇÕES IDEALISTAS E METAFÍSICAS DA CORRELAÇÃO DA NECESSIDADE E DA CONTINGÊNCIA
O problema da necessidade e da contingência foi objeto de estudos filosóficos ao longo de toda a história da Filosofia e as soluções apresentadas para ele, pelos mais diferentes filósofos, são variadas. Os idealistas subjetivos negaram a existência objetiva da necessidade, que eles situavam unicamente na esfera da consciência, do pensamento. Por exemplo, o filósofo norte-americano Santayana tem uma concepção subjetivista da necessidade: ele não a vê na realidade objetiva. A realidade apresenta-se, para ele, como uma "corrente de contingência". Segundo seu ponto de vista, o que os homens consideram habitualmente como necessidade é "um complô de contingências" . Segundo o 6
G. W. F. Hegel, Werke. Vollständige Ausgabe, v. 6, p. 288. G. Satayana, The realm of matter, New York-Londres, 1930.
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filósofo inglês contemporâneo Wittgenstein, apenas as contingências existem no mundo. O sociólogo alemão-oriental Walter Theimer nega a necessidade na história. Segundo ele, várias contingências agem na história e excluem completamente o determinismo, assim como toda necessidade. É por isso, afirma ele, que tudo na vida depende das próprias pessoas, de sua vontade, de suas aspirações subjetivas . Günter Jacobi esforça-se bastante em sua argumentação sobre a ausência da necessidade na natureza. Segundo ele, os sistemas ontológicos e os elementos que os constituem são baseados uns nos outros. E são desprovidos de qualquer identidade de ligação. E sem essa identidade, nenhuma necessidade é concebível. Segundo Jacobi, a necessidade só pode ser lógica, psicocognitiva. Ela reside na sistemática lógica, na identidade do sistema dos conceitos mediante os quais esforçamo-nos para refletir e abarcar o sistema ontológicos. Johannes Hessen fundamenta à sua maneira a concepção idealista da necessidade. Ele faz dessa concepção um postulado, uma hipótese que os homens admitem como tese inicial para conhecer a realidade, mas aos quais nada corresponde na natureza. Seu raciocínio é o seguinte: os homens, em razão de sua organização particular, da natureza humana, não podem explicar o mundo a não ser mediante o reconhecimento das ligações necessárias de um fenômeno com outro. Mas a natureza não tem, absolutamente, nenhuma razão para conduzir-se da maneira como nos é conveniente, como nós lhe prescrevemos . Com uma tal concepção da realidade, o homem não poderia explicar nenhum dos fenômenos da realidade ambiente e muito menos poderia modificá-la no curso de sua atividade finalista, porque baseia-se na evidenciação de sua ligação necessária com sua causa e com outros fenômenos, e sua mudança orientada para uma meta precisa baseia-se nessas ligações necessárias e em sua utilização. A existência e a evolução da 7
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W. Theimer, Der Marxismus. Lehre-Wirkung-Kritik, Berna, 1957, p. 49-51. Bruno, Baron von Freitag-Löringhoff, Zum Problem des Zufalls, in Philosophia Naturalis, t. 2, v. 7, p. 163. J. Hessen, Das Kausalprinzip, Augsburg, 1928, p. 228. 7
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ciência e da produção testemunham, de forma evidente, que a necessidade existe na realidade e que ela é concebida e utilizada pelo homem com sucesso em suas ações. Contrariamente aos idealistas, os materialistas, como de regra, reconhecem a existência objetiva da necessidade e consideram-na como uma das propriedades fundamentais da natureza. Estando de acordo sobre a questão do reconhecimento do caráter objetivo da necessidade, os materialistas, entretanto, divergem fundamentalmente na resolução de outras questões e, em particular, no que concerne ao caráter objetivo da contingência. Alguns representantes do materialismo prémarxista, como Demócrito, Spinoza, Holbach, negavam totalmente a existência objetiva da contingência. Eles acreditavam que o homem inventou a contingência para disfarçar sua ignorância, sua falta de conhecimentos nesse ou naquele domínio dos fenômenos. Segundo Demócrito, os homens inventaram o mito do acaso para que servisse de pretexto para disfarçar sua própria inconseqüência. Spinoza dizia que: "Mas uma coisa só pode ser chamada de contingente relativamente à nossa falta de conhecimento" . Entre os filósofos burgueses contemporâneos, esse ponto de vista é desenvolvido pelo filósofo francês Henri Berr. Ele classifica o reconhecimento do acaso como uma "sobrevivência do antropomorfismo primitivo" . E acredita que essa sobrevivência encontra-se "exatamente quando o jogo da causalidade nos escapa, nós falamos facilmente do acaso como de coisa r e a l . . . " De fato, "o acaso é alguma coisa de puramente subjetiva, de relativa a nós, ao estado de nossos conhecimentos" . Segundo Berr, pelo fato de que não conhecemos um certo domínio da realidade, também não podemos prever, nesse domínio, o aparecimento desse ou daquele fenômeno e, então, inclinamo-nos a acreditar que esse fenômeno dado é contingente. Para ele o acaso não é mais do que um "capricho imprevisto" que desaparece com o desenvolvimento do conhecimento. 10
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Oeuvres de Spinoza, Ethique, Paris, 1872; t. 3, p. 187. " H . Berr La synthèse en histoire, Paris, Ed. Albin Michel, 1951, p. 57. H. Berr, op. cit., p. 57. 10
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O filósofo alemão Bruno Baron von Freitag-Lõringhoff declara igualmente que a contingência é o fruto da atividade consciente do homem. "Quando agimos de forma consciente e planificada, nós a provocamos inevitavelmente" - . Ligando o aparecimento do acaso à atividade consciente do homem, o autor a considera como o resultado do caráter limitado de nosso saber. "No quadro de nosso conhecimento, seja ele grande ou pequeno, ele declara, a categoria de "acaso" exprime de forma curta e insuficiente o caráter fundamentalmente limitado de toda explicação" . Para negar a existência objetiva da contingência, a maioria dos autores parte do caráter universal do princípio de causalidade. O seu raciocínio é o seguinte: todo fenômeno tem sua causa independentemente do fato de que nós a conheçamos ou não. A causa está sempre necessariamente ligada ao efeito. Sendo assim, não há fenômenos contingentes, eles são necessariamente engendrados por sua causa. A afirmação de que todos os fenômenos têm sua causa e de que toda causa está necessariamente ligada ao seu efeito é justa. Mas disso não decorre que eles sejam todos semelhantemente necessários. A necessidade desse ou daquele fenômeno ê condicionada não pela necessidade de sua ligação com a causa que o acarreta, mas pela necessidade da causa. E isso porque as causas podem ser necessárias ou contingentes. Sabemos que as causas dos fenômenos estão em interação entre as formações materiais ou, então, entre os elementos, os aspectos de uma mesma formação material. A interação das formações materiais ou de seus elementos, de seus aspectos, pode tanto ser contingente, isto é, devido a um concurso de circunstâncias, quanto necessária, em razão de sua natureza específica. Por exemplo, na sociedade capitalista, o fato de que o operário venda ao empregador sua força de trabalho e de que este seja explorado pelo último não é nem contingente, nem devido a um concurso de circunstâncias exteriores, é necessário: isso ê necessariamente condicionado pelo modo de produção dominante na sociedade capitalista e pela situação econômica do proletariado e da burguesia, que é de1 3
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"Bruno Baron von Freitag-Lõringhoff, op. cit., p. 166. "Bruno Baron von Freitag-Lõringhoff, op. cit.
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terminada por esse modo de produção, isto é, pela própria natureza dos aspectos em interação; e o fato de que o operário trabalhe justamente para esse capitalista e justamente com esses operários, e não com outros, é um fenômeno (momento) contingente condicionado por uma série de circunstâncias exteriores. O caráter necessário da correlação da causa e do efeito não exclui, portanto, a possibilidade da existência objetiva da contingência, forma universal do ser, assim como a necessidade. Somente que, ao contrário da necessidade, que se manifesta no domínio da correlação dos elementos que constituem as causas e no domínio do laço das causas com seus efeitos, a contingência manifesta-se apenas no domínio das causas, no domínio da interação das formações materiais (e nas formações materiais), acarretando as mudanças correspondentes. 3.
A CONCEPÇÃO MARXISTA DA CORRELAÇÃO DO NECESSÁRIO E DO CONTINGENTE
A necessidade e a contingência não existem de forma separada, uma ao lado da outra. Elas encontram-se em ligação orgânica e em interdependência e pertencem aos mesmos fenômenos. Cada fenômeno, cada formação material é, ao mesmo tempo, necessário e contingente. Algumas de suas propriedades e ligações são condicionadas pelas causas internas e traduzem a natureza de seus elementos formadores, outras são condicionadas por suas causas externas, por sim interação com o meio ambiente. Por exemplo, cada organismo vivo, no decorrer de seu desenvolvimento e de sua existência, manifesta uma série de propriedades que o caracterizam como representante de uma certa espécie. Essas propriedades são condicionadas por sua natureza, por seus aspectos e ligações internos e são também programadas neles e constituem o necessário. Por outro lado, surgem nesse organismo vivo, propriedades quç são engendradas, pelas condições individuais de sua existência, por sua interação com outras formações materiais e com o meio ambiente. Elas formam o contingente. As propriedades necessárias do organismo vivo existem nele, não ao lado das propriedades contingentes, mas nelas mesmas, e manifestam-se .250
por meio delas. As propriedades e as ligações contingentes são uma forma de manifestação das propriedades e das ligações necessárias. A necessidade cria seu caminho por meio de uma massa de desvios contingentes que, exprimindo-a como uma tendência, introduzem no processo o fenômeno concreto, e uma grande quantidade de novos elementos que não decorrem da necessidade, mas que são condicionados por circunstâncias exteriores. Por exemplo, a dependência do preço da mercadoria da quantidade de trabalho socialmente necessária, gasta para produzi-la, existe não ao lado da dependência do preço com relação a outros fatores e, em particular, com relação à correlação entre a oferta e a procura existentes no mercado, mas manifesta-se nela, sob a forma de tendência, mediante uma grande quantidade de desvios nesse ou naquele sentido, que acompanham as operações de trocas. Pelo fato de que a necessidade é condicionada pela natureza da coisa e realiza-se necessariamente, enquanto a contingência é chamada à vida por circunstâncias exteriores e pode dar-se ou não, na prática, não devemos orientar-nos pela contingência, mas sim pelas propriedades e ligações necessárias. Segue-se igualmente que o conhecimento da necessidade é uma tarefa fundamental da ciência. Mas, como o necessário não existe no estado puro e se manifesta mediante uma grande quantidade de desvios contingentes, seu conhecimento só é possível por meio do estudo do contingente e a colocação em evidência, nele, das tendências necessárias. A contingência, sendo uma forma da manifestação da necessidade é, ao mesmo tempo, seu complemento, porque ela encerra não somente a natureza específica da formação material estudada, mas igualmente as particularidades de outras formações materiais com as quais ela entra em interação. Encontrando-se em correlação orgânica e em interdependência, o contingente e o necessário passam um no outro no curso do movimento e do desenvolvimento da formação material, do fenômeno, e mudam de lugar: o contingente torna-se necessário e o necessário, contingente. A passagem recíproca do contingente no necessário, e vice-versa, no curso do desenvolvimento da matéria, pode ser claramente observada quando da análise das mudanças das formas animais e vegetais. Como testemunha, a Biologia, em um passado distante, os organismos vivos existiam e desenvol.251
viam-se apenas na água. Mas, quando os mares secaram, os animais aquáticos tiveram, cada vez mais freqüentemente, de viver em terra firme e algumas espécies de peixes, sob a forma de desvios contingentes, foram dotados de órgãos que permitiam que usassem o oxigênio do ar. Esses desvios, que permitiram que os organismos vivos sobrevivessem em terra firme, desenvolveram-se e transformaram-se em órgãos capazes de absorver o oxigênio do ar. O resultado disso é que certos animais aquáticos adotaram um modo de vida terrestre; e, por essa razão, suas brânquias não tinham mais utilidade e desapareceram pouco a pouco, transformando-se em alguma coisa de contingente, totalmente desligadas da natureza interna das formações materiais em questão. Tomemos um outro exemplo. Na sociedade primitiva a economia natural imperava. Cada comunidade assegurava seus próprios meios de vida. Em conseqüência do baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas, tudo o que era produzido na comunidade era consumido. Nessas condições, a permuta de uma produção por outra produção era um fenômeno contingente. Mas, à medida que as forças produtivas desenvolveram-se, tornou-se possível a produção de bens materiais que excedessem o número necessário para assegurar a vida de seus produtores diretos, então, a permuta de uma produção contra a outra expandiu-se e, com o surgimento da propriedade privada, transformou-se em um momento necessário do modo de produção escravagista, surgido das ruínas do regime da comunidade primitiva. Assim, no processo de desenvolvimento, o contingente transforma-se em necessário e o necessário em contingente. Pelo fato de que o contingente pode transformar-se em necessário e o necessário em contingente, se conhecermos as condições em que essa passagem se efetua, poderemos recriá-las artificialmente e transformar as propriedades contingentes em necessárias e vice-versa, em função de interesses práticos.
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X. A LEI
1.
O CONCEITO DE LEI
Como já fizemos observar no capítulo precedente, a necessidade existe sob forma de propriedades e ligações dos fenômenos. Algumas relações e ligações necessárias são chamadas de lei. A lei é, portanto, o que se manifesta, necessariamente, nas condições apropriadas. Por exemplo, a lei do valor, que exprime a dependência do preço da mercadoria da quantidade de trabalho socialmente necessária para sua produção e que age necessariamente em qualquer lugar em que haja uma produção mercantil. Tomemos um outro exemplo: a lei física da dependência da resistência de um condutor e a composição de sua substância, seu comprimento e sua secção, que se manifesta necessariamente à cada passagem de corrente elétrica, porque ela depende da natureza da substância, da qual é fabricado o condutor, e das características objetivas que lhe são próprias. Indicando que a lei representa uma ligação necessária, ainda não definimos totalmente sua especificidade. Efetivamente, nem todas as ligações necessárias são leis. Por exemplo, ligações necessárias, singulares (individuais) não podem desempenhar o papel de leis. A lei é unicamente uma ligação necessária geral, isto é, uma ligação própria a vários fenômenos. Por exemplo, a lei do período de radioatividade, segundo a qual, em um certo intervalo de tempo, próprio a cada substância, a metade da substância decompõe-se, qualquer que seja a quantidade de substância considerada, manifesta-se não em um processo radioativo qualquer, mas em todos os processos análogos, e é própria a todas as substâncias radioativas, isto é, 253
Zfíseu Savérío Sposito
uma ligação geral. Isso concerne a qualquer lei da natureza, da sociedade e do pensamento. Sendo uma ligação geral e iterativa, a lei é, ao mesmo tempo, uma ligação estável. Ela existe enquanto dura a forma do movimento da matéria (ou de um estágio dado de seu desenvolvimento) ou do pensamento e permanece enquanto existem os fenômenos que representam essa forma de movimento. Por exemplo, a lei do condicionamento da consciência dos homens, por seu ser social, surgiu com o nascimento da sociedade humana e existirá enquanto esta última existir. Um outro exemplo: a lei do valor entrou em ação com o desmoronar da comunidade primitiva e permaneceu efetiva nas sociedades escravagista e feudal, é ainda efetiva na sociedade capitalista e continua a existir inclusive nas condições do socialismo. Essa lei só será afastada com a construção do comunismo no mundo inteiro, quando a necessidade da produção mercantil tiver desaparecido completamente. 2. AS LEIS DINÂMICAS E ESTATÍSTICAS Manifestando-se como ligações (relações), as leis aparecem em uma grande quantidade de fenômenos. Entretanto, a forma de sua manifestação varia. Algumas leis agem em cada um dos fenômenos (ou formações materiais) que representam esse ou aquele domínio da realidade, enquanto que outras agem apenas na massa dos fenômenos. As primeiras leis, habitualmente, são denominadas leis dinâmicas, e as segundas, leis estatísticas. Como exemplo de leis dinâmicas, podemos citar a lei de Ohm, que exprime a dependência da resistência do condutor, da composição de sua substância, da superfície de sua secção e de seu comprimento. Essa lei concerne uma grande quantidade de condutores diferentes e age em cada condutor particular. Um outro exemplo de lei dinâmica pode ser fornecido pelo laço descoberto por Faraday entre a substância que aparece nos elétrodos e a eletricidade que atravessa o eletrólito, essa lei exprime a dependência proporcional da massa da substância descarregada sobre o elétrodo e da quantidade de eletricidade que atravessou o eletrólito. Essa lei é uma característica de .254
todos os casos de passagem da corrente através de um eletrólito e manifesta-se em cada um deles. A correlação das mudanças de pressão do gás e seu volume a uma temperatura constante, evidenciada por Mariotte e Boyle, tem um caráter estatístico. Essa lei é concernente apenas à massa das moléculas que se deslocam de maneira caótica e que constituem esse ou aquele volume do gás. Uma molécula isolada não é submetida a essa lei. Entretanto, chocando-se com outras moléculas, a molécula modifica a direção de seu movimento e sua velocidade. Em conseqüência, a força com a qual essa ou aquela molécula de gás atinge a parede do recipiente é contingente, depende de uma quantidade infinita de circunstâncias. Mas, mediante essas inúmeras mudanças da velocidade do movimento e, portanto, da força de impacto sobre a parede do recipiente das diferentes moléculas que constituem esse volume, nasce uma lei determinada: a pressão do gás é inversamente proporcional a seu volume. As leis da mecânica quântica, relacionando-se com o movimento das micropartículas são igualmente estatísticas; não podem definir o movimento de cada uma das partículas, mas determinam o movimento dos grupos de partículas dessa ou daquela multiplicidade. As leis dinâmicas têm a particularidade distintiva de permitir a previsão, de forma bastante precisa, do surgimento do fenômeno correspondente e a modificação de suas propriedades e estados. Por exemplo, apoiando-se na lei da dependência proporcional da massa da substância que se desprende sobre o elétrodo com relação à quantidade de eletricidade que atravessa o eletrólito, podemos prever com exatidão a quantidade de substância que será desprendida em um caso preciso. Ao contrário das leis dinâmicas, as leis estatísticas não permitem que se preveja com exatidão, o aparecimento ou o não-aparecimento de algo denominado concreto, nem a direção e o caráter da mudança dessas ou daquelas de suas características. Baseados nas leis estatísticas, não podemos definir o grau de probabilidade, nem o do surgimento ou da modificação do fenômeno correspondente.
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3. AS LEIS GERAIS E AS ESPECIFICAS, SUA RELAÇÃO Embora todas as leis sejam ligações (relações) gerais, nem todas agem nos mesmos círculos de fenômenos. Algumas dentre elas abarcam um grande círculo de coisas e, outras, um círculo mais restrito. As leis que agem em um grande círculo de fenômenos são, com relação às leis que agem em um círculo mais restrito, leis gerais, enquanto que as segundas são as leis específicas ou particulares. Por exemplo, a lei da dependência das propriedades dos elementos químicos, em relação à carga do núcleo atômico, que é aplicada a todos os elementos químicos, é geral em relação à lei do deslocamento de Soddy-Fajans, que concerne unicamente aos elementos radioativos. O conceito de lei geral e, em conseqüência, o de lei particular são relativos. Uma mesma lei, em diferentes condições, pode ser geral ou particular. Com relação à lei que é concernente a um grande círculo de fenômenos, esta será particular, e com relação à lei que age em um círculo mais restrito, esta será geral. Por exemplo, a lei do valor, com relação à lei da correspondência do caráter das relações de produção ao nível de desenvolvimento das forças produtivas, é particular, pelo fato de que ela não age em todas as sociedades, como a primeira, mas apenas onde existe uma produção mercantil. Mas, em relação à lei da mais valia, ela é geral, pelo fato de que essa última manifesta-se em um círculo mais restrito de fenômenos: a ação da lei da mais valia está ligada não a toda a produção mercantil, mas somente à produção mercantil capitalista. Ao lado dessas leis que, em função de relações concretas, podem agir como gerais ou como particulares, há outras leis que, sob qualquer relação, são gerais. Essas leis são chamadas universais. E são próprias a todos os domínios da realidade. Em relação a elas, todas as outras leis são particulares, pelo fato de que elas só estão ligadas a alguns domínios da realidade. As leis universais são estudadas pela Filosofia. E as leis ligadas a essa ou àquela forma de movimento, de matéria, são estudadas pelas ciências particulares. .256
Como agem as leis particulares e as leis gerais? As leis gerais podem agir de forma autônoma e manifestar-se por meio das leis particulares quando tanto umas, quanto as outras são concernentes às mesmas ligações (relações). Quando as leis gerais e particulares concernem a ligações diferentes (relações), elas agem e existem lado a lado. Tomemos como exemplo a lei do deslocamento de SoddyFaians. Segundo essa lei, um átomo de um elemento radioativo, submetido a uma desagregação, sofre as seguintes transformações: pela emisssão de uma partícula alfa, a carga do núcleo do elemento inicial diminui de duas unidades. Em conseqüência, o elemento é deslocado duas colunas à esquerda, no quadro periódico dos elementos, em relação ao elemento inicial. Com a emissão de uma partícula beta, aparece um novo elemento, que é deslocado de uma coluna à direita, em relação ao elemento inicial, de acordo com o aumento da carga do núcleo e em conseqüência do aumento de uma unidade no número atômico. Essa lei, sendo geral, existe mediante as leis esoecíficas, seu conteúdo constitui apenas um momento ou um aspecto do conteúdo das leis específicas. Por exemplo, o rádio, quando desagrega-se, transforma-se em radônio. É uma lei específica para o rádio. Ela fixa a transformação do rádio em radônio. Mas um dos momentos dessa transformação é o deslocamento de duas colunas à esquerda no quadro periódico. Esse momento, o deslocamento de duas colunas à esquerda, é repetido por todos os outros elementos radioativos, quando da emissão de uma partícula alfa pelos núcleos de seus átomos. Outros momentos, como, por exemplo, a transformação, quando da desagregação alfa, do rádio precisamente em radônio, e não em um outro elemento químico qualquer, não se repetem entre todos os outros elementos radioativos, eles são próprios unicamente aos átomos do rádio. O urânio nos fornece um exemplo análogo. Quando da desagregação alfa, o urânio transformase em tório que se encontra, por sua vez, duas colunas mais à esquerda, no quadro periódico, isto é, o tório possui uma carga atômica duas unidades inferior à do urânio. A transformação em tório é uma lei válida unicamente para o urânio, mas, na qualidade de momento no conteúdo dessa lei, encontramos o deslocamento de duas colunas à esquerda, que é comum a todos os elementos radioativos. .257
Essa manifestação da lei geral por meio das leis específicas não se deve ao acaso: ela é concernente à mesma ligação da mesma relação. Outro exemplo: a lei geral da constância da composição química age por meio de leis particulares que indicam quais os elementos e em qual correlação constituem essas ou aquelas associações (combinações). Isso se produz porque a primeira e as segundas concernem às mesmas ligações, às mesmas relações. Descobrimos também outra coisa na correlação da lei geral de Mariotte-Boyle, concernente a todos os gases ideais e que indica que, para uma massa dada, à temperatura constante, a pressão do gás é inversamente proporcional a seu volume, e descobrimos também que a lei particular de Dalton, que se relaciona não a todos os gases ideais, mas unicamente àqueles que estão presentes na mistura com outros gases ideais, determina a ligação entre a pressão particular do gás constituinte dessa mistura. Essas duas leis existem lado a lado, mas seu conteúdo absolutamente não coincide. Aqui, as leis gerais e particulares são concernentes às diferentes relações e ligações. Se a primeira lei, a de MariotteBoyle, caracteriza a correlação entre a pressão e o volume do gás em condições determinadas, a segunda, a de Dalton, define a correlação entre a pressão geral da mistura e a pressão particular dos diferentes gases que constituem essa mistura. Encontramos uma situação análoga a essa na correlação da lei da correspondência do caráter das relações de produção com o nível do desenvolvimento das forças produtivas (lei geral) e a lei fundamental econômica do socialismo que exige a satisfação máxima das necessidades materiais e culturais dos homens, graças ao desenvolvimento da produção socialista, baseada em uma técnica altamente desenvolvida (lei particular). A primeira caracteriza o laço entre o nível de desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção, e a segunda, o laço entre o crescimento contínuo da produção e as necessidades dos homens. O conteúdo da primeira lei indica a necessidade de mudar as relações de produção na medida em que se processa o desenvolvimento das forças produtivas, o conteúdo da segunda indica a finalidade da produção e os meios de atingi-la. No que concerne às diferentes relações e ligações, essas leis não podem manifestar-se uma por meio da outra e agem de forma totalmente autônoma, uma ao lado da outra. .258
Embora autônomas, não estão isoladas, mas, pelo contrário, estão organicamente ligadas; essa interdependência distingue-se, entretanto, radicalmente da manifestação de algumas leis por meio de outras. A correlação que examinamos aqui, entre leis gerais e específicas, decorre das leis universais do desenvolvimento da matéria. No processo do desenvolvimento realiza-se a negação de algumas formações materiais e o aparecimento de outras que representam um grau mais elevado. Toda formação material de um estágio mais elevado de desenvolvimento inclui, sob uma forma anulada (transformada), o que era próprio à formação de um estágio inferior de desenvolvimento, isto é, retém tudo o que era positivo, tudo o que foi obtido pela matéria em sua evolução anterior. Mas, ao lado disso, entre as formações materiais de um estágio mais elevado de evolução, aparecem novas propriedades específicas que provêm do aparecimento de novos modos de interação, de ligações e de relações novas. Por exemplo, quando da passagem do átomo à molécula, esta última, retendo tudo o que era condicionado pela interação das partículas "elementares", que constituem esse átomo, adquire novas propriedades específicas, condicionadas pelas novas relações, pelo novo modo de interação — interação dos átomos entre si. Quando da passagem das formas de vida não celular para os organismos celulares, estes últimos conservam algumas relações e ligações próprias aos primeiros e, ao mesmo tempo, formam um novo sistema de ligações e de relações. A mesma coisa acontece quando da passagem, na sociedade, de uma formação econômica a outra. Mas, pelo fato de que, quando da passagem da matéria de um estágio de desenvolvimento a outro, relações e ligações novas aparecem nas novas formações materiais, ao lado das antigas leis que agiam nas formações materiais dos estágios inferiores de desenvolvimento, leis específicas novas também entram em jogo, com o nascimento de novas ligações e relações específicas. Assim, na molécula, ao lado das leis que regiam a relação das partículas "elementares", que constituíam os átomos, começam a agir novas leis que regem a relação dos átomos. Na sociedade socialista, ao lado de certas leis próprias às formações precedentes (leis da correspondência das relações de produção, no nível do desenvolvimento das forças produtivas, leis da produção em expansão etc.), começam a agir novas .259
leis (lei fundamental do socialismo, lei da distribuição social, segundo o trabalho etc.). Essas novas leis são específicas em relação às antigas leis, que passaram para as novas formações materiais com as antigas relações e ligações que sobreviveram. As antigas leis são gerais, pelo fato de que as primeiras agem unicamente nas formações materiais que representam o grau superior dado do desenvolvimento, enquanto que as segundas agem, além disso, nas formações materiais de todos os estágios inferiores do desenvolvimento. Sendo específicas, essas novas leis não podem ser a forma de manifestação das leis antigas, porque regem relações qualitativamente novas, que refletem o novo grau, mais elevado de desenvolvimento de uma classe dada de fenômenos. Consideramos, aqui, a relação das leis gerais e específicas estudadas pelas ciências particulares. Mas o que acontece na correlação das leis da dialética e das leis das ciências particulares? As leis da dialética são universais e só se manifestam por meio de outras leis que são particulares em relação a elas. Por exemplo, a lei da passagem das mudanças quantitativas para as qualitativas não se manifesta fora das leis particulares, concretas, da correlação das mudanças qualitativas e quantitativas, próprias às formas concretas do movimento da matéria e aos fenômenos concretos, mas age somente por meio deles. A lei da unidade e da luta dos contrários comporta-se de forma análoga. Agindo em cada fenômeno concreto, ela manifestase por meio das leis gerais e específicas que caracterizam a unidade e a luta dos aspectos opostos desse fenômeno. E o mesmo acontece com outras leis gerais que a filosofia marxista estuda. As leis da dialética manifestam-se por meio das leis particulares e específicas e estão organicamente ligadas com todo seu conteúdo, mas elas têm, entretanto, seu conteúdo particular, que permite que se diga que elas são leis autônomas. Seu conteúdo particular é precisamente o que se repete em todas as leis e processos particulares correspondentes. O que é específico, particular para cada domínio concreto em que se manifesta essa ou aquela lei da dialética, não entra no conteúdo da lei universal. Analisando a lei da negação da negação, Engels escreveu que: " ( . . . ) Eu não digo absolutamente nada do processo de desenvolvimento particular seguido, por exemplo, pelo grão de cevada, desde a germinação até o enfraquecimento da planta .260
que traz o fruto, quando digo que ele é a negação da negação. Com efeito... o cálculo diferencial é igualmente negação da negação... Se eu disser de todos esses processos que eles são a negação da negação, estou entendendo-os todos conjuntamente, sob essa única lei do movimento e, por esse fato, não levo precisamente em conta as particularidades de cada processo especial, tomado à parte" . O particular (específico), o que caracteriza esse ou aquele processo concreto, constitui precisamente o conteúdo fundamental das leis específicas, particulares. É exatamente por isso que o conhecimento dessa ou daquela lei da dialética, é insuficiente para orientar esse ou aquele processo concreto. É preciso, antes de tudo, conhecer as leis específicas, particulares, que regem o processo concreto dado. Assim, as leis da dialética, sendo leis universais, agem em todas as esferas do movimento da matéria e têm seu conteúdo particular, que permite distingui-las das outras leis, menos gerais. Entretanto, elas não agem de forma autônoma, mas somente por meio de outras leis que são, em relação a elas, leis específicas. Aqui, podemos encontrar a mesma lógica: as leis gerais dadas manifestam-se por meio de outras, específicas, somente porque elas são concernentes às mesmas relações e ligações. Se as leis da dialética existem e se manifestam unicamente por meio de leis específicas estudadas pelas ciências concretas, o método geral de conhecimento e de ação elaborado a partir delas deve ser aplicado, em cada caso concreto, de forma particular e somente por meio de leis específicas que estão a seu serviço nos fenômenos estudados. O método elaborado a partir das leis gerais descobertas pelas ciências concretas só pode ser aplicado ao conhecimento de fenômenos nos quais essas leis gerais agem. Por exemplo, o método de conhecimento, elaborado com base na lei geral (para todas as formações econômicas e sociais) da correspondência do caráter das relações de produção e do nível de desenvolvimento das forças produtivas, ou com base na lei do papel determinante da base econômica em relação à superestrutura, não pode ser aplicado ao conhecimento das leis do desenvolvimento e do funcionamento da língua, porque essas leis gerais 1
"F. Engels, Anti-Dühring, p. 171-2.
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não