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Português Pages 322 Year 2011
A cidade no século xxi
Alvaro Ferreira
A cidade no século XXI Segregação e banalização do espaço
2ª edição atualizada
CONSEQUÊNCIA
© 2011 Alvaro Ferreira Direitos desta edição reservados à Editora Consequência
Rua Alcântara Machado, 36 sobreloja 210 Centro – Cep: 20.081-010 Rio de Janeiro – RJ Brasil Tel/Fax: (21) 2233-7935 [email protected] www.livrariaconsequencia.com.br
Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98). Coordenação editorial Editora Consequência Revisão Ana Lúcia Machado Capa, projeto gráfico e diagramação Letra e Imagem Fotos da capa Cláudia Schwanz Orfaliais Francisco Macedo cip-brasil. catalogação-na-fonte sindicato nacional dos editores de livros, rj F439c Ferreira, Alvaro, 1964A cidade do século XXI: segregação e banalização do espaço / Alvaro Ferreira. – Rio de Janeiro: Consequência, 2011. 324p. : il. ; 23cm Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-64433-01-4 1. Espaços públicos – Aspectos sociais. 2. Renovação urbana. 3. Segregação urbana. 4. Urbanização – Aspectos sociais. 5. Áreas portuárias. 6. Áreas portuárias – Rio de Janeiro (RJ). 7. Renovação urbana – Rio de Janeiro (RJ). 8. Planejamento urbano. 9. Sociologia urbana. I. Título. 11-2346.
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CDD: 307.76 CDU: 316.334.56 026035
Para Cláudia, a mulher da minha vida: um sonho que se tornou realidade; para minha filha Beatriz, que ilumina meus dias com sua felicidade.
O todo sem a parte não é todo, a parte sem o todo não é parte, mas se a parte o faz todo, sendo parte, não se diga, que é parte, sendo todo.
Gregório de Matos
Sumário
Agradecimentos ................................................................................................. 9 Prólogo, por Horacio Capel ............................................................................... 9 Introdução... ou tentando colocar as coisas no devido lugar ....................... 9 capítulo 1. A reestruturação produtiva e suas implicações nas cidades........................................................................... 17 A reestruturação produtiva: a morfologia interage com o momento histórico.................................................................41 As transformações das cidades: de uma economia baseada na indústria para outra ligada aos serviços?..................................................57 Implicações nas zonas portuárias e nas adjacentes áreas centrais ............73
capítulo 2. Políticas de desenvolvimento urbano e mudanças nas formas de administração urbana............................................................. 35 Os grupos sociais envolvidos na produção do espaço.................................89 O discurso do “empresariamento”na governança das cidades.................135
capítulo 3. Transformações cada vez mais homogeneizantes nas zonas portuárias das cidades: exemplos para o Rio de Janeiro?......................... 151 O pioneirismo dos Estados Unidos é seguido pelos países europeus......152 O “Modelo Barcelona”: produção a serviço do capital?.............................169 O início da reconstrução da cidade..............................................................171 A cidade e o mar: os Jogos Olímpicos de 1992............................................175 A última fronteira da frente marítima: o Fórum de las Culturas............179 As transformações nas zonas portuárias chegam ao hemisfério sul.......185 A produção do espaço: renovações / revitalizações ou homogeneizações?......................................................................................192
capítulo 4. A (re)produção do espaço urbano no Rio de Janeiro: entre projetos de revitalização para a zona portuária e (i)mobilismos............. 197 Mercadificação da cidade, city-marketing e a implementação do empresariamento na sua governança..................................................... 200 “Grandes projetos para a zona portuária” e a negociação entre as instâncias de governo e o empresariado........................................ 216 Quem dá ouvidos à população? Que fazem os movimentos sociais?...................................................................................233
Epílogo... ou em busca de aberturas e possibilidades ................................... 9 Posfácio, por João Rua ....................................................................................... 9 Referências .......................................................................................................... 9
Agradecimentos
Um livro é uma obra coletiva, por mais que tenha um único autor. De fato, apenas colocamos nestas páginas aquilo que construímos durante nossa vida através do estudo, da pesquisa, dos debates travados (tão importantes e necessários para o avanço de nossas elaborações), do cotidiano... São construções que trazem consigo valores e ideologias, por isso possíveis fragilidades, mas, simultaneamente, fortalezas, que se amparam no horizonte utópico da justiça social. Partindo do pressuposto segundo o qual o que importa na utopia é o que não é utópico, procuramos percorrer esse trajeto por meio de um encaminhamento teórico-metodológico forte, que nos afasta do discurso panfletário, mas, ao mesmo tempo, temos no real o elemento de partida e chegada para a pesquisa científica. Agradecimentos nominais são sempre muito complicados, pois corremos o risco de deixar de mencionar alguém, além de não sabermos o nome de outros tantos colaboradores que, mesmo sem perceber, com seus comentários em uma variedade de ambientes institucionais ou não, como as mesas redondas em congressos e simpósios, ou mesmo em conversas no Departamento de Geografia da PUC-Rio ou na FEBF-UERJ, e também as conversas informais com os moradores de vários bairros da cidade colaboraram bastante para a produção desta obra. Há pessoas, porém, cuja ajuda foi mais direta, seja academicamente, seja afetivamente. Cláudia, pelo amor, carinho, dedicação, eterno incentivo, pela (im)paciência... e por conseguir me aturar nos momentos finais de fechamento desta obra. Eu agradeço a você para além do que as palavras podem dizer; tenho profunda admiração pela sua força, ternura e beleza. Obrigado pelo seu amor e compreensão. Beatriz, minha princesinha, que – com seus doze aninhos – continua iluminando meus dias com seu amor, carinho, beleza, bom humor e com a sua música... ainda precisamos compor uma música juntos; meus pais queridos, que sempre me apoiaram e acreditaram em mim apesar dos percalços; Bruno, meu filho, que se encontra longe fisicamente, mas perto no coração; Horacio Ca 9
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pel, querido amigo, grande intelectual, ser humano generoso e de grande benevolência, de trato cativante, sempre disponível durante os meses em que estive em Barcelona, sempre fazendo comentários inteligentes e provocantes durante a leitura das primeiras versões desta obra, além de presentear-me com um belo prefácio; João Rua, grande amigo e exemplo de professor, que deu sempre o apoio necessário nos momentos de desespero, que dividiu comigo debates a propósito de questões metodológicas e que nunca deixou de acreditar em mim... é maravilhoso ser seu amigo e poder trabalhar com você, um presente que não tem preço, obrigado pelo importante posfácio; Regina Célia de Mattos, querida amiga, pela força, confiança e carinho – por trás dessa mulher forte e determinada há uma doçura que o brilho de seus olhos não consegue esconder; Sandra Lencioni, amiga querida, que foi um exemplo no que tange ao valor do rigor teórico-metodológico, e que soube, no decorrer desses anos, ser bastante dura em suas observações (quando julgou necessário) e também bastante acalentadora; Glaucio José Marafon, que esteve sempre por perto com sua amizade e apoio, incentivando cada passo meu; Ana Clara Torres Ribeiro, querida amiga, presença inspiradora, exemplo de brilhantismo, seriedade e ternura, uma verdadeira intelectual; Rainer Randolph, sempre disposto a ajudar e com quem tive a oportunidade de compartilhar excelentes debates à época do Grupo Telecidades, no IPPUR-UFRJ; Simone Fadel, amiga querida, um presente que encontrei na FEBF-UERJ, divertida e ao mesmo tempo uma máquina de trabalhar e de falar, obrigado por tudo... é muito bom ter pessoas que queremos bem por perto; Ana Fani Alessandri Carlos, cuja aproximação tem me rendido frutos no debate acerca do urbano, pena estar em São Paulo e eu, no Rio; Amélia Luisa Damiani, pela doçura, seriedade e tranquilidade; amigos e colegas do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da PUC-Rio, particularmente Augusto César Pinheiro (nos conhecemos na seleção para professor e somos bons companheiros); Marcelo “Mancha” Mota (companheiro da “Geografia Inumana”); Rogério Ribeiro de Oliveira (pelo total apoio, incentivo e por compartilhar alguns momentos de música com sua gaita); Josafá Carlos de Siqueira (SJ); Rita Montezuma (com suas espontâneas gargalhadas) e Felipe Guanaes; colegas e amigos do Departamento de Geografia da UERJ, particularmente Susana Miranda Pacheco, Gilmar Mascarenhas de Jesus, Zeny Rosendahl, João Batista Ferreira de Melo, Miguel Ângelo Ribeiro, Hindemburgo Pires, Monica Sampaio Macha-
Agradecimentos 11
do; colegas da FEBF-UERJ, particularmente Isabel Brasil, Sonia Mendes, Andréa Paula de Souza (companheira recente a quem quero muito bem), Aura Helena (grande apoio em horas complicadas), Frederico Irias e Leonardo Brasil Bueno (ex-alunos, ex-orientandos e atualmente colegas de trabalho), Luís Angelo Aracri; Roberto Lobato Corrêa, dedicou-me palavras de incentivo, fez várias sugestões bibliográficas e colocou-se à disposição para qualquer ajuda que se fizesse necessária; Gustavo Godinho, querido ex-aluno e orientando, que teve importante papel nas entrevistas realizadas junto aos moradores dos bairros da zona portuária; Nana Vasconcelos Orlandi, bolsista de iniciação científica, que participou de várias reuniões de membros das diversas associações existentes nos bairros da zona portuária, trazendo elementos importantes para a pesquisa; Rafael, “o Justo”, que, com sua destreza e boa vontade, teve importante papel na produção de alguns dos mapas desta obra; os alunos da PUC-Rio, do NEPEM e da UERJ, do NIESBF, pela oportunidade de troca de conhecimentos durante as aulas e pelos constantes desafios. Não posso deixar de agradecer a CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – que financiou minha estada em Barcelona durante o período de meu pós-doutoramento. Também contribuíram indiretamente John Coltrane, Thelonious Monk, Joshua Redman, Ravi Coltrane, Joe Lovano, Sonny Rollins, Miles Davis, Eric Alexander, Stan Getz, Chris Potter, Dayna Stephens, Cyrus Chestnut, Nicholas Payton, James Carter, Cama de Gato, Idriss Boudrioua (obrigado também por fazer a manutenção do meu Selmer), Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, principalmente, pela belíssima trilha jazzística que me acompanhou durante a leitura da literatura utilizada neste trabalho e que me inspiram nos momentos em que relaxo tocando meu saxofone; Pink Floyd, Genesis (fase do Peter Gabriel, é claro), Solar Project, Porcupine Tree, Spock’s Beard, Van der Graaf Generator, Camel, Wishbone Ash, Emerson, Lake & Palmer, Focus, Yes, Gentle Giant, Pär Lindh Project, Wurtemberg, Dagmar, Scythe, Quaterna Requiem, Bacamarte, Aether, Montauk Project, Pallas, entre outros “monstros” do rock progressivo, pela presença inspiradora de suas músicas durante toda a fase de redação desta obra. Enfim, a todos que, direta ou indiretamente, estiveram de alguma forma envolvidos nesse longo processo que está, sempre, apenas no começo...
Prefácio à 2ª edição… OU A CIDADE NO SÉCULO XXI E AS MOBILIZAÇÕES QUE VARRERAM O PAÍS E O MUNDO…
Depois de dois anos da publicação da primeira edição deste livro, os editores solicitaram-me que revisse os originais e pensasse em uma edição revista e ampliada. Em um primeiro momento, manifestei-me contrariamente, até porque a obra foi publicada em 2011, então o que justificaria tal proposta? O livro continua atual, o vigor teórico-metodológico continua contribuindo para a explicação do real e para desafiar-nos no esforço de transformar o estado de coisas atual, entretanto algumas mudanças no projeto Porto Maravilha levou-nos a fazer alguns ajustes no Capítulo 4, intitulado “A (re)produção do espaço urbano no Rio de Janeiro: entre projetos de revitalização para a zona portuária e (i)mobilismos”. Analisar um processo de transformação que se encontra ainda em curso, evidentemente traz em si esse risco, mas fugir do debate por tal receio também é terrível. Poderíamos, ainda, acrescentar o debate acerca do projeto de implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que foi pensado para circular na área central da cidade, incluindo o núcleo central e parte da zona periférica do centro. Projeto que, definitivamente, não é mal; que sendo colocado em curso, em muito facilitaria a circulação nessa área, principalmente se vinculado a outros modais de transporte, como metrô, trem e ônibus. Mas não aprofundaremos tal discussão. Aliás, há na Internet inúmeras propostas de projetos de expansão das linhas de metrô. Inúmeros grupos que debatem e propõem soluções de altíssimo nível, propondo verdadeira malha metroviária, com conexões com sistema VLT, ônibus, trens e barcas. As esferas administrativas deveriam estar mais atentas a isso, pois há definitivamente propostas completíssimas, mapeadas, com definição de estações e de conexões. Evidentemente, estudos ao que se refere a custos devem ser realizados por quem de direito. 12
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Fazer opção pelo sistema Bus Rapid Transit (BRT) com a desculpa de que o metrô sairia de 10 a 15 vezes mais caro é inaceitável. O investimento na construção de uma rede metroviária é trabalho de vários governos e permite sua expansão permanente, seguindo os eixos de crescimento da cidade. Em médio e longo prazo não é mais caro, e, além disso, não podemos pensar na melhoria de vida e de mobilidade do cidadão como custo! Debate sobre este tema é desenvolvido no Capítulo 4 e nas Considerações Finais (Aberturas e possibilidades...). Pensando em aberturas e possibilidades, não há como passar ao largo das inúmeras mobilizações que varreram o mundo e mais especificamente o Brasil e o Rio de Janeiro. Não há dúvidas, a população foi para a rua e isso deixou os governantes, a mídia, os empresários e a própria academia surpresos e desnorteados. Estávamos acostumados a dizer que o povo não se indignava com nada, que a juventude era extremamente acomodada e individualista; e, de repente, milhares de pessoas se aglomeraram nas ruas pressionando os governos por mudanças objetivas e também de conduta. Alguns tentaram qualificar as mobilizações como mais uma festa, em que a consciência política passava ao largo. Outros mais sonhadores chegaram a imaginar uma grande revolução... Acreditamos que não se trata de uma coisa ou de outra, ao menos no que se refere à maneira segundo a qual se via e definia os antigos movimentos sociais. Todavia, não resta dúvida que se pôs em questão as relações de poder, o autoritarismo, a prepotência dos governantes, o pouco caso com a dignidade da população no que se refere aos serviços a ela prestados, seja pelos órgãos públicos ou pelas empresas de transporte público, por exemplo. E, parafraseando as palavras bradadas nas manifestações, não é só por causa dos R$0,20!!! Trata-se de uma reivindicação maior... Ver a importância da dimensão do corpo na rua, ocupando o espaço – agora verdadeiramente público – que é de todos, foi emocionante! Agora parece que entendemos que as redes sociais podem ajudar, mas a verdadeira mobilização obriga-nos a ocupar a rua... a rua como lugar do encontro... a rua como lugar do debate... a rua como lugar da transformação... Evidentemente, os R$0,20 são um elemento, a indignação é muito maior! Bilhões gastos em obras e projetos que não serão utilizados pela maior parte da população, pouco caso com a saúde pública, com a educação e com a qualidade dos transportes públicos...
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Os atos de quebra-quebra ocorridos são parte do processo... Não há como controlar... eram 100.000, 200.000, 500.000 pessoas!!! Estamos certos de que a transformação passa pela mobilização da população e temos deixado claro que não estamos satisfeitos com as instituições públicas, com os partidos políticos, com os sindicatos e as associações. Lembrou-nos o filósofo francês Henri Lefebvre, pouco depois das manifestações ocorridas na França em maio de 1968, que a revolução urbana não tem como pressuposto ações violentas, mas não as exclui; “como separar antecipadamente o que se pode alcançar pela ação violenta e o que se pode produzir por uma ação racional? Não seria próprio da violência desencadear-se? E próprio do pensamento reduzir a violência ao mínimo, começando por destruir os grilhões no pensamento?” Tomar consciência é o primeiro passo; estou feliz e esperançoso... E me emocionou ouvir na universidade um aluno dizer que eles iriam transformar em ato aquilo que aprendiam na sala de aula... O impossível está se tornando possível... Não há dúvida de que quando os manifestantes se colocam tão fortemente contra os partidos políticos, isso é sinal de que não se sentem representados por eles. É preciso que os partidos se repensem... Ainda assim, nada justifica tamanha intolerância a ponto de agredirem os membros dos partidos que estavam ali presentes (que prontamente revidaram as agressões). Os manifestantes, segundo diziam, indignaram-se com o oportunismo desses partidos em participar das passeatas, entretanto alguns desses partidos têm longa história de mobilizações. Ademais, o oportunismo sempre fez parte da sociedade, isso não é nenhuma novidade. Aliás, os saques que têm acontecido também são exemplos de oportunismo... O quebra-quebra é algo que acaba fazendo parte do processo... Ruim?! Bom?! Exagero?! É parte do processo... Os ataques a determinados locais, como a ALERJ e a Prefeitura, têm um caráter específico: “um prédio é um símbolo, assim como destruí-lo também é”... dizia o personagem V (dos quadrinhos e que posteriormente virou filme), cuja máscara foi usada por grande número de manifestantes. Agora estão culpando parte da população pela manifestação violenta, pelo quebra-quebra, mas quem começou tudo isso? Foram nossos dirigentes, políticos, empresários oportunistas (que financiam campanhas e esperam “colher” os lucros depois), os sindicatos, associações
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etc. Ao desrespeitar a população com seu pouco caso, com as falcatruas, com os oportunismos e a corrupção generalizada, com a falta de ideologia partidária, com seus altos salários, com o descolamento do cidadão, eles acabaram empurrando a população para as ruas. Evidentemente, com as manifestações pacíficas vieram também o quebra-quebra, os exageros e os oportunistas com saques e destruição... Mas eles também foram empurrados para a rua... Mas estamos falando, ainda assim, da apropriação do espaço, da valorização do uso do espaço público, do estar juntos na luta, mesmo com diferenças, com diferentes visões de mundo. É preciso termos cuidado ao criticar a postura da juventude que foi à rua, cobrar dela uma maior envergadura política, pois tal construção faz, também, parte do processo. É a maturidade intelectual que permite compreender que somos seres políticos e isso independe da política institucionalizada. A política não se limita ao que fazem os políticos eleitos, diz respeito à atividade do cidadão quando intervém nos assuntos públicos com sua opinião, voto ou por qualquer outra forma de manifestação. O poder é multidimensional, visto que as relações sociais são relações de poder. Se acrescentarmos a esta afirmação o fato de serem as relações sociais também relações espaciais, o grau de complexidade torna-se ainda maior. Não há dúvida: onde há poder há também resistências. Melhor seria pensarmos em movimentos que em sua luta levassem em conta o curto, médio e longo prazo em suas reivindicações pelo direito à cidade. Entretanto, a mobilização acaba se dando no âmbito da opção, ainda que inconsciente, pelo direito à cidade “real” (ou àquela que nos é vendida como sendo a cidade real – o que não deixa de ser uma alienação!), em que a urgência liga-se às questões da sobrevivência e da falta de tempo, em vez de optar pelo direito à cidade enquanto obra, em que buscaríamos alcançar a concretização de resultados que refletiriam uma cidade mais justa e mais humanizada. É no lugar que optamos por adaptar-nos ao que é imposto ou procuramos subverter o jogo, buscar outras intencionalidades que não as hegemônicas. Acreditamos ser necessário escapar da tendência a hierarquizar as mobilizações, acreditando em determinados grupos (movimentos sociais), dando menos crédito aos ativismos e simplesmente quase ignorando outras formas de mobilizações. Atualmente, tendo a trabalhar
com mobilizações. Evidentemente, há uma grande produção bibliográfica acerca dos movimentos sociais – principalmente aqueles ligados à segunda metade do século XX –, contudo, é preciso entender essas mobilizações e este momento. Caso contrário, os conceitos e teorias que utilizamos podem servir como cegantes e não como iluminadores. Precisamos valorizar os contextos da ação, vínculos sociais, vivências e experiências. Não podemos renegar o pequeno, o fugaz, que pode ser de grande importância por constituir-se na única resistência possível, ou mesmo o residual. Talvez seja o momento de valorizarmos mais as divergências que o consenso, principalmente um consenso cada vez mais produzido artificialmente, cada vez mais consenso publicitário. Acho que já me alonguei demais neste prefácio, entretanto isso tudo nos coloca aberturas e possibilidades... e sabemos que “não há certezas, apenas oportunidades”... Entretanto, mais à frente teremos que construir canais de diálogo que terão de incluir também verticalidades e não apenas horizontalidades... Mesmo a auto-gestão não prescinde do Estado e de legisladores... É preciso trabalhar pelo esvanecimento do Estado através da cada vez maior participação... “O povo não deve temer seu governo, é o governo que deve temer seu povo!” Trata-se do desejo de construir outra cidade, em que o direito à cidade se realize em plenitude, em que não apenas se possa sobreviver, mas viver... viver plenamente! Rio de Janeiro, 1º de outubro de 2013.
PRÓLOGO As cidades, o consumo e o crescimento de soma zero
Horacio Capel1
Este livro oferece mais do que anuncia o seu título. Permite aproximar-se das transformações por que passam o Rio de Janeiro e seu porto, mas também as do espaço urbano em geral e da realidade concreta das metamorfoses que se estão produzindo nas grandes metrópoles e nas áreas portuárias. É o resultado de extensiva leitura de procedência muito diversa, que dá um bom panorama dos argumentos utilizados atualmente no campo da crítica urbana; constitui um estímulo para se pôr em contato com novas linhas de reflexão sobre a cidade atual e sobre as mudanças que vêm sendo produzidas na economia e na geografia do capitalismo. O leitor encontrará inúmeras sugestões que podem levá-lo a transitar por novos caminhos, a olhar por trás das aparências, para além dos simulacros, e a perguntar-se se essas aparências são mais ou menos verdadeiras que a mesma realidade que refletem. Algumas partes requerem um esforço especial, pois põem o leitor em contato com debates abstratos que têm hoje grande transcendência nas ciências sociais. Porém outras são de fácil leitura e de grande interesse para os cidadãos do Rio de Janeiro e do Brasil, assim como para todos os interessados pelas transformações nas cidades. Encontrar-se-á aqui não apenas uma boa apresentação da evolução do porto do Rio e da cidade e área metropolitana, mas também uma boa síntese dos trabalhos mais recentes das ciências sociais acerca da evolução do capitalismo e uma reflexão pessoal a partir de tudo isso. Talvez os geógrafos e os cientistas sociais que se interessam pelo estado dos debates optem por iniciar a leitura pelo primeiro capítulo. Mas é possível que o cidadão 1
Universidade de Barcelona
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carioca interessado em sua cidade prefira começar em sentido inverso, pelo último capítulo, que se refere às transformações recentes do Rio de Janeiro e de seu porto, finalizando a leitura e pondo-se em contato com os debates teóricos que serviram de guia para a redação da obra.
A evolução do capitalismo e os desafios para o futuro Este prólogo deveria dizer algo sobre as diversas dimensões do livro e, para começar, sobre os debates teóricos acerca da evolução do capitalismo e sobre as reflexões pessoais que o autor efetua a partir de amplas leituras que tem realizado. Ainda que não deva estender-me muito, não quero deixar de apresentar minha própria reflexão. Alvaro Ferreira demonstra a preocupação de inserir sua investigação em um marco teórico adequado, e explorou, nesse sentido, as contribuições do marxismo de maneira imaginativa e não dogmática. Faz parte de um grupo de geógrafos brasileiros que tem tomado como ponto de partida a obra de Milton Santos, de David Harvey e de outros geógrafos, e que tem explorado as implicações da reflexão do filósofo marxista Henri Lefebvre, contribuindo para o enriquecimento de seus temas de pesquisa e da maneira como os aborda. O esforço de leitura que realizou ultrapassa amplamente o marco disciplinar e se estende à sociologia, à economia, à semiótica e ao conjunto das ciências sociais, explorando sem complexos as áreas em que acredita encontrar novas perguntas e enfoques inovadores para pôr-se frente a eles. Lefebvre e outros que realizaram um grande esforço para repensar a sociedade capitalista nos anos de 1960 e 1970 seguem sendo autores que devem ter-se em conta para pensar sobre a sociedade atual. Entretanto, evidentemente, não bastam. Muitas coisas têm mudado nestes quarenta ou cinquenta anos, desde a organização empresarial, as tecnologias de informação e comunicação, as funções atribuídas à escola e à universidade, o papel do consumo ou a vida cotidiana; houve também profundas mudanças na política e geopolítica mundial, por exemplo, com as grandes transformações que ocorreram após o colapso do comunismo e da própria URSS, as mudanças na China e a ascensão de novas potências. Isso nos obriga a realizar leituras críticas dos autores que escreveram há duas ou três décadas e a aproveitar,
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de forma não dogmática, como eles o fizeram, as vias que abriram ao pensamento social autores como Lefebvre, Goldman, Habermas e tantos outros. O livro destaca as mudanças nos sistemas produtivos e suas consequências espaciais e olha para o futuro tentando discernir os caminhos que se apresentam e ver quais seriam os mais aconselháveis a seguir. Alvaro Ferreira, como outros geógrafos, ressalta a importância da reflexão sobre o espaço e seu papel central para o desenvolvimento das relações sociais. Isso impõe a necessidade de pesquisas sobre o valor do solo, o papel da propriedade, da mais-valia, a atribuição de valor ao espaço e o conhecimento dos agentes que nele intervêm, de seus interesses e estratégias. O autor se empenha em desvelar as novas lógicas espaciais da atual fase do capitalismo, com o exemplo concreto da evolução produtiva no Rio de Janeiro ao longo do século XX. É uma banalidade dizer que estamos em um momento de mudanças muito intensas; porém, não o é afirmar que tais mudanças nos obrigam a observar atentamente a realidade, a sociedade atual e as possibilidades que se abrem: possibilidades novas de dominação (vídeovigilância, computadores potentes...), mas também de interação social e de novas dialéticas, como a Web 2.0, a ciência solidária, as formas inéditas de participação. Uma questão importante é a urgente necessidade de reduzir o consumo compulsivo e o desperdício. Há razões ambientais e éticas para isso, mas há também razões políticas. Esse desperdício liga-se, essencialmente, com a lógica do capital para obter benefícios; a difusão do consumo é parte de sua estratégia, bem como, mais recentemente, o é a segmentação do mercado, a atribuição de valores, a pressão da moda e o caráter efêmero dos objetos consumidos. A economia de consumo, em que estamos imersos, influencia-nos mais do que pensamos. Uma economia em que o essencial é produzir, e produzir para obter constantes benefícios. Ainda que atualmente se possa produzir com alta qualidade, preferem fazê-lo – ou suspeitamos que se faça – com muito menos, para assegurar a necessidade de reposição das mercadorias. Percebemos, nos produtos de vestuário, que estragam com pouco tempo de uso, quando poderiam durar anos. O tipo de consumo que se faz, os mesmos produtos que são consumidos, representam, como aponta este livro, “uma fábrica de identidades em
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um mundo homogeneizado”. São adquiridos e repostos constantemente produtos com um ciclo de vida cada vez mais curto, como característica de singularidade. É possível que haja formas radicais para mudar o sistema econômico dominante. Porém, enquanto se discute e elas não chegam, talvez haja alguns caminhos que, para começar, podem ser verdadeiramente revolucionários: por exemplo, um deles, negar-se a entrar na sociedade de consumo, consumir com moderação, e somente o de fato necessário, não se deixar influenciar pela publicidade, pelo marketing e pelas campanhas de imagens. Pode-se dizer que o consumidor, e especialmente o consumidor compulsivo, é o principal aliado do capitalismo. Portanto, a redução do consumo põe em xeque os mesmos fundamentos do sistema econômico capitalista. Se a publicidade, como se assinala nesta obra, manipula os desejos, os gostos, as imagens e a identidade das pessoas, é evidente que se deve lutar contra ela. Ao que se pode acrescentar outras formas de luta contra a lógica do sistema capitalista: entre os quais a solidariedade e a cooperação entre os cidadãos. Se assim é, temos que promovê-las, aproveitando os instrumentos que temos hoje à nossa disposição para a comunicação e o intercâmbio de informações. Estamos em uma sociedade que oferece novas possibilidades de liberdade, mas também de controle, através das videocâmaras, dos satélites, dos rastros eletrônicos que deixamos nos sites que consultamos na internet. Seguramente, nem tudo é negativo, mas há necessidade de um meio-termo entre segurança e liberdade, entre videovigilância e privacidade. E exigência de afirmar a liberdade individual, ainda que aceitando códigos de conduta socialmente consensuais; e afirmando que deve haver limites a essa liberdade, os quais se referem às consequências sociais de nossos atos. Talvez seja o momento de começar a discutir, por exemplo, se aquele que faz uso da prostituição, torna-se também cúmplice da rede de tráfico de mulheres, e se o que consome drogas é cúmplice dos traficantes e de todo dano que produzem. Não pode haver aumento contínuo e ilimitado no consumo de bens e no crescimento econômico. É curioso que diante da crise atual se diga insistentemente que é necessário estimular o consumo e o crescimento. Todavia, essa parada no crescimento, e inclusive seu decréscimo, é, em alguns aspectos, indispensável. O que é urgente é a necessidade de im-
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plementar políticas de redistribuição em escala mundial, de cada país e de cada cidade. Uma das consequências mais negativas do capitalismo foi, certamente, a imposição geral da ideia de crescimento contínuo. Isso é bom, sobretudo no que se refere às empresas. Mas, obviamente, com uma breve reflexão, percebe-se que o mundo não pode ter um crescimento ilimitado se consideramos que os recursos da Terra são limitados, e que, na escala do universo, deveríamos considerar a economia de nosso planeta como aquela que deve imperar em uma espécie de nave espacial, como já o sugeriu Kenneth E. Boulding há mais de quarenta anos; ou seja, no que se refere aos recursos e aos bens materiais, como um sistema fechado, sem reservas ilimitadas para a extração ou a contaminação, e onde os resíduos devem ser reciclados. Partindo disso, o consumo crescente não é algo bom e deve ser minimizado, em vez de maximizado. É evidente que nos países desenvolvidos, e nos grupos sociais endinheirados de todos os países, o consumo não deve seguir aumentando. Ao contrário, deveria ser limitado e diminuir, para realizar uma melhor redistribuição entre toda a população. Não é possível imaginar que todos os habitantes da Terra possam viver com os níveis de vida dos países mais desenvolvidos. É necessário pensar em estabilidade e no decréscimo em algumas áreas, para que outras possam crescer. Na atual situação do mundo, talvez fosse importante considerar o desenvolvimento da economia como um processo de soma zero, no qual perdas e ganhos se equilibram: o que se ganha por um lado há de vir do que se perde em outros. Em escala mundial, a soma do total de ganhos e perdas deveria ser equilibrada: alguns países deveriam crescer a custo da diminuição do padrão de vida da população dos países desenvolvidos, que, muitas vezes, desperdiçam e consomem acima de suas necessidades. E, no interior de cada país, os grupos pobres deveriam melhorar de situação com a redistribuição do que possuem os ricos. O que pode – e deve – ser feito com sistemas fiscais progressivos.
A evolução do Rio de Janeiro Certamente devemos pensar da mesma maneira com relação à situação das cidades, que têm às vezes imensos contrastes entre a população de
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determinadas áreas e de outras. O autor deste livro fala desses contrastes ao apresentar o panorama urbano do mundo atual e, mais especificamente, da situação do Rio de Janeiro. Afirma que isso se dá também devido às decisões e aos investimentos que consolidam a segregação na cidade, já que frequentemente dirigem-se às populações de renda maiores e aos turistas. O resultado é a dualidade entre bairros de classe média e alta, por um lado, com boas moradias e investimentos em infraestrutura e equipamentos; e, por outro, bairros populares, às vezes de autoconstrução, com moradias de menor qualidade e muitas vezes precárias. Também sucede assim no Rio de Janeiro. O mais doloroso é a contraposição entre lançamentos de alto luxo e favelas periféricas e com infraestruturas e equipamentos muito inferiores; por vezes longe, por outras, próximos e separados por muros. O mundo da aquisição contínua de mercadorias, que assegura a reprodução do capital, reflete-se também na construção da cidade. Nada antigo parece servir, e acabam sendo considerados obsoletos, palavra que os arquitetos e promotores imobiliários gostam de repetir para justificar a destruição de velhos edifícios, de antigas fábricas, de moradias com duas ou três décadas de antiguidade. Para eles, a destruição e a tabula rasa parecem constituir o ideal, para poder construir edifícios totalmente novos, com os quais ganharão dinheiro e prestígio. Revitalização e renovação são palavras – e políticas – que produzem às vezes inquietações, já que significam, frequentemente, destruir e reconstruir. É claro que tais destruições ou renovações beneficiam as construtoras, os engenheiros, os arquitetos e os políticos, que inauguram e obtêm financiamento. Todavia, nem sempre contribuem para a melhoria da vida de todos os cidadãos. Nessas políticas, frequentemente se esquece da construção de moradias para grupos populares, ao mesmo tempo em que se atende à demanda solvente, às classes média e alta, que se beneficiam das localizações centrais ou litorâneas dos novos edifícios. É o que pode ser visto no funcionamento do mercado imobiliário do Rio, com a intervenção do capital brasileiro e internacional. Os negócios imobiliários em diversos setores da cidade, entre eles a Barra da Tijuca, as altas vertiginosas nos preços dos apartamentos e os lucros dos promotores são prova disso.
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É perturbador comprovar que os valores do solo expulsam cada vez mais a população das áreas que adquirem nova centralidade e valor, como acontece repetidamente em várias cidades, e também no Rio. Segundo os discursos dominantes, com os investimentos públicos e privados, nacionais e internacionais, objetiva-se também colocar a cidade no cenário internacional, torná-la competitiva, melhorar sua imagem para atrair investimentos. Quer dizer, transformar a cidade em uma mercadoria para ser vendida nos mercados mundiais e não para o uso de seus habitantes. Simultaneamente, são feitos esforços para torná-la atraente para o capital internacional, com isenção de impostos, créditos, construção de infraestruturas, auxílio ao investimento e redução de custos. No livro se analisa e se faz uma crítica acerca do rendimento que se espera obter com os Certificados de Potencial Adicional de Construção, que preveem, inclusive, a construção de edifícios de 50 andares e que permitem obter elevados ganhos com o solo da zona portuária e a área circundante; além disso, o autor examina também os incentivos fiscais previstos pela administração municipal para estimular a atuação imobiliária naquele setor. O Rio foi capaz de superar o desafio da transferência da capital para Brasília em 1960. Mas a mudança levou à transferência de instituições e de pessoas e ao esvaziamento de edifícios e de áreas centrais da urbe. A área central carioca, que havia sido remodelada com a Reforma Pereira Passos no começo do século XX, mantém-se como sede terciária. Mas surgem outras centralidades, assim como acontece em outras grandes áreas metropolitanas. Várias sedes são transferidas do centro para a Barra da Tijuca, novo centro empresarial do Rio, que dispõe de edifícios com toda ainfraestrutura indispensável para as necessidades atuais de gestão e comunicação, insuficientes, às vezes, nos edifícios do centro tradicional, construídos na primeira metade do século XX. O centro tradicional do Rio perde sedes sociais, que se deslocam para a Barra da Tijuca, mas adquire outras funções: culturais, universitárias, residenciais. Entretanto, a Barra da Tijuca, que nasceu como área residencial de classes média e alta, converte-se em centro terciário de negócios, já que pode oferecer grande variedade de serviços atrativos para as sedes sociais. As mudanças recentes no Rio têm provocado numerosas refuncionalizações dos edifícios, indústrias convertidas em centros co-
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merciais ou culturais, lojas nas novas áreas de consumo que se intenta promover. O livro apresenta muito bem as mudanças nas estruturas portuárias mundiais e o exemplo do Rio. O porto do Rio aproveita as esplêndidas condições naturais da Baía de Guanabara, mas é também uma construção humana, está humanamente modificado, com assoreamento, infraestruturas e edifícios, e com o desenvolvimento industrial ligado ao porto, nos bairros do Caju e São Cristóvão. As modificações do tráfego marítimo, o aumento na capacidade dos barcos, a ampliação do transporte em contêineres e a melhoria no tratamento das cargas têm levado à transformação dos velhos portos que tinham uma posição central dentro das cidades. No Rio optou-se pela transformação do velho porto com obras de renovação e revitalização urbana, aproveitando o espaço existente e dando novos usos aos edifícios, às vezes de grande valor patrimonial. Em todas as cidades se coloca o problema do velho e do novo; o que fazer com o velho, adaptá-lo ou destruí-lo. O mesmo sucede com os portos, agora que é preciso ampliá-los e fazer outros novos para adequá-los às novas formas de transporte. Frequentemente as áreas portuárias têm sido mantidas, de certa maneira, separadas da cidade, ainda que em posições centrais. A remoção do porto é, sem dúvida, uma oportunidade para a cidade. As novas estruturas portuárias que têm sido criadas em locais afastados do velho centro contribuíram para que ele entre em decadência e abandono. É necessário aplicar políticas de transformação, mas há dúvidas sobre quais seriam as mais convenientes. O problema é que, com frequência, esses espaços públicos portuários se convertem em usos terciários e residenciais, e que se faz em benefício ou com predomínio dos interesses privados. Usos para classes média e alta e para visitantes exteriores, turistas que utilizam os equipamentos comerciais, gastronômicos e culturais. Poderíamos pensar em usos produtivos e equipamentos para todas as pessoas e grupos populares, para a população que já reside e muitas vezes é ligada às atividades do porto (estivadores, pescadores, portuários, trabalhadores fabris). Se a pergunta é o que é melhor para os cidadãos, a resposta parece clara: é preciso mantê-los, contar com eles. Alguns desses projetos de transformação dos espaços portuários se convertem também em
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vastas operações imobiliárias. Não parecem boas decisões, se temos em conta os interesses de toda a população da cidade.
Dilemas e alternativas Este livro é, em parte, uma síntese de trabalhos publicados e oferece, ao mesmo tempo, materiais de interesse sobre a evolução do Rio de Janeiro. Questiona os investimentos públicos para grandes projetos que beneficiam somente uma parte da população da cidade, mostra que a iniciativa privada busca geralmente benefícios a curto prazo e se despreocupa com as consequências a longo prazo de suas ações, que trata de atender à clientela mais solvente, sem pensar em toda a população. Questiona a utilidade e especialmente o rendimento social dos grandes investimentos públicos para a transformação dos velhos portos em áreas culturais e de serviços. Se é certo que a ação pública facilita às vezes a atuação do capital, não podemos afirmar que isso sempre aconteça assim: depende da composição dos governos nacionais, estaduais e municipais. Em todo caso, há mecanismos para que essas atuações públicas se façam em benefício da população, seja criando oportunidades para o emprego, seja buscando a construção de uma cidade mais justa e mais habitável. O livro reflete bem os problemas, as dúvidas e as contradições enfrentadas pelos governos das cidades de hoje. Por um lado, lutando com outras cidades para atrair investimentos e captar riquezas. Por outro, tendo que atender às necessidades de suas próprias populações, melhorando seu nível de renda, esforçando-se para atrair capitais para criar empregos. Aqui se apresentam esses dilemas a partir de uma posição crítica, de uma atitude ética, de solidariedade com os mais pobres, com os mais desvalidos. A construção de uma cidade mais equitativa e solidária necessita estudos críticos para o debate. O livro é, também, um bom ponto de partida para realizar novas leituras orientadas, e refletir sobre o Rio de Janeiro e a evolução das cidades em geral, para pensar no que se deve fazer. O papel dos grandes eventos, como os Jogos Pan-americanos, a Copa do Mundo de Futebol de 2014 ou os Jogos Olímpicos de 2016 desviam,
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às vezes, a atenção a respeito dos principais desafios. Um pouco mais de moderação nos projetos seria desejável. Não são espetáculos, nem ócio, nem consumo custoso o que as cidades necessitam com urgência. Importantes livros como este nos permitem e nos obrigam a ultrapassar o pensamento crítico e a pensar em alternativas concretas; a realizar propostas de ação com o exame dos dilemas existentes e de suas implicações. Às vezes, os acadêmicos estão mais motivados para fazer diagnósticos do que para produzir propostas concretas, como se vê em alguns dos autores citados neste livro. É um primeiro passo indispensável, mas temos de ir além. O livro mostra que as pressões da Academia e do movimento cidadão podem transformar e melhorar os projetos, o que se pode conseguir com mais participação. Temos que afirmar e demonstrar que isso é possível, com os estudos acadêmicos e com a atuação cívica. É importante a participação cidadã nos projetos que se realizam sobre a cidade. As lutas sociais são muito importantes e a democracia local, também. Deve-se intensificar ou pôr em marcha a coordenação dos movimentos cidadãos e cívicos nas cidades, especialmente, e no caso do Rio, em cidades com grandes projetos. Necessita-se, assim, reforçar uma ciência solidária a serviço do debate e das propostas para a cidade. Os meios de comunicação disponíveis e a Web 2.0 o permitem. Temos de olhar o mundo, ver o que se faz em outros lugares e as políticas aplicadas. Entretanto, é preciso ter em conta a própria realidade. Não seguir acriticamente modelos externos, mas partir do próprio lugar, das especificidades locais. O caminho parece claro, e passa, tanto para os acadêmicos, como para os cidadãos em geral, pelo contato com a realidade social, a informação, a investigação e o estudo, o compromisso e a participação.
Introdução… ou tentando colocar as coisas no devido lugar
“Só os que nada fazem não cometem faltas.”
Piort Kropotkin
Partimos de uma tese: nas cidades do século XXI, a banalização do espaço urbano tem se tornado cada vez mais efetiva. Referimo-nos a uma forma específica e terrível de banalização, materializada em uma urbanização banalizada, pois a produção do espaço urbano tem-se realizado ultimamente, em grande parte das cidades, centrada em “modelos de sucesso internacional”, que visam a “revitalizar” as áreas centrais e portuárias, transformando-as em residenciais e de negócios para as classes média e alta, e, além disso, que investem em políticas de atração da atividade turística. Para tanto, são idealizadas feiras, exposições, shows; cria-se toda uma infraestrutura voltada para o turismo, com bares, restaurantes, lojas etc. Uma total reprodução do mesmo, formas que se repetem independentemente de cada cidade. No município do Rio de Janeiro tem-se tentado implementar esse ideário, principalmente e de maneira mais intensa, a partir dos anos 1990; no entanto, por diversas razões, as propostas de revitalização acabaram não se concretizando. Contudo, um alinhamento dos governos federal, estadual e municipal promete pôr em prática a transformação da zona portuária e arredores. Ultimamente, dedicamo-nos a estudar as transformações na cidade do Rio de Janeiro, associando-as não apenas aos atores sociais mais tradicionais, mas também à participação dos denominados movimentos sociais. A área portuária carioca tem sido objeto de grandes debates: o que fazer com os inúmeros armazéns abandonados? Como tornar uma área tão extensa “útil” para os citadinos? Que tipo de reforma urbana poderia ser realizada? As administrações municipais têm proposto alguns projetos, que não se concretizaram, e realizado alguns outros. Houve uma propos 27
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ta, que chegou a ter um projeto apresentado por um arquiteto francês, de construção de uma filial do Museu Guggenheim, que se localizaria na baía de Guanabara (seria um museu flutuante). Houve, também, a proposta de demolição do viaduto da Perimetral (eixo de circulação importante na área central da cidade) para devolver a vista para o mar, tão marcante na história inicial da cidade, segundo os órgãos da prefeitura. Nesse caso, na parte mais nobre desse litoral seriam construídas habitações para a classe média e média alta da sociedade, além de shoppings e restaurantes. Há uma proposta de construção de casas de espetáculo, museus de design, edifícios de escritórios e lojas de grifes internacionais. A prefeitura do Rio de Janeiro inaugurou há alguns anos a “Cidade do Samba” na área portuária. Trata-se de um empreendimento que objetivou criar o clima do carnaval das escolas de samba durante os 365 dias do ano e não apenas durante os quatro dias do carnaval. Há shows organizados pela Liga das Escolas de Samba e é possível visitar os “barracões”, local onde se constroem os carros alegóricos e as fantasias. Aliás, é interessante notar como se manteve o nome “barracão”, embora na Cidade do Samba haja galpões, mas o remetimento ao passado perpetuou-se no nome, que continuou o mesmo. Outro projeto foi a utilização de um dos inúmeros armazéns abandonados para a realização de festas alternativas e de eventos de moda – Rio Fashion Week, por exemplo –, o que atrai grande número de pessoas e a atenção da mídia (no caso do evento de moda, inclusive a mídia internacional). Também se mudou para a área portuária, outro evento histórico do verão da cidade: o “Noites Cariocas”. Esse evento realizava-se no Morro da Urca, tendo a vista da cidade como cenário e o charme da subida pelo bondinho do Pão de Açúcar. Há dois anos, realiza-se no Píer Mauá. Acontece durante todo o verão, com shows de bandas de rock e música pop; na abertura da temporada de 2009, a apresentação de um musical teve lotação esgotada. Nas proximidades da zona portuária, ainda na zona periférica do centro, é possível observar o enorme crescimento do investimento na área conhecida como Lapa e arredores. Há o resgate, no imaginário social, de um Rio de Janeiro boêmio, do samba (de raiz), do chorinho. Vários bares, restaurantes e casas de shows têm sido abertos, antiquários são restaurados e promovem grandes feiras no primeiro sábado do mês,
Introdução… ou tentando colocar as coisas no devido lugar 29
apoiados pela prefeitura, que mantém a rua fechada para automóveis. Os comerciantes do local armam um palco na rua e contratam atrações musicais, que se revezam durante todo o dia. Essa parte da cidade, que era pouco visada pelo empresariado, passa a receber grande atenção da juventude, que muda o ritmo da localidade. Ruas, antes mal iluminadas, passaram por reformas e ganharam nova iluminação, o que de certa forma beneficiou os antigos moradores. Porém, já é possível observar a “expulsão” (gentrificação) daquele grupo social pelo empresariado. Embora tais transformações estejam ocorrendo na cidade, no que tange aos movimentos sociais há uma certa imobilização. Por isso, em nossas reflexões anteriores, temos escrito que a institucionalização da participação social representa um risco para os movimentos sociais, debate que travaremos mais adiante. Tendo em vista que, por trás da movimentação pela transformação da cidade do Rio de Janeiro, está a “história de sucesso” das reformas realizadas em Barcelona, procuraremos investigar como se deu o processo de transformação desta cidade a partir de meados da década de 1980, e como o seu resultado foi propagandeado aos cinco continentes. Acreditamos que, para o êxito de nossa investigação, possamos iluminar-nos por aquilo que o filósofo francês Henri Lefebvre (2001, 1999, 1953) denominou de método regressivo-progressivo; ou seja, partimos do momento atual, observando, descrevendo e analisando as formas, a cidade produzida, entretanto já imbuídos da teoria e de um olhar crítico; em seguida, vamos retornando, passo a passo, em busca daquilo que deu condições para a concretização da realidade atual, de quais processos e dinâmicas envolvidas. Em outras palavras, procuramos o que precedeu e deu suporte a isso. A partir de então, faremos o caminho de volta para o presente, agora já esclarecidos e embasados, com mais lucidez para ver as virtualidades contidas na presente situação. Esse encaminhamento ajudará a projetar o futuro, tentando descobrir as possibilidades e impossibilidades. Segundo o sociólogo francês Rémi Hess (1991), a originalidade de Lefebvre – embora ele tenha encontrado o princípio desse método em Karl Marx – é a sua aplicabilidade às formas sociais concretas: a nação, a cidade, o estado etc. Nesse sentido, a opção metodológica para pensarmos o espaço urbano deu-se a partir do método dialético. A importância desse método para a Geografia consiste na prática de não isolar o objeto considerado, no caso os fenômenos
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do urbano, investigando as suas ligações, as suas relações constantes com outros fenômenos que se encontram para além da ordem próxima (Lefebvre, 1974, p. 27). Temos, assim, de ter em conta sempre a presença da lógica da reprodução do capital, o que simultaneamente nos obriga a não realizar uma leitura fechada da realidade, não isolando o fenômeno. É possível afirmar que foram Karl Marx e Friedrich Engels que nos trouxeram a mais importante contribuição desse método, sendo os primeiros efetivamente a pensar o materialismo histórico-dialético. Partiram do princípio de que a base de qualquer estudo deve ser a base material, a forma pela qual o homem produz seus meios de existência; e, para chegar a isso, fizeram uso de ideias baseadas no materialismo de Feuerbach e na dialética de Hegel. Esse debate pode ser apreendido na obra intitulada A ideologia alemã, na qual afirmam que mesmo a produção simbólica se encontra ligada à produção da vida material, que as ideias e a consciência do homem são subordinadas à produção material e às relações de produção. Marx e Engels (1932, p. 43) afirmam, inclusive, que o ser humano representa “um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações”, visto que cada geração anterior é também produtora do seu espaço, já que modifica as relações de produção de acordo com a modificação de suas necessidades. Isso nos leva à afirmação de que nós produzimos o espaço que nos produz; e não há aqui qualquer fetichização do espaço. Torna-se fundamental, para a compreensão do cotidiano e das transformações impostas a ele, que partamos da vida real, da produção material – que incorpora evidentemente a produção simbólica advinda da materialidade existente. O espaço produzido através da história recente é marcado pelas relações de produção capitalistas, que se baseiam na divisão do trabalho e na propriedade privada, o que nos leva a uma realidade marcada por fortes conflitos e contradições entre as diferentes classes sociais. Tendo realizado durante toda sua obra um intenso diálogo com a obra de Marx, afirma Lefebvre (1974, p. 26) que, “após ter distinguido os aspectos ou elementos contraditórios, sem negligenciar as suas ligações, sem esquecer que se trata de uma realidade, Marx reencontra-a na sua unidade, isto é, no conjunto de seu movimento”. Nesse sentido, é necessário partir da análise do real para chegarmos aos conflitos e contradições que se dão no espaço, no cotidiano; e, para isso, torna-
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-se imprescindível chegarmos ao movimento da sociedade, das relações que sustentam a sociedade urbana capitalista. É preciso ter em conta que cada modo de produção produziu o seu espaço e, nesse sentido, cada cidade é a materialização de um momento histórico; além disso, a especificidade do lugar tem que ser levada em conta. Assim, o que, em princípio, deu certo em determinado local, não deve simplesmente ser transposto em forma de modelo de solução para outros lugares. No decorrer de nossa obra estaremos caminhando do presente ao passado, de volta ao presente e olhando para o futuro; esse movimento estará presente em todo o livro, como um looping, que nunca chega ao mesmo lugar. Nesse encaminhamento vislumbraremos inúmeras temporalidades e espacialidades, portanto, é importante observar esse movimento metodológico no decorrer da leitura. O geógrafo espanhol Horacio Capel (1974) afirma que o objeto de investigação da Geografia deve estar focado no sentido material, morfológico do urbano, mas entende que essa forma está ligada a um produto social, modelado e condicionado pela estrutura social. Estaremos considerando o espaço como um produto social, mas simultaneamente inter-relacionando-se com a sociedade, ou seja, engendrado pelo modo de produção, sendo produzido para dar sustentação para a estrutura socioeconômica, mas também inter-relacionando-se em todos os níveis, ou seja, com as forças produtivas, organização do trabalho, relações de propriedade, instituições, ideologias etc. Teremos também como tripé de sustentação três dimensões analíticas, que nos ajudarão a ter uma compreensão de conjunto. A primeira dimensão terá como foco os sujeitos e, nesse sentido, estaremos analisando os grupos sociais envolvidos no processo, suas ações, reações e as interações; em outras palavras, estaremos tratando dos atores sociais. A segunda dimensão diria respeito à localidade em termos materiais e em relação às trocas e às relações com o entorno. Na terceira, analisaremos o uso do espaço, a vida que se dá no lugar, e, assim, também emergirão as tensões, posto que há sempre um jogo – algumas vezes aberto, mas na maioria das vezes oculto – entre apropriação e dominação do espaço. Aqui, a tensão entre valor de uso e valor de troca no uso do solo urbano está posta, e a cada vez maior mercadificação do espaço traz consequências para a camada mais pobre, que tem sido ainda mais espoliada. A partir da conjunção dessa tripla dimensionalidade, estaríamos cami-
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nhando para a compreensão do próprio espaço enquanto totalidade e, nesse sentido, sempre por concluir (Santos, 1996; Massey, 2005), forjado por infinitas totalizações. Adiante tentaremos esclarecer um pouco mais esse encaminhamento. Ainda no âmbito teórico-metodológico, seria possível afirmar que a compreensão do espaço urbano passa por inúmeras ciências e não apenas pela Geografia. A partir de Capel (2001) poderíamos falar em três dimensões de análise da cidade: primeiro, estaríamos diante do sentido material do urbano, morfológico, como paisagem urbana; o segundo estaria ligado à comunidade, aos grupos sociais e às instituições; e, finalmente, a dimensão política. Dessa maneira, poderíamos afirmar que o geógrafo parte da dimensão morfológica, mas dialoga com as outras duas dimensões; já os sociólogos e antropólogos têm como ponto de partida as relações sociais; e, finalmente, os cientistas políticos, os juristas e economistas partem da dimensão política do urbano. Através de nossa perspectiva analítica, percebemos que não só a escala global exerce forte papel na escala do lugar, mas a própria percepção local do fenômeno global interfere na manifestação no lugar desse fenômeno. Ou seja, a maneira como a sociedade (re)produz o espaço mantém um movimento dialético do lugar ao global e de volta ao lugar. Assim, mostra-se claramente um encaminhamento dialético de análise; estamos partindo da parte para o todo – ou das partes para o todo, ou melhor, para as várias percepções do todo – e das diversas totalidades para as partes, o que nos permite compreender, ainda, que teremos um sem-fim de percepções micro-objetivas de cada parte. De alguma maneira, como já afirmamos anteriormente, é como dizer que nós produzimos o espaço que nos produz. Cabe-nos, portanto, perceber o que essas propostas para o Rio de Janeiro teriam como particularidades da totalidade mundial. Mais ainda, teríamos que analisar a maneira como tais particularidades se inter-relacionam e como, a partir dessa interação, surgem singularidades – as quais novamente se inter-relacionarão – que serão refeitas e desfeitas incessantemente. Dessa forma, talvez pudéssemos contribuir para a análise da totalidade da sociedade e do modelo socioeconômico e, simultaneamente, das partes no todo, em que se encontrariam as particularidades do lugar – no que se refere a isso, a geógrafa inglesa Doreen Massey (2000, 1999) dá-nos importante contribuição.
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Tomando por base esse debate, convém apresentarmos o objetivo deste livro, que seria a análise dos indícios de uma nova espacialidade da cidade relacionados às propostas de revitalização da área central, mais especificamente da zona portuária e arredores no Rio de Janeiro. Evidentemente, para dar conta desse objetivo, temos de mover-nos do presente ao passado e ao futuro, incorporando inúmeros elementos que, em princípio, poderiam parecer distantes de nosso objetivo, mas não estão. Ao investigarmos as transformações por que vem passando a cidade, temos visto que, de forma geral, devido às mudanças nas relações de trabalho, as empresas têm investido na reestruturação de suas seções, representações regionais e nas suas plantas industriais, que, por consequência, atravessam um momento de readaptação. As amplas instalações das antigas representações regionais cederam lugar a espaços menores, denominados, muitas vezes, de pontos de referência ou telelocais. Outras vezes foram simplesmente fechadas. As grandes transformações nas relações de trabalho associam-se a severas mudanças nas relações espaciais e a cidade passa a representar tais transformações. Em trabalho anterior (2005) falamos que certo esvaziamento de imóveis do centro do Rio de Janeiro começa a ser percebido. Assim, acreditamos que os atores sociais que produzem o espaço terão suas estratégias de ação alteradas. No decorrer deste trabalho discutiremos essas estratégias, tensões e conflitos entre eles. Temos consciência de que tanto em uma pesquisa quantitativa, quanto em uma pesquisa qualitativa, a subjetividade do pesquisador está presente (até pela escolha do objeto), dado que o indivíduo se encontra permeado de valores formados dentro do contexto de uma estrutura estruturada estruturante – em que a estrutura estruturada seria percebida como “as categorias de pensamento impensadas que delimitam o pensável” (Bourdieu, 1992, p. 60; Bourdieu, 1982, p. 28), e estruturante, no sentido de predeterminarem o pensamento. Vamos ao encontro do sociólogo Michael Löwy (1996, p. 13) em sua crítica à pretensa objetividade nas ciências da sociedade, quando afirma estarem interligados todo o conhecimento e a interpretação da realidade social “direta ou indiretamente a uma das grandes visões sociais de mundo, a uma perspectiva global socialmente condicionada, isto é o que Pierre Bourdieu denomina, numa expressão feliz, ‘as categorias de
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pensamento impensadas que delimitam o pensável e predeterminam o pensamento’.” Observação importante a que o sociólogo dá sequência, afirmando “que, por conseguinte, a verdade objetiva sobre a sociedade é antes concebida como uma paisagem pintada por um artista e não como uma imagem de espelho independente do sujeito”. Não restam dúvidas de que, “cada vez mais, os cientistas percebem a necessidade de se inverter o encaminhamento do processo de busca do conhecimento: indo, a partir do objeto, para as áreas do saber e não, como é feito, olhar o objeto a partir de uma dessas áreas do saber”. Alguns autores, dentre eles o filósofo francês Edgar Morin (1998), vêm buscando formas alternativas de desenvolvimento da pesquisa através do que denominam teoria da complexidade ou do pensamento complexo. A complexidade surgiria como dificuldade e incerteza, não como esclarecedora ou como resposta. Leva-nos, inclusive, a considerações que anteriormente eram pouco consideradas: o acaso e a desordem. Não há como estarmos certos de que aquilo que nos parece acaso não o é devido à ignorância. Mas voltando à questão da complexidade, afirma Morin (1998, p. 181) que só é possível compreender o todo se conhecendo, especificamente, as partes, mas só se pode conhecer as partes se conhecendo o todo. Isso significa que “abandonamos um tipo de explicação linear por um tipo de explicação em movimento, circular, em que vamos das partes para o todo, do todo para as partes, para tentar compreender o fenômeno”.1 Dentro do debate sobre a Teoria da Complexidade existe espaço para o que outros autores denominam Paradigma Holográfico (Navarro, 1994 e 1997, Pribram, 1994, Bohm, 1994). Na Neurologia, Karl Pribram (1994) propõe o holograma como um poderoso modelo para descrever e compreender os processos cerebrais. As estruturas cerebrais veem, ouvem, sentem o gosto, cheiram e tateiam por meio de sofisticadas análises matemáticas de frequências temporais e/ou espaciais. Uma propriedade tanto do cérebro quanto do holograma consiste na distribuição das informações por todo o sistema, com cada fragmento codificado para produzir as informações do todo. Na Física, segundo o físico David Bohm (1994), o holograma é um ponto de partida para uma nova descrição da realidade: a ordem dobrada. A realidade clássica focalizava manifestações secundárias – o aspecto desdobrado das coisas – e não sua fonte. Tais aparências são abstraídas de um fluxo invisível, intangível, que não é constituído de partes, mas é na verdade uma interconexão inseparável. As leis físicas primárias não podem ser descobertas por uma ciência que se esforça por separar o mundo em partes. 1
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De alguma forma, essas inquietações também encontram eco na Geografia; seja nos escritos de Santos (1996), quando nos fala da força do lugar e de sua relação com a ordem global, da noção de totalidade e das totalizações, seja nos escritos dos geógrafos ingleses como Harvey (2004, 2000, 1996) ou Massey (2005, 2000). A propósito, concordamos com a geógrafa quando percebe o espaço como produto de inter-relações, como sendo constituído através de relações, desde a imensidão do global até o infimamente pequeno. Assim, o espaço ganha contornos amplos, como esfera da possibilidade da existência da multiplicidade; refere-se à pluralidade contemporânea, existência de distintas trajetórias simultaneamente, ou seja, multiplicidade e espaço são co-constitutivos. Continuamos acreditando que pensar as cidades e o urbano a partir do debate marxista, obviamente não de forma dogmática, e de sua associação com o reconhecimento dos interesses de classe ainda contribui bastante para desvelar a realidade. Ao contrário do que temos visto em vários artigos científicos, que dão grande ênfase à discussão teórica muitas vezes desprendida do real, reafirmamos que o ponto de partida tem que ser o real. Após a identificação do problema em questão, daquilo que nos inquieta, é que devemos voltar-nos à teoria, mas sempre preocupados com o movimento entre prática e teoria. Através da dialética é possível aliarmos a contraditória relação que mantém unida teoria e prática. Essa relação contribui para manter em aberto as contradições do processo social e histórico – que agrega as práticas e o imaginário, Na filosofia, Edgar Morin (1998) utiliza a ideia do paradigma holográfico, enfatizando que não só a parte está no todo, mas também o todo está na parte. Explicitando um pouco mais, acrescenta que, de certo modo, o todo da sociedade está presente na parte – indivíduo. Isso quer dizer que não podemos mais considerar um sistema complexo segundo a alternativa do reducionismo – que pretende compreender o todo partindo das qualidades das partes – ou do holismo, que negligencia as partes para compreender o todo. Na Sociologia, Pablo Navarro (1997) acredita que a noção de complexidade não permite uma definição simples. As realidades complexas são tanto processo quanto resultado e o modelo de organização holográfica seria uma forma de organização em que as diferentes partes que compõem uma determinada realidade social contêm informações acerca dessa totalidade e, por isso, são de certo modo capazes de constituir tal realidade autonomamente. Estes são apenas alguns exemplos dos cientistas das mais variadas áreas que, de alguma forma, utilizam-se do paradigma holográfico para desenvolver suas reflexões.
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o concreto e o simbólico –, colaborando, assim, para evitar reducionismos deterministas e idealizações afastadas do real, ambas contribuindo para o fechamento do movimento e do diálogo crítico, quando o que buscamos é a abertura. Lembra-nos o geógrafo Leonardo Brasil Bueno (2008, p. 14) que é preciso “evitar os riscos opostos e complementares. (...) De um lado, a aceitação não mediada e não criticada dos dados e fatos brutos da empiria fetichiza a suposta objetividade dos fatos, dos números e das estatísticas, como positividades que se autoexplicariam”; e de outro lado, “a teoria como exercício conceitual abstrato, de todo desligado da empiria, dos fatos e dos dados, das fontes e dos processos reais de trabalho, fazendo com que a pesquisa se esvazie e perca em rigor científico e conceitual”. Isso nos obriga a lidar com o fato de as questões teóricas mostrarem-se, inclusive, como problemas práticos. Vemo-nos na defesa da autogestão e, consequentemente, da redução da importância do Estado; entretanto, vivemos em um país em que a desigualdade social ainda alcança patamares elevadíssimos e onde o Estado tem (ou deveria ter) um papel importante. Assim, se acreditamos que o ponto de partida deve ser a realidade, isso também significa considerá-la como um limite à ação. Aliás, a própria teoria pode tornar-se um limite à transformação. É preciso entender que qualquer contraposição ao modelo vigente somente poderá partir de dentro do próprio capitalismo. Não basta fazer a crítica ao modelo, pois – segundo Marx – é preciso interpretá-lo para, então, transformá-lo, para mudar o estado de coisas atual. Infelizmente, a maioria, quando muito, chega apenas à interpretação. É essa inquietação de Marx que leva a cientista política Thamy Pogrebinschi (2009) a afirmar que “não há, hoje, nada mais próximo do fim da propriedade do que a sua expansão irrestrita e ilimitada”. Pensar a mudança significa lutar pela transformação das condições materiais e não apenas pela obtenção de concessões formais; lutar pelo direito de viver em uma cidade com mais justiça social. Retomando o início do nosso debate, em que falávamos de um “projeto de revitalização” de áreas centrais da cidade do Rio de Janeiro, é preciso ter em conta certa associação entre o Estado e o empresariado. Essa associação não é nova nem se resume à realidade brasileira. Talvez a grande ruptura de Marx com Hegel se dê na questão do Estado. Nós sabemos que, para Hegel, o Estado consolida e complementa
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a sociedade (sem ele se desagregariam os elementos e os momentos da realidade social, ou seja, profissões, corporações, a família, enfim, as necessidades e as regulamentações). Para Marx, ao contrário, o Estado é uma instituição que depende de suas condições históricas. O sistema hegeliano, nesse sentido, inibe a ação; por sua vez, Marx entrou no pensamento como homem de ação, elaborando uma estratégia para que contestemos e neguemos as instituições existentes, porque não podia admitir um sistema que sacralizasse o Estado e o direito existentes. Assim, o espaço ganha grande força, pois se o poder ocupa o espaço, que se realiza no cotidiano, tais relações de poder podem servir como meio de acomodação ou de inquietação. O espaço torna-se cada vez mais o meio de reprodução das relações sociais; sendo hierarquizado, objeto de investimentos públicos e privados, reserva de valor ou mesmo deixado ao acaso e abandonado. Talvez a grande batalha deva centrar-se na necessidade de romper com a ocultação e buscar desvelar essa dominação do espaço. Já na década de 1970, acrescentava Lefebvre (1973, p. 96) que “os espaços de lazer constituem objecto de especulações gigantescas, mal controladas e frequentemente auxiliadas pelo Estado (construtor de estradas e comunicações, aval directo ou indirecto das operações financeiras etc.)”. O espaço é vendido a alto preço aos citadinos e outros são “expulsos” de certas áreas da cidade; isto vem se realizando nas imediações do bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, e acreditamos que virá a ocorrer também na zona portuária. Essa zona é formada, principalmente, pelos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, e, devido a sua localização, teve importância estratégica no crescimento da cidade do Rio de Janeiro, seja nos âmbitos econômico e político, seja no âmbito cultural, visto que até o início do século XVIII a cidade restringia-se, praticamente, à área central. Essa importância ganha contornos ainda mais inestimáveis se lembrarmos que a mão de obra operária e a escrava ocupou a zona portuária desde seus primórdios. Inclusive, o mercado de escravos localizava-se na rua Camerino – antiga rua do Valongo. A partir da década de 1850, a necessidade de construção de um porto para a cidade torna-se mais forte, dando curso a inúmeros projetos de cais, molhes, docas, armazéns, aterros, ramais ferroviários e maquinaria para carga e descarga. Entretanto, foi nos primeiros anos
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do século XX, com a Reforma Passos, que transformações profundas acometeram o espaço urbano da então capital da república. O projeto de renovação concentrava-se na área central da cidade e o novo porto teria importante papel irradiador na transformação da capital, compreendendo a construção do novo cais, o aterro da Prainha, do Valongo e dos sacos da Gamboa e do Alferes, da Praia Formosa e ainda do prolongamento do canal do Mangue até o mar. Sobre o espaço aterrado foram construídas duas largas avenidas interligadas: a Rodrigues Alves, ao longo do cais, e a Francisco Bicalho. A imensa superfície restante foi urbanizada segundo padrões modernos: ruas largas, quadras regulares de traçado ortogonal, lotes de grandes dimensões (Delgado, Martins, 2003). No entanto, os bairros portuários mantiveram-se, de certa maneira, à margem da cidade, pois enquanto o seu núcleo central sofria forte verticalização, Saúde, Gamboa e Santo Cristo conservavam-se da mesma forma. Posteriormente, nas décadas de 1960 e 1970, a construção do viaduto da Perimetral acentuou a ruptura, separando esses bairros ainda mais do restante da cidade. Como nas demais zonas portuárias ao redor do mundo, as mudanças tecnológicas e de logística no carregamento, transporte e armazenamento – conteinerização – contribuíram para a obsolescência de parte de sua área. Tudo isso, juntamente com o abandono por parte do poder público, contribuiu com a obsolescência da área do porto e com o esvaziamento dos bairros vizinhos, seja no que se refere a suas atividades econômicas relacionadas ao apoio portuário, seja no que concerne à infra-estrutura urbana e ao número de moradores na região. Esse abandono agora é visto como grande possibilidade de uma nova produção do espaço. O espaço torna-se o lugar da reprodução das relações sociais de produção e não apenas dos meios de produção, destarte percebemos o espaço como mercadoria. Porém, se o espaço é o lugar da reprodução, é também lugar da contestação, do encontro, da rebeldia, lugar da ação. E aqui estamos diante de grandes tensões, contradições; ou seja, se é no espaço da vida cotidiana que percebemos e vivemos o dia a dia, é nele também que os especialistas – cientes ou não do fato de que o espaço produzido interfere fortemente nas relações sociais – concebem seus projetos e os põem em curso, à revelia dos habitantes do lugar. Muitas vezes aqueles que deveriam ser os atores sociais da luta por mudanças
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acabam por perceber e viver a partir da total naturalização de tudo, da banalização da miséria, da desigualdade. Por outro lado, há também aqueles atores sociais que, a partir da indignação, procuram formas de lutar contra o estado de coisas atual; as estratégias de suas práticas espaciais são fundamentais, posto que percebem que a produção do espaço é também instrumento de reprodução das relações sociais. Acreditamos que os recentes conflitos nas cidades – a partir dos movimentos de trabalhadores sem-teto ocupando prédios abandonados ou, por outro lado, da ação dos promotores imobiliários, que têm investido em áreas esquecidas da cidade , gerando mudanças na forma de uso e de apropriação do espaço pelos antigos moradores do lugar – são sinais claros da tensão que paira sobre o espaço urbano. Acreditamos que havendo relações há também discursos, interditos, falsidades, dependências, poderes ocultos. As relações sociais são sempre espaciais e existem a partir da construção de certas espacialidades. Aqui, trataremos de considerar, para este trabalho, a espacialidade efetivamente vivida e socialmente criada, ou seja, a sua construção como um produto de processos sociais e rebatimentos materiais; ao mesmo tempo concreta e abstrata. Assim, estaremos percebendo-a como parte do espaço socialmente construído. Não é possível ignorarmos as diversas lutas simbólicas travadas no espaço urbano, em que está em questão a própria representação de mundo. Ao analisarmos as transformações e o surgimento de novas espacialidades na cidade do Rio de Janeiro estaremos tendo em conta a interação entre ações de âmbito global e do lugar. Nosso ponto de partida e de chegada é o Rio de Janeiro em suas múltiplas dimensões, assim procuramos desenvolver nossa obra tendo em mente temporalidades e espacialidades. Inicialmente, estamos tratando das temporalidades da cidade e das relações de trabalho, no sentido de apresentar como a cidade vem se transformando, para posteriormente tratar das novas espacialidades construídas na cidade. Contudo, tal encaminhamento não se reduz a essa separação simples, pois temporalidades e espacialidades estão sendo analisadas em toda a obra, mas em alguns momentos a temporalidade dirige a discussão, em outras, a sobredeterminação é inversa, tendo na espacialidade o foco. No primeiro capítulo vamos em busca daquilo que deu condições para a concretização da realidade atual. Em outras palavras, procura-
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mos o que precedeu e deu suporte a essas mudanças. Estaremos nos perguntando como chegamos até essa realidade. Investigaremos como, a partir de um determinado momento, a reestruturação produtiva teve implicações junto às cidades e às frentes marítimas. Abordaremos como o surgimento de novos valores articulados ao tecido urbano, juntamente com novos sistemas de produção e novas realidades de mercado, contribuíram para a transformação das cidades. Abordaremos as mudanças no próprio papel das cidades: a passagem de uma economia baseada na indústria para outra em que há o predomínio das atividades ligadas aos serviços e ao consumo. Estaremos focados no sentido material, morfológico do urbano, mas entendendo que essa forma está ligada a um produto social, modelado e condicionado pela estrutura social, mas em interação com a sociedade. Privilegiaremos uma dimensão que diz respeito à localidade em termos materiais e imateriais, em relação às trocas e às relações com o entorno. Estaremos considerando o espaço como um produto social, mas simultaneamente em sua interação social, ou seja, engendrado pelo modo de produção (sendo produzido para dar sustentação para a estrutura socioeconômica), mas também inter-relacionando-se em todos os níveis, ou seja, com as forças produtivas, organização do trabalho, relações de propriedade, instituições, ideologias etc. No segundo capítulo, ainda estaremos no âmbito da busca daquilo que deu condições para a concretização da realidade atual, contudo, agora, estaremos nos debruçando sobre alguns atores sociais que se tornaram fundamentais para a realização das transformações por que passam as cidades. Aqui privilegiaremos uma dimensão que terá como foco os sujeitos e, nesse sentido, estaremos analisando os grupos sociais envolvidos no processo, suas ações, reações e as interações; em outras palavras, estaremos tratando dos atores sociais que participam da produção do espaço. Discutiremos como as políticas de desenvolvimento urbano vêm se transformando e mudando a forma de administração urbana; como o discurso do empresariamento na governança das cidades vai sendo construído e posto em prática. Abordaremos também como vão se transformando as formas de intervenção nas áreas centrais das cidades e que tipos de negociação passam a ser determinantes para pôr em prática as transformações. É pre-
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ciso ter em conta que cada modo de produção produziu o seu espaço e, portanto, cada cidade é a materialização de um momento histórico com a sua especificidade (este debate também aparece no primeiro capítulo). No terceiro capítulo trazemos um panorama das transformações que vêm ocorrendo pelo mundo no que se refere às zonas portuárias e suas adjacências. Mostraremos como tem se espalhado por várias cidades um “quase padrão” de renovações e revitalizações urbanas. Após esse panorama, centraremos nosso foco mais especificamente naquilo que ficou conhecido internacionalmente como “Modelo Barcelona”. Aqui, traremos ao debate o próprio questionamento acerca da existência de um “Modelo Barcelona” e da necessidade de pensarmos nas especificidades de cada lugar para, então, pensarmos em projetos de transformações no espaço urbano. Desse modo, importaria ultrapassar o discurso dos técnicos – dos arquitetos e engenheiros – e chegar até os anseios da população do lugar. Aqui, estaríamos privilegiando a dimensão do uso do espaço, a vida que se dá no lugar. Também emergirão tensões, posto que há sempre um jogo – algumas vezes aberto, mas, na maioria das vezes, oculto – entre apropriação e dominação do espaço. Para tanto, estaremos investigando como foram tomadas as decisões acerca das transformações em Barcelona, buscando saber de que maneira a sociedade participou dessas decisões. Finalmente o quarto capítulo. Mesmo que aqui tenhamos como foco os projetos e as transformações que vêm ocorrendo na área portuária da cidade do Rio de Janeiro e em suas adjacências atualmente, quando falarmos do desenvolvimento urbano da cidade faremos alguns movimentos do futuro para o presente e para o passado, para, em seguida, voltarmos ao presente e depois ao futuro. Caminharemos no sentido de discutir como o surgimento de novos valores articulados ao tecido urbano, juntamente com novos sistemas de produção e novas realidades de mercado, contribuíram para a transformação da cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, estaremos trazendo ao debate os grupos sociais envolvidos no processo, suas ações, reações e interações. Aqui, torna-se imprescindível o debate acerca da mercadificação da cidade, do city-marketing e do discurso do empresariamento na governança da cidade. Abordaremos as negociações entre governo, empresariado e a população para implementar as transformações na zona portuária e suas
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adjacências; procuraremos trazer a visão da população acerca de tais mudanças e como os movimentos sociais têm se comportado frente a isso. Nesta parte juntaremos as três dimensões trabalhadas nos capítulos anteriores, quais sejam: uma dimensão que diria respeito à localidade em termos materiais e imateriais, em relação às trocas e às relações com o entorno; uma dimensão que teria como foco os sujeitos e, nesse sentido, estaríamos analisando os grupos sociais envolvidos na produção do espaço; e, finalmente, a dimensão do uso do espaço, a vida que se dá no lugar com todas as suas tensões. No epílogo procuramos enfatizar todas as contradições que foram explicitadas no decorrer da obra; e se agora, nesta introdução, tentamos colocar as coisas no seu devido lugar, no epílogo trilharemos caminhos que nos apontam aberturas e possibilidades, apesar dos riscos que isso possa trazer.
Capítulo 1
A reestruturação produtiva e suas implicações nas cidades
As cidades têm passado por transformações desde sempre, contudo, nas últimas décadas, temos observado que são demasiadamente intensas e cada vez mais rápidas. Não é possível pensarmos nas mudanças ocorridas no modo de produção capitalista desconectadamente da maneira como o espaço é apropriado e dominado. As transformações não se dão apenas na esfera da produção, mas também no âmbito do consumo. Isso é importante, pois o capitalismo vem escapando de suas crises de sobreacumulação através da produção do espaço e, assim, vão se realizando novos ajustes espaço-temporais que darão sustentação ao modelo socioeconômico. Desde o final do século XX temos ouvido um sem-fim de expressões que procuram dar conta do atual momento em que vivemos. É comum ouvirmos falar em pós-fordismo, pós-industrialismo, sociedade da informação, desindustrialização, desconcentração, flexibilização etc. Se há verdade nesses termos, há também grandes imprecisões. Aliás, muitas vezes surgem termos propostos para dar conta de tudo e que, na maioria dos casos, contribui mais para ocultar do que desvelar. Isto porque, por exemplo, desconcentração das plantas industriais não significa, necessariamente, descentralização do capital. As sedes das empresas continuam localizando-se nas grandes metrópoles, assim há simultaneamente desconcentração industrial e centralização do capital; há despolarização e polarização. As grandes cidades passam de uma economia baseada na indústria para outra ligada aos serviços, para um momento em que as tecnologias de comunicação e informação cumprem importante papel. Cada vez se torna mais fácil percebermos que mudanças nos padrões de produ 43
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ção, circulação e consumo significam mudanças nas formas espaciais. Ou seja, ao olharmos para o passado vemos que, na metade do século XIX, predominava o clássico sistema fabril, mas, em meados do século XX, havia o predomínio da produção em massa fordista e, atualmente, a maioria dos pesquisadores concorda estarmos passando por um momento de acumulação flexível, em que acreditamos ser possível falarmos de um tripé de sustentação baseado na flexibilidade da produção, do produto e das relações de trabalho. Talvez por isso o geógrafo estadunidense Michael Storper (1990, p. 131) tenha afirmado que “cada configuração particular consiste em um modelo de produção tecnológico-institucional historicamente determinado e compreende uma teia de técnicas de produção, relações de trabalho, métodos de organização da divisão do trabalho intra e interempresas, relações de gerenciamento e empresariamento, e assim por diante”. Neste capítulo, enfocamos como a reestruturação produtiva tem papel preponderante no arranjo espacial da cidade. Assim se torna importante aventarmos que, se houve por vezes, durante a análise, predomínio do foco sobre as forças produtivas, há agora destaque também nas relações de produção e reprodução. Evidentemente falamos de transformações que acontecem dentro do próprio sistema capitalista, contudo, convém atentar para o risco de cairmos na tentação – como alguns autores têm feito – de afirmarmos que nada mudou, que as relações de exploração capital-trabalho continuam as mesmas desde sempre. É preciso estarmos atentos e nos questionarmos insistentemente acerca do que vem mudando e quanto essa mudança pode efetivamente interferir na constituição da sociedade e da organização espacial das cidades; quanto essas mudanças, que podem não ser triviais, contribuem para a alteração da vida cotidiana em suas várias dimensões das práticas espaciais: social, econômica e cultural. É sobre isso que tratamos neste capítulo.
A reestruturação produtiva: a morfologia interage com o momento histórico É de conhecimento geral que a Revolução Industrial teve a Inglaterra do século XVIII como cerne. Grande parte dos autores tende a pensar
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as transformações espaciais associando-as às três fases da Revolução Industrial. Observamos que, durante bastante tempo, a fábrica foi representativa no que concerne à correspondência entre a forma do seu arranjo espacial interno e a organização espacial da cidade. Contudo, partilhamos da preocupação da geógrafa brasileira Sandra Lencioni (1991, p. 08) quando procura discutir “o fetiche da influência de novas técnicas na reestruturação urbano-industrial”. A autora reafirma a importância de não olharmos a introdução de novas técnicas, em si, como elemento reestruturador do espaço urbano-industrial. Não pretendemos cair nesse reducionismo, pois concordamos que a análise a partir apenas do viés tecnológico levar-nos-ia a não percepção do significado das transformações engendradas pelo fenômeno estudado. Temos percebido que, muitas vezes, se privilegia as ideias de eficiência e produtivismo que induzem ao determinismo tecnológico. Em geral, ressalta-se os aspectos positivos das transformações em curso, como “a tendência ao emprego de uma mão de obra mais qualificada, estável e escolarizada, dedicando, geralmente, muito pouca atenção aos graves problemas sociais que o atual processo de reconversão produtiva vem provocando mundialmente, como a segmentação do mercado de trabalho, o aumento do desemprego, a concentração da riqueza, o aumento da miséria e o enfraquecimento de importantes formas de organização da sociedade civil, como os sindicatos e comissões de empresa” (Leite e Silva, 1996, p. 49). Assim feito, esses fenômenos acabam sendo vistos como consequências inevitáveis do avanço tecnológico, ou mesmo efeitos passageiros que o próprio desenvolvimento resolverá. Isso é perigoso, pois denota a percepção do atual processo de reestruturação produtiva como algo determinado pela tecnologia e não como processo de construção social. Ademais, fica clara, também, uma visão de mundo e de ciência que se colocou na base do positivismo e que concedeu à técnica um papel central na vida humana. Os sociólogos Márcia de Paula Leite e Roque Aparecido da Silva (1996, p. 49) apontam, a partir da consciência desse problema, que isso leva a uma “valorização positiva do crescimento econômico e do desenvolvimento tecnológico, entendidos como sinônimo de desenvolvimento social e humano, de melhoria da qualidade de vida e de progresso”. Importa perceber que o desenvolvimento social é influenciado pela técnica, mas este não é o único fator responsável pelo rumo a ser toma-
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do pela humanidade. Não é à toa, que um representante da chamada Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas (1994), procura demonstrar que a razão foi sendo colocada a serviço da dominação e repressão do ser humano, e que a técnica acabou por adquirir um caráter ideológico. Além disso, devemos considerar a técnica como expressão de uma determinada relação social, isto é, de um projeto que tem sido imposto através de um embate entre agentes que também são sujeitos sociais com distintos projetos de racionalidade. O sociólogo francês Alain Touraine (1994, p. 220) enfatiza tal relação conflituosa que acaba por tornar-se expressão da tensão entre o triunfo da razão e a afirmação do sujeito. Aqui é importante pensar esse processo como algo construído não de cima para baixo, mas como uma espécie de negociação entre os atores locais e o mecanismo global. Não é possível compreender a relação sujeito-objeto sem as necessárias mediações para o terreno social e espacial, em que se desenvolvem as relações sujeito-sujeito expressas simbolicamente. Isso porque, como nos lembra o geógrafo João Rua (2003, p. 47), “os lugares são a expressão de relações tanto sociais como espaciais e são formados por conjuntos particulares de relações sociais que se fecham e interagem em localizações específicas. Entretanto, essas relações sociais que constituem os lugares não estão restritas a eles, pois são, também, construídas e operadas além deles, conectando os diferentes lugares e as pessoas que neles vivem”. É importante entendermos que “as pessoas constroem e representam os lugares, identificando-se com eles, mas tanto a construção, quanto a representação e a identificação com o lugar, mudam ao longo do tempo e estão sempre sendo postas em xeque”. Embora muitas vezes promova um discurso que parece justificar o desenvolvimento e as transformações espaciais pelo desenvolvimento da técnica, o geógrafo Milton Santos (1996, p. 141) demonstra, em algum momento, a preocupação em não cair nessa armadilha ao salientar que “a cada período técnico e de trabalho se associa uma forma paradigmática de organização espacial. O que não quer dizer que a técnica em si mesma defina o rumo seguido, já que não deve ser vista como evento isolado, mas como fator que permite encontrar suas relações”. Ou seja, dentro daqueles períodos técnicos a que se estaria referindo Santos importaria a busca de influências entre suas peças, isto é, seus elementos materiais e sociais. Isso porque há uma associação entre a técnica e as
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bases material e ideológica. Até porque a concretude dos sistemas de objetos acaba por condicionar a maneira como se conduzem as ações, ao passo que “o sistema de ações induz à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma” (Santos, 1996, p. 52). Importa reconhecer que, longe de se apresentar apenas como um fenômeno técnico, a revolução industrial significou acima de tudo uma transformação na ciência, nas ideias e valores da sociedade. É levando sempre em conta essa posição que devemos entender as fases do capitalismo. Em se tratando da “denominada mais-valia relativa, a mudança organizacional e tecnológica é posta em ação para gerar lucros temporários para firmas inovadoras e lucros mais generalizados com a redução dos custos dos bens que definem o padrão de vida do trabalhador” (Harvey, 1994, p. 174). Contudo, o desenvolvimento de novas tecnologias contribuiu para o crescimento do excedente de força de trabalho, o que, de certa maneira, proporcionou a utilização da extração de mais-valia absoluta até em países centrais. O geógrafo inglês ressalta o fato de as novas tecnologias de produção e de novas formas de organização permitirem “o retorno dos sistemas de trabalho doméstico, familiar e paternalista, que Marx tendia a supor que sairiam do negócio ou seriam reduzidos a condições de exploração cruel (...), a ponto de se tornarem intoleráveis sob o capitalismo avançado”. Significa afirmar que, atualmente, é possível observarmos formas de trabalho totalmente diferentes convivendo lado a lado. Destarte, o espaço externo à fábrica era regulado pelo mercado e esta regulação simultaneamente o dividia e o integrava. Além disso, percebemos algo definitivamente importante: a cidade não apenas era a responsável pela coordenação e controle da produção, mas, pela primeira vez na História – enaltece o geógrafo estadunidense Edward Soja (2000, p. 77) –, tornou-se locus da produção. Aqui se faz necessário esclarecer que estaremos considerando, conforme trabalhado pelo filósofo francês Henri Lefebvre (2001, 1999, 1994) e que vem desde a obra “O capital”, de Karl Marx, as duas acepções do termo produção. Segundo Lefebvre (2001, p. 80), os homens em sociedade “produzem ora coisas (produtos), ora obras. As coisas são enumeradas, contadas, apreciadas em dinheiro, trocadas. E as obras? Dificilmente. Produzir, em sentido amplo, é produzir ciência, arte, relações entre seres humanos, tempo
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e espaço, acontecimentos, história, instituições, a própria sociedade, a cidade, o Estado”. Ou seja, a primeira acepção estaria ligada à produção de bens e mercadorias, enquanto a segunda, à noção de que se produz, também, relações sociais, valores, ideologias e costumes. É a partir dessa consideração, que a geógrafa Ana Fani Alessandri Carlos (1999, p. 63) salienta o fato de que “a acumulação produz uma racionalidade homogeneizante inerente ao processo, que não se realiza apenas produzindo objetos-mercadorias, mas a divisão e organização do trabalho, modelos de comportamento que induzem ao consumo”. No Rio de Janeiro, as fábricas que surgiram na cidade não se localizavam apenas no centro e logo começaram a expandir-se cidade adentro. Com isso, os trabalhadores buscaram também se localizar próximos a essas fábricas. Nesse sentido, no fim do século XIX, as habitações destinadas aos trabalhadores dividiam-se entre moradias denominadas insalubres – cortiços, estalagens e casas de cômodos – e moradias ditas higiênicas – avenidas e vilas operárias. Fato era que a proximidade entre local de trabalho e de moradia,1 à época, constituiu-se fator de grande importância para patrões e empregados, portanto, era comum a construção de vilas operárias pelo patronato. Ademais, o Estado promulgou decreto (09/12/1882), que isentava de impostos aduaneiros e concedia outros benefícios às indústrias que construíssem habitações populares. Algumas rugosidades permanecem até hoje, seja na forma das casas das antigas vilas operárias na zona sul (na rua Pacheco Leão, em direção ao Horto), seja na zona norte (Figura 1.1), nas ruas próximas à antiga Companhia de Fiação e Tecidos Confiança Industrial (atual Hipermercado Extra-Boulevard – Figura 1.2). Segundo a arquiteta da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, Maria Paula Albernaz (1985, p. 53), outras modalidades de alojamento fo-
O arquiteto espanhol Jose Luis Oyón Bañales (2008) traz importante contribuição acerca da experiência cotidiana do trabalhador no espaço urbano em quatro grandes campos: segregação residencial, moradia, mobilidade e sociabilidade. Sua análise espacial abre novos caminhos para a compreensão do mundo do trabalho em Barcelona e mostra que o espaço urbano não foi apenas um simples receptáculo inerte dos processos políticos. Além disso, a ausência de mobilidade social e de reformas significativas nas moradias, transportes e equipamentos criou o contexto ideal para a manutenção de expectativas revolucionárias em alguns segmentos da classe trabalhadora, principalmente as menos qualificadas.
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Figura 1. Conjunto de residências no bairro de Vila Isabel
Alguns anos atrás, esse conjunto de residências foi restaurado pela prefeitura do Rio de Janeiro. Até meados do século XX, esse grupo de casas fazia parte da vila operária próxima da antiga Companhia de Fiação e Tecidos Confiança Industrial (atual Hipermercado Extra-Boulevard). Ainda hoje é possível encontrar, entre os moradores, antigos funcionários da velha fábrica. Foto: Alvaro Ferreira, 2003.
Figura 2. Hipermercado Extra-Boulevard, localizado na antiga Companhia de Fiação e Tecidos Confiança Industrial
O Hipermercado Extra-Boulevard manteve a mesma fachada da antiga fábrica, inclusive a chaminé e o grande relógio. Até pouco tempo era possível ouvir o apito da antiga fábrica nos horários que correspondiam à entrada e à saída dos antigos funcionários. Esse é apenas um exemplo de refuncionalização; poderíamos citar outros , como a antiga fábrica de cerveja Brahma, localizada na avenida Maracanã, que também foi transformada em supermercado, ou o Shopping Nova América, localizado nas antigas instalações da Companhia Têxtil Sul América. Foto: Alvaro Ferreira, 2003.
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ram identificadas, além das vilas operárias. Logo, puderam ser percebidos grupos de quartos ou casinhas como estalagens, ou ainda grandes casas coletivas e mesmo barracões. Esse tipo de organização da cidade encaminhou-se durante grande parte do século XX. Através da transformação das necessidades dos diversos momentos da organização das atividades econômicas, pudemos observar o desaparecimento de antigas atividades industriais em determinados bairros da cidade – como, por exemplo, na zona sul, Botafogo, Gávea, Jardim Botânico e Laranjeiras ou, na zona norte, Vila Isabel, São Cristóvão –, nos quais suas antigas formas passaram a servir a conteúdos novos, aproveitando a localização central ou outras vantagens dela decorrentes; ou seja, estaríamos observando diversas refuncionalizações. Velhas fábricas que se transformaram em hipermercados ou em shopping centers ou antigas sedes bancárias ou dos correios que se tornaram centros culturais são apenas alguns exemplos. Em uma obra na qual demonstra grande conhecimento acerca das origens dos problemas e o seu enorme amor ao Rio de Janeiro, o economista Carlos Lessa (2001, p. 347), ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), afirma que “antes da Primeira Guerra Mundial as indústrias estavam em São Cristóvão e nas proximidades do porto. Posteriormente, deslocaram-se para os eixos ferroviários”. Houve, contudo, mais mudanças, já que “a partir de 1946, com a inauguração da avenida Brasil, multiplicaram-se em sua região de influência grandes indústrias e depósitos, e alguns conjuntos habitacionais”. Essa expansão, no entanto, não foi duradoura, pelo contrário. Se no fordismo tivemos uma produção estandardizada e em massa, posteriormente, esse modelo passou a dividir espaço com um regime de acumulação que pode ser resumido em três grandes eixos: a autonomização da esfera financeira, a flexibilização e desverticalização (ou horizontalização) da esfera produtiva e, finalmente, a crescente integração produtiva da esfera do consumo e da reprodução. Optamos por não nos determos em uma longa e prolixa discussão sobre como se deram as relações de trabalho no modo de regulação fordista, até porque, já é de conhecimento geral uma vasta literatura acerca do assunto. O processo de desverticalização industrial que caracterizou a crise do fordismo nos países centrais, desde a década de 1970, segundo o cientista político Giuseppe Cocco (2001a, p. 17), “é interpretado como fenômeno
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aberto entre reestruturação tecnológica da grande indústria, por um lado, e a difusão social das lutas operárias, por outro”. A nova forma de administração utiliza um sistema de terceirização de várias etapas da produção, dividindo-a com outras empresas. Assim, podemos observar uma horizontalização das relações entre as empresas, que vai de encontro à anterior verticalização fordista (Ferreira, 1997, p. 08). Para tanto, a utilização das tecnologias ligadas à informática e às telecomunicações é importante. Tal procedimento, salienta o geógrafo Ruy Moreira (2000, p. 07), veio contribuir para a resolução do problema dos estoques, “com sua repercussão nas taxas de custo, produtividade, lucro e vendas, que praticamente desaparece”. Todavia, se essa nova forma de organização supera antigos problemas, por outro lado recria alguns, quais sejam: o nível de investimentos acentua-se e a economia centraliza-se em um número ainda menor de empresas, levando a um maior monopolismo. Esse processo já era identificado por Lencioni (1991; 1994) na questão da desconcentração industrial em São Paulo, quando procura esclarecer a relação entre centralização e desconcentração, concluindo que a desconcentração no estado é fruto de uma maior centralização do capital. Inclusive, ressalta o fato de que “a decisão e controle do processo de valorização do capital não só continuam concentrados social e espacialmente, como são reiteradamente reforçados apesar da relativa dispersão dos estabelecimentos” (Lencioni, 1994, p. 57). Em um momento em que impera a flexibilidade das relações de trabalho, não podemos negar que isso significa a desconcentração de unidades das grandes organizações e, também, múltiplas conexões com pequenas empresas. Tanto a desconcentração quanto as subcontratações de serviços tornam-se ainda mais viáveis devido à integração dos sistemas informacionais entre as empresas, em que múltiplos microcomputadores interagem conectados à internet, gerando uma horizontalização das relações. Novas formas espaciais, e, ainda mais importante, uma nova lógica espacial emerge como resultado dessas transformações. Percebemos, então, o crescimento do domínio das grandes empresas, a desconcentração de gerenciamento, a subcontratação da produção e de trabalhadores através da utilização de um sem-número de pequenas e médias empresas e da conexão entre eles via internet. O resultado disso é a formação de uma complexa, hierárquica e diversificada estrutura orga-
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nizacional, que mantém uma relação horizontalizada entre as empresas subcontratadas, os trabalhadores subcontratados e as unidades da empresa em si. Ou seja, processos que eram sucessivos, horizontalizam-se, dando lugar a uma maior sincronicidade dos processos. Logo, as mudanças que ocorrem na estrutura socioeconômica, juntamente com os processos decorrentes de tais mudanças, levam a transformações nas formas do espaço urbano. Outras vezes, por serem por demais custosas, opta-se por refuncionalizar antigas formas já existentes; é esse o caso da maior parte das construções localizadas no centro do Rio de Janeiro. Assim, as novas tecnologias de comunicação e informação contribuíram para uma aceleração da produção, que foi alcançada graças a mudanças organizacionais na direção da desintegração vertical – utilização de parcerias e subcontratações –, que reverteram a tendência fordista de integração vertical, na qual a empresa era responsável por quase todas as fases produtivas, levando a um curso cada vez mais indireto da produção, mesmo diante da crescente centralização financeira. As inovações nas tecnologias de informação agem como uma poderosa ferramenta para as mudanças organizacionais e para a reestruturação econômica; todavia, simultaneamente, impõem novas formas de gerenciamento e de trabalho. As tecnologias de informação e comunicação, ao mesmo tempo, possibilitam a desconcentração e a centralização – no que se refere ao comando –, tornam possível ser flexível e hierárquico. Nesse complexo processo, nem a centralização nem a desconcentração são dominantes; fundamental é a relação entre os dois processos. Em princípio, decisões estratégicas são centralizadas; o gerenciamento organizacional é basicamente desconcentrado, mais ainda nas grandes áreas metropolitanas; serviços de distribuição são espalhados pelo território. Por outro lado, a característica principal desses espaços é a sua inter-relação, em que o que está em jogo é o espaço dos fluxos. Isso não significa, segundo o sociólogo Manuel Castells (1991, p. 169), que estejamos tratando de um não lugar. Sabemos que o centro das decisões continua espacialmente localizado nos grandes centros metropolitanos, que o serviço de distribuição se encontra disperso pelo território e que, em grande parte, as atividades de criação, projetos, design têm se deslocado para áreas não necessariamente no centro das cidades e, muitas vezes, para a própria casa do trabalhador. Assim, percebemos que cada
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um dos componentes organizacionais se encontra locacionalmente orientado. As novas tecnologias produtivas e as novas formas organizacionais permitiram a enorme redução do tempo de circulação do capital – uma das chaves da lucratividade capitalista. Como observa Harvey (1994, p. 148), “a aceleração do tempo de giro na produção teria sido inútil sem a redução do tempo de giro do consumo”. Sobre este aspecto, tiveram importância capital a propaganda e o marketing, que acabam permitindo a efetivação de “modas fugazes” e de novas formas de indução ao consumo. As imagens se tornaram, em certo sentido, mercadorias. Tal fenômeno contribuiu para que o filósofo francês Jean Baudrillard (1991a, p. 65) afirmasse ter agora, o capitalismo, a preocupação predominante com a produção de signos, imagens e sistemas de signos, e não com as próprias mercadorias. A aquisição de uma imagem, por meio da compra de um sistema de signos, como roupas de grife e o carro da moda, se torna um elemento singularmente importante na autoapresentação nos mercados de trabalho e, por extensão, vem a ser parte integrante da busca de identidade individual, autorrealização e significado da vida. A própria maneira de encarar o mercado de trabalho e as suas formas é apresentada como mercadoria. Assim, passamos a perceber a sociedade como objeto de consumo dirigido, levando-nos a afirmar que o próprio consumo passa por um controle e ordem. Atualmente, torna-se impossível não considerar o processo de globalização como produto da exacerbação do capitalismo e da criação e ampliação da sociedade de consumo. Em um mundo que esvazia as pessoas de sua identidade por meio do mecanismo de homogeneização, o consumo passa a ser uma fábrica de identidades. Agora, mais do que antes, podemos afirmar, junto com a socióloga Isleide Fontenelle (2002, p.17), que, se o valor de uso já se submete ao valor de troca no mecanismo central de reprodução do capitalismo, na fase da sociedade de consumo e da supervalorização das imagens, nós passamos a consumir a construção da representação do produto, antes mesmo de consumi-lo enquanto mercadoria em sua concretude. Senão vejamos, em sua análise, Karl Marx (1978) destacava a potencialidade dos trabalhadores atuando conjuntamente, em cooperação. Essa força advém da proximidade e da emulação entre eles, mas ela
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aparece como uma propriedade do capital. Marx percebia o desenvolvimento da força produtiva do trabalho em oposição ao trabalho mais isolado dos indivíduos. O geógrafo inglês David Harvey (1994, p. 98) afirma que Marx iluminou o processo de produção capitalista quando trouxe à tona a questão do fetiche, pois acredita que “as condições de trabalho e de vida, a alegria, a raiva ou frustração que estão por trás da produção de mercadorias, os estados de ânimo dos produtores, tudo isso está oculto de nós ao trocarmos um objeto (o dinheiro) por outro (a mercadoria). (...)Todos os vestígios de exploração são obliterados no objeto”. Dessa forma, Marx (1996, p. 673) entende que a produção capitalista devia ser encarada em seu conjunto, “ou como processo de reprodução, que produz não só mercadoria, não só mais-valia; mas que produz e reproduz a relação capitalista”. Isso se torna ainda mais grave se considerarmos algo como uma dupla fetichização. Ou seja, Marx (1996, p.79) afirma que o fetichismo da mercadoria transforma as relações humanas em relações entre coisas. Atualmente, também essas coisas são fetichizadas através da construção da imagem da própria coisa (no caso a mercadoria). Isso é muito importante, pois enaltece a tentativa da mídia e das grandes empresas de definir as referências culturais para a sociedade como um todo. Evidentemente, as transformações não se resumem à produção da mercadoria, mas também estão ligadas à circulação e à formação dos consumidores. Assim, percebemos uma progressiva fragmentação dos mercados de consumo, criando vários nichos, associados a uma miríade de estilos de vida e a sua hierarquização. Estamos falando da mudança de uma produção em massa e com produtos estandardizados para uma produção por demanda de produtos cada vez mais diferenciados. A efemeridade da moda encontra eco em um consumidor propenso a comprar produtos com um ciclo de vida muito menor. Baudrillard (1991a, p. 71) mostra-se um analista do sistema de dominação, no qual “a relação entre o indivíduo e a sociedade é permanente e complexa. Na sociedade, cotidiano e consumo estão totalmente interligados e a efetivação do poder da mídia exerce forte influência sobre a perda do valor simbólico original do valor de uso, que tem ligação direta com a cultura”. Quando se perde esse valor, abre-se a porta à manipulação. Em contrapartida e de forma geral, a crítica que se faz da
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sociedade de consumo é o controle moral do desperdício e isso é muito pouco. O mercado de trabalho não escapa ileso dessa nova fase do capitalismo, a flexibilidade da produção vai mais do que nunca deixar clara a divisão da categoria de assalariados, que, segundo Leborgne e Lipietz (1990, p. 27), passa a se constituir em um segmento rígido e um flexível. Este mecanismo vem definindo uma classe de trabalhadores permanentes, gozando de todos os direitos trabalhistas, e outra, geralmente formada por trabalhadores pouco ou não qualificados, que teriam contratos temporários de trabalho. Ainda assim, mesmo os trabalhadores regulares da empresa observam a implementação de jornadas com grande flexibilidade do horário de trabalho. Estamos nos referindo ao denominado “banco de horas”, que, em períodos de pico, impõe ao trabalhador uma maior dedicação de seu tempo; em contrapartida, em ocasiões de redução de demanda, dedicaria menos horas à empresa. A flexibilidade vai mais além, pois acaba por enfraquecer os sindicatos, golpeando o “trabalho organizado que sofre mutações e perde parte de seu poder político, de representação e de ‘conflitualidade’ ” (Mattoso, 1995, p. 69), já que há uma grande parte da mão de obra desempregada ou subempregada. É possível perceber um crescimento do trabalho em tempo parcial, do trabalhador temporário e do processo de terceirização, observado com a subcontratação de serviços de empresas de pequeno e médio porte. Resulta desse processo, a falta de cobertura de seguros, de direitos trabalhistas, de direitos de pensão e de segurança no emprego. Uma grande transformação ocorrida neste fim de século é que, ao invés de assalariados, em sua maior parte, protegidos, há cada vez mais assalariados fragilizados, ameaçados pelo desemprego. Percebemos que a possibilidade de permanecer no emprego e de construir um futuro garantido está cada vez mais distante. O emprego deixa de ser uma referência estável e uma garantia de integração à sociedade. Esse conjunto de transformações, como elucidam Ribeiro, Silva e Silva (2000, p. 11), é “extremamente veloz e dependente de mudanças técnico-culturais” e contribuiu para a reorganização das condições de competição no mercado internacional. Ademais, o conteúdo dessa mudança amplia e torna mais eficiente o processo de dominação realizado por meio do saber, posto que a própria ciência se transforma cada
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vez mais em valor de troca, isto é, em um produto de consumo imediato inscrito na reestruturação da economia e na reorganização da vida social (Ribeiro, Silva e Silva, 2000, p. 11; Ribeiro, 1994). O filósofo francês Jean Lyotard (1988, p. 05) , ao esclarecer essa mudança, afirma que “esta relação entre fornecedores e usuários do conhecimento e o próprio conhecimento tende e tenderá a assumir a forma que os produtores e os consumidores de mercadorias têm com estas últimas, ou seja, a forma valor. O saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e será consumido para se valorizar numa produção: nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo o seu próprio fim; perde seu valor de uso”. Essa transformação é que autoriza o sociólogo francês Robert Castel (1998, p. 157) a falar de uma “metamorfose do trabalho”, mas tal constatação não significa o fim do trabalho ou a perda de sua importância. Assim, “é ainda sobre o trabalho, quer se o tenha, quer este falte, quer seja precário ou garantido, que continua a desenrolar-se, hoje em dia, o destino da grande maioria dos atores sociais. Nesse sentido, pode-se continuar a falar da centralidade do trabalho, no sentido de que ele permanece, positiva ou, muitas vezes, negativamente, no centro das preocupações da maior parte das pessoas”. Defende, também, o sociólogo Ricardo Antunes (2000, p. 83), a centralidade da categoria trabalho na sociedade contemporânea, ainda que tenhamos em mente as tendências em curso, seja em direção à “maior intelectualização do trabalho fabril ou ao incremento do trabalho qualificado”, seja em direção “da desqualificação ou da subproletarização no universo de uma sociedade produtora de mercadorias”. Antunes acredita que, mesmo em um processo produtivo tecnologicamente avançado, “ainda assim a criação de valores de troca seria resultado dessa articulação entre os trabalhos vivo e morto”. Para compreender melhor a posição de Antunes (2000), talvez fosse importante recuperar a distinção que faz Marx (1996, p. 55) entre trabalho abstrato e concreto. Afirma o pensador que “todo trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil e concreto, produz valores de uso”. Tal
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diferenciação mostra-se fundamental, pois o trabalho concreto expressaria a criação de valores socialmente úteis, enquanto o trabalho dito abstrato expressaria a execução cotidiana do trabalho, convertendo-se em sinônimo de trabalho alienado (Antunes, 2000, p. 87; Heller, 1977, p. 123). Dessa forma, a crise da sociedade do trabalho que alguns autores apregoam (Bell, 1973 e 1980a; Toffler, 1981), estaria ligada a uma possível crise do trabalho abstrato (como redução do trabalho vivo e ampliação do trabalho morto), pois acreditam que estamos caminhando em direção a uma sociedade pós-industrial, a uma sociedade da informação. Segundo o sociólogo estadunidense Daniel Bell (1980b, p. 508), estaríamos evoluindo para uma sociedade de serviços, em que as atividades ligadas ao setor de informação estariam deslocando para si números cada vez maiores da população economicamente ativa. O sociólogo vai além, ao enaltecer algo que acredita ser a mudança da própria fonte da criação de riqueza e dos fatores determinantes da produção. Entretanto, a ideia de um movimento em direção à sociedade da informação, levando ao surgimento de uma nova sociedade, que substituiria a do industrialismo clássico, parece exagerada. Não podemos nem almejamos negar a importância da tecnologia da informação, contudo, de maneira geral, essa tecnologia contribuiu para a aceleração de processos iniciados anteriormente, vindo a facilitar a implementação de determinadas estratégias de administração de empresas. Contribuiu também para a transformação do trabalho em diversas profissões e, além disso, para mudanças no que tange às formas de lazer e consumo. No entanto, junto com o cientista político e social Krishan Kumar (1997, p. 164), acreditamos que “os imperativos de lucro, poder e controle parecem ser tão predominantes hoje como sempre foram na história do industrialismo capitalista. A diferença reside na faixa e intensidade maiores de suas aplicações, tornadas possíveis pela revolução nas comunicações, mas não por qualquer mudança nos princípios em si”. É importante termos em mente que a noção de trabalho é um constructo social, e Lefebvre (1981, p. 34) afirma que essa atividade deveria ser percebida também como uma representação. Tal afirmação levanta-nos, então, novas preocupações, já que as representações têm o poder de bloquear ou gerar uma opacidade no que se refere à busca da compreensão dos fenômenos. As representações têm elevada importância
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na obra de Lefebvre, o que o faz acreditar que “a representação não é aparência reificada, como o era para Marx, mas substituindo coisas, produtos, obras, relações, acaba se tornando socialmente concreta”. Portanto, as representações do trabalho – no capitalismo – fizeram com que a sociedade o visse como algo natural e, hoje, totalmente institucionalizado, fazendo com que homens e mulheres passem grande parte de suas vidas dedicando-se a tarefas que, em princípio, não eram desejadas. Isso é importante, já que as atividades humanas sempre existiram – embora cada uma delas tivesse seu tempo e local particular, pois não havia uma forma de atividade abstrata e geral denominada trabalho. Somente o moderno sistema produtor de mercadorias “criou, com seu fim em si mesmo da transformação permanente de energia humana em dinheiro, uma esfera particular, ‘dissociada’ de todas as outras relações e abstraída de qualquer conteúdo, a esfera do assim chamado trabalho” (Grupo Krisis, 2000, p. 10). Nesse momento, as relações de espaço e tempo sofrem uma mudança radical, já que o lugar de viver e o de trabalhar são separados e, também, o tempo deixa de ser tempo vivido para tornar-se matéria-prima do capitalismo. Acreditamos ser por isso que Lufti, Sochaczweski e Jahnel (1996, p. 29) afirmem que com o trabalho industrial nasce a sua representação quantitativa, sua medida pelo tempo de atividade. A quantificação abstrata do trabalho por tempo é redutora em relação à função do trabalhador, e pressupõe o relógio e a hora. Entretanto, “a medida do trabalho não é trabalho, assim como a medida do tempo não é o tempo (...). A medida do trabalho é a sua representação . O suporte dessa representação é o relógio, que permitiu a produção e o salário generalizado, o desenvolvimento do capitalismo e seu adágio “tempo é dinheiro”2 (Lefebvre, 1981, p. 29). Eis o porquê da afirmação de que a representação do trabalho substituiu o trabalho, deslocando o representado. Foram afirmações como essa que levaram Baudrillard (1991b, p. 07), logo no início de seu livro Simulacros e simulação, a usar uma citação do Eclesiastes que enuncia: “o simulacro nunca é o que oculta a verdade – é a verdade que oculta, A tradução é nossa e optamos por fazê-la sempre que julgarmos importante utilizar-nos de citações de autores que estejam em língua estrangeira, sendo, portanto, de nossa inteira responsabilidade. 2
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que não existe. O simulacro é verdadeiro”. Vivemos e compartilhamos representações, que desde muito se afastam de um possível real ou de uma possível verdade. Lefebvre (1981, p. 31) confirma essa posição ao afirmar que “a realidade se dissimula, logo se translucida e se modifica, representando-se. Contudo, a representação não consiste no imaginário, em um reflexo ou em uma abstração qualquer, mas sim em uma mediação, um diferente olhar ou em determinados olhares”. Lefebvre (1995, p. 106) acredita que o conhecimento (imediato) através da sensação – impressão sensível – apenas é possível “enquanto é uma ausência de conhecimento”. Ou seja, a sensação indica a coisa a conhecer e não aquilo que é; aponta para o Ser em geral de cada coisa, para a sua existência no mais vago sentido. Posteriormente, reafirma tal posição quando escreve que “dificilmente a sensação entra no conhecimento propriamente dito, embora seja o seu necessário ponto de partida”. Portanto, a percepção de algo já resulta de uma atividade prática e de um trabalho de entendimento, o que, com certeza, já levará à apropriação de algum tipo de representação. Não é correta a concepção do fim do trabalho como atividade útil e vital da atividade humana, até porque o trabalho, como criador de valores de uso, é indispensável à existência humana; nesse sentido, nossa concordância com o alemão Robert Kurz (1992, p. 22) não poderia ser maior, quando afirma que “a sociedade do trabalho, como conceito ontológico, seria uma tautologia, pois, na história até agora transcorrida, a vida social, quaisquer que sejam suas formas modificadas, apenas podia ser uma vida que incluísse o trabalho”. Os pesquisadores italianos Maurizio Lazzarato e Antonio Negri (2001), Negri (1999) e Giuseppe Cocco (2001a, 2001b, 1995) colaboram com o debate sobre a centralidade do trabalho sob a ótica do que denominam trabalho imaterial. Cocco (2001b, p. 09), logo na introdução do livro de Lazzarato e Negri, levanta importantes questões quanto aos motivos da resistência brasileira à utilização das contribuições teóricas desses autores sobre reestruturação produtiva e globalização. Assim, percebe que, no plano ideológico, “de maneira paradoxal e grotesca, um batalhão de críticos ferrenhos do capital acaba postulando que o horizonte das lutas precisa e depende da submissão à ‘maldição’ do trabalho assalariado (preferencialmente de tipo industrial!)”. No intuito de contribuir com o debate sobre a emergência do trabalho imaterial,
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Cocco (2001a, p. 17) faz importantes esclarecimentos quando de sua crítica à forma como alguns autores pensam as relações de trabalho. Acreditamos, não resta dúvida, que a classe operária não luta porque existe, mas existe porque luta. Aliás, luta justamente para se negar enquanto apenas força de trabalho e para romper com sua condição de classe explorada. Não resta dúvida, que, atualmente, ainda temos empresas utilizando o modelo fordista, contudo, o cientista político italiano estaria contribuindo para que, ao pensarmos a questão do trabalho, não nos tornemos “saudosistas das grandes homogeneidades da época taylorista e de todo determinismo implícito nas análises que apontam, na emergência dos paradigmas produtivos do pós-fordismo, apenas os determinantes da reorganização, especializada e flexível do capital e de suas firmas”. Os teóricos do denominado trabalho imaterial acreditam que estamos vivendo um momento em que a reestruturação industrial, associada a um regime de acumulação globalizado, tende à valorização da produção de conhecimento e do trabalho vivo, que se encontraria cada vez mais intelectualizado e comunicativo. Embora variando de empresa para empresa, percebemos a transformação do trabalho operário em trabalho de controle, de gestão da informação, de capacidade de decisão. Ainda assim, convém esclarecer que o grau em que isso é percebido varia de acordo com as funções e com a hierarquia ocupada pelo trabalhador na fábrica, todavia creem aqueles teóricos que esse processo seja irreversível. Acreditam Lazzarato e Negri (2001, p. 26), que tal processo não é a-histórico, “trata-se, ao contrário, de uma abertura e de uma potencialidade que têm como pressupostos e como origens históricas a ‘luta contra o trabalho’ do operário fordista, e mais recentemente, os processos de socialização, a formação e a autovalorização cultural”. Caso nos voltemos para a atual maneira segundo a qual se organizam as empresas, em que se observa diferentes formas de terceirização, a valorização cada vez maior das atividades de pesquisa e a utilização em grande escala das redes informacionais e de telecomunicação, perceberemos que o trabalho imaterial tem um papel estratégico na organização global da produção. Posto isso, o filósofo Antonio Negri (1999) acredita que “a integração do trabalho imaterial no trabalho industrial e terciário torna-se uma das principais fontes da produção e atravessa os ciclos
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de produção definidos precedentemente, que por sua vez a organizam”. O que nos leva à constatação de que não é nem o trabalho imediato, executado pelo operário – ou pelo trabalhador de forma geral – nem mesmo o tempo que ele reserva ao trabalho, mas a apropriação de sua produtividade geral o que interessa, ou seja, apropriando-nos de Lazzarato e Negri (2001, p. 28), “é o desenvolvimento do indivíduo social que se apresenta como o grande pilar de sustentação da produção de riqueza. (...) Logo que o trabalho em forma imediata cessou de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho cessou e deve cessar de ser a sua medida, e, portanto, o valor de troca deve cessar de ser a medida do valor de uso”. Fato é que cada vez mais percebemos uma mudança nas relações entre o trabalhador e a cidade, entre o capital e o trabalho. Castells (1996, p. 475) mostra-se também preocupado com as transformações que se fazem presentes nas relações entre o capital e o trabalho, e enriquecendo o debate explicita o caráter global do capital, enquanto, em contrapartida, como via de regra, o trabalho teve sempre um caráter local. A informatização levou à concentração e globalização do capital, utilizando-se do poder de descentralização que têm as redes. O trabalho teve sua organização fragmentada e sua forma de ação coletiva dividida. Dessa forma, o trabalhador acaba por perder sua identidade coletiva, tornando-se cada vez mais um indivíduo, ao invés de uma classe. A introdução das tecnologias de informação no setor industrial ou nos escritórios afetou profundamente a relação de trabalho, mas o impacto das transformações tecnológicas depende da forma como a tecnologia é usada e dos objetivos que levaram à sua utilização. O desenvolvimento experimentado pelas telecomunicações contribuiu de forma decisiva para a permeabilização das fronteiras nacionais a processos econômicos e culturais. Esse desenvolvimento esteve fortemente ligado a pesados investimentos em tecnologia, principalmente a microeletrônica, que logo se incorporou aos processos produtivos. As inovações adentraram os vários campos técnicos preexistentes, quais sejam: mecânica, eletromecânica e eletrônica. Tal movimentação produz e induz mudanças contundentes, seja no modo fabril, seja no modo organizacional. O professor de Planejamento Urbano e Regional Hermes Magalhães Tavares (1994, p. 270) qualifica como fundamental o conjunto de inovações tecnológicas com base na microeletrônica, pos-
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to que é responsável pela abertura do “caminho para a flexibilidade da produção e das relações profissionais na empresa”, caracterizando, também, “a segmentação da força de trabalho interna à empresa e um novo patamar na divisão social do trabalho interempresas, que assume a forma de subcontratação”. Tavares vai ao encontro do economista francês Alain Lipietz (1991, p. 163) e do geógrafo estadunidense Michael Storper (1990, p. 135) em sua constatação de que tais transformações caminham no sentido de reduzir o número de trabalhadores permanentes, e que, em contrapartida, promovem o crescimento do contingente de trabalhadores temporários. Essas transformações em muito diferem do momento fordista, em que a participação do Estado era bastante considerável, principalmente no que concerne à regulação da relação de trabalho, ao planejamento, à política industrial e a própria política habitacional. Ao que parece, o controle dos trabalhadores deixa cada vez mais de ter aquele caráter fordista e aproxima-se de uma espécie de controle mais geral e ao mesmo tempo mais complexo. Um controle que cada vez mais se amplia, controlando os fluxos, as informações, o consumo, a (des)organização do espaço e o cotidiano; tudo isso associando a produção do espaço das cidades a uma mudança de foco da economia.
As transformações das cidades: de uma economia baseada na indústria para outra ligada aos serviços? A mobilização da moda em mercados de massa forneceu um meio de acelerar o ritmo do consumo, não somente em termos de roupas, ornamentos e decoração, mas também de uma ampla gama de estilos de vida, hábitos de lazer e esporte. Outra transformação importante ocorreu com a passagem do consumo de bens para o consumo de serviços, não apenas serviços pessoais, comerciais, educacionais e de saúde, como também de diversão, de espetáculos, eventos e distrações. A publicidade e as imagens da mídia passaram a ter um papel muito mais integrador nas práticas culturais, tendo assumido agora importância maior na dinâmica de crescimento do capitalismo. Além disso, a publicidade já não parte da ideia de informar ou promover no sentido comum, pois se volta cada vez mais para a manipulação dos desejos e
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gostos, mediante imagens que podem ou não ter relação direta com o produto a ser vendido. Estamos falando de controle. Desde muito, quando começou a estudar aquilo que denominou de meio técnico científico-informacional, Milton Santos (1996, p. 147) enfatizava o fato de que a sociedade da informação estava associada à revolução do controle. A revolução do controle, a que esse geógrafo faz menção, parece ser o ponto-chave para a imposição da mais recente forma de relação capital-trabalho. Isso não significa que surge algo essencialmente novo no que se refere à relação de exploração, longe do fim, implementa-se uma maneira diferente dessa exploração. A extraordinária ascensão da flexibilidade, permitida pelas novas tecnologias, opõe-se à rigidez do trabalho em favor da mobilidade do capital. Além disso, busca flexibilizar ao máximo as relações de trabalho, fazendo com que este perca cada vez mais sua proteção institucional, levando a acordos individuais e a um maior poder de barganha por parte do empresariado. Não devemos esquecer que uma organização é um sistema social apoiado, também, em uma cultura empresarial, reunindo múltiplos fatores, dentre os quais poderíamos citar as relações de cooperação, mas também as de poder. Quando, anteriormente, se pensava em vigilância, estava-se remetendo à supervisão direta de um chefe imediato. Quando refletimos sobre a questão do controle, a manufatura significou uma mudança radical nas relações do trabalho sob todos os aspectos ao colocar para trabalhar dentro de um mesmo galpão, com a obrigação de realizar seu trabalho de modo integrado e sincrônico, artesãos que até então atuavam de maneira dispersa e individualmente nas oficinas. Essa mudança, inicialmente, não abole o trabalho artesanal, mas, segundo o geógrafo Ruy Moreira (1999, p. 31), “rearruma-o através da introdução de um sistema de controle e regulação cronométrica, que virá a ser a essência da relação do trabalho capitalista e a ossatura por excelência da modernidade”. Não é à toa que o geógrafo afirma ter sido a partir da manufatura, que a humanidade entrou verdadeiramente na história do sistema social baseado no lucro. Contudo, não se trata, para o capital, de produzir o lucro em caráter esporádico, mas de empreendê-lo de forma regular e continuada. Para tanto, o pressuposto é o capital ampliar-se sempre, o que só é possível na condição da produção regular, contínua, constante e ininterrupta do lucro, este que seria o veículo da acumulação.
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Dessa forma, tornou-se essencial o desenvolvimento do controle da troca e do controle da produção. Moreira (1999, p. 39) elucida essa posição quando afirma que devemos entender o “controle sob uma só mão, de modo a fazer da troca e da produção uma função da dinâmica da outra. Não há mercadoria para ser vendida se não há mercadoria sendo produzida, o que significa que a produção deve ser posta em correlação com a troca. Controlar então o lucro, de modo a dar-lhe um ritmo de regularidade na geração, realização e ampliação é controlar a simultaneidade rítmica das trocas e da produção”. Assim, o controle se deu a partir do processo do trabalho, ou seja, através do controle de quem trabalha. Era necessário controlar o tempo do trabalho. Quantificá-lo é instrumentar o seu controle. É decompor o valor das mercadorias, ou seja, “uma dada quantidade de valor é redutível a salário, lucro, juro, renda fundiária, e, de acordo com circunstâncias diversas, se reparte de maneiras diferentes por essas categorias” (Martins, 1999, p. 17), assim como a definição do que se quer reverter ao ciclo ampliado da acumulação. O controle da presença do trabalhador, o controle do respeito aos procedimentos e às regras prescritas perdem a força no contexto atual, já que o julgamento é feito essencialmente pelos resultados. Logo, não importa mais onde está quem recebe ou dá as ordens, a relação muda radicalmente, e é isso que leva o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001, p. 18) a afirmar que o empresariado pode se “livrar dos aspectos irritantes e atrasados da técnica de poder do Panóptico. (...) O que importava no Panóptico era que os encarregados ‘estivessem lá’, próximos, na torre de controle”. Estamos nos remetendo ao Panóptico de Foucault – aqui estamos nos referindo ao debate travado por Foucault, a partir de um projeto do século XVIII, sobre um dispositivo de controle visual de condenados –, uma construção circular com uma torre no centro. Os prisioneiros ficavam dispostos de forma a possibilitar a visão de todos os seus movimentos nas celas; em contrapartida, não conseguiam ter certeza de estarem sendo vigiados. O fato é que a torre “olha” para todos ao mesmo tempo; os prisioneiros são totalmente expostos e, no entanto, nada veem. Esse mecanismo de vigia fazia com que o controle fosse interiorizado nos prisioneiros, que automatizavam o poder que os controlava (Foucault, 1995, 1977; Maciel, 2000). Foi, de certa forma, essa espécie de controle por que passaram os trabalhadores nas fábricas de produção em série.
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Atualmente, o controle não mais se dá dessa maneira, porém continua a existir através do cumprimento de tarefas, em prazos cada vez mais apertados. Isto é, não se controla mais o tempo de trabalho, mas o resultado. O controle passa pelo cumprimento de tarefas preestabelecidas. O sociólogo britânico Richard Sennett (1999, p. 68) enfatiza a mudança na forma de controle do tempo, que “passou do relógio de ponto para a tela do computador. O trabalho é fisicamente descentralizado, o poder sobre o trabalhador ainda existe. Trabalhar em casa é a ilha última do novo regime.(...) Na revolta contra a rotina, a aparência de nova liberdade é enganosa. O tempo nas instituições e para os indivíduos não foi libertado da jaula de ferro do passado, mas sujeito a novos controles do alto para baixo.” A noção da existência do controle se manifesta, inclusive, na projeção do futuro através dos filmes de ficção científica; seja em “Blade Runner”, em que as ruas eram varridas por poderosos holofotes instalados em máquinas que sobrevoavam as cidades e observavam o que acontecia embaixo, seja em “Minority Report”, em que era possível identificar o local em que se encontrava qualquer cidadão a partir da identificação da íris, ou em “Matrix”, que seria uma espécie de evolução do Panóptico, que se expande a todos os domínios da vida. A Matrix exerce seu controle através da Rede e, dessa forma, não se limita ao espaço concreto, fechado; vai além, expandindo e criando o espaço. Não há mundo real. O mundo é pura interface e funciona como um jogo, um videogame. Para vencer esse jogo é necessário conhecer o sistema de simulação como um espaço de desconexão do real, pois dentro do sistema os movimentos dos corpos são totais, o tempo pode ser congelado e a velocidade é infinita. E ainda mais, dentro do próprio “movimento revolucionário” – que aparecia como uma espécie de vírus contra o sistema – percebemos a criação de mecanismos de defesa e controle da própria Matrix, que ora simulam a realidade, ora ocultam-na; em um movimento que, sem que os “revolucionários” percebam, os mantêm sob controle. O filósofo Gilles Deleuze (1992) afirma estarmos vivendo em uma sociedade de controle. O controle se dá em qualquer local; todo local é um ponto na rede de controle do sistema. Os pontos são cada vez mais multiplicados (“sorria, você está sendo filmado”). Percebemos a formação de uma rede entre poder, visão e informação. Ou seja, o trabalhador não se
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livrou do controle e o cidadão encontra-se, na grande cidade, também vigiado. Um sem-fim de câmeras cumprem o papel de dar segurança ao morador do condomínio fechado, ao trabalhador da grande empresa, vigiam o trânsito das ruas da cidade, a circulação no estacionamento do shopping center... Isso é perigoso, pois, ao aceitar as comodidades oferecidas pela tecnologia, as pessoas concordam em renunciar a parte de sua privacidade. Reg Whitaker (2001, p. 79),3 professor da Universidade de York, em Toronto, ao ser questionado sobre a invasão de privacidade, aponta para uma importante constatação ao falar sobre a aceitação dessa forma de controle pelas pessoas, já que “elas fazem isso em troca de produtos, serviços e segurança. O que torna esse processo irreversível é que ninguém está impondo nada a ninguém. É tudo consensual”. Ao permitirmos a instalação de câmeras no elevador ou na entrada do nosso edifício, para nos alertar contra a presença de um possível assaltante, concordamos, também, com que nossos passos sejam seguidos pelos porteiros e vizinhos. Apenas como ilustração, utilizar-nos-emos de reportagem da Revista Veja (30 de maio de 2001), que cronometrou quanto tempo uma estudante universitária era monitorada por dia. Desde que sai de casa pela manhã até retornar a estudante é monitorada pelas câmeras durante seis horas e trinta e cinco minutos. Recentemente, nos Estados Unidos, foi lançado o Digital Angel – chip do tamanho de uma moeda de um centavo –, que pode ser implantado sob a pele de uma pessoa e que segue enviando sinais eletrônicos que podem ser captados por um satélite, sendo possível rastreá-la em qualquer lugar do planeta. Na própria internet estamos sendo vigiados constantemente. Os sites, para bisbilhotar seus usuários, fazem uso dos cookies – registro eletrônico que o site envia para o disco rígido do computador sem que o usuário saiba –, que funcionam como uma espécie de impressão digital, pela qual o computador é imediatamente reconhecido na próxima vez que retornar àquele site. Assim, não é difícil compreender por que, quando entramos em determinada página – inclusive dos bancos em que temos conta-corrente –, somos imediatamente reconhecidos através de mensagens do tipo “bom dia, fulano...”
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Entrevista da Revista Veja de 30 de maio de 2001.
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Partindo da premissa de que a relação do trabalhador com a cidade está associada à sua relação com o trabalho, percebemos que a cidade construída inicialmente para proteger aqueles que moravam intramuros de invasores, e que teria sido rompida, agora é reconstruída. O geógrafo Yi-Fu Tuan (1980, p. 261), ao tratar da sua formação e de sua relação cada vez mais forte com os mercadores, afirma que a cidade mostrava-se isolada do mundo profano por meio de muralhas e que, quando “os residentes da cidade medieval se vangloriavam de que ‘o ar da cidade nos torna livres’, eles reconheciam o fato de que, além do muro da cidade, a liberdade era cerceada: os comerciantes humildes se amontoavam do lado de fora dos portões e, no campo, camponeses e servos labutavam sob a atenta vigilância de seus senhores feudais”. Os muros tinham um papel marcante nesse período, pois, segundo o geógrafo, “quando o visitante se aproximava de uma cidade podia ver à distância uma silhueta de torres. (...) Até bem avançado o século XII, mesmo os muros das cidades maiores eram simples. Com o passar do tempo foram se tornando mais elaborados e altos, atingindo alturas entre oito e nove metros”. Ao mesmo tempo em que se observava uma maior amplitude das relações comerciais e de circulação, observávamos, também, a separação. Então, podemos perceber enclausuramento e abertura, ou seja, fechamento e abertura, afastamento e ligação. Atualmente, a preocupação com a segurança provoca menos preocupação com a integridade da cidade como um todo – como propriedade coletiva – e mais “com o isolamento e a fortificação do próprio lar dentro da cidade. Os muros construídos outrora em volta da cidade cruzam agora a própria cidade, em (...) bairros vigiados, espaços públicos com proteção cerrada e admissão controlada, guardas armados no portão dos condomínios e portas operadas eletronicamente” (Bauman, 1999, p. 55). Ou seja, a cidade que se abria, volta a se fechar; mas o fechamento não se dá no sentido coletivo, justamente no momento em que o trabalhador vem perdendo sua identidade coletiva, tornando-se cada vez mais um indivíduo ao invés de uma classe, a cidade se fecha também dentro da própria residência. Mas não foi sempre assim. No início do século XX, na cidade do Rio de Janeiro, ainda não se havia rompido totalmente a unidade trabalho-moradia, então era comum o hábito de ceder aos trabalhadores locais de dormida no próprio local de trabalho. Tal fato se confirma, segundo
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o geógrafo Maurício de Almeida Abreu e a arquiteta Lílian F. Vaz (1991, p. 06), até mesmo pelo sentido dado ao termo habitação, já que “sob esta rubrica, os levantamentos incluíam todas as modalidades de construções, desde especificamente residenciais até as comerciais de todos os tipos, as institucionais e as industriais. Para o ‘Cadastro de Habitações do Distrito Federal’ de 1895, havia domicílios em todas as edificações da cidade, morava-se junto de todas as atividades produtivas”. Atualmente, a imagem do capitalismo não se mostra mais sobre a égide da fábrica, que implementa a produção em série e de um trabalhador voltado para uma atividade extremamente específica e repetitiva. Não é sem motivos, que vários autores afirmam que, pela primeira vez desde a fase inicial da Revolução Industrial, o arranjo espacial deixa de estar centralizado na fábrica e o próprio trabalho acabou por pulverizar-se entre empresas de centro e empresas subcontratadas (Bauman, 2001; Soja, 2000; Moreira, 2000, 1999; Harvey, 1996a, 1994). Destarte, a territorialidade da cidade incorpora a regulação da acumulação flexível e se utiliza de sua normatização, contudo, diferentemente do que antes ocorreu, não se dá como rebatimento da organização espacial do interior da fábrica, mas invertidamente, pois é o seu espaço interno que se modela nas regras que vêm de fora. Isso se deve à mudança que ocorreu junto à esfera de referência central da economia, já que – ao contrário das primeiras fases da Revolução Industrial, que se apoiavam na produção – agora se apoóia na esfera da circulação. Ou seja, a demanda define a atuação da fábrica. Resumidamente, Moreira (2000, p. 08) afirma que a transformação percebida nessa nova fase, de regulação flexível, foi então “a perda da centralidade da fábrica para atividades centradas na esfera da circulação, com seus reflexos sobre o trabalho”. Anteriormente, o espaço da cidade reproduzia a rigidez da fábrica. Segundo Bauman (1999, p. 24), “a totalidade social devia ser uma hierarquia de localidades cada vez maiores (...) já que a chave para uma sociedade ordeira devia ser procurada na organização do espaço”. Assim, os trabalhadores fabris sofreram as consequências das mudanças que se fizeram sentir tanto no mundo do trabalho quanto no modo de vida. O operariado teve de conviver com os signos de um cotidiano absolutamente urbano, em que os conjuntos habitacionais são construídos – como uma produção em série – para abrigar os trabalhadores da periferia suburbana. Ainda hoje, na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro,
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podemos observar a existência desses aglomerados homogêneos de tijolos dispostos às margens da via expressa, construídos próximos às fábricas que ali se localizavam/localizam. Contudo, a transferência das plantas industriais para fora da grande cidade, da metrópole, não significa descentralização, visto que o escritório central das empresas continua na grande metrópole e, nesse sentido, acredita a geógrafa Sandra Lencioni (1994), as decisões, o comando, o ambiente inovador e os serviços superiores continuam lá. Assim, há desconcentração das plantas industriais, mas centralização do capital. Como podemos ver, grandes mudanças foram sentidas no cotidiano das cidades. Transformações de caráter econômico, tecnológico, cultural, político e demográfico. Dentre tantas mudanças, uma salta aos olhos: a passagem de uma economia baseada na indústria para outra, em que há o predomínio das atividades ligadas aos serviços. Essa tendência, elencada pelo geógrafo espanhol Horacio Capel (1994, p. 123), e que teria sido denominada de contraurbanização, converte a grande cidade em um centro de produção de serviços antes que de bens, em um lugar de consumo antes que de produção. Assim foi possível constatarmos mudanças nos modelos de localização das atividades industriais. O grande volume de população que migrava para as metrópoles na segunda metade do século XX – mais intensamente nas décadas de 1960 e 1970 – reduziu-se imensamente, pois o crescimento do desemprego acaba por desencorajar esse movimento populacional. Além disso, como vimos, as plantas industriais saem das grandes cidades e vão se localizar em municípios menores no entorno das metrópoles. Se, durante muito tempo, a cidade, no imaginário social, esteve ligada à indústria, nas décadas recentes o que presenciamos foi o enorme crescimento das atividades ligadas ao serviço e comércio. Contudo, torna-se cada vez mais importante distinguir as atividades ligadas à comercialização de bens materiais e ao transporte e àquelas ligadas ao conhecimento, à educação, ao ócio, ao turismo, à saúde e à segurança, que têm um caráter menos quantificável. Dessa forma, também Capel (1994) enaltece o fato de que há nas metrópoles uma “tendência decrescente como centros de produção industrial e uma disposição crescente a converterem-se em centros de controle, de interação, de criatividade e de ócio”. Se cada vez mais é comum ouvirmos falar em desindustrialização, isso não significa dizer que a indústria se afasta daquilo que chamamos
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de urbano, que não é sinônimo de cidade. O urbano – como já enunciamos na introdução – está ligado à condição geral do processo de reprodução do capital, sendo simultaneamente produto desse processo. O urbano é um momento posterior à industrialização e, então, como “produto de contradições emergentes do conflito entre necessidades da reprodução do capital e as necessidades da sociedade como um todo” (Carlos, 1994, p. 14). O urbano transcende a cidade e, nesse sentido, é possível afirmarmos que o espaço urbano envolve o material e o imaterial, o objetivo e o subjetivo, o sujeito e o objeto, ideologias e representações. Assim, as cidades estariam ligadas à materialidade do momento atual, que apresenta contradições em sua própria organização espacial. Contradições expostas nas formas espaciais, que carregam em si a questão simbólica produzida pelas ideologias e representações, através das atividades políticas, econômicas e culturais, influenciando a própria formação da sociedade. Temos convivido com discursos via mídia, seja por parte do governo ou por parte do empresariado, que falam da importância de “revitalizar certas áreas da cidade”. A palavra revitalização, segundo o dicionário Houaiss, significa “ação, processo ou efeito de revitalizar, de dar nova vida a algo”; ora, essa expressão carrega consigo a ideia de que naquela área havia um tipo de vida que precisava ser mudado, era ultrapassado, quando, na verdade, talvez, aquela que lá existisse não interessasse ao Estado e aos empresários e promotores imobiliários.4 Esse discurso não se constitui um fato isolado, que vem ocorrendo na área central da cidade do Rio de Janeiro; ao contrário, não faltariam exemplos em várias partes do planeta. Autores como Smith (1996), Atkinson (2007), Lees, Slater e Wyly (2007) utilizam-se do conceito de gentrification – optamos por desenvolver um pouco mais à frente essa discussão acerca do uso desse conceito – ao tratar das políticas de transformação urbana de diversas áreas das cidades; em nosso caso, das áreas centrais principalmente. São investimentos de grande soma de capital dirigida ao setor imobiliário, o que acaba contribuindo para a expulsão de moradores dessas áreas. Goulart (2005), ao realizar um es-
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Retornaremos a este assunto no próximo capítulo.
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tudo sobre esse processo no Rio de Janeiro, encontra a frequente intervenção estatal vinculada às atividades culturais, “através dos negociantes de arte, designers, proprietários de galerias de arte etc.”; assim, “o setor artístico esteve na vanguarda de numerosos processos de gentrificação em países ricos, tornando-se capaz, nas palavras de Neil Smith (1996, p. 18), de transformar dilapidação urbana em algo ultrachique”. Esse movimento, na área central do Rio de Janeiro, adquiriu uma velocidade bastante contundente e tem envolvido a própria mídia na divulgação positiva do processo. São inúmeras matérias em jornais, revistas e nos telejornais. Dois dos principais jornais do país – O Globo e Jornal do Brasil – publicam, frequentemente, reportagens sobre a “grande transformação da Lapa”. Uma delas intitulava-se “O bairro está mudando novamente: é a sofisticação chegando na Lapa” (O Globo, 2002), refere-se a como os bares noturnos regados a chope ao ar livre começam a descer a avenida Mem de Sá e a rua do Riachuelo, onde se concentram as novidades. Outras reportagens falavam da inauguração de uma casa de shows sofisticada em 2003, do crescimento de bares com música ao vivo e das restaurações de antigos casarões (pelos próprios locatários). A rua do Lavradio, que passou 4 anos em obras de reurbanização (parte do projeto da prefeitura da cidade denominado Novo Rio Antigo), conta com um grande bar de música ao vivo em um antigo antiquário. Segundo o seu presidente, o Polo Novo Rio Antigo, criado em 2005, “é formado pelos principais estabelecimentos do centro histórico do Rio de Janeiro com o propósito de garantir o desenvolvimento [sic] para as regiões da Cinelândia, Lapa, rua do Lavradio, Praça Tiradentes e Largo de São Francisco”. O Polo conta com o apoio da prefeitura do Rio de Janeiro, através da participação da subprefeitura do Centro Antigo e tem parceria atuante do Centro Brasileiro de Assistência Gerencial à Pequena e Média Empresa (SEBRAE-RJ), do Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro (SindRio), da Federação de Comércio (FECOMÉRCIO) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC-Rio). Esse é o discurso constantemente veiculado; contudo, não se tem dito que aquela área tem (tinha) um caráter bastante residencial, mais especificamente, residencial para a população de baixa renda. Fato é que essa população tem sido cada vez mais afastada do seu lugar de moradia. É preciso, também, contestarmos a maneira pouco cuidadosa pela qual ainda é utlizada a palavra desenvolvimento; que força tem essa
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expressão! Praticamente tudo é permitido se for em prol do desenvolvimento. Esse discurso tem sido crucial para o desenho da própria identidade do país, pois, ao longo do tempo, foi amplamente difundida a ideia de que é preciso se desenvolver, é preciso ser moderno. Em nosso país, vários slogans, remetendo à importância do desenvolvimento, foram colocados na mídia desde meados do século XX, tais como “Brasil é o país do futuro” ou “Brasil: este é um país que vai pra frente”. Com isso, muitos países viveram e vivem uma modernização ilusória, com padrões de consumo imitativos, sem vínculo com as reais necessidades da sociedade. A população desses países têm experimentado a modernidade como uma ameaça a toda a sua história, tradições e objetivos. O desenvolvimento é concebido como item da modernidade, vista assim como modernização. Segundo o geógrafo João Rua (2007, p.149), “pode-se dizer que a modernização, como base concreta da modernidade, teve como conceito-gêmeo o progresso, e a ambos foi, após a Segunda Guerra Mundial, acrescentando o conceito-síntese de desenvolvimento, que passou a expressar aquela base concreta”. Progresso e modernidade são conceitos que acompanham o desenvolvimento, fazendo-se forte ideologicamente. Ele é um paradigma do projeto civilizatório ocidental a ser seguido por todas as sociedades. Há também o discurso que vê a noção de sustentabilidade como substituta da ideia de progresso, mas não há sequer um consenso acerca do que venha a ser efetivamente sustentabilidade. Assim, afirma-se que é sustentável o conjunto de práticas portadoras de sustentabilidade no futuro, contudo, como nos lembra o professor de Planejamento Urbano e Regional Henri Acselrad (2001, p. 30), “a experiência histórica registra exemplos no mínimo discutíveis dessa utilização política do futuro: ‘é preciso crescer para depois distribuir’, ‘estabilizar a economia para depois crescer’, ‘sacrificar o presente para conquistar o futuro’ etc.” Se essas expressões já nos causam calafrios, os riscos aumentam quando sabemos que “os que ocupam posições dominantes no espaço social também estão em posições dominantes no campo da produção das representações e ideias.” Isso é importante, pois o Estado e o empresariado estiveram fortemente ligados a um projeto que se calcava no discurso do desenvolvimento; assim, ao incorporarem a ideia de sustentabilidade, evidentemente, procuraram dar a ela um conteúdo que lhes seja adequado.
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Ganhou, na década de 1990, ainda mais força o discurso da abertura da economia brasileira à globalização, que teve, como uma de suas características, uma racionalidade que defendia a inserção competitiva do Brasil na economia global; o que se viu foi a reorganização dos espaços produtivos e a corrida por parte dos governantes das cidades, visando a colocá-las em um lugar de destaque na competitividade do mercado mundial. Aqui, mais uma vez, a expressão desenvolvimento ganha relevância, pois, como nos lembra Cocco (2001c, p. 18), uma das consequências desse momento foi a construção de “um discurso aparentemente inovador, mas de fato completamente hipotecado pelo determinismo tecnológico dos fluxos e pelas antigas práticas de planejamento tecnocrático e instrumental, que tão profundamente caracterizaram a construção das bases industriais e infraestruturais do Brasil moderno”. Acredita Rua (2007, p. 165) que, na Geografia, alguns dos principais autores que se ocuparam em transformar essa visão em um instrumental teórico para a análise espacial foram Neil Smith e David Harvey. Contudo, teria sido Harvey aquele que “mais proficuamente se tenha debruçado sobre essa temática e que mais solidamente elaborou os conceitos de desenvolvimento geográfico pouco uniforme e desenvolvimentos geográficos desiguais” (1996, p. 403; 2000, p. 237; 2006, p. 87). Além disso, salienta a permanente preocupação desse intelectual em retomar a teoria marxista e “trazê-la para a Geografia, ao analisar as implicações espaciais da organização capitalista desigual do espaço, [procurando] fugir do economicismo e abranger outras dimensões, principalmente a política (ligada à ação política), [destacando] a fragmentação espacial (mais do que os antecessores)”. João Rua acredita que, acerca da temática em tela, pode resumir o debate de Harvey no seguinte: “o estudo da geografia da acumulação capitalista e a reconstrução da teoria marxista.” Tem-se, ainda hoje, utilizado a expressão desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico, contudo esse crescimento, definitivamente, não impede o aniquilamento da sociedade, pois não se trata apenas de desigualdades de desenvolvimento, mas da total destruição das relações sociais. Na verdade, quando há luta, ela se resume a ter condições menos ruins, nunca se refere à luta pela dissolução do modelo de exploração. Ou seja, não há busca pela mudança radical. A racionalidade econômica tende a estender-se a toda a sociedade, assim o
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lugar da reprodução das relações de produção é também o cotidiano do trabalho e do lazer, que se encontra extremamente ligado ao consumo, isto é, os tempos livres são cada vez mais comercializados. Não estamos mais nos referindo à reprodução5 dos meios de produção, mas à reprodução das relações de produção e esta compreende a produção e a criação de condições pelas quais pode continuar se realizando. Em outras palavras, o que se fez durante muito tempo foi a análise crítica da produção e da reprodução dos meios de produção; e nesse sentido referimo-nos à duas classes de objetos materiais: objetos de trabalho – quer dizer, processados pelo trabalho, como as matérias-primas – e os meios de trabalho, como as ferramentas usadas na produção. Outros objetos também devem ser considerados, justamente por facilitarem o emprego das ferramentas, quais sejam, edifícios, armazéns, portos, estradas e a terra. Quando falamos de reprodução das relações de produção, estamos lembrando que os trabalhadores têm de reproduzir-se; de forma mais clara significa dizer que precisam ter filhos, alimentá-los, educá-los e torná-los capazes de trabalhar. Além disso, no que tange às máquinas e instalações, há o desgaste, transmitindo o seu valor, calculado em dinheiro, aos produtos.6 Estamos focando, baseados em Karl Marx, o conceito de forças produtivas, que abrange os meios de produção e a força de trabalho. O desenvolvimento das forças produtivas comporta fenômenos construídos historicamente, como o desenvolvimento da maquinaria e demais modificações no processo de trabalho, além da descoberta e exploração de novas fontes de energia e, ainda, a educação dos trabalhadores. Assim, não seria impertinente acrescentarmos que a própria ciência – e não apenas as transformações dos meios de produção resultantes dela – e o espaço geográfico são forças produtivas; a posse do espaço confere uma posição na estrutura econômica, afirmação justificada pelo filósofo francês Henri Lefebvre Karl Marx, no capítulo XXIII do Tomo I de O capital, afirma que “qualquer que seja a forma social do processo de produção, ele tem de ser contínuo, deve repetir periodicamente as mesmas fases. Uma sociedade não pode deixar de produzir, como não pode deixar de consumir. Portanto, quando visto como um todo interligado, e no fluxo constante de sua renovação permanente, todo processo social de produção é, ao mesmo tempo, um processo de reprodução”. 6 Para maior aprofundamento, ver MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, 3v. 5
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ao escrever que “mesmo quando uma parte do espaço não tem conteúdo, seu controle pode gerar poder econômico, porque pode ser preenchido com algo produtivo, ou porque pode precisar ser atravessado por produtores” (1978, p. 51). Segundo o filósofo francês, importa lembrar que as técnicas e a maquinaria transmitem-se à organização e à divisão do trabalho e desde então já estamos tratando da base da reprodução das relações sociais. O próprio Lefebvre (1973, p. 49) radicaliza seu discurso ao afirmar que a escola é o local de reprodução das relações sociais de produção, pois “a escola prepara proletários e a universidade prepara dirigentes, tecnocratas e gestores da produção capitalista”. Ambas propagam o conhecimento e formam as gerações jovens segundo padrões, que convêm ao empresariado e à manutenção da propriedade privada. Estamos querendo dizer, que não mais o discurso econômico, mas o próprio cotidiano tornou-se a base sobre a qual o capitalismo se estabelece. A consciência vai perdendo sua função ativa à medida que o processo de reificação penetra nos setores não econômicos do pensamento e do cotidiano, isso porque esse conjunto econômico procura se apropriar de todas as manifestações da vida humana. Lucien Goldmann, filósofo e sociólogo da Universidade de Sorbonne, lembra-nos de que, em muitos textos, “Marx insiste no fato de que (...) o que caracteriza o valor de troca é que ele transforma a relação entre o trabalho necessário à produção de um bem e este mesmo bem em qualidade objetiva do objeto; é o próprio processo de reificação” (1977, p. 141). Assim, estamos falando de um processo social que faz com que o valor chegue à consciência da sociedade como uma qualidade objetiva da mercadoria. Importa percebermos que um dos pontos fundamentais da sociedade capitalista é mascarar as relações sociais entre os homens, transformando-os em seres passivos, “em espectadores de um drama que se renova continuamente e no qual os únicos elementos realmente ativos são as coisas inertes. (...) Substitui valor de uso por valor de troca e as relações humanas concretas [e específicas] por relações abstratas e universais entre vendedores e compradores” (Goldmann, 1977, p. 145). E mais, separa o produto do produtor, fortalecendo a autonomia da coisa com relação à ação dos homens e, o pior, contribuindo para a imobilização, para a naturalização e banalização das desigualdades; não há alternativa é a expressão mais ouvida.
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Continuamos acreditando que pensar as cidades e o urbano a partir do debate marxista, obviamente não de forma dogmática, e de sua associação com o reconhecimento dos interesses de classe ainda contribui bastante para desvelar a realidade. Retomando o debate anterior, em que apresentávamos um “projeto de revitalização” de certas áreas da cidade do Rio de Janeiro, mostrávamos certa associação do Estado e empresariado. Essa associação não é nova nem se resume à realidade brasileira. Talvez a grande ruptura de Marx com Hegel se dê na questão do Estado. Sabemos que para Hegel, o Estado consolida e complementa a sociedade (sem ele se desagregariam os elementos e os momentos da realidade social, ou seja, profissões, corporações, a família, enfim, as necessidades e as regulamentações). Para Marx, ao contrário, o Estado é apenas uma instituição que depende de suas condições históricas e que tem como função assegurar e conservar a dominação, defender os interesses da propriedade. O sistema hegeliano, nesse sentido, inibe a ação. Marx, por sua vez, entrou no pensamento como homem de ação; elabora uma estratégia para que contestemos e neguemos as instituições existentes, porque não podia admitir um sistema que sacralizasse o Estado e o direito existentes. O espaço ganha grande força, pois se o poder ocupa o espaço, que tem importante interação com o cotidiano, tais relações de poder podem servir como acomodação ou inquietação. O espaço torna-se cada vez mais o meio de reprodução das relações sociais, sendo hierarquizado, objeto de investimentos públicos e privados, reserva de valor ou mesmo deixado ao acaso e abandonado. Talvez a grande batalha deva centrar-se na necessidade de romper com a ocultação e buscar desvelar a sua dominação. Já na década de 1970, Lefebvre (1973, p. 96) acrescentava que “os espaços de lazer constituem objecto de especulações gigantescas, mal controladas e frequentemente auxiliadas pelo Estado (construtor de estradas e comunicações, aval directo ou indirecto das operações financeiras etc.)”. O espaço é vendido a alto preço aos citadinos e outros são “expulsos” de certas áreas da cidade; e isto vem se realizando nas imediações do bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, nas cercanias da zona portuária. O espaço torna-se o lugar da reprodução das relações sociais de produção e não apenas dos meios de produção, destarte, percebemo-lo como
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mercadoria. Porém, se o espaço é o lugar da reprodução, é também lugar da contestação, do encontro, da rebeldia, lugar da ação. E aqui estamos diante de grandes tensões, contradições; ou seja, se é no espaço da vida cotidiana que percebemos e vivemos o dia a dia, é nele também que os especialistas – cientes ou não do fato de que o espaço produzido interfere direta e indiretamente nas relações sociais7 – concebem seus projetos e os põem em curso à revelia dos habitantes do lugar. Muitas vezes, aqueles que deveriam ser os atores sociais da luta por mudanças, acabam por perceber e viver a partir da total naturalização de tudo, da banalização da miséria, da desigualdade. Por outro lado, há também aqueles atores sociais que, a partir da indignação, procuram formas de lutar contra o estado de coisas atual; as estratégias de suas práticas espaciais são fundamentais, posto que percebem que a produção do espaço é também instrumento de reprodução das relações sociais. Essa realidade tem, simultaneamente, criado um estado de convulsão social e de acomodação, contradições. Nesse momento, impossível não retornar ao eixo norteador do discurso do desenvolvimento, já que ele tem sido usado como justificativa para inúmeras ações por parte do Estado ou dos empreendedores, que, segundo seu discurso, visam ao crescimento do país. A atual aproximação entre desenvolvimento e sustentabilidade ganha cada vez mais força, entretanto, há conflitos dentro da própria construção dessas noções, que, ao se entrelaçarem em diferentes escalas, geram disputas entre os distintos atores envolvidos. Muitas vezes, o que, em princípio, seria bom para o planeta não necessariamente o seria para a cidade; esta afirmação pode parecer contraditória de forma geral, mas estamos pensando analiticamente as diferentes escalas. Por exemplo, cidades concentradas gerariam econoTalvez, por isso, Henri Lefebvre tenha escrito por diversas vezes que o espaço era produto e produtor, o que de alguma forma é problemático. Evidentemente, é preciso contextualizar o momento em que o filósofo francês está escrevendo e qual o seu objetivo. Trata-se de se colocar contra o discurso da importância do tempo em detrimento do espaço; ao enfatizar o espaço, correu o risco de ser criticado por fetichizá-lo. Todavia, uma leitura cuidadosa de sua obra deixa claro que tal fetichização não existia. Acreditamos que o espaço é produzido com uma intencionalidade e que, em cada momento histórico, são produzidas formas que lhe deem sustentação e que estas se encontram em interação com a sociedade. O próprio geógrafo Milton Santos ajuda a esclarecer tal interação em várias de suas obras, mas isso fica bastante evidente no livro A natureza do espaço, de 1996. 7
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mia de escala de transportes, iluminação, água e esgotamento sanitário (infraestrutura de forma geral) – o que favoreceria as estratégias de sustentabilidade global – mas, por outro lado, essas cidades poderiam sofrer com a maior poluição do ar e com a maior produção de rejeitos, o que traria malefícios à sustentabilidade em âmbito local. Há também uma outra leitura de sustentabilidade, também associada a desenvolvimento, que não se refere apenas à materialidade das cidades, mas também à identidade da população, à herança cultural que vem de muito tempo. Acreditamos, junto com João Rua, que “é preciso observar toda uma série de manifestações particulares, onde há marcos históricos que definem os diferentes momentos de construção da identidade local [aqui preferimos pensar em identidade do lugar à identidade local], sempre integrada à lógica dos diversos desenvolvimentos” (2007, p. 173). Não sem razão, o professor do programa de pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional, Carlos Vainer (2000, 1998), faz duras críticas à ideia de desenvolvimento local, até porque pensar o local como alternativa a outras escalas contribui para encobrir a natureza do desenvolvimento. Assim, acredita Vainer (2000) que o local constitui escala e arena de construção de estratégias transescalares e de sujeitos políticos aptos a operar de forma articulada com coalizões e alianças em múltiplas escalas. Propõe uma abordagem das relações interescalares, capaz de combinar, ao invés de opor, as múltiplas escalas. Por isso, acredita Rua (2007, 174), que a ideia de “desenvolvimento local escamotearia a lógica do capitalismo e não constituiria outro modelo de desenvolvimento”. Posto isso, Rua (2007, p. 179) acredita ser necessário o nosso retorno aos “autores críticos ao desenvolvimento e retornar à ideia de diferentes modelos de desenvolvimento – desenvolvimentos geográficos desiguais – e colocar como horizonte o desenvolvimento socioespacial que, por não poder ser apenas local (não pode haver indivíduos autônomos numa sociedade heterônoma), teria que ser de uma sociedade em escala mais ampla, traduzida em ações em âmbito local”. O geógrafo resgata importante contribuição do economista Amartya Sen (2000), que trabalha com a noção de desenvolvimento ligado a ampliação das potencialidades humanas, que, por sua vez, dependem de fatores socioculturais, como saúde, educação, direitos civis individuais e coletivos e liberdade. Assim, conforme Rua (2007, p. 180), a base material para o desenvolvimento é decisiva, mas é um meio e não um
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fim. Pode haver crescimento econômico sem que, automaticamente, se esteja diante de um processo de desenvolvimento. É preciso partir dessa percepção, pois temos observado a aceitação passiva, por boa parte da sociedade, do discurso e conteúdo da modernização: privatização dos serviços coletivos, transformação dos modos de vida, aceleração da compressão espaço-tempo etc. Contudo, como nos lembra a socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (2000a, p. 240), essa é apenas “uma das possibilidades abertas pela nova frente modernizadora, correlata a tendências observadas nos países centrais”. Importa valorizar a história única da sociedade brasileira e, obviamente, isso não significa que nossa cultura não contenha traços – inclusive fortes – de outras culturas. Talvez seja por isso que a socióloga acredite que existam “atos a serem reconhecidos e valorizados e, ainda, vozes a serem ouvidas e inscritas na formulação dos futuros possíveis” (2000a, p. 241). A noção de uma única forma de desenvolvimento que nos é imposta – e o que é pior, aceita – faz com que olhemos para o espaço urbano como problema e não como questão, faz-nos percebê-lo como atrasado em relação a este ou aquele modelo e não como objeto de luta e de utopia. Isso é ruim, pois se há nesse olhar críticas sérias, há também, como nos mostra Ribeiro (2000a), “projetos de nova modernização mimética e, assim, de rápida imposição de modelos e práticas que impedem a verdadeira modelização de futuros possíveis”. As ações ocorrem sempre no presente e é a partir da vinculação entre o passado – com toda nossa historicidade – e o futuro – com o projeto utópico que almejamos – que poderemos construir as mudanças. Estamos, então, certos de que as espacialidades e temporalidades do cotidiano não se separam da dimensão do concreto e, nesse sentido, como afirmamos anteriormente, devemos fugir do risco das reificações; senão estaremos caminhando na direção da naturalização das fraturas sociais, passando a ver como normais a segregação espacial e as enormes desigualdades na apropriação da cidade. Se escapamos dessa naturalização, a percepção das fraturas sociais – que são também espaciais – pode contribuir para a formação de movimentos de luta. Estamos falando da luta pela apropriação do espaço a partir da busca de racionalidades alternativas. Ribeiro (2005, p. 421) afirma que tais racionalidades ainda estão em processo de sistematização, “porém, ensaios dessa sistematização são identificáveis na repetição de formas
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de apropriação espacial por distintos atores políticos e movimentos sociais. Nessa repetição é possível reconhecer sintomas de que se encontra em germinação uma outra cidade (Santos, 2000), bem diferente daquela imaginada pelos que anseiam pela materialização, no país, da face luxuosa, gestora e contemplativa da cidade global”. É no cotidiano, na ordem próxima, que a ordem distante, com todo aquele discurso pronto do desenvolvimento – que difere da noção de desenvolvimentos desenvolvida por João Rua (2007) – tenta persuadir e se realizar. Escapar dessa armadilha é preciso, então, se falamos de uma produção da cidade e das relações sociais na cidade, estamos falando de uma produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mas do que de uma produção de objetos. É essa certeza que leva Lefebvre (1991, p. 47) a afirmar que “a cidade tem uma história; ela é a obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas”. Estamos falando de uma história de conflitos; a ordem distante tenta se projetar no âmbito da ordem próxima, contudo essa tentativa não deve ser tranquila. Precisamos entender que é a partir da ordem próxima que devemos buscar a transformação, pois é em seu âmbito, no cotidiano, que se encontram o direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar (Lefebvre, 1999, 1994, 1991, 1981, 1979; Harvey, 2006, 2000, 1996a, 1980). Apesar disso é comum ouvir comentários ou ler que não há mais movimentos sociais, ou que não passam de meros ativismos sem maiores pretensões. Não compactuamos com tais afirmações. É preciso lutar pelo direito à cidade em sentido amplo – que incorpora o direito à diferença e à informação –, que deveria modificar, tornar mais concretos e práticos os direitos do cidadão, usuário de múltiplos serviços. Direito ao uso da centralidade, dos lugares privilegiados, em vez de se ver dispersados, rechaçados em locais segregados para trabalhadores, para imigrantes e para marginalizados. Acreditamos que os espaços de representação são construídos no cotidiano e que, por mais que os movimentos pareçam estar perdidos em um grande labirinto, é justamente na busca das tensões entre os diversos agentes e atores que produzem o espaço urbano, que encontraremos o melhor caminho não só para a análise dos conflitos sociais, mas também para a transformação do estado de coisas atual. Assim, no
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próximo capítulo, aprofundaremos um pouco mais o debate acerca dos atores sociais e da produção do espaço urbano. Se, como vimos, a reestruturação produtiva traz mudanças no que tange ao rebatimento espacial da vida social, também é fato que a passagem de uma economia baseada na indústria para outra, ligada aos serviços, traz igualmente transformações, que tomam a cidade como um todo, mas que afetam fortemente a zona portuária e seu entorno no Rio de Janeiro.
Implicações nas zonas portuárias e nas adjacentes áreas centrais Ao falarmos nas transformações por que passaram e voltam a passar as áreas centrais e as zonas portuárias, temos que ter em mente a relação com a reestruturação produtiva e com a transformação de uma economia baseada na indústria, em outra fundamentada nos serviços, como vimos anteriormente. Evidentemente, mudanças são fruto do resultado de relações de poder entre os diversos grupos sociais envolvidos na produção do espaço, certamente nunca livre de tensões e conflitos. Desde muito tempo, o porto situara-se na área central da cidade, visto que era muitas vezes a própria atividade portuária a fomentadora do seu crescimento. Portanto, como nos lembra Capel (2005a, p. 542), o “porto comercial era um espaço intimamente imbricado com a cidade, mas também uma mescla de usos e de confusão”. As mercadorias eram armazenadas e comercializadas na cidade e o cais era um espaço público, uma rua que era utilizada para circulação e para lazer. No final do século XIX, aponta o geógrafo, ocorreram grandes transformações na estrutura portuária “como consequência da navegação a vapor e da aparição de navios com casco metálico”, mas mudanças ainda maiores tomam conta do porto e de suas adjacências. Eram píeres e armazéns com equipamentos mecânicos que facilitavam o descarregamento e transporte de mercadorias, inclusive conectando-se com estradas de ferro. Se por um lado essas inovações trouxeram mais dinâmica para as atividades portuárias, por outro transformaram aquele espaço em uma área reservada a comerciantes e estivadores, além de agregar ao seu entorno um conjunto de edifícios auxiliares a seu funcionamento
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(Capel, 2005a). Assim, em meados do século XX, a intensa ligação que o porto tinha com a cidade restringia-se ao fluxo de mercadorias, e, nesse sentido, é fácil entender porque Capel utiliza-se da afirmação do pesquisador da área de planejamento urbano Hans Meyer,8 que enaltece o fato de que agora “o porto já não está na cidade, mas junto à cidade”. Como já vimos falando anteriormente, a reestruturação produtiva traz consigo inúmeras consequências e os portos não são exceção, assim surge a necessidade de ampliação e modernização da infraestrutura portuária, observa-se a privatização e descentralização administrativa dos portos, percebe-se a concentração entre operadores e portos estratégicos da circulação mundial de mercadorias (acirramento da competição entre os portos) e, finalmente, a subutilização, abandono e decadência dos portos tradicionais. Em uma época de grande aceleração do fluxo de mercadorias e de diminuição das distâncias via barateamento do transporte e das tecnologias de comunicação e informação, as zonas portuárias acabam por apresentar grande importância; seja pela sua posição no fluxo internacional ou pela possibilidade de tornarem-se foco de grandes obras de renovações urbanas e, assim, configuram-se como possíveis localidades para vultosos investimentos. Desse modo, no bojo do transporte multimodal, o sistema de conteinerização9 teve relevante papel na redefinição de funções e na nova concepção das zonas portuárias e em suas áreas adjacentes. A aceleração a que fizemos menção fez com que se pensasse em uma espécie de rede central de distribuição dos produtos, que se concentra apenas nas rotas principais, devendo as rotas menores a ela se adequar, o que torna os fluxos ainda mais dinâmicos. A arquiteta brasileira Jenifer dos Santos Borges (2006) aponta para o fato de que “os grandes navios não fazem mais a comunicação de cada cidade com o seu desMEYER, Hans. City and port. Transformation of Port Cities. Urban planning and cultural venture in London, Barcelona, New York and Rotterdam: changing relations between public urban space and large-scale infrastructure. Rotterdam: International Book, 1999. Nesta obra, o autor faz um estudo comparativo entre os séculos XIX e XX nos portos das quatro cidades. 9 O economista espanhol Joan Alemany Llovera (1999) faz várias observações acerca do sistema de conteinerização e sua relação com as transformações nas zonas portuárias. 8
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tino de exportação dos produtos; eles elegem um determinado centro regional que funciona como polo concentrador de algum setor produtivo, para o qual devem ser escoadas as produções das cidades mais próximas”. Por isso, apenas aqueles portos estrategicamente localizados, bem preparados no âmbito tecnológico e com grande eficiência no carregamento e descarregamento de mercadorias, passam a receber os grandes navios. Esses parâmetros é que contribuíram para que a socióloga estadunidense Saskia Sassen (1998) tivesse afirmado, na década de 1990, que grande quantidade de centros fabris e cidades portuárias, anteriormente importantes, tenham perdido sua função. Nosso debate, desde o início, procura ter como foco a produção do espaço no Rio de Janeiro, caminhando do presente ao passado e do passado ao presente, na busca da apreensão das transformações, e, assim, pensar em outro projeto de cidade. Nosso ponto de partida e chegada é o Rio de Janeiro, pensado em sua interação com as múltiplas escalas. Assim, embora dediquemo-nos, neste momento, a debruçar-nos sobre as mudanças na área central da cidade, em outras partes desta obra essa discussão também está presente. Se durante bastante tempo a cidade restringiu-se a uma pequena povoação no Morro do Castelo e no que, posteriormente, ficou conhecido como centro, em seguida a expansão foi grande e veloz. O velho núcleo urbano limitava-se a um quadrilátero, que tinha como vértices os morros do Castelo, São Bento, Conceição e Santo Antônio; há ainda hoje nessa área várias igrejas que datam do século XVI e XVII, além do Paço Imperial, das instalações da antiga alfândega (atualmente transformada na Casa França-Brasil, um centro cultural) e do Convento do Carmo, por exemplo. Na área central, vários aterros foram realizados, dando origem ao terreiro do Carmo (atual Praça XV), onde foi construído o palácio dos vice-reis e o porto de pedra, para permitir a atracação de embarcações. Além disso, lembra a geógrafa Lysia Bernardes (1992) que nessa mesma área encontrava-se o chafariz do Mestre Valentim, que servia também para abastecer de água as embarcações. A área, que posteriormente tornou-se a zona portuária, era, inicialmente, ocupada por pescadores que dividiam o local com algumas chácaras, porém, no século XVIII, esse cenário ganha novos contornos, quando lá são instalados os trapiches e armazéns necessários à expansão da função portuária e comercial da cidade. Outro geógrafo, Elmo
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Amador (1992), acredita que as enseadas abrigadas constituíram-se em ancoradouros bem mais apropriados que os anteriormente utilizados nas proximidades do Morro do Castelo. Dessa maneira, o que se viu foi a total modificação do perfil do litoral, que passou a incluir aterros, trapiches, ancoradouros e armazéns, inclusive, são transferidos para o Valongo os armazéns de escravos, que agora chegavam em um local mais distante da elite. A partir de 1808, o litoral vai sendo ocupado do Caju até Botafogo e a localidade definida como zona portuária – as enseadas da Prainha, Valongo, Alferes e Gamboa – é intensamente ocupada por novas instalações e são realizados novos aterros. Ainda no século XIX, lembra-nos Amador (1992, p. 232), o porto estava repleto de obras, que compreendiam, “além da construção de um cais de 3.500 metros de extensão, entre a Praça Mauá e o canal do Mangue, o aterro do litoral da Prainha, do Valongo e dos sacos da Gamboa, do Alferes e da praia Formosa e ainda a eliminação do saco de São Diogo, com o prolongamento do mangue até o mar”. A função portuária da Baía de Guanabara, que a acompanha desde o início de sua ocupação, acabou levando à perda da forma sinuosa de seu extenso litoral em aproximadamente cinco uilômetros de extensão, através de aterros (Figuras 1.3, 1.4, 1.5 e 1.6). No primeiro quartel do século XX, com a industrialização, havia cerca de duas mil indústrias no Rio de Janeiro, que se concentravam principalmente na zona portuária, mais especificamente no bairro do Caju e de São Cristóvão. Evidentemente, aquilo que ficou conhecido como Reforma Passos tem papel importante em todo esse processo. O prefeito Pereira Passos, no período de 1902 a 1906, representa um momento de transformações ligadas à necessidade de adequar a forma urbana carioca às necessidades de criação, concentração e acumulação do capital. O Brasil vivia um rápido crescimento de sua economia; a intensificação das atividades portuárias e, como enaltece o geógrafo Maurício de Almeida Abreu (1986, p. 5), a “sua integração cada vez maior no contexto da economia capitalista internacional exigiam uma organização do espaço urbano e, principalmente, do espaço urbano de sua capital”. Assim, tornou-se fundamental a agilização do processo de importação e exportação de mercadorias; nesse sentido, a modernização do porto era necessária. No breve período da administração Passos, foi possível observar a abertura e o alargamento de ruas e avenidas,
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Figura 3. Reconstituição da morfologia da zona portuária do Rio de Janeiro por volta do início do século XVI
Fonte: http://portalgeo.tio.rj.gov.br/EOUrbana, em 19/06/2006.
Figura 4. Zona portuária atual com a indicação da área aterrada
Ao observarmos as duas imagens é possível perceber a grande quantidade de aterros por que passou a zona portuária da cidade, que ganhou formas retilíneas. Áreas da Baía de Guanabara, rios, mangues e brejos foram aterrados intensamente, chegando inclusive até as proximidades do Estádio do Maracanã. Fonte: http://portalgeo.tio.rj.gov.br/EOUrbana, em 19/06/2006.
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Figura 5. Reconstituição da morfologia da zona portuária em direção da Marina da Glória por volta do início do século XVI
Fonte: http://portalgeo.tio.rj.gov.br/EOUrbana, em 19/06/2006.
Figura 6. Zona portuária atual em direção da Marina da Glória com a indicação da área aterrada.
Nessas imagens observamos as áreas aterradas que deram origem ao Píer Mauá, à Ilha das cobras com o Arsenal da Marinha, ao Aeroporto Santos Dumont e à Marina da Glória. Fonte: http://portalgeo.tio.rj.gov.br/EOUrbana, em 19/06/2006
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inclusive foi construída a avenida Beira Mar – que ligava o Centro à Botafogo – e a avenida Atlântica, além de realizar obras de embelezamento em várias praças e iniciar a construção do Theatro Municipal; em associação com a União, foram construídos o novo porto do Rio de Janeiro, a avenida Central (que atualmente chama-se avenida Rio Branco) e a avenida Francisco Bicalho. Sem dúvida, as obras implementadas por Pereira Passos geraram a saída de grande parte da população mais pobre da cidade, que, impossibilitada de residir na área central, viu-se obrigada a habitar as encostas dos morros. Em 1919, o túnel João Ricardo foi aberto, ligando o bairro da Gamboa ao Campo de Santana, o que equivale a dizer que foi feita a articulação entre o eixo portuário e o centro da cidade. Em 1932 é terminada a obra do cais de São Cristóvão, em que se aterra uma extensão de cerca de dois mil metros entre o canal do Mangue e o Caju, que, segundo Amador (1992), consumiu uma área de, aproximadamente, 180 mil m2 da Baía de Guanabara. Contudo as transformações na zona portuária ainda não estavam encerradas, já que entre 1949 e 1952 foi construído o píer da Praça Mauá, através de um novo aterro (33.200m2), tendo sido inaugurado em 1962 o cais do Caju. A cidade do Rio de Janeiro, no século XX, tornou-se um grande canteiro de obras, que serviram para dar à cidade a cara que tem atualmente. O prefeito Dodsworth, entre 1937 e 1945, construiu a avenida Presidente Vargas, que tinha dois quilômetros de extensão e 80 metros de largura, o que representou um corte radical no centro do Rio de Janeiro. Foram postos abaixo cerca de 525 prédios, quatro igrejas e, inclusive, destruindo também a Praça XI; são edificados na nova avenida o prédio do Ministério da Guerra e a Estação Ferroviária Central do Brasil. A área central da cidade ainda sofreria com o desmonte do Morro de Santo Antônio em 1955, local escolhido para as comemorações do XXXVI Congresso Eucarístico, restando do morro apenas a parte que abrigava o Convento de Santo Antônio. Na área aberta pelo desmonte, posteriormente, foram edificados prédios públicos, como os da Petrobras e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A partir de meados da década de 1950, as transformações são comandadas pela opção pelo transporte viário individual, incluindo, por exemplo, a abertura de vários túneis, o Aterro do Flamengo e a avenida
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Perimetral. Como não se priorizou o sistema de transporte de massas, a necessidade de estar próximo ao local de trabalho contribuiu para o crescimento da favelização. A partir do último quartil do século XX, a decadência do porto do Rio fez com que a avenida Rodrigues Alves e a rua do Acre se tornassem desertas depois do fechamento dos velhos armazéns e dos escritórios das firmas do entorno. A transferência da capital para Brasília também contribuiu para o esvaziamento da área central, uma vez que muitos órgãos públicos foram para lá transferidos, levando ao fechamento de prédios federais e à subutilização de outros, como, por exemplo, os antigos prédios do Ministério da Fazenda e da Educação e o Instituto do Açúcar e do Álcool. A Baía de Guanabara, que cumpriu durante centenas de anos uma forte função portuária, vê o Porto de Sepetiba (ou de Itaguaí, como agora é chamado) – na Baía de Ilha Grande – ganhar grande importância nesse quesito. Esse porto conta com um canal de 18 metros de profundidade, que pode chegar facilmente a 22 , e com um retroporto de 10 mil hectares, sem risco de congestionamento, enaltece Lessa (2001). Os grandes portos precisam de canais de grande calado, bacias náuticas amplas, retroportos livres e articulação com redes ferroviárias e rodoviárias, e o Porto de Itaguaí dispõe de tudo isso. Inclusive, o governo federal e o estadual deram início às obras do Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, que ajudará ainda mais a expandir a capacidade de exportação do porto. O Arco ligará o porto até o município de Itaboraí, atravessando a Baixada Fluminense, totalizando 145 Km de traçado, com um investimento de aproximadamente R$ 1,4 bilhão. A obra, que terá 90% de seu custo sob responsabilidade do governo federal e 10% do estadual, terá pontos de intercessão com as rodovias Rio-Vitória, Rio-Bahia, Rio-Belo Horizonte, Rio-São Paulo e Rio-Santos, o que dá ainda mais importância ao porto. Ao mesmo tempo em que crescia a importância do Porto de Itaguaí, deu-se o arrendamento à iniciativa privada os terminais do Porto do Rio, o que de alguma forma acabou por gerar uma espécie de especialização comercial entre esses portos. O Porto do Rio teria como prioridades o turismo e lazer e o trânsito de passageiros, mas também os contêineres e o roll-on roll-off (Ro-Ro) no cais do Caju. A movimentação de carga abrange não apenas as conteinerizadas, mas também granéis
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sólidos – como trigo – e líquidos, como petróleo, produtos químicos e derivados. Outra importante mercadoria que se utiliza do Porto do Rio para ser escoada são os automóveis. Evidentemente, com o aumento de calado dos navios, a Companhia Docas do Rio de Janeiro mostrou-se preocupada e, através de uma obra de dragagem, elevou o calado de 10 para 12,5 metros, o que veio a favorecer os terminais de contêineres e veículos sobre o cais do Caju. Ainda assim, como salienta Cocco (2001c), uma das grandes objeções para uma política de desenvolvimento do Porto do Rio tem sido sua localização urbana, pois há falta de espaço e, também, disfuncionalidade com o resto das atividades econômicas de seu entorno. Além disso, a confusa distribuição dos pátios de contêineres em áreas adjacentes, juntamente com os problemas de acessos rodoviário e ferroviário, e a subutilização dos armazéns da zona portuária reforçam o discurso daqueles que defendem a transformação dessa área nos moldes de Barcelona. Realmente, é fato que a maioria dos portos tradicionais situavam-se próximos às áreas centrais das cidades – que muitas vezes ali se localizaram e cresceram justamente devido ao aumento das atividades portuárias –, o que acabou criando dificuldades físicas no que tange à expansão das áreas do porto, já que o próprio crescimento da malha urbana acabou comprimindo a região. Por outro lado, há aqueles que defendem o investimento na modernização desses velhos portos próximos às cidades; apostam em exemplos como os dos portos do norte da Europa – Antuérpia, Rotterdam, Hamburgo –, considerados de enorme importância. São portos de administração local que se utilizam da vantagem comparativa do complexo de serviços logísticos – desenvolvimento de plataformas e complexos multimodais sem perda da eficiência na qualidade do serviço – que essas cidades oferecem. Ou seja, “os serviços oferecidos pertencem fundamentalmente a um setor terciário avançado, que requer não apenas uma adequada rede de serviços informáticos e de comunicação, como também uma ambivalência comercial e industrial que só se encontra nas grandes cidades”, reforça Cocco (2001c, p. 87). Ou seja, nesse momento convém esclarecer que se trata de três modelos definidos a partir da relação entre o porto e a cidade, que se configurariam no hub port (porto concentrador de carga), em que o foco encontra-se na atividade portuária; na cidade portuária, em que se busca um certo equilíbrio
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entre as funções urbana e portuária; e o modelo de revitalização, em que as atividades urbanas realizadas em torno do porto são prioritárias. Assim, os hub ports concentrariam cargas e linhas de navegação, fazendo papel de nós de uma rede de circulação de produtos de determinado setor do mercado, criando um “corredor” de alta velocidade de movimentação de cargas. Três fatores principais, segundo o consultor de logística e comércio exterior Guilherme Bergmann Borges Vieira (2002), caracterizam um porto com hub: “o hinterland depende do potencial (...) de desenvolvimento da região em que o porto está localizado e dos custos de transportes terrestre e feeder (serviço marítimo de alimentação do porto hub ou de distribuição das cargas nele concentradas)”; o vorland, que teria ligação com a localização do porto em relação às principais rotas de navegação; e, finalmente, o umland, que seria o porto em si, com suas instalações, custos e qualidade do serviço. Um hub port necessita de grandes dimensões disponíveis para seus terminais de contêineres. As cidades portuárias teriam como característica a conexão entre as atividades portuárias e as atividades de comércio e de serviços de sua área de entorno. Acrescenta o sociólogo francês Thierry Baudouin (1999), que o porto ganharia função de instrumento do desenvolvimento local, uma centralidade a partir da qual as atividades urbanas desenvolver-se-iam. Por sua vez, há também portos em que se optou por não investir em adaptações aos novos padrões da navegação internacional, o que muitas vezes acabou levando ao abandono de parte de sua infra-estrutura. Assim, a estratégia empregada foi a utilização da área de seu entorno para atividades de outros fins; são os chamados projetos de revitalização. Em se tratando do Rio de Janeiro, a opção foi pelo desenvolvimento do Porto de Itaguaí em vez de investir na recuperação urbanística e na modernização do Porto do Rio. O Porto de Itaguaí passa, então, a ser considerado fundamental para que o Brasil adéque-se aos padrões mundiais e tenha em seu território um hub port, ou seja, um macroporto concentrador de cargas. Esse objetivo aparece claramente no Relatório de Gestão 1998 da Companhia Docas do Rio de Janeiro, quando se lê que o novo terminal “é o hub port do Atlântico Sul, opção estratégica para a integração do comércio brasileiro à rede dos portos de última geração do mundo”. (CDRJ, 1998) A verdade é que a cada vez maior conteinerização das mercadorias, associada ao aperfeiçoamento de suas técnicas de movimentação, con-
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tribue para a transformação das empresas de navegação, que se concentram em rotas regulares abrangendo todo o planeta. Para tanto, faz-se necessária a utilização de navios de grande porte, o que leva os portos a investirem pesado em dragagem de canais. Para salientarmos o que representa o Porto de Itaguaí em comparação com outros portos, basta lembrar que ele tem 19 metros de calado, enquanto os portos do Northern Ring europeu encontram-se entre 14 e 16 metros. Não temos o objetivo de encaminhar nosso debate na direção do Porto de Itaguaí, mas sim de concentrar-nos na zona portuária do Rio de Janeiro e suas adjacências. O processo de reestruturação produtiva certamente teve influência na maneira como as propostas de utilização da zona portuária vêm sendo desenvolvidas. Nesse sentido, é possível observarmos mudanças no modelo de planejamento dominante, que migra para as noções de empreendedorismo urbano e de planejamento estratégico, quando discursos, como os de revitalização, renovação, reabilitação ou requalificação, dominam os debates e tornam-se sinônimos de modernidade e desenvolvimento. Se lembrarmos que grande parte das zonas portuárias tradicionais teve origem nos núcleos de formação histórica das cidades, os centros históricos correm sérios riscos. Dessa maneira, dentro da lógica do empreendedorismo urbano, as áreas centrais das cidades surgem como locus apropriado para grandes obras de intervenção, que, segundo seus idealizadores, trariam maior dinâmica à cidade. Se desde o início do século XX havia o discurso acerca da preservação e restauração de prédios históricos, a grande questão que se colocava era como aliar esse patrimônio aos planos de renovação das áreas centrais. Contudo, com o passar dos anos outras expressões, como vimos anteriormente, foram estabelecidas e introduzidas no imaginário social, tais quais revitalização, reabilitação e requalificação. As palavras são muito importantes e têm grande força quando utilizadas com fundamentação, assim, ao falar de revitalização, diferentemente de renovação – que remete a grandes transformações do tecido urbano com alteração do conjunto de edificações e de usos, além de, conforme aponta a arquiteta Ermínia Maricato (2001), imprimir mudanças no parcelamento do solo, levando a uma nova dinâmica imobiliária da área –, devemos ter em mente o objetivo de apropriação do patrimônio histórico edificado, que é incorporado como elemento de atratividade
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do espaço urbano a ser “vendido”, ou seja, também estamos falando de valorização imobiliária e de mudança de usos, mas com esse diferencial. De forma geral, a ideia de revitalização liga-se a um processo de indução de grande transformação das áreas históricas centrais, em que a recuperação econômica é o objetivo principal. As obras de revitalização dos centros históricos têm se realizado fazendo uso da exploração do valor simbólico dos elementos culturais, visando a um diferencial competitivo. Curiosamente, os projetos propostos para essas áreas nas mais diferentes partes do planeta tendem a reproduzir os mesmos critérios, então, o que vemos é a repetição de estratégias e de paisagens. Por trás desses investimentos há o objetivo de atrair pessoas, principalmente turistas, ávidas por equipamentos de lazer, como bares, restaurantes, lojas de artesanato e de souvenires, galerias de arte e boutiques. Já as expressões reabilitação e requalificação urbana surgem em um tom de crítica aos resultados das renovações e revitalizações realizados. Esta afirmação vai ao encontro do que escreveu Maricato (2001, p. 126), afirmando que se referiria a uma “ação que preserva o mais possível o ambiente construído existente (pequenas propriedades, fragmentação no parcelamento do solo, edificações antigas), e, dessa forma, também os usos e a população moradora”. Assim sendo, haveria o incentivo do uso habitacional, o que não estava presente necessariamente nas propostas anteriores. O plano de reabilitação tomou força após o Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitação Urbana, sendo que a denominada Carta de Lisboa enfatizara a gestão urbana voltada para a melhoria da qualidade de vida dos moradores, mantendo a identidade e as características do lugar. Por sua vez, a requalificação estava ligada, principalmente, aos locais com funções diferentes da habitação, referindo-se à proposta de uma nova atividade no local, mais condizente com o contexto atual. Assim, importa o cuidado e o controle para com a governança local na definição de projetos e ações sobre o urbano, como enaltece Borges (2006, p. 69), “tendo-se em vista que, a despeito do debate teórico produzido no meio acadêmico, o campo onde se dão (...) as decisões sobre os destinos de nossas cidades é o campo político.” E nesse caso convém lembrar que as decisões políticas podem “ser baseadas em uma interação ampla ou restrita entre os atores envolvidos”, o que pode gerar ações de intervenção extremamente danosas para os cidadãos. No pró-
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ximo capítulo, retomaremos, com mais vagar, a ação dos atores sociais e as recentes formas de governança urbana. A zona portuária da cidade do Rio de Janeiro, sabidamente, localizou-se, desde muito tempo, na área do centro histórico, que teve como moradores prioritários a elite econômica, mas certamente encontrava-se lá também a classe trabalhadora, já que ali se concentrava a maioria das oportunidades de trabalho. Com a expansão do tecido urbano, a classe mais abastada abandona a área central em direção à zona sul, deixando aquela localidade para a população de menor poder aquisitivo. Os projetos de revitalização que vêm se realizando na zona portuária, agora com a associação entre os governos municipal, estadual e federal, levarão a uma valorização imobiliária, o que acabará – como em outros lugares – provocando à expulsão da população de baixa renda. Tal processo, denominado gentrificação, como já apontado anteriormente, caracteriza-se pela substituição de um grupo populacional de baixa renda, que ocupa determinada área da cidade, por outro de mais alta renda. Observa-se então a realização de obras e reformas embelezadoras que resultam no aumento dos valores dos imóveis, o que acaba por excluir a população mais pobre. Propostas de revitalização associadas à abordagem de mercado, como enaltece o arquiteto Silvio Mendes Zancheti (2004, p. 95), terminam por ser aceitas, tendo em mente que “a gentrificação é inevitável e que os bons resultados quanto à recuperação física, econômica e social das áreas degradadas compensa socialmente a expulsão de habitantes e pequenos negociantes”. Resta-nos inquirir: compensa para quem?
Capítulo 2
Políticas de desenvolvimento urbano e mudanças nas formas de administração urbana no Rio de Janeiro Foi-se o tempo em que se percebia o espaço apenas como uma espécie de receptáculo na análise do urbano. Como vimos no capítulo anterior, em tempos de compressão do espaço-tempo, cada vez mais a especificidade dos lugares torna-se fundamental para o capital. Quando falamos de acumulação de capital, não há como separá-la da Geografia, pois sem as possibilidades inerentes à expansão geográfica, à reorganização espacial e mesmo ao desenvolvimento geográfico desigual1, o capitalismo não teria se desenvolvido como tal. Não é à toa que o filósofo francês Henri Lefebvre chega a afirmar que o capitalismo sobreviveu no século XX, única e exclusivamente, por meio da ocupação do espaço e da produção do espaço. É possível observarmos uma tensão entre uma certa lógica capitalista do poder e uma lógica territorial do poder. Isto é importante, pois o âmbito político opera em um espaço territorializado e, ao mesmo tempo, nas democracias, em uma temporalidade ditada por um ciclo eleitoral, em que precisa dar respostas aos seus eleitores. Além disso, o território tem uma localização e está aprisionado a ela. Por sua vez, em se tratando da lógica capitalista, o capitalista procura aplicar seu capital onde possa obter lucro, busca acumular ainda mais capital. Nesse sentido, busca vantagens individuais, e, para tanto, opera em um espaço-tempo contínuo. Ao contrário do Estado, as empresas podem mudar de localização, podem fundir-se ou encerrar operações. É isso que leva o geógrafo britânico David Harvey (2004, p. 32) a afirmar que as lógicas
Vários autores têm dedicado estudos ao desenvolvimento geográfico desigual, dentre eles, Harvey (2004) e Smith (1988).
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capitalista e territorial do poder diferem entre si, mas, simultaneamente, se imbricam de maneira complexa e contraditória. Por mais que o capitalista busque e defenda a fluidez, para mover-se e produzir nas mais diversas áreas do planeta, precisa de infra-estruturas que constituem-se, ao menos por um intervalo de tempo, numa fixidez. Ou seja, a própria procura da fluidez acaba por gerar fixidez; noutras palavras, para que haja retorno financeiro do investimento realizado, inclusive por parte dos governos no que tange a infra-estrutura, é necessária a permanência. Contradições. Desde o último quartel do século XX, temos caminhado assistindo à passagem de um período em que o Estado tinha um papel administrativo, para outro em que há o predomínio daquilo que ficou conhecido como empresariamento urbano. Período de grandes mudanças em que se vê o crescimento das parcerias público-privadas. Se esse modelo nasce nos países ditos centrais, sua chegada aos outros países ao redor do mundo não demorou a chegar. Não estamos fazendo uma crítica à proposta da parceria, mas criticamos sim o fato da preponderância dos interesses privados em detrimento dos interesses coletivos; os quais, diga-se, o Estado deveria defender. Quando, anteriormente, falamos da reestruturação produtiva e das transformações nas cidades, procuramos construir o cenário para compreendermos, que tais mudanças ligam-se às dificuldades enfrentadas pelas economias capitalistas desde o início da década de 1970. Estava-se diante da desindustrialização, do crescimento do desemprego, que segundo alguns tinha um caráter estrutural, além de percebermos a ascensão do neoconservadorismo, ligado às privatizações e ao discurso da racionalidade do mercado. São inúmeros os atores sociais envolvidos, tendo diferentes interesses em foco. O espaço urbano é construído, assim, como o lugar onde os diferentes valores de uso estão em jogo, onde os conflitos sociais tornam-se mais claros e, ao mesmo tempo, mais escamoteados. Isso pois estamos todos em um país livre, democrático, em que podemos fazer nossas escolhas e consumir aquilo que julgamos conveniente. Contudo, as possibilidades de escolha são muito distintas dentre os inúmeros citadinos. O que é uma das inúmeras possibilidades de escolha para alguns, é sonho impossível para a maioria.
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É nessa seara que o Estado deveria fazer valer seu papel e procurar minimizar as desigualdades, que se reproduzem no espaço da cidade, mas parece que no decorrer do tempo, ao contrário, o Estado tem contribuído para a exacerbação dessa condição. Este capítulo põe em foco os grupos sociais envolvidos no processo de produção do espaço, suas ações, reações e as interações, procurando elucidar como as políticas de desenvolvimento urbano vêm se transformando e como o discurso do empresariamento na governança das cidades vai sendo posto em prática.
Os grupos sociais envolvidos na produção do espaço Não nos ateremos à longa descrição dos agentes que atuam na produção do espaço – até porque já é de conhecimento geral uma vasta bibliografia acerca desse debate – mas, efetivamente, no comportamento desses agentes no Rio de Janeiro frente à expansão da cidade e à tentativa de implementação de obras de renovação das áreas centrais, inclusive a zona portuária. Todavia, apenas no intuito de indicá-los, baseando-nos em David Harvey (1982; 1980), Horacio Capel (1974) e Roberto Lobato Corrêa (1995) teríamos os seguintes grupos de agentes: as empresas da construção, os proprietários fundiários (incluindo-se proprietários usuários de moradia e proprietários rentistas), promotores imobiliários, as instituições governamentais (o Estado) e os grupos sociais incluídos precariamente. Quando nos propomos a analisar como os agentes e atores sociais que produzem o espaço urbano têm se comportado frente à conformação de indícios de novas espacialidades na cidade do Rio de Janeiro, temos de ter em mente que estamos tratando das relações realizadas em uma grande cidade capitalista e uma das mais importante do país. Logo, importa considerarmos os diferentes usos da terra, imbricados entre si, em um processo que contribuiu para a definição de áreas, de formas e de funções. Quando distinguimos processos sociais de forma espacial, é necessário considerar tal distinção apenas analiticamente. As formas espaciais não devem ser compreendidas como objetos inanimados dentro dos quais se desenvolvem os processos sociais, mas como uma relação
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de interpenetração do processo social e da forma espacial que nasce da prática humana. Talvez tenha sido a percepção de que muitos cientistas não levavam em conta a observância disso, que tenha levado Harvey (1980, p. 15) a afirmar que há muitos pesquisadores que “parecem viver e trabalhar num mundo a-espacial. Há também os que, dotados de poderoso conhecimento espacial, falham em reconhecer que a maneira como o espaço é encarado pode ter um efeito profundo sobre os processos sociais”. Assim, acreditamos que o espaço social não é homogêneo, mas fragmentado e que a busca de seu entendimento não prescinde considerar seu significado simbólico e a complexidade de seu impacto sobre o comportamento daqueles que vivem na cidade. Estamos percebendo o espaço enquanto forma e conteúdo, ou seja, não haveria forma sem conteúdo, nem conteúdo sem forma. Assim, junto com o filósofo francês Henri Lefebvre (1991), remeter-nos-íamos a um tipo de análise que nos levaria a uma unidade, ainda que conflitante, isto é, os conteúdos superariam as formas e estas, por sua vez, dariam acesso aos conteúdos. Dessa maneira, mesmo que a forma só tenha realidade nos conteúdos, ela separa-se deles. Posto isso, o espaço urbano – como sociedade espacialmente organizada – acaba por se mostrar através das formas espaciais (o aspecto visível, seja uma casa, uma favela, uma indústria, ou um distrito industrial). Nesse sentido, o geógrafo paraense Saint-Clair Trindade Júnior (1998, p. 23) afirma serem tais formas “elementos produzidos socialmente, ou que adquirem uma existência social, a partir do sentido que as relações lhe atribuem. Dessa maneira, as formas espaciais contém a sociedade, não sendo, portanto, simplesmente formas, mas formas-conteúdos”. Contribui para a compreensão da noção de forma-conteúdo, o debate traçado por Lefebvre (1971, p. 161), quando de sua crítica à abordagem estruturalista, que resgata as categorias forma, função e estrutura, desenvolvidas anteriormente por Marx. Segundo Lefebvre, tais categorias mostram-se inseparáveis na análise dos fenômenos e, também, possibilitam apreender as estabilidades provisórias e aquilo que chamou de equilíbrios momentâneos. Ademais, contribuem para revelar conteúdos sociais obscurecidos. A abordagem estruturalista priorizava a estrutura; por sua vez, a abordagem funcionalista priorizava a função e obscurecia as noções de forma e estrutura; o mesmo ocorrendo com as formas no formalismo em relação às outras noções.
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O capitalismo vem se utilizando da “criação de uma espacialidade cada vez mais abrangente, instrumental e também socialmente mistificada, resguardada e encoberta pela ilusão e pela ideologia, também produzidas por esse modo de produção” (Trindade Júnior, 1998, p. 25). Isto é, atualmente, não se trata apenas da produção da mercadoria, pois a base da produção se dá de forma ampliada; trata-se da produção da cultura, da ideologia e do espaço. Para tanto, temos observado cada vez mais, a influência exercida por boa parte dos órgãos de imprensa, que por trás de um falso discurso de imparcialidade, têm induzido a população a certos valores culturais e preferências políticas. É cada vez mais urgente a necessidade de nos debruçarmos sobre a influência da imprensa e da mídia na produção do espaço. Assim, iluminados por Lefebvre (1994, p. 90), quando de sua discussão sobre a forma mais geral das relações sociais, a mercadoria – que contém o trabalho produtivo, as forças produtivas, as relações e o modo de produção –, ao analisarmos o espaço urbano devemos concebê-lo enquanto forma e conteúdo. Ele não pode ser considerado apenas como uma coisa – remetendo-nos a coisificação da mercadoria tão bem trabalhada por Agnes Heller (1991, p. 208) em seu debate a propósito da reificação, na sociologia moderna –, ele contém as relações sociais, portanto tem um conteúdo. A constatação de que toda realidade se reveste de forma e conteúdo leva Lefebvre a acreditar que o espaço social apresenta, também, metodologicamente e teoricamente, as três categorias gerais: forma, função e estrutura. Trindade Júnior (1998, p. 33), em busca da compreensão acerca da reestruturação metropolitana em Belém, e tendo em mente que qualquer uma dessas categorias pressupõe a existência das outras, esclarece que há um movimento que articula a forma ao conteúdo, já que “as formas não são estáticas e suas transformações se dão por seus respectivos conteúdos. Nessa relação os elementos da forma se contextualizam e se diversificam; considera-se o repetitivo e o diferencial, de maneira a permitir a articulação do conjunto, a passagem da parte ao todo e, inversamente, evocando-se no todo as partes constitutivas”. Todavia, é importante salientar, que a ênfase na forma e na função pode acabar por afastar as considerações de escala, de dimensões e de níveis, assim, seria através da análise estrutural que conseguiríamos retê-las, contribuindo para a percepção da relação todo-parte, global-local. É isso que
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leva Lefebvre (1971) a enfatizar o fato de que a noção de estrutura vem completar e não abolir as noções de forma e função. Muitas vezes, o espaço produzido contribui mais para ocultar do que revelar. Isso porque, em geral, não desvela imediatamente o processo de sua produção (tal qual a mercadoria). É necessário que investiguemos as inúmeras codificações sobre as quais se assenta o espaço produzido e como os agentes e atores que o produzem colaboram, simultaneamente, para ocultar sua decodificação. Para Lefebvre (1971, p. 161), a utilização da noção de forma, função e estrutura (utilizadas com o mesmo peso de importância) contribuiriam para a revelação do espaço produzido, já que permitiriam a apreensão de suas estabilidades provisórias e de seus equilíbrios momentâneos, até porque a própria noção de estrutura tem, também, um caráter provisório. Ademais, a conjunção das três noções permite desvelar um conteúdo espacial que se encontra oculto, posto que dissimulado nas formas, funções e estruturas analisadas. Também o geógrafo brasileiro Milton Santos (1985) propõe a utilização dessas categorias para o auxílio na interpretação do espaço em sua totalidade, entretanto acrescenta a elas uma quarta categoria: o processo. Ou seja, na inter-relação entre esse quarteto é que se encontra uma metodologia para a compreensão do fenômeno a ser estudado. Dessa maneira, poderíamos afirmar, em um esforço de síntese, que a função – relacionando-se diretamente à forma – seria a atividade elementar de que a forma espacial revestir-se-ia. Assim, as funções estariam materializadas nas formas que, por sua vez, seriam criadas a partir de uma ou várias funções. Em muitos casos, formas antigas são mantidas apesar de desempenharem novas funções, contudo, em geral, novas funções acabam por acarretar o acréscimo de novas formas ao espaço urbano. Ao contrário do que possa parecer, Lefebvre não teria desconsiderado aquilo que Santos denominara de processo. Na verdade, a noção de processo – como ação contínua, como movimento do passado ao presente e deste ao futuro – já estava presente na obra de Lefebvre como que atravessando as demais categorias. Assim, aquilo que Santos identificou como uma quarta categoria seria, de fato, uma propriedade das outras três; algo como um nexo aglutinador. Acredita Santos (1985, p. 57), que a estrutura social, dependendo do momento histórico, contribui ora para a transformação das formas, ora para a permanência. Trindade Júnior (2001, p. 134), também em um
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esforço de síntese, afirma corresponder a estrutura “à natureza social e econômica da sociedade em determinado momento histórico. (...) A estrutura, em qualquer ponto do tempo, atribui valores e funções determinadas às formas do espaço”. Por sua vez, o sociólogo estadunidense Mark Gottdiener (1997) trabalha com a perspectiva da produção do espaço em um contexto geral de uma teoria de organização social, que analisa o papel da estrutura – no sentido das determinações gerais – e o papel da ação, no sentido da tentativa de pensar na atuação de coligações e redes relacionadas aos agentes locais. Gottdiener (1997, p. 226) enfatiza o fato das formas espaciais serem produzidas pelo que denomina “articulação entre estruturas capitalistas tardias e as ações do setor de propriedade, especialmente os efeitos de grupos hegemônicos e do Estado na canalização do fluxo de desenvolvimento social para lugares e modelos específicos”. Acreditamos que o debate dos três autores sejam complementares quando do objetivo da compreensão da produção do espaço urbano. É possível perceber, no Rio de Janeiro, a atuação coligada dos agentes produtores do espaço urbano. Segundo a economista política Fania Fridman (1999, p. 22), as ordens e irmandades religiosas são as maiores proprietárias de imóveis da cidade, já que desde a época de Colônia, a coroa portuguesa doou grandes porções de terra aos religiosos para ajudar a ocupar a vastidão de solo alagado da cidade. Ao longo dos séculos, as ordens acumularam patrimônios, abriram ruas, construíram prédios e, de certa forma, acabaram por desenhar a feição que tem agora o Rio de Janeiro, “já que os proprietários da terra sempre decidiram o que fazer com ela e o que vivemos hoje é conseqüência dessa arrumação. A cidade cresceu como um pasto de negócios. A legislação, desde os tempos da coroa, sempre foi feita em função dos interesses dos donos da terra”. No último quartel do século XIX, as companhias de bondes da cidade também tiveram importante papel na produção do espaço carioca. Longe de representarem apenas companhias de transporte, participaram da conformação da espacialidade da cidade do Rio de Janeiro, pois a partir das alianças entre o capital externo, o capital imobiliário, o capital fundiário e o Estado, o espaço urbano começa a ser (con)formado. A socióloga Maria Lais Pereira da Silva (1992, p. 43) elucida tal colocação ao afirmar que, quando da concessão para abertura das li-
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nhas para Copacabana e Vila Isabel, ocorreram barganhas com o poder público que implicaram em obras que modificaram o espaço urbano, já que “a Cia. do Jardim Botânico, por exemplo, executa o desmonte de parte da ladeira de Santo Antônio para alargamento da rua da Guarda Velha, sem falar nos túneis e em aterro (como vários na lagoa Rodrigo de Freitas) para construir estações”; por sua vez, a Cia. de São Cristóvão “prolonga e abre várias ruas, como condição para extensão de suas linhas; a Cia. de Vila Isabel faz o aterro do mangue de Praia Formosa e abre ruas no Cachambi e outros locais, e assim por diante”. O geógrafo Maurício de Almeida Abreu (1987, p. 44) também percebe tal aliança e enaltece o que denominou associação bonde-loteamento. Exemplificando essa forma de associação, afirma que o bairro de Vila Isabel foi criado em 1873 pela Companhia Arquitetônica, cujo proprietário era o mesmo da Companhia Ferro-Carril de Vila Isabel, o Barão de Drummond. Visto isso, acreditamos que a apropriação e a produção do espaço se dá segundo os interesses do Estado, do capital comercial (nesse caso, mais especificamente os concessionários do setor de transportes), o capital imobiliário e o capital fundiário. Em se tratando das companhias de bondes, poderíamos afirmar que enquanto a Companhia Jardim Botânico contribuiu para a ocupação da freguesia da Lagoa pelas classes abastadas, as demais companhias exerciam a função de integração da área central da cidade aos bairros proletários de Santo Cristo, Gamboa, Saúde e Catumbi. Roberto Lobato Corrêa (1995), geógrafo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dá-nos exemplo da associação desses agentes e atores sociais quando da abertura do Túnel Velho (liga Botafogo a Copacabana) pela própria Companhia de Bondes do Jardim Botânico. Para esse empreendimento foi criada a Empresa de Construções Civis, que acabou sendo a maior responsável pela valorização do arrabalde de Copacabana. Nesse sentido, elucida-nos a geógrafa Elizabeth Dezouzart Cardoso (1986, p. 66) a propósito do que vinha a ser a Empresa de Construções Civis; constituiu-se de uma aliança de interesses comuns centrados nas valorizações fundiária e imobiliária, visto que dentre seus acionistas encontravam-se vários proprietários de terras em Copacabana, de bancos – Banco Luso-Brasileiro, Banco Brasil e Norte América, Banco
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Construtor do Brasil e Banco de Crédito Rural e Internacional –, “pelo menos uma empresa do setor industrial, a Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros, empresas comerciais, entre elas uma de exportação de café, outras empresas imobiliárias, como a Empresa de Obras Públicas no Brasil, que foi a maior acionista e a própria Botanical Garden”. Mas isso não é tudo, participaram também da Empresa de Construções Civis um ex-Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e dois prefeitos da cidade, dentre eles Carlos Sampaio (também proprietário fundiário em Copacabana). Corrêa (1995, p. 33) acrescenta à lista de acionistas membros da antiga nobreza: “pelo menos seis barões e um visconde eram sócios dela”. Percebemos, então, a aliança entre proprietários fundiários, promotores imobiliários, bancos, empresas comerciais e industriais e, inclusive, o Estado. Desde meados do século XX, a ocupação da cidade continuou seguindo o caminho traçado já no início desse mesmo século: o declínio da população residente na área central era cada vez maior e enquanto os subúrbios absorviam as classes mais baixas da população, a zona sul manteve-se como área preferida da classe mais abastada da cidade. Neste momento seria importante tecer alguns esclarecimentos quanto à noção de subúrbio. Para tal, importa reconhecer, junto com o sociólogo José de Souza Martins (1992, p. 09), que “a perspectiva elitista do centro domina a concepção que se tem do que foi [e é] o subúrbio”. Tentaremos não nos alongar em demasia, contudo a maneira como essa noção foi e, efetivamente, é utilizada no Rio de Janeiro tem sua especificidade. Em sua dissertação de mestrado, o geógrafo Nelson da Nóbrega Fernandes (1995), ao investigar a história da categoria subúrbio no Rio de Janeiro entre 1858 e 1945, reconhece que essa palavra sofreu uma transformação em seu significado tradicional, fazendo com que deixasse de representar todas áreas circunvizinhas à cidade para designar, de forma particular e exclusiva, os bairros populares situados ao longo das ferrovias nos setores norte e oeste da cidade do Rio de Janeiro. O autor interpreta a produção do conceito carioca de subúrbio, como o resultado de um rapto ideológico – mudança brusca e drástica do significado de uma categoria, em que seus atributos mais originais e essenciais são expurgados de seu conteúdo, sendo submetidos por significados novos e complemente estranhos à sua extração mais genuína – tal como definido por Lefebvre (1978); causado pelas reformas urba-
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nas à moda Haussmann ocorridas nas primeiras décadas do século XX. Esse tipo de reforma implicou na destruição dos bairros proletários centrais e o deslocamento de seus moradores para o subúrbio, que para a ideologia dominante, deveria ser o locus do proletariado. Em se tratando do Rio de Janeiro, a ausência de uma efetiva política de habitação popular, tornou a casa própria no subúrbio uma miragem para a maioria do proletariado. A partir de então, Fernandes (1995, p. 30) supõe que “o sentido do ‘conceito carioca de subúrbio’ experimentou o sentimento e a necessidade ideológica das elites no intuito de afastar as classes subalternas do Rio de Janeiro”. Considerando a advertência de Lefebvre (1976, p. 46) de que o espaço é sempre uma representação carregada de ideologia, o trinômio trem–subúrbio–pobreza só veio de fato a se concretizar depois do início do século XX, com o desenvolvimento da ideologia da casa própria no subúrbio. Subúrbio, então, passou a ser entendido como áreas servidas por ferrovia, que foram abertas ao proletariado como um dos símbolos das alterações das relações sociais, que conformam e caracterizam as reformas urbanas verificadas no Rio de Janeiro. A alternativa da moradia suburbana para os pobres do Rio de Janeiro aparecerá com grande nitidez em 1905, no âmbito de uma comissão designada pelo Ministério da Justiça e do Interior para “propor soluções ‘ao urgente problema das habitações populares’ na capital da República” (Benchimol, 1992, p. 39). O subúrbio ferroviário, contudo, não foi um lugar destinado aos pobres, o que significa que, do ponto de vista de um direito social como a habitação, a República, além de expulsar os pobres da cidade, não garantiu sequer o subúrbio ao proletariado da cidade. O Prefeito Pereira Passos, através do Decreto 39, de 10/02/1903, criou uma série de normas para construção que dificultava ainda mais a construção de habitações populares nos subúrbios. Assim, a tentativa de organização espacial acabou por contribuir para a formação de favelas por toda cidade e, ainda, incentivou a promoção de loteamentos na Baixada Fluminense, ou seja, para além do território do, à época, Distrito Federal. É nessa conjuntura de transformação espacial do Rio de Janeiro, que se definem os subúrbios ferroviários como o lugar do proletariado. Ainda hoje, no Rio de Janeiro, é comum o uso de expressões como: subúrbio da Leopoldina (referindo-se aos bairros servidos pela Estrada
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de Ferro da Leopoldina) e subúrbio da Central (tratando-se dos bairros servidos pela Estrada de Ferro da Central do Brasil). O conceito carioca de subúrbio é uma representação que sintetiza um discurso ideológico sobre o lugar dos pobres na cidade do Rio de Janeiro. Para Fernandes (1995, p. 31), tal conceito significa o tipo de cidadania reservada para a maioria de sua população, já que “predomina, entre nós, a idéia de um espaço (suburbano) subordinado e sem história, sem criação, sem cultura, carente de valores estéticos em seus homens e sua natureza (subúrbio é quase sempre feio e sem atrativos), ausente de participação política e cultural. No máximo, concede-se ao subúrbio o lugar da reprodução”. A partir dessa leitura da noção de subúrbio, constatamos que o padrão de segregação que se reproduz através do conceito carioca de subúrbio, reifica o subúrbio enquanto ideologia, o que acaba por legitimar não só os discursos que fazem apologia ao status quo, como aqueles que se opõem a ele e o denunciam; isto porque não vão além da forma, ou seja, classificam as aparências, mas não as explicam e ao não fazê-lo reificam as práticas sociais a partir da ideologia dominante. Portanto, repete-se um dos fundamentos das ideologias, que é a negação e/ou omissão do processo histórico. É a naturalização do real e sua redução ao presente, onde o passado existe para ratificá-lo. Assim, podemos perceber de maneira mais apropriada a forma pela qual a cidade do Rio de Janeiro se expandiu. As primeiras três décadas do século XX demonstraram notável expansão da tessitura urbana da cidade. Nesse período, caracterizou-se o crescimento da cidade a partir de dois vieses: as classes alta e média ocuparam as zonas sul e norte, tendo no Estado e nas companhias concessionárias de serviços públicos seus maiores aliados; por outro lado, os subúrbios cariocas caracterizaram-se como locais de residência do proletariado, que, a partir do deslocamento das indústrias, se dirigiu, também, para lá. Se as zonas sul e norte tiveram apoio do Estado, em se tratando dos bairros suburbanos, como era de se imaginar, a ocupação se deu sem qualquer apoio estatal ou das concessionárias. Dessa maneira, logo se percebia a desigualdade socioeconômica que se refletia na espacialidade da cidade. A cidade do Rio de Janeiro teve ainda uma particularidade que não deve ser esquecida: foi até 1960 a capital do país. Não há como não afirmar que a perda da capitalidade teve forte influência sobre o futuro carioca. Com a transferência da capital para Brasília, o antigo distrito
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Federal ganhou status de estado da federação, transformando-se em cidade-estado da Guanabara; situação que perdurou até 1975, quando o governo ditatorial militar decidiu pela fusão da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro, limitando a cidade aos poderes restritos da municipalidade. Mas antes, lembra-nos o economista Carlos Lessa (2001, p. 347), a proposta estratégica do desenvolvimento para a Guanabara foi a industrialização. Assim, no início da década de 1960 atribuiu-se ao elevado preço dos terrenos industriais a desvantagem do Rio de Janeiro; nesse sentido, “dentro da cidade do Rio de Janeiro, desde o final do século XIX, houve nomadismo industrial em busca de terrenos amplos e baratos”. Fazendo um balanço da mobilidade nas localizações industriais, o economista afirma que “antes da Primeira Guerra as indústrias estavam em São Cristóvão e nas proximidades do porto. Posteriormente, deslocaram-se para os eixos ferroviários. A partir de 1946, com a inauguração da avenida Brasil, multiplicaram-se em sua região de influência grandes indústrias e depósitos, e alguns conjuntos habitacionais”, mas que não tiveram grande sucesso, como vimos no capítulo anterior. O modo autoritário com que foi definida a fusão limitou-se a colher a opinião de algumas poucas entidades: a Confederação Nacional de Comércio (CNC), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), o Clube de Engenharia e outras poucas. Tudo isso acaba por fragilizar uma cidade que teve, desde muito tempo, a sustentação do emprego e da renda extremamente dependente do aparelho público federal. Apenas para exemplificar, lembra-nos Lessa (2001), estão no Rio de Janeiro 232.965 ativos e pensionistas das Forças Armadas e no que se refere ao segmento civil, algo em torno de 250 mil famílias. No final dos anos 1960, sob a ditadura militar, há uma reorientação da dinâmica urbana, que se movia em direção da Baixada Fluminense, para os territórios da Guanabara, como a zona oeste e as baixadas de Jacarepaguá e da Barra da Tijuca. A intensificação do processo de concentração de renda em curso culminou com a expansão da parte rica da cidade em direção a São Conrado e Barra da Tijuca. Para tanto, o Estado, que se associou ao capital imobiliário, teve importante papel, pois incorreu em um enorme investimento para a construção da Auto-Estrada Lagoa-Barra. Essa obra foi extremamente custosa, pois incluiu, para sua realização, a perfuração de vários túneis e a construção de
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pistas sobrepostas encravadas na rocha (Figura 1). Nesse período, essas novas áreas da cidade, apesar de esparsamente habitadas, tiveram no Estado importante agente para a produção do espaço. A partir da associação com o capital privado, seja na abertura de estradas e ruas, seja na pavimentação e instalação de infra-estrutura, o Estado investiu grandes somas de dinheiro na preparação desse novo eixo de expansão da cidade. Em um período de aproximadamente 40 anos – 1955 a 1999 – a Barra da Tijuca apresentou um crescimento surpreendente, principalmente nos últimos 15 anos (Figuras 2, 3, 4, 5 e 6). A rede viária do Rio de Janeiro, juntamente com a construção imobiliária, tem se constituído como marco concreto do processo de produção e transformação do espaço urbano. A construção da rede viária contribuiu, segundo o arquiteto brasileiro Mauro Kleiman (2001, p. 1597), para a configuração de seu padrão de segregação espacial. Tal afirmação baseia-se na forma com que se deu “a reestruturação do
Figura 1. Auto-Estrada Lagoa-Barra: obra de alto custo
A associação do Estado, do capital imobiliário e dos proprietários fundiários pode ser exemplificada na construção da Auto-Estrada Lagoa-Barra. Essa obra foi extremamente custosa, pois incluiu, para sua realização, a perfuração de vários túneis e a construção de pistas sobrepostas encravadas na rocha. Fonte: www.simplescidade.com.br/wp-content/uploads.
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Figura 2. Mosaico de fotos aéreas da Barra da Tijuca em 1955
Podemos observar que a Barra da Tijuca encontrava-se pouco habitada. É possível percebermos a formação do que atualmente ficou conhecido como “Barrinha” (faixa em fase de urbanização localizada próxima à Joatinga); juntamente com a abertura de um conjunto de ruas em torno do que viria a ser a Praça Prof. José Bernardino. Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000.
Figura 3. Mosaico de fotos aéreas da Barra da Tijuca em 1969
Onze anos depois a “Barrinha” já apresenta maior densidade populacional e é possível percebermos o crescimento da área urbanizada ao redor da Praça Prof. José Bernardino. Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000.
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Figura 4. Mosaico de fotos aéreas da Barra da Tijuca em 1975
Em 1975, apenas seis anos após, podemos observar intenso crescimento das construções, seja na “Barrinha”, seja no entorno da Praça Prof. José Bernardino. Além disso, identificamos a construção de diversos condomínios na orla e no interior, mais à oeste. Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000.
Figura 5. Mosaico de fotos aéreas da Barra da Tijuca em 1984
Aqui está claro o movimento em direção à Barra da Tijuca. O crescimento da construção de imóveis é cada vez maior e encaminha-se mais intensamente para oeste do bairro. Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000.
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Figura 6. Ortofotos da Barra da Tijuca em 1999
As ortofotos permitem-nos observar a verticalização do bairro e seu forte adensamento, inclusive das ilhas da lagoa. Percebemos, também, à direita da Av. das Américas (em sentido oeste) o Centro Empresarial Dowtown e o Centro Empresarial Città América. Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000.
centro da cidade, suas ligações com os bairros da zona sul, as ligações destas sem ter que passar obrigatoriamente pelo centro, com os demais bairros do Rio, com vias de padrão de grande porte e técnicas sofisticadas, sendo constantemente melhoradas, ampliadas, superpostas”; por outro lado, pudemos observar o não provimento das vias de utilização por camadas pobres, na Baixada Fluminense e zona oeste, por exemplo. Os investimentos em direção à Barra da Tijuca continuaram com a abertura de novas vias de acesso: Avenida das Américas (que se prolonga em direção ao Recreio dos Bandeirantes) e a Avenida Alvorada (atual Avenida Ayrton Senna). Tais avenidas favoreceram, respectivamente, a expansão imobiliária em direção ao Recreio dos Bandeirantes e a acessibilidade maior a partir do bairro de Jacarepaguá. No caso do Rio de Janeiro, como vimos anteriormente, a articulação entre os agentes vem de muito tempo e continua a ocorrer. Apesar de o Governo Federal ter anunciado sua intenção de concentrar seus investimentos em moradia para a população de baixa renda, as principais construtoras que atuam na cidade têm-se dedicado à construção para a classe mais abastada. Segundo levantamento da própria Associação de
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Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi/RJ), publicado pelo jornal O Globo (2003), 50,5% dos novos projetos – imóveis na planta, em construção ou que acabaram de ficar prontos – custavam na época mais de R$ 251 mil. Além disso, 23,7% referiam-se a unidades com preços acima de R$ 400 mil. Curiosamente, na época, o próprio presidente da Ademi/RJ (Associação dos Empresários do Mercado Imobiliário do Rio de Janeiro), Márcio Fortes, ao analisar o resultado do levantamento, afirmava estar diante de uma grande distorção no sistema, já que em condições normais os imóveis avaliados acima de R$ 251 mil não deveriam representar mais de 10% da oferta. Outro ponto marcante encontra-se no fato de, aproximadamente, 60% dos imóveis serem financiados diretamente pelo incorporador. Nesse sentido, o financiamento caracteriza-se pelo curto prazo – em geral, cinco anos – o que exclui a possibilidade de aquisição pela parcela menos abastada da população. Voltando os olhos para o período pós-1984, percebemos o que a Arquiteta carioca Luciana Corrêa do Lago (2001) denominou elitização do mercado imobiliário carioca, pois com a crise do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), a produção das grandes empresas passou a se concentrar mais especificamente na Barra da Tijuca. Contudo, não devemos esquecer que, na década de 1990, bairros como Botafogo, Lagoa, Jardim Botânico e Leblon começaram a vivenciar um processo de renovação do seu estoque imobiliário pelas grandes incorporadoras, seja para a construção de apartamentos de luxo, seja para edifícios de escritórios. Lago (2001, p. 1535) percebe uma tendência que se refere à “elitização da população residente em áreas com significativa intervenção do capital imobiliário, responsável pelas mudanças de uso do espaço”. Tratam-se, basicamente, de áreas consolidadas e já valorizadas como Botafogo, Leblon e Lagoa. Além dessas, a Barra da Tijuca junta-se a elas como nova área de expansão. O estudo de Lago (2001, p. 1537) enfatiza, dentre as tendências demográficas, socioespaciais e imobiliárias observadas na metrópole carioca, duas que considera mais importantes: a expansão metropolitana e a reprodução do espaço desigualmente integrado. Foram observados dois padrões de expansão distintos, já que um estava associado a “um processo de elitização e forte investimento imobiliário privado e o outro a um processo de proletarização e auto-construção em lote popular
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sem infra-estrutura”. A Barra da Tijuca, além dos grandes condomínios residenciais (verticais ou horizontais), apresenta também a maior concentração de shopping centers e apart-hotéis da cidade. Em contrapartida, municípios como Itaboraí, Queimados, Itaguaí, São Gonçalo, Caxias e Nova Iguaçu e bairros da zona oeste, como Bangu, Campo Grande e Santa Cruz são representativos do segundo padrão de expansão. Encontram-se presentes na dinâmica metropolitana carioca, transformações ligadas tanto à desconcentração e seus impactos no núcleo central, quanto à ratificação de setores residenciais seletivos. A combinação de tais transformações pode ser reconhecida na Barra da Tijuca, percebida como nova centralidade seletiva e espacialmente fragmentada. O arquiteto brasileiro Glauco Bienenstein (2001, p. 82) afirma que essa “área da cidade, além de típico setor residencial seletivo, vem se constituindo em um centro de negócios periférico que pode ser visualizado nos office park [sic]”. Segundo consulta aos dados da ADEMI/ RJ, o número de edifícios de escritórios lançados na Barra, na década de 1990, representou 52% do número total de lançamentos na cidade. Após a definição, pela Prefeitura do Rio de Janeiro, de que boa parte das instalações esportivas dos Jogos Pan-Americanos de 2007 estaria concentrada na Barra da Tijuca, a procura de empreendedores por novos investimentos fez com que o preço dos terrenos crescesse. Em entrevista ao Jornal do Brasil (15 de setembro de 2003), o gerente da filial Barra da Imobiliária Júlio Bogoricin (uma das cinco maiores da cidade) revelou que a área próxima ao Autódromo Nelson Piquet e ao Riocentro – até pouco tempo desprezada pela construção civil – tornou-se o novo eldorado das empreiteiras cariocas. É justamente nessa área que foi construída a Vila Olímpica, além de parte dos estádios da competição, apesar da existência de várias favelas nos arredores (Figura 7). O ritmo de construções tornou-se tão acelerado que, em entrevista ao Jornal do Brasil (15 de setembro de 2003), Ricardo Renauro – proprietário da Construtora Calper – afirmou que em menos de seis meses vendeu cerca de 500 apartamentos dos seis prédios que estava erguendo na área. Afirmou, na época, que comprou três outros terrenos, pois “a procura está tão intensa que, mesmo com o metro quadrado cem vezes mais caro que há dois anos atrás, o investimento ainda vale a pena. Prevemos valorização de 40% nos nossos imóveis até 2007”.
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Figura 7. A Localização da Vila do Pan-Americano e proximidades
A gerente da filial Barra da Imobiliária Júlio Bogoricin revelou que o principal comprador das imediações do Autódromo Nelson Piquet é a classe média que não tem poder aquisitivo para adquirir imóveis em áreas mais nobres do bairro. Segundo a gerente, esses futuros moradores sentiam-se atraídos pela promessa de melhorias na infra-estrutura e, inclusive, sonhavam com a possível chegada do metrô. O crescimento de lançamentos de imóveis no eixo Barra da Tijuca-Recreio dos Bandeirantes (habitação ou comercial) é o maior da cidade, seguido por alguns bairros da zona sul. Por conta da valorização desigual e partindo da orientação teórica utilizada por Harvey (1996b, p. 49) de que “é importante investigar que papel o processo urbano estaria desempenhando na atual reestruturação radical da distribuição geográfica das atividades humanas e da dinâmica político-econômica do desenvolvimento geográfico desigual, em anos mais recentes” e de que isso é válido tanto para a escala local quanto para a escala global, investigamos como as novas espacialidades da cidade do Rio de Janeiro que estão sendo construídas colaboram para isso. É preciso, pois, salientar a importância e a centralidade assumidas por espaços e lugares de diferentes escalas geográficas, que, segundo o geógrafo belga Erik Swyngedouw (1997), podem não somente
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redefinir a importância e o papel de escalas historicamente construídas, como ainda criar outras. Devemos ao analisar o espaço urbano, considerá-lo como produto, condição e meio do processo de reprodução das relações sociais. Portanto, conforme a geógrafa paulista Ana Fani Alessandri Carlos (1994, p. 24), “se de um lado o espaço é condição tanto da reprodução do capital quanto da vida humana, de outro ele é produto e nesse sentido trabalho materializado. Ao produzir suas condições de vida, a partir das relações capital-trabalho, a sociedade como um todo, produz o espaço e com ele um modo de vida, de pensar, de sentir”. Sendo assim, a produção espacial mostra-se desigual, posto que o espaço urbano encontra-se associado à produção social capitalista que se (re)produz desigualmente. O Rio de Janeiro é um exemplo claro dessa reprodução desigual, pois, como vimos, temos condomínios de luxo em contraposição às favelas e às periferias, que contam com infra-estrutura urbana bastante inferior em relação aos bairros nobres da cidade. É levando esse debate em conta que perceberemos o espaço, também, como a história de como os homens, ao produzirem sua existência, o fazem como espaço da produção, da circulação, da troca, do consumo, da vida (Carlos, 1999, p. 64, 1994, p. 36). Logo, convém admitir que cada vez mais o espaço urbano, a partir da subordinação acelerada da apropriação e das maneiras de uso ao mercado, é destinado à troca. Percebemos, então, o predomínio do valor de troca sobre o valor de uso, contudo, não podemos deixar de afirmar que valor de uso e valor de troca ganham significado através da relação entre si. Lefebvre (1995, p. 74) enfatiza tal afirmação ao indicar que um só e mesmo objeto apresenta dois aspectos, onde um exclui o outro e, não obstante, um implica o outro. Na qualidade de valor de uso, deseja-se, prefere-se, utiliza-se e consome-se o objeto. Na qualidade de valor de troca, o artigo é desejado apenas pelo dinheiro nele virtualmente contido. Essa certeza leva Carlos (2001, p. 38) a afirmar que “o comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comprando um valor de uso; apesar de a casa ser mercantilizada, o valor de uso e o valor de troca se encontram em uma relação dialética em que nenhum dos pólos desaparece”. Pormenorizando, Marx (1996, p. 44) enaltece o fato de que cada mercadoria tem duplo aspecto de expressão na sociedade capitalista, ou seja, valor de uso e valor de troca. Assim sendo, um valor de uso tem
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valor somente em uso, realizando-se no processo de consumo e serve diretamente como meio de existência. Quando Marx volta-se para o valor de troca, afirma que, inicialmente, aparece como a proporção pela qual valores de uso são trocados por outros. Contudo, acredita que a criação de valor de troca encontra-se no próprio processo social de aplicação de trabalho socialmente necessário para gerar mercadorias utilizadas pelo ser humano. Enaltece, então, que a mercadoria é um valor de uso, mas como mercadoria, ela em si simultaneamente não é valor de uso; ou seja, não seria mercadoria se fosse valor de uso para aquele que a possuísse. Isto é, para quem a possui é “não valor de uso”, porém a mercadoria tem que se tornar valor de uso para os outros. Posto isso, é possível concluir com Marx (1996, p. 48), que “para tornarem-se mercadorias com valores de uso elas devem ser inteiramente alienadas; devem entrar no processo de troca; a troca, contudo, é relacionada meramente com seu aspecto, como valores de troca. Assim, somente se realizando como valores de troca podem elas realizar-se como valores de uso”. Dessa forma, segundo Harvey (1980, p. 133), Marx coloca “o valor de uso e o valor de troca em relação dialética entre si através da forma que eles assumem na mercadoria”. Nesse sentido, percebemos simultaneamente aproximação e afastamento, já que, conforme Lefebvre (1995, p. 76), “em qualquer sociedade fundada na troca, o produtor encontra-se isolado e, no entanto, ligado aos outros por intermédio do mercado”. Nesse ponto, ao analisarmos a atuação dos agentes que (re)produzem o espaço urbano do Rio de Janeiro, é possível perceber que os usuários proprietários de moradia estão relacionados com os valores de uso da casa, mas não devemos esquecer que o valor de troca está colocado quando nela realizamos modificações com a intenção de valorizá-la ou, ainda, quando ocorrem manifestações dos moradores contra o tombamento de imóveis em bairros nobres da cidade (Leblon, Ipanema e Jardim Botânico são alguns exemplos), que acabam por desvalorizar o patrimônio daqueles que tiveram seus imóveis tombados. Como nos lembra Harvey (1980, p. 140), os corretores de imóveis operam no mercado de moradia para obter valor de troca e “eles obtém lucro através de compra e venda ou através de cobrança de custos de transação para seus serviços como intermediários. (...) Para os intermediários, o valor de uso da moradia reside no volume de transações, porque é destas que eles obtêm o valor de troca”. Se por um lado os cor-
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retores podem desempenhar um papel como coordenadores passivos do mercado, por outro podem tornar-se encorajadores da atividade do mercado imobiliário. No Rio de Janeiro, a segunda forma de atuação desses agentes foi responsável pelo crescimento da zona sul da cidade, tendo como maior exemplo Copacabana. A zona sul da cidade, constituindo-se uma área residencial ocupada pela camada mais rica da sociedade, entre as décadas de 1930 e 1950, obteve crescimento elevado do setor da construção civil, que se utilizando do marketing positivo do “morar à beira mar”, conseguiu vender “novamente a zona sul da cidade, substituindo, em muitos casos, unidades unifamiliares que não tinham mais que vinte ou trinta anos – como é o caso de Copacabana – por edifícios de vários pavimentos” (Abreu, 1987, p. 112). Em 1950, a “princesinha do mar” – apelido dado carinhosamente ao bairro de Copacabana e fortemente utilizado pelo capital imobiliário – já se tornara um subcentro com o crescimento dos setores de serviço e de comércio. Tal fato é enfatizado por Abreu (1987, p. 112) citando o geógrafo Pedro Geiger: “seu comércio [o de Copacabana] tem registrado crescimento espetacular; o mesmo acontecendo no setor de serviços; os consumidores obtêm tudo sem necessidade de ir ao centro da cidade.” Acredita que é justamente o fato de “Copacabana dispor de tudo (exceto repartições públicas) graças ao seu conteúdo social e ao dos bairros vizinhos, de constituir uma clientela exigente, numerosa e concentrada, que a distingue do restante da zona residencial. Por tudo isso Copacabana é uma cidade dentro da cidade.” O crescimento da zona sul, e principalmente de Copacabana, provocou uma certa estagnação na área central. A sonhada verticalização da totalidade dessa área não aconteceu, mesmo com a intervenção durante o Estado Novo. Nesse período, acontecera a construção do Aeroporto Santos Dumont, a urbanização da Esplanada do Castelo – que passaria a abrigar a sede de vários Ministérios da República – e a construção da Avenida Presidente Vargas. Acreditava-se que a nova artéria urbana tornar-se-ia um prolongamento da Avenida Rio Branco e que seria costeada em toda sua extensão por elevados edifícios de escritórios e sedes de empresas. Na verdade, tal projeção realizou-se apenas nas proximidades do entroncamento das duas avenidas. Corroboramos Abreu (1987, p. 114), que credita tal fracasso ao coincidente crescimento das construções na zona sul, que acabaram atraindo a maior parte do capi-
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tal imobiliário da cidade. Outro motivo, embora associado ao anterior, foi o crescimento populacional de Copacabana e sua transformação em subcentro que acabou retirando boa parte das atividades de serviços, comércio de luxo e lazer da área central. Sobre a Avenida Presidente Vargas, a geógrafa Maria Therezinha Segadas Soares (1965, p. 358) afirma que embora tivesse sido planejada para que nela se processasse o desafogo do centro, “permanece ainda hoje – mais de 20 anos depois de sua abertura – em sua quase totalidade, integrada ainda na área de obsolescência da cidade, só tendo apresentado nesses últimos decênios um pequeno surto de renovação, com a zona bancária de edifícios moderníssimos que se constituiu no seu cruzamento com a Avenida Rio Branco”. Passaram-se praticamente 50 anos desde a publicação do artigo de Soares (1965) e a situação da Avenida Presidente Vargas pouco mudou. Exceção feita ao início da Avenida (área denominada Cidade Nova), onde se construiu a nova sede da prefeitura da cidade na década de 1980. Na mesma área, na década seguinte, surge o primeiro prédio de um projeto de seis, denominado Teleporto (Figura 2.8 e 2.10). Prédio de arquitetura pós-moderna que se constituía, inicialmente, de empresas de desenvolvimento de software, de provedores de Internet, e de tecnologias de comunicação e informação, foi o exemplo carioca de edifício inteligente. Porém, o Teleporto (Centro Empresarial Cidade Nova) é o único prédio existente nos 250 mil metros quadrados do terreno junto à prefeitura, além do Centro de Convenções Sul América (Figura 2.9), que foi inaugurado em 2008. Embora o projeto Teleporto não tenha se concretizado em sua totalidade, grandes incorporadores aguardam um sinal positivo da Prefeitura no sentido de retomá-lo. Entretanto, recentemente, há alguns sinais de possível investimento na área entre a Central do Brasil e a Prefeitura, visto que uma nova estação de metrô na Cidade Nova foi inaugurada e há, também, a previsão de uma estação do “trem-bala” Rio-São Paulo para 2014. Os incorporadores e a indústria da construção civil estão envolvidos no processo de criação de novos valores de uso para outros, a fim de realizar valores de troca para si próprios. Como podemos perceber, o Estado – em suas distintas instâncias – freqüentemente interfere no mercado imobiliário. A produção de valores de uso através da ação pública (por exemplo, a provisão de moradias populares, que posterior-
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Figura 8. Visão de Prédio do Teleporto ladeado pela Prefeitura
O prédio do Teleporto foi construído em uma área denominada Cidade Nova, no início da Av. Presidente Vargas, junto à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (à direita) e à sede da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (por trás). Na área ao lado da Prefeitura encontra-se o novo Centro de Convenções da cidade, em parceria com a Cia de Seguros Sul América. Foto: Alvaro Ferreira, 2003.
mente em possível negociação adquirem valor de troca) constitui-se em uma forma direta de intervenção, contudo não é a única. A intervenção pode ser, também, indireta, tratando de assumir a forma de auxílio aos incorporadores, às instituições financeiras e à indústria da construção civil. O Estado também tem papel determinante quando da definição de leis de zoneamento e gabarito ou quando da alocação de infra-estrutura – como serviços e vias de acesso – já que assim contribui indiretamente para a determinação do valor de uso e de troca dos imóveis. Sendo assim, os agentes que (re)produzem o espaço urbano entendem-no enquanto mercadoria. O que é valor de uso para um é valor de troca para outro e cada um concebe o valor de uso de maneira diferente. Então, por expressar uma série de relações sociais, não surpreende o fato de Marx (1996) ter-se detido bastante detalhadamente na questão da mercadoria. A sua importância é dada por comportar vários aspectos da “alienação universal” que foi tomando progressivamente os seres humanos no decorrer da história; quais sejam: alienação do produto do
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Figura 9. Centro de Convenções Sul América
O Centro de Convenções Sul América foi construído no bairro Cidade Nova, junto à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e ao Teleporto. O novo Centro de Convenções da cidade demorou bastante tempo para sair do papel e quando terminou a sua construção, um acordo entre a prefeitura e a Cia de Seguros Sul América deu à essa empresa a concessão para dar seu nome ao empreendimento. Fonte:www.rionoticiasagora.blogspot.com/2009/03abeoc.
Figura 10. Centro Empresarial Cidade Nova
Primeiro de um projeto de seis “prédios inteligentes” que abrigariam empresas de alta tecnologia em informação e comunicação. Foi construído na década de 1990 e, de fato, inicialmente, encontravam-se nele instaladas diversas empresas de provedores de Internet e de produção de softwares. A prefeitura da cidade tem incentivado a retomada do projeto inicial e já se encontra em construção o segundo “prédio inteligente”. Foto: Alvaro Ferreira, 2003.
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trabalho, da atividade da produção, de sua própria e inerente espécie e de si próprios. A partir da leitura de Marx, Harvey (2001, p. 239, 1982, p. 12, 1980, p. 135) afirma que o solo e suas benfeitorias são, na economia capitalista contemporânea, mercadorias. Assim, Harvey (1980, p. 135) consegue identificar seis aspectos que acredita serem bastante importantes. Primeiramente, “solo e as benfeitorias não podem deslocar-se livremente, e isso os diferencia de outras mercadorias. (...) A localização absoluta confere privilégios de monopólio à pessoa que tem os direitos de determinar o uso nessa localização”; outro importante aspecto é o fato do solo e das benfeitorias serem mercadorias indispensáveis, já que temos que residir e trabalhar, ocupando determinados locais e fazendo uso de objetos materiais ali localizados; o terceiro aspecto a que Harvey faz menção é o de que o solo e as benfeitorias “mudam de mãos relativamente com pouca freqüência”. Principalmente quando está envolvido “um pesado investimento de capital fixo, no planejamento de muitas facilidades públicas (estradas, escolas, hospitais etc.), e setores estáveis do mercado de moradias com ocupantes proprietários, [onde] assumem a forma de mercadorias com muito pouca freqüência mesmo que estejam constantemente em uso”. Ao passo que no setor de aluguel de moradias assumem a forma mercadoria com maior freqüência. Logo, é importante perceber que a imbricação dialética do valor de uso e do valor de troca na forma mercadoria se manifesta com distintas freqüência e grau nas diferentes seções da economia urbana; o aspecto seguinte diz respeito ao fato do solo ser algo permanente e a probabilidade de vida das benfeitorias ser bastante considerável. Dessa maneira, “o solo e as benfeitorias, e os direitos de uso a elas ligados, propiciam a oportunidade de acumular riqueza. (...) Numa economia capitalista um indivíduo tem duplo interesse na propriedade, ao mesmo tempo como valor de uso atual e futuro e como valor de troca potencial ou atual, tanto agora como no futuro”; o quarto aspecto mostra-se importante quando observamos que a troca no mercado ocorre em um momento do tempo, mas que seu uso se estende por um período de tempo. “Direitos de consumo para um período relativamente longo de tempo são obtidos com grande desembolso num momento do tempo”. O que nos leva a crer que as instituições financeiras devem desempenhar um importante papel, seja no funcionamento do merca-
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do do uso do solo urbano, seja da propriedade na economia capitalista; e, finalmente, o solo e as benfeitorias têm usos diferentes e numerosos “que não são mutuamente exclusivos para o usuário”. Ou seja, têm diferentes possibilidades e destinações. Sobre esse último aspecto Harvey (1980, p. 136) deteve-se um pouco mais, exemplificando a utilização da casa, que pode ser usada como abrigo, privacidade, uma localização relativa que é acessível aos locais de trabalho (incluindo aí a possibilidade da atividade do trabalho ser realizada na própria residência), etc. Assim, acreditamos que o valor de uso não é o mesmo para todas as pessoas e nem é constante através do tempo. A percepção da espacialidade urbana deve considerar, então, a relação entre valor de uso e valor de troca para tornar o solo e suas benfeitorias mercadorias, pois é nesse momento que são tomadas as decisões quanto à alocação de atividades e recursos do solo. Considerando isso, entendemos que a cidade capitalista é constituída por áreas residenciais segregadas, aflorando assim, claramente, a sua complexa estrutura social em classes. Destarte, o espaço urbano é produzido tanto por ações realizadas no presente como também daquelas realizadas no passado e que deixaram suas marcas impressas nas formas espaciais do presente. Há dois pontos fundamentais, enaltece Corrêa (1995, p. 08), para a compreensão do espaço citadino: primeiro o fato de que, “por ser reflexo social e fragmentado, o espaço urbano, especialmente o da cidade capitalista, é profundamente desigual” e, em segundo lugar, “por ser reflexo social e porque a sociedade tem sua dinâmica, o espaço urbano é também mutável, dispondo de uma mutabilidade que é complexa, com ritmos e natureza diferenciados”. Importa, então, avançar objetivando enfatizar que o espaço é produzido, mas é, ao mesmo tempo, também condição para a sociedade. A espacialidade – enquanto momento das relações sociais geografizadas, momento da incidência da sociedade sobre um arranjo espacial (Santos, 1996) – é importante no sentido da consideração de que um determinado grupo social cria a possibilidade de que as suas atividades se prolonguem por um período de tempo mais longo ao fixar no solo urbano os objetos, que são frutos do trabalho social e vinculam-se às suas necessidades, possibilitando assim a sua reprodução. Corrêa (1991, p. 55) afirma ser a organização espacial “um meio de vida no presente
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(produção), mas também uma condição para o futuro (reprodução)”. Pelo que vimos, o Rio de Janeiro apresentou uma história de crescimento urbano marcado por extensas periferias, em que residia a população de classe mais baixa, e por forte desigualdade da oferta de infra-estrutura e de serviços, em benefício das áreas habitadas pelas classes mais abastadas. Vetter e Massena (1982, p. 50), analisando a cidade, identificaram em sua dinâmica uma matriz perversa de distribuição dos recursos urbanos, que direcionava os investimentos públicos direta ou indiretamente para as camadas já mais bem servidas e de mais alta renda. Denominaram esse modelo de “causação circular”, que, segundo os professores de planejamento urbano Adauto Lúcio Cardoso e Luis Cesar de Queiroz Ribeiro (1996, p. 22), “passou a ser considerado pela literatura como característico do nosso padrão de urbanização”. Harvey (1980, p. 135; 1982, p. 11), já percebendo tal distribuição desigual, enunciava a alocação espacial diferenciada dos equipamentos urbanos de consumo coletivo. Tal característica levava à ampliação da renda real daqueles que já possuíam elevada renda monetária. Apesar disso, convém lembrar que, devido à especificidade geomorfológica da cidade do Rio de janeiro, mesmo nos bairros habitados pelas classes mais abastadas da sociedade carioca encontramos favelas sem a infra-estrutura mínima necessária. Assim, como veremos nos próximos capítulos, as grandes obras que têm sido propostas e em grande parte realizadas exacerbam a apropriação desigual do solo urbano, construindo uma cidade cada vez mais voltada à população de alta renda e aos turistas. Apesar dessa desigualdade, o crescimento populacional da metrópole carioca se deu de forma intensa e a distribuição da população no espaço urbano deu-se de maneira diferenciada pelas regiões administrativas e seus respectivos bairros. Para termos uma noção do caminho que a população residente no Rio de Janeiro tomou montamos uma tabela (Tabela 2.1) indicativa por área de localização domiciliar – divididas em Áreas de Planejamento (AP) e em Regiões Administrativas (RA) – em um período de 20 anos (1980 a 2000). De maneira geral, observamos que a região metropolitana do Rio de Janeiro, a partir da década de 1980, apresentou forte queda em seu ritmo de crescimento, apresentando relativa estabilidade desde o início da década subseqüente. Lago (2001, p. 1531; 2000, p. 207) reafirma esta posição ao apresentar informações quanto à taxa de crescimento anual da metrópole que caiu
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de 2,4% na década de 1970 para 1,0% na década de 1980 e para 0,8% na primeira metade da de 1990. Contudo, se a metrópole como um todo tem apresentado queda significativa em sua taxa média de crescimento, em contrapartida o comportamento demográfico em seu interior tem-se mostrado bastante diferenciado. Percebemos um certo equilíbrio entre “entradas e saídas” na região metropolitana, contudo as RAs da Barra da Tijuca e Jacarepaguá apresentam diferente configuração, mostrando forte desequilíbrio com relação ao número de entradas. Fenômeno semelhante pode ser observado nas periferias consolidada e distante. Nota-se que essas áreas foram receptoras de população nesse período. No que se refere à área central da cidade, o núcleo e zona periférica do centro apresentaram perda populacional. Inclusive, a zona portuária apresenta perda bastante considerável nos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo; justamente os bairros em que a prefeitura pretende por em curso grandes transformações visando a uma nova utilização da área. No Capítulo 4 deteremo-nos mais na análise de tais propostas. A AP-4, mesmo apresentando baixa concentração populacional, tem-se mostrado como área de expansão, mas de ocupação recente; ao passo que a AP-5 trata-se de uma área de expansão mais antiga, que já conta com cerca de 25% da população do Rio de Janeiro. Conforme observado na Tabela 1, percebemos que as AP-4 e 5 têm apresentado baixas densidades, apesar de sugerirem elevados índices de crescimento populacional. Tal fato indica a importância da oferta imobiliária como fator condicionante do processo de expansão urbana.
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Tabela 1. População residente e densidade líquida segundo Regiões Administrativas (RA) e Bairros – 1980 a 2000.
TOTAL RA I – Portuária Caju Gamboa Santo Cristo Saúde RA II – Centro Centro RA III – Rio Comprido Catumbi Cidade Nova Estácio Rio Comprido RA VII – São Cristóvão Benfica Mangueira São Cristóvão RA XXI – Paquetá RA XXIII – Santa Teresa Santa Teresa RA IV – Botafogo Botafogo Catete Cosme Velho Flamengo Glória Humaitá Laranjeiras Urca RA V – Copacabana Copacabana Leme RA VI – Lagoa
População Residente Densidade (hab/ha) 1980 1991 2000 1980 1991 2000 5.090.790 5.480.778 5.857.904 50,9 54,8 58,6 ÁREA DE PLANEJ. 1 50.907 44.085 39.973 60,3 52,2 47,3 17.365 17.636 17.679 32,9 33,4 33,5 17.550 11.507 10.490 159,0 104,3 95,1 12.851 12.340 9.618 76,9 73,8 57,5 3.140 2.602 2.186 80,2 66,4 55,8 61.088 49.095 39.135 95,4 76,7 61,1 61.088 49.095 39.135 95,4 76,7 61,1 86.542 82.344 73.661 180,0 171,3 153,2 11.389 12.507 12.914 227,9 250,3 258,4 8.077 7.814 5.282 79,9 77,3 52,3 28.023 20.950 20.632 301,1 225,1 221,1 39.053 41.073 34.833 165,0 173,6 147,2 86.542 80.360 70.945 113,3 105,2 92,9 21.459 19.872 19.017 122,6 113,6 108,7 14.000 17.530 13.594 175,6 219,8 170,5 51.083 42.958 38.334 100,4 84,4 75,3 2.245 3.257 3.421 17,3 22,1 23,2 50.907 44.554 41.145 228,2 199,7 184,4 50.907 44.554 41.145 228,2 199,7 184,4 ÁREA DE PLANEJ. 2 295.261 251.668 238.895 226,6 193,2 183,4 94.531 81.858 78.259 223,1 193,2 184,7 28.116 23.720 21.724 511,5 431,5 395,2 7.346 7.345 7.229 139,4 139,4 137,2 68.680 55.839 53.268 396,3 322,2 307,4 14.033 9.365 10.098 115,3 77,0 83,0 16.201 16.184 15.186 155,5 155,3 104,8 57.608 49.533 46.381 319,4 274,6 257,2 8.746 7.824 6.750 45,5 40,7 35,1 213.809 169.680 161.178 442,5 351,2 333,6 197.522 155.832 147.021 494,8 390,4 368,3 16.287 13.848 14.157 194,0 164,9 168,6 239.263 177.072 174.062 169,2 125,2 123,1
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Gávea Ipanema Jardim Botânico Lagoa Leblon São Conrado Vidigal RA VIII – Tijuca* Tijuca RA IX – Vila Isabel Andaraí Grajaú Maracanã Vila Isabel A XXVII – Rocinha Rocinha RA X – Ramos* RA XI – Penha* RA XII – Inhaúma* RA XIII – Méier* RA XIV – Irajá* RA XV – Madureira* RA XX – Ilha do Governador RA XXII – Anchieta* RA XXV – Pavuna* RA XXVIII – Jacarezinho RA XXIX – Complexo do Alemão RA XXX – Maré
População Residente Densidade (hab/ha) 1980 1991 2000 1980 1991 2000 49.774 15.350 17.475 192,9 59,5 67,7 63.602 48.245 46.808 390,3 296,1 287,2 21.084 19.434 19.560 78,2 72,1 72,6 23.815 18.652 18.675 136,7 107,1 107,2 62.871 49.930 46.670 291,8 231,8 216,6 8.421 13.591 11.155 35,5 57,3 47,0 9.696 11.870 13.719 99,9 122,3 141,3 198.537 194.483 180.992 286,6 280,7 261,3 198.537 194.483 180.992 286,6 280,7 261,3 183.265 198.817 186.013 219,9 238,5 223,2 41.734 43.758 38.540 222,1 232,9 205,1 38.022 42.119 38.296 196,7 217,8 198,1 26.378 28.731 27.319 157,6 171,6 163,2 77.131 84.209 81.858 270,7 295,6 287,3 42.892 56.338 1280,4 1682,2 42.892 56.338 1280,4 1682,2 ÁREA DE PLANEJ. 3 264.716 147.497 150.403 231,7 129,1 131,6 325.805 314.981 318.505 127,7 123,5 124,9 150.093 137.539 130.635 138,9 127,3 120,9 445.519 423.013 398.486 181,5 172,3 162,3 208.719 210.889 202.967 140,9 142,4 137,0 386.983 373.753 374.157 142,6 137,7 137,8 173.084 197.158 211.469 41,0 46,7 50,1 142.540 141.587 154.608 101,3 100,7 109,9 152.721 179.256 197.068 88,0 103,3 113,6 41.079 36.459 415,5 368,8 -
62.037
65.026
-
255,5
267,8
-
95.201
113.807
-
208,8
249,6
ÁREA DE PLANEJ. 4 RA XVI – Jacarepaguá* RA XXIV – Barra da Tijuca Barra da Tijuca Camorin
315.623
428.073
469.682
33,1
45,0
49,3
40.726
98.229
174.353
3,2
7,7
13,6
23.485 701
63.492 145
92.233 786
6,7 1,9
18,2 0,4
26,5 2,2
* Os bairros constantes dessa RA mantêm a mesma característica do valor totalizado da RA em questão, assim, para não nos alongarmos demais, optamos por não cita-los individualmente.
126
Grumari Itanhangá Joá Recreio dos Bandeirantes Vargem Grande Vargem Pequena RA XXIV – Cidade de Deus RA XVII – Bangu Bangu Padre Miguel Senador Camará RA XVIII – Campo Grande* RA XIX – Santa Cruz* RA XXVI – Guaratiba* RA XXXIII – Realengo Campo dos Afonsos Deodoro Jardim Sulacap Magalhães Bastos Realengo Vila Militar
a cidade no século xxi
População Residente Densidade (hab/ha) 1980 1991 2000 1980 1991 2000 53 117 136 0,1 0,2 0,2 3.917 9.356 21.813 5,1 12,3 28,6 1.126 823 971 8,3 6,1 7,2 5.642 14.344 37.572 1,9 4,7 12,4 4.452 6.558 9.306 1,9 2,8 4,0 1.350 3.394 11.526 0,6 1,6 5,4 33.496 38.209 38.016 247,4 282,2 280,8 ÁREA DE PLANEJ. 5 529.433 595.960 420.503 61,8 69,5 49,1 178.036 212.328 244.518 60,4 72,1 83,0 64.566 61.903 64.754 133,2 127,7 133,6 77.517 9 6.788 111.231 107,1 133,7 153,7 292.715 380.942 484.362 23,1 30,1 38,3 147.630 254.503 311.289 9,2 15,8 19,3 45.817 60.774 101.205 3,5 4,7 7,8 209.314 224.941 239.146 1.691 1.703 1.515 5,1 5,3 4,6 12.729 11.610 11.593 24,8 22,6 22,6 9.561 9.473 11.221 25,4 25,2 29,8 22.377 23.288 24.849 110,9 115,4 123,2 154.450 166.000 176.277 80,2 86,2 91,5 8.505
12.867
13.691
7,9
12,0
12,8
Fonte: Baseado no Anuário Estatístico da Cidade do Rio de Janeiro 2000. Tabulação, metodologia para agregação e cálculos: Instituto Pereira Passos – IPP, Diretoria de Informações da Cidade (DIC).
Cardoso e Ribeiro (1996, p. 33) acreditam que as áreas de crescimento se diferenciam segundo a estratificação espacial. Para que melhor percebamos essa variação, os autores construíram “um índice de concentração de renda que mede a razão entre o percentual de população nas faixas acima de dez salários mínimos sobre o percentual abaixo dessa faixa”. Decidimos por reproduzir os denominados “índices de homogeneidade de renda por regiões administrativas” (Tabela 2). A média da cidade foi calculada em 0,21, ou seja, a “população de renda média-alta e renda alta (acima de dez salários mínimos) corresponde a 21% da população de renda média-baixa e renda baixa (abaixo de dez salários mínimos)”.
Políticas de desenvolvimento urbano e mudanças nas formas de administração urbana 127
Tabela 2. Índices de homogeneidade de renda por regiões administrativas (RA) e áreas de planejamento – Rio de Janeiro. Região Administrativa
Área de Planejamento
Índice
I
Portuária
1
0,03
II
Centro
1
0,11
III
Rio Comprido
1
0,14
VII
São Cristóvão
1
0,05
XXI
Paquetá
1
0,12
XXIII
Santa Teresa
1
0,15
IV
Botafogo
2
0,76
V
Copacabana
2
0,74
AP-1
0,10
VI
Lagoa
2
0,94
VIII
Tijuca
2
0,58
IX
Vila Isabel
2
0,48
AP-2
0,69
X
Ramos
3
0,05
XI
Penha
3
0,05
XII
Inhaúma
3
0,05
XIII
Méier
3
0,18
XIV
Irajá
3
0,09
XV
Madureira
3
0,06
XX
Ilha do Governador
3
0,22
XXII
Anchieta
3
0,03
XXV
Pavuna
3
0,02
XVI
Jacarepaguá
4
0,16
XXIV
Barra da Tijuca
4
1,22
XVI
Bangu
5
0,04
AP-3
0,09
AP-4
0,28
XVIII
Campo Grande
5
0,05
XIX
Santa Cruz
5
0,02
XXVI
Guaratiba
5
0,03
AP-5
0,04
Cidade
0,21
Fonte: Baseado em Cardoso e Ribeiro, 1996.
128
a cidade no século xxi
Se a AP-2 (bairros da zona sul e os bairros mais nobres da zona norte) apresenta-se como a de maior presença das classes mais abastadas, seu contraponto, a AP-1 (composta basicamente dos bairros da área central), aparece como predominantemente de população de baixa renda. Entretanto, observando atentamente a Tabela 2, percebemos índices de concentração de renda nas áreas de fronteira da expansão urbana do Rio de Janeiro. Os números, se considerarmos a Barra da Tijuca, denotam forte estratificação e segregação espacial. Fato que Cardoso e Ribeiro (1996, p. 33) apontam como tendência para um processo de gentrificação. Tal processo referir-se-ia “a fenômenos de apartação social, em que certas áreas da cidade são ocupadas por estratos sociais de alta renda, enquanto os mais pobres são expulsos, passando a ocupar espaços segregados”. A Barra da Tijuca aparece como “a única área da cidade em que a população de renda alta é maior do que a de baixa renda, comparada com a chamada zona oeste”. Assim, levando em conta que a AP-4 e a AP-5 são as que apresentaram maiores índices de crescimento populacional, percebemos que cada uma dessas APs atende a estratos sociais diferentes. Tal tendência levou Cardoso e Ribeiro (1996, p. 36) a afirmarem, de forma contundente, que “o Rio de Janeiro pobre cresce para a zona oeste, enquanto o Rio de Janeiro rico cresce para a Barra da Tijuca”. Mais interessante ainda é a infeliz separação feita pelos autores: Barra da Tijuca e zona oeste, quando em princípio o primeiro estaria contido no segundo. Baseados nesses dados, pesquisadores do Instituto Pereira Passos, no Anuário Estatístico Rio 2000, fizeram uma previsão para os cinco anos seguintes. Acreditavam que a população da Barra da Tijuca cresceria 90% até 2005, passando de, aproximadamente, 170 mil para mais de 320 mil residentes. Teresa Coni Aguiar, uma das responsáveis pelas projeções do anuário, afirmou que “a classe média alta do Rio está migrando para a Barra da Tijuca em busca de melhor qualidade de vida” (Jornal do Brasil, 2000). Por outro lado, há simultaneamente vários lançamentos na zona sul da cidade. Não impressiona, então, a quantidade de antigos casarões em Botafogo e no Jardim Botânico e de prédios baixos da década de 1950 em Ipanema e Leblon, que estão sendo demolidos para a construção de condomínios de alto luxo nessas áreas da cidade. O ex-presidente da Associação de Dirigentes das Empresas do Mercado
Políticas de desenvolvimento urbano e mudanças nas formas de administração urbana 129
Imobiliário (Ademi), José Conde Caldas (O Globo, 2003), chegou a declarar que investir na construção de prédios na zona sul é retorno imediato e garantido. A administração pública tem investido na dinamização da área central da cidade, tendo inclusive alterado, através de lei de 1994, o decreto 322/1976 que proibia o uso residencial no núcleo central, passando a partir dessa data a permitir a moradia em toda a área central da cidade. Outro empreendimento que objetivava dinamizar essa mesma área foi a tentativa de trazer o Museu Guggenhein para área portuária localizada na zona periférica do centro da Cidade. Essa área seria recuperada a partir da transformação dos antigos armazéns em lojas, restaurantes, moradias, escritórios, universidades e centros culturais. Mais adiante, no Capítulo 4, estaremos trazendo ao debate especificamente as propostas de transformação da zona portuária. Outro programa posto em prática pelo poder público foi o “Novas Alternativas”. O programa vem reformando os antigos cortiços e proporcionando melhores condições de habitação nas zonas periféricas do centro. A revitalização2 do centro histórico com seus sobrados de influência da arquitetura portuguesa e espanhola é o grande atrativo de áreas como a Praça XV e a Praça Tiradentes, além da Lapa. Isso sem falar da proximidade com o chamado Corredor Cultural, com suas construções monumentais em estilo francês. Aliás, importa lembrar que o projeto do Corredor Cultural volta-se para a preservação de conjuntos arquitetônicos remanescentes do Rio antigo. Ao falar dessa área, Lessa (2001, p. 381) lembra-nos que o Theatro Municipal – inspirado no Opera de Paris (no período em que a elite brasileira tinham na frança o exemplo da alta cultura) – , o Museu Nacional de Belas Artes e a Biblioteca Nacional – a “maior depositária de obras de língua portuguesa do mundo e que é nossa por um acaso histórico: a melhor parcela do acervo que aqui chegou com a Corte, em 1808, não voltou para Portugal” – fazem parte do conjunto arquitetônico do Corredor Cultural.
2 Revitalizar significa dar vida novamente. Segundo o discurso dos idealizadores, dar vida àquilo que se encontrava morto. Aquela área tinha e tem vida; talvez não aquela que almejavam os agentes imobiliários e os proprietários fundiários. Tendo posto isso, sempre que utilizarmos a expressão “revitalização” estaremos nos referindo a um discurso ligado aos projetos públicos e privados de transformação desses tipos áreas.
130
a cidade no século xxi
Foi divulgado, pela Secretaria Municipal de Urbanismo (O Globo, 2003), a concessão de licença para a construção de cinco prédios na Avenida Presidente Vargas – em área do centro da cidade, em frente à sede da prefeitura e ao prédio do Teleporto – e de oito blocos na Avenida Rodrigues Alves e na rua da Gamboa – área periférica do centro – com um total de 1306 apartamentos distribuídos por prédios de oito a doze andares, em terrenos da Rede Ferroviária Federal. Os imóveis contariam ainda com mais dois andares destinados a lojas, salas comerciais, garagens, piscinas e quadras poliesportivas; e seriam financiados pela Caixa Econômica Federal e pela Previ-Rio. Infelizmente as construções não saíram do papel. Na licitação, não houve empresas interessadas, pois priorizam a construção para população de mais alta renda, visto que o retorno econômico é maior. Em entrevista ao Jornal do Brasil (21 de setembro, 2003), o então secretário municipal de urbanismo, Alfredo Sirkis, afirmava ser positiva a mistura de usos e via o Centro como alternativa de moradia para a classe média carioca. Segundo ele, “ali há áreas com forte vocação residencial, como as avenidas Beira-Mar, Roosevelt e Presidente Wilson. E há também o eixo das ruas Riachuelo e Mém de Sá, além da área portuária. Hoje a população do Centro é de 30 mil pessoas. Em dez anos poderemos ter 250 mil”. Acreditava Sirkis que com maior população residente, melhorariam a segurança e demais serviços. A prefeitura do Rio de Janeiro já realizou a compra do Pátio da Marítima da Rede Ferroviária, na área portuária, onde foi construído aquilo que foi denominado “Cidade do Samba”. Também há o projeto da construção da nova conexão Área Portuária-Centro através de um túnel sob o Morro da Providência. Ademais, no que se refere à expansão da cidade, há propostas no sentido de dar fim aos vazios urbanos e impedir o crescimento desenfreado da cidade rumo à zona oeste. Dessa forma, seria preciso voltar a usar os terrenos desocupados, as construções desativadas e prédios sub-utilizados no centro e em seu entorno, no subúrbio – ao longo da linha férrea – e na Cidade Nova. Essas áreas possuem uma infra-estrutura que a zona oeste carece e sua ocupação desordenada a empobrece ainda mais. Trataremos mais profundamente essas questões ao longo do último capítulo. A Barra da Tijuca tem, de fato, se destacado em se tratando das novas espacialidades cariocas. Há uma série de críticas ao modelo desse
Políticas de desenvolvimento urbano e mudanças nas formas de administração urbana 131
bairro que privilegia o automóvel e mantêm as pessoas em comunidades fechadas, criticando inclusive a validade dos padrões urbanos tradicionais. Mas o projeto original desenvolvido pelo arquiteto Lúcio Costa, em 1969, para a Barra da Tijuca viveu durante esse período sobre um forte dilema: por um lado, o plano piloto, que harmonizava natureza e urbanismo moderno; por outro, a pressão do capital imobiliário, que foi a principal responsável pela descaracterização do plano inicial. Não resta dúvida que a omissão da prefeitura também colaborou, até no que se refere à não aquisição das áreas que eram, em sua maioria, propriedades particulares. Embora não seja nosso objetivo nos alongar demais nesse debate, poderíamos exemplificar a mudança em relação ao plano inicial com a construção do Hipermercado Carrefour, onde, no projeto original, existiria um museu. Além disso, uma área próxima à Estrada dos Bandeirantes se transformou na Favela Rio das Pedras. No que se refere à favelização, percebemos que não houve qualquer planejamento de habitações populares no bairro; e se os trabalhadores têm procurado fixar residência próximo ao local de trabalho, não é surpresa o aparecimento de favelas. Paulo Bastos Cezar (Jornal do Brasil, 20 de dezembro de 2002), pesquisador do Instituto Pereira Passos (IPP), concluiu seu trabalho sobre o crescimento das favelas afirmando que se a ocupação do Rio de Janeiro continuar no ritmo em que está, em 2024 os condomínios e prédios de Jacarepaguá estarão todos cercados por favelas. Segundo o pesquisador, em 2002, o bairro tinha 113.227 favelados, ou seja, 22% de um total de 506.760 moradores. Enquanto “a população favelada cresceu 12,53% ao ano, a população normal [sic] cresceu em média 2% nos últimos quatro anos”. Importante frisar que grande parte da população favelada presta serviços no bairro vizinho: Barra da Tijuca. Fato é que o crescimento populacional da Barra da Tijuca continua alto e, como no passado, tal crescimento gera uma demanda por serviços pouco qualificados, que atrai cada vez mais população de baixa renda em busca de postos de trabalho. No que tange ao crescimento da população das favelas em taxas maiores do que as do município como um todo, Lago (2001, p. 1536) acredita que “as transformações na conjuntura política fluminense a partir de 1982, data que marca o início da adoção pelos poderes públicos locais (governo estadual e municipal) de
132
a cidade no século xxi
políticas de reconhecimento das favelas e dos loteamentos irregulares e clandestinos como solução dos problemas de moradia das camadas populares”, tenham contribuído para esse crescimento, pois essas políticas, ao proporem a legalização da posse da terra e a urbanização das favelas, “reduziram as incertezas quanto à manutenção dos moradores em suas ocupações e criaram expectativas de melhorias das condições de vida, cujo resultado foi a redução das barreiras para novas ocupações”. Contudo, convém lembrar também que estamos falando da denominada “década perdida”, que significou estagnação no que tange ao crescimento econômico e alto índice de desemprego, logo nesse período houve importante empobrecimento da população. Outro ponto importante no que se refere ao reconhecimento das favelas pelos poderes públicos locais foi deixar clara a desistência da busca por políticas públicas de habitação popular; ou seja, ao reconhecer as favelas e, inclusive, começar a distribuir alguns títulos de propriedade dentre seus moradores, o governo abre mão da responsabilidade pela construção de habitações populares, que acaba recaindo sobre a própria população pobre. Os números relativos à arrecadação do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), segundo Bruno Thys, do Diário do Rio de Janeiro, são exemplos da importância que tem conquistado esse bairro para o Rio de Janeiro. De acordo com a prefeitura (Diário do Rio de Janeiro – Online), em 2006, o bairro da Barra da Tijuca é o que mais arrecada, contabilizando algo em torno de R$ 226,5 milhões. Quase o dobro do montante pago pelos contribuintes do Centro, que chega à casa dos R$ 127,9 milhões e quase o triplo de Copacabana, que se aproxima de R$ 87 milhões. No Rio de Janeiro, mesmo não sendo recente o processo de desconcentração, seja no que concerne à habitação ou à indústria e ao comércio, manteve-se no bairro do Centro o núcleo da gestão pública e do setor de serviços – principalmente no que se refere ao sistema financeiro, às sedes das empresas com filiais na cidade – e, também, toda forma de comércio, seja o popular ou o que se destina às classes mais abastadas da população. O geógrafo João Baptista Ferreira de Mello (1997, p. 54), ao se referir ao núcleo central carioca e seu entorno periférico, afirma que a ordem não reina absoluta e que os prédios estão dispostos em certos segmentos facilmente mapeáveis, ou seja: “centro
Políticas de desenvolvimento urbano e mudanças nas formas de administração urbana 133
financeiro (Avenida Rio Branco e adjacências), centro histórico (Praça XV), centro cultural (Cinelândia), centro comercial popular (áreas do SAARA, SARCA), centro administrativo (Cidade Nova), área residencial (bairros periféricos ao núcleo central), área portuária (Praça Mauá e cercanias); mas a cidade é muito mais do que asfalto, vidro, tijolo e aço.” Afirma ainda que o “espaço coletivo da Área Central é também, mais do que qualquer outra porção da cidade, o lugar da moradia dos desvalidos, a chamada população de rua.” No que se refere ao centro do Rio de Janeiro, ainda que comportando outras funções, ele acabou por se tornar, basicamente, o centro financeiro e de gestão da cidade. Por corresponder ao centro de negócios carioca por excelência, Susana Pacheco (1999), uma geógrafa que se dedica a estudar o setor terciário, enaltece o fato de ser dotado de uma coesão espacial que se expressa na existência de infra-estruturas para o seu funcionamento como tal. “Hoje em dia isso quer dizer serviços avançados, telecomunicações, comunicações, edifícios de escritórios (edifícios inteligentes e escritórios voláteis), instituições de ensino superior, ou seja, uma economia de serviços que responde aos processos de modernização em curso”. Permanecem no centro do Rio de Janeiro as sedes de empresas como a Companhia Vale do Rio Doce, a Petrobras, o BNDES, dentre outras. Atualmente, as tecnologias de comunicação e informação vêm facilitando a internacionalização, estando, inclusive, associadas a fluxos que perpassam toda a atividade das classes economicamente privilegiadas pela informação; informação que se constitui em poder sobre a estruturação do espaço e se afirma na espacialização das atividades que vem sendo desenhada no ambiente construído. Pacheco (1999, p. 02) chega a enfocar o fato de que as transformações no espaço urbano da área central do Rio de Janeiro acumulam-se nos objetos, que são alvos de intervenções ao longo do tempo, tendo edifícios históricos sendo transformados em sua fachada e em seu uso, outros mantêm a fachada mas internamente são refuncionalizados ou, em alguns casos, chegaram até “mesmo a ser varridos do ambiente construído”. Embora, atualmente, não haja muitos exemplos no que concerne ao lançamento de novos imóveis no Centro, a incorporadora Hines – uma das maiores do mundo – lançou a Torre Almirante; um prédio de escritórios de 36 andares no Centro da cidade, com um total de 39 mil metros quadrados de área. O imóvel, na esquina das avenidas Graça
134
a cidade no século xxi
Aranha e Almirante Barroso, foi projetado pela própria empresa americana e teve investimento do Fundo Emerging Markets Real Estate Fund II (EMF II), uma parceria da Hines e da Trust Company of the West (TCW). A obra, que marcou a entrada da empresa no mercado carioca, teve início em novembro de 2002 e ficou pronta em 2004. Projetada pelos renomados escritórios de arquitetura Robert A. M. Stern Architects – de Nova Iorque – e Pontual Arquitetura – do Rio de Janeiro – a Torre Almirante tem 1200 metros quadrados por andar, business center, incluindo salas de videoconferência, academia, três zonas de elevadores e garagem com 420 vagas. O empreendimento, com localização privilegiada, encontra-se situado a poucos minutos do Aeroporto Santos Dumont e próximo ao metrô, a terminais de ônibus, consulados, centros culturais e restaurantes. Segundo matéria publicada na época (O Globo, 01 de abril de 2002), os investimentos aproximaram-se de R$ 300 milhões, com recursos vindos do exterior. Em um momento em que várias sedes de empresas deixam o centro do Rio de Janeiro, surpreenderia um investimento como esse, contudo isso se justifica já que mais de 75% da Torre é destinada à Petrobras. Não restam dúvidas de que a área central do Rio de Janeiro é, ainda, o local onde se concentra a maioria das sedes de empresas sediadas no Rio de Janeiro, contudo, como em outras partes do mundo, estamos encontrando indícios do surgimento de novas espacialidades para além da área central carioca. O centro do Rio de Janeiro vem perdendo várias empresas e já é possível perceber o crescimento de salas e mesmo andares inteiros vazios nos edifícios da área central e o destino da maioria dessas empresas tem sido o bairro da Barra da Tijuca. Em outubro de 2001, a Shell transferiu sua sede nacional de um edifício de 13 andares para um centro empresarial localizado na Barra da Tijuca, ao lado do Barra Shopping. A nova sede ocupa apenas dois blocos do Centro Empresarial Barra Shopping (Figura 10a). Um ano antes, a multinacional francesa Michelin – que se encontra entre os três maiores fabricantes de pneus do mundo – havia se instalado em outro centro empresarial da Barra: Città America (Figura 11). Todos os setores de logística da empresa estão ali instalados, constituindo um total de 500 pessoas; o que não significa que todos estejam lá diariamente. No Città America já se encontravam outras empresas de peso como a Cisco Systems e a Novartis.
Políticas de desenvolvimento urbano e mudanças nas formas de administração urbana 135
Figura 10a. Centro Empresarial Barra Shopping
Esse Centro Empresarial que abriga, dentre outras, as sedes da Shell e Amil, teve suas unidades negociadas rapidamente. Além de sedes de empresas é possível encontrar um campus da Universidade Estácio de Sá em seu interior. Localiza-se na Av. das Américas (próximo ao entroncamento com Avenida Ayrton Senna), ao lado do Barra Shopping – um dos shoppings de maior movimento da cidade –, tendo inclusive acesso direto a ele. Há inclusive um trem elétrico que circula pelo shopping e vai até o Centro Empresarial. Foto: Alvaro Ferreira, 2003.
No fim de 2002 foi a vez de outra gigante do petróleo – a Esso – se mudar para a Barra da Tijuca. O mesmo caminho tomaram a Volvo do Brasil Veículos Ltda, a Conasa Construtora, a Diamond Informática, a Engemolde Eng. Ind. e Com. Ltda (mudou-se do centro em 1997), a Carvalho Hosken S.A. Eng. e Construções (mudou-se do centro em 1998), a Gafisa Engenharia e Construção e a sede administrativa da Infabra – Ind. Farmacêutica Brasileira, dentre outras. Ademais, é possível identificar também a saída do centro em direção à zona sul da cidade, como é o caso da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) que transferiu sua sede para o 36º andar da Torre do Centro Empresarial Rio Sul, em Botafogo. No segundo semestre de 2003, no então recém lançado Centro Empresarial Mário Henrique Simonsen – localizado próximo ao Barra Shopping – encontram-se a Fundação Bradesco e a Siemens do Brasil. Dentre as vantagens salientadas pelos agentes imobiliários (Imóvel-on)
136
a cidade no século xxi
Figura 11. Città America Office – Barra da Tijuca
O centro empresarial em que se instalaram, por exemplo, Michelin e Cisco Systems, valoriza os espaços amplos e o verde. Em ambiente aprazível, com a bela Lagoa da Tijuca nos fundos da construção, os funcionários têm acesso direto ao Città America Shopping. Além de diversas lojas comerciais e restaurantes, há ainda a possibilidade de dar uma “esticada” após o período de trabalho em um dos diversos bares com happy hour. A presença do Hard Rock Cafe no complexo é certeza de movimento constante durante o final da tarde e à noite. Como localiza-se ao lado de outro misto de Centro Empresarial e Shopping – Downtown – a circulação entre os dois é constante. Foto: Alvaro Ferreira, 2003.
que negociavam as vendas dos andares do novo empreendimento, estavam: infra-estrutura de comunicações que utiliza as mais modernas tecnologias para rede de voz e redes de dados de banda larga em fibra ótica; terreno de 78.400m2 com apenas 12,5% de área ocupada (paisagismo integrado à vegetação de restinga); centro de convenções e business center preparados para eventos e treinamentos; heliponto; 1.612 vagas para estacionamento; espaços diferenciados para empresas de todos os portes (por exemplo: Blocos 4 e 5 – áreas de 40m2, 75m2, 83m2, 97m2, 108m2 e 1.440m2; Blocos 2 e 7 – áreas de 130m2, 145m2, 228m2, 235m2 e 1.475m2). O Centro Empresarial Mário Henrique Simonsen (Figura 12) localiza-se ao lado de outro grande empreendimento imobiliário, o Centro Empresarial Barra Shopping.
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Figura 12. Centro Empresarial Mário Henrique Simonsen
Esse Centro Empresarial – localizado na Avenida das Américas perto do Centro Empresarial Barra Shopping – abriga as sedes da Fundação Bradesco e da Siemens do Brasil. Seu projeto é bastante flexível, o que permite a instalação de pequenas, médias e grandes empresas, já que possui desde áreas de 40m2 a áreas de até, aproximadamente, 1500m2. Foto: Alvaro Ferreira, 2003.
A entrada dessas grandes empresas na Barra indica uma mudança no perfil do bairro. Em matéria do Jornal do Brasil (dezembro de 2002), vimos que esse movimento já estava sendo percebido quando lemos que “a Barra nasceu areal, virou meca da classe média emergente nas duas últimas décadas (...) e está desenvolvendo vocação para os negócios”. Ao ser consultado, o presidente da Associação Comercial e Industrial da Barra, José Maria Herdy acredita que a migração empresarial para o bairro é um fenômeno irreversível. Se é irreversível e se irá se dirigir em massa para a Barra só o futuro dirá, contudo, fato é que há indícios de um movimento de desconcentração e acreditamos que a utilização do teletrabalho também tem contribuído para realização de uma nova espacialidade na cidade do Rio de Janeiro, seja a partir da mudança de endereço das sedes das empresas, ou seja pela territoriali-
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dade construída pelo teletrabalhador que, a partir de então, realiza suas atividades em sua própria residência3. Ao compararmos a Barra com o Centro do Rio de Janeiro deparamo-nos com bairros bem distintos. Como afirmamos anteriormente, só recentemente foi derrubada a lei que não permitia firmar residência no Centro da cidade. A Barra da Tijuca tem, atualmente, um índice de automóvel por habitante de 2,36 (semelhante ao de Los Angeles – 2,39 – nos EUA) e mais de 40% dos domicílios apresenta renda mensal superior a 20 salários mínimos. É interessante, também, perceber uma mudança radical no padrão de organização espacial da cidade, pois no bairro do Centro é possível percorrer o núcleo central a pé, ao passo que na Barra da Tijuca isso é totalmente inviável, o automóvel é fundamental. Outras grandes empresas têm saído do Centro; a Amil está instalada no Centro Empresarial Barra Shopping desde julho de 2002, o mesmo em que se encontra a Shell. O Vice-Presidente de Estratégia e Assuntos Corporativos da Shell, Gilbert Landsberg, valoriza a excelente oferta de serviços; “isso gera qualidade de vida, fator importante para o bom rendimento dos nossos profissionais”. Ademais, sabendo que grande percentual de trabalhadores realiza suas atividades no próprio domicílio, o empreendimento tende a crescer. A Unimed, em 2005, também transferiu sua sede do Centro do Rio de Janeiro para um novo imóvel na Avenida Armando Lombardi, na Barra da Tijuca. No fim de 2002, a Esso – outra gigante do petróleo –, que mantinha sede instalada em um prédio construído em 1934 no centro do Rio de Janeiro, migrou para a Barra da Tijuca. O gerente do projeto Rio New Office, Fernando Andrade, quando entrevistado, acrescenta que dentre os pontos positivos estão “a alta tecnologia das instalações, a variedade de serviços disponíveis e a quantidade de área verde”. Deixaram, também, o Centro da cidade e encontram-se agora na Barra da Tijuca a sede da finlandesa Nokia Networks e o escritório carioca da Fiat. Além de terem deixado o Centro, outra característica que as empresas citadas mantém em comum é o fato de todas terem iniciado a implementação
3 Temos vários artigos publicados desde 1998 em que discutimos as transformações que a utilização do teletrabalho vem trazendo à cidade do Rio de Janeiro.
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do teletrabalho em suas empresas pouco antes de deixar as antigas sedes. Em contrapartida, no centro, existem poucos imóveis que podem servir para projetos tão diferentes – com salas amplas, praticamente sem divisórias – já que, em geral, tratam-se de edificações da primeira metade do século passado e com alto custo de manutenção. Não é surpresa verificar o esvaziamento de andares inteiros em prédios do centro da cidade. Eis um dos motivos pelo qual temos verificado o surgimento de filiais de universidades privadas no bairro. No entroncamento da Avenida Rio Branco e Avenida Presidente Vargas – até então o coração do centro empresarial carioca – surgiram filiais da Universidade Estácio de Sá, da Universidade Cândido Mendes e da Universidade Gama Filho, ocupando grande parte dos andares (Figura 13, Figura 14 e Figura 15, respectivamente). Aliás, impressiona a forma como são denominados seus novos campi: filiais. Aflora, assim, claramente a maneira
Figura 13. Universidade Estácio de Sá: um dos vários campi no Centro do Rio
Localizada na Avenida Pres. Vargas com rua Uruguaiana, próxima à Av. Rio Branco, essa é uma das quatro unidades localizadas no Centro do Rio de Janeiro. As outras três localizam-se, respectivamente, no prédio do Terminal Menezes Cortes, na área dos Arcos da Lapa e na Praça XI. A administração da universidade concentrou os cursos no horário noturno e tem veiculado grande quantidade de propaganda no sentido de demonstrar a praticidade de sua localização. Foto: Alvaro Ferreira, 2004.
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Figura 14. Universidade Cândido Mendes, ladeada pela Igreja da Candelária
A Universidade Cândido Mendes é outra que já mantinha outro campus no Centro da cidade (próximo ao Paço Imperial). Localiza-se na Praça Pio X, esquina de Av. Presidente Vargas com rua Primeiro de Março, sendo ladeada pela Igreja da Candelária e tendo a sua frente o novo campus da Universidade Gama Filho (fora da foto). Foto: Alvaro Ferreira, 2003.
Figura 15. Universidade Gama Filho, tendo a Candelária a frente
A Universidade Gama Filho também foi outra universidade que, percebendo um certo esvaziamento de locação em diversos andares de prédios no Centro do Rio de Janeiro, acabou por abrir um novo campus no local. Localiza-se na Praça Pio X, próxima à Igreja da Candelária e tem a Universidade Cândido Mendes à frente (fora da foto). Foto: Alvaro Ferreira, 2003.
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como esses empresários vêem o ensino: um negócio. Apenas no centro do Rio de Janeiro, a Universidade Estácio de Sá já conta com quatro unidades: a anteriormente citada e outras três que se localizam no prédio do Terminal Menezes Cortes, na área dos Arcos da Lapa e na Praça XI. Diante de tantas transformações os agentes vêem-se obrigados a buscar alternativas para a utilização futura do Centro do Rio de Janeiro. A revalorização cultural do centro carioca (com seu acervo de museus, bibliotecas, teatros e centros culturais), a permissão de firmar residência e a implantação de universidades no local já são indicadores da mobilização desses agentes. Assim, nessa seara de incertezas, os agentes sociais que (re)produzem o espaço da cidade estarão buscando novas formas de (re)valorização desse espaço. O centro do Rio de janeiro perde empresas, mas adquire novas funções (Figura 16). Contudo, como vimos, os próprios agentes através da criação das condições gerais – como, por exemplo, a abertura de estradas e túneis, a implantação de fibras óticas, o desenvolvimento cada vez mais veloz das tecnologias de comunicação e informação ou, ainda, a mudança organizacional a partir da flexibilização da produção, do produto e do trabalho – contribuem para as transformações que temos percebido.
Figura 16. Mapa da Refuncionalização do Centro do Rio de Janeiro
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Outro exemplo do processo de migração do Centro do Rio de Janeiro esteve estampado em todos os jornais da cidade. O prédio da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), construído em 1966 – Edifício João Havelange – localizado no coração do centro financeiro da cidade, na rua da Alfândega, quase esquina com Avenida Rio Branco, foi posto em leilão no dia 17 de setembro de 2003. São 2.280m2 divididos em oito andares, mais subsolo, térreo e sobreloja. No dia do leilão aconteceu um fato inesperado: não houve interessados. A CBF, desde 2002, localiza-se em uma moderna sede na Barra da Tijuca com estacionamento, jardins e chafariz. A nova sede conta com um conjunto de dois blocos de quatro e cinco andares com uma infra-estrutura de telecomunicações de alta tecnologia. A Barra da Tijuca, recentemente, tem recebido uma nova onda de “emergentes”; tratam-se das empresas de Internet que passaram a ocupar os centros comerciais da Avenida das Américas (uma das principais vias do bairro), alocando-se no bairro que ganhou fama por ser o endereço preferido dos novos ricos cariocas. A beleza da paisagem não é o único fator de atração; na verdade, há nesse bairro uma oferta de serviços de telecomunicações no padrão dos países mais ricos do planeta, com imóveis dotados de recursos de alta tecnologia. A migração dessas empresas foi alavancada pela Embratel que, no início do ano de 2001, investiu US$ 15 milhões – quatro vezes mais que o valor investido nos principais bairros da cidade – para instalar uma rede de 67 quilômetros de cabos de fibra ótica na Barra e nos bairros vizinhos do Recreio dos Bandeirantes e de Jacarepaguá, com capacidade de transmissão que chegava a 2,5 bilhões de bits por segundo. Um aumento de velocidade bastante considerável se comparado aos 64 mil bits por segundo que navegavam em um canal de voz comum. Migraram para a Barra da Tijuca, dentre várias outras “pontocom”, Infolink, Par-Perfeito, Brasil Web, Guia Local, Mercado 21, Novo Estilo e-commerce, Tessera, Via Rio e Globo.com. Segundo matéria veiculada no site de notícias do Portal Terra (Dias, 2002), a procura foi tão grande que, em seis meses de oferta, 40% da capacidade do anel ótico da Embratel já havia sido tomado. Contudo, como afirmou, na época, o diretor de engenharia da Embratel, José Luiz Rivera, “a demanda crescente não vai significar o fim da festa na Barra do Silício [como o
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diretor vem chamando o bairro], pois basta uma mudança na unidade eletrônica (SDH) do sistema para duplicar a capacidade da rede ótica. Podemos multiplicar várias vezes essa taxa de transmissão” (Dias, Portal Terra, 2002). Fomos informados que, além disso, a operadora também oferecera conexão via rádio, com velocidade média de dois megabits. Esse serviço era destinado aos clientes pequenos que estavam em pontos isolados da região. Contudo, embora as empresas tenham divulgado o total de investimentos e a quantidade de quilômetros de cabos instalados, não divulgaram o mapeamento do cabeamento de fibra ótica instalado. Diferentemente, nos Estados Unidos da América e em vários países europeus esses dados são livremente disponibilizados, inclusive, na Internet. Esclareceu-nos o sócio diretor do site Guia Local, Daniel Delvisson, que conseguiu reduzir o custo mensal com conexão em pelo menos um terço na primeira metade da década de 2000, posto que afirmava gastar algo em torno de R$ 400,00, ao passo que em outro bairro esse gasto não ficaria por menos de R$ 1.300,00. Bruno Parodi, sócio fundador da desenvolvedora de sites Tessera, localizada no Shopping Dowtown (Figura 17), enalteceu o fato de que, na Barra, a Embratel lhes proporcionou condições de acesso excelentes, adequadas ao que o site necessitava. O centro comercial vizinho, Città America, também agrega várias salas destinadas às empresas chamadas “pontocom”. Juntos, os dois têm 21 empresas de Internet (segundo pesquisa realizada até junho de 2003). A construtora Agenco, em 1997, ao pensar as 780 salas e 594 lojas do Città America, na Barra da Tijuca, projetou a arquitetura interna do prédio para absorver a complexa infra-estrutura das empresas de Internet. A construtora também fez um acordo com a Embratel para oferecer o serviço interno e externo de voz, dados e imagem, proporcionando uma Intranet no shopping de 100 megabits e uma conexão na Internet de no mínimo 2 megabits. Conforme nos afirma Pedro Paulo Oliveira, sócio da Speedcomm, empresa que gerencia o serviço implantado pela Embratel, “comparando com a Internet discada, é como colocar uma Mercedes contra um Fiat 147” (Dias, Portal Terra, 2002). O portal Globo.com também não resistiu aos apelos tecnológicos da Barra e trocou o Jardim Botânico, onde fica a sede da Rede Globo, por três andares do Bloco 2 do Città America. Segundo o diretor de criação
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Figura 17. Shopping Dowtown, na Barra da Tijuca
O Downtown – como sugere seu nome – tenta reproduzir em seu conjunto arquitetônico um “centro da cidade”. Esse misto de shopping e centro empresarial tem atraído considerável quantidade de escritórios de pequenas empresas. O complexo conta ainda com um campus da Universidade Gama Filho, grande número de bares e restaurantes e um conjunto de 12 salas de cinema do grupo Cinemark. Encontra-se ladeado pelo Città America, então a circulação entre os dois é constante. Foto: Alvaro Ferreira, 2003.
do site, Marcello Póvoa, em entrevista veiculada no Portal Terra (2002), “os serviços tecnológicos reforçaram a tendência de migração de empresas para a Barra. Acredito que o agrupamento de várias ‘pontocom’ em um mesmo endereço cria uma atmosfera de sucesso, gerando inclusive um clima de otimismo e de confiança no mercado”. A cidade do Rio de Janeiro, posteriormente a metrópole, foi e é construída, desconstruída e reconstruída indefinidamente. Tal processo não se dá de forma homogênea ou linear, mas heterogeneamente e aos saltos, para frente e para trás. Os objetivos são, também, endógenos e exógenos, levando em conta interesses que muitas vezes advém de agentes e atores sociais que se encontram a muitas milhas distantes das fronteiras da cidade e do próprio país. Muitas vezes o processo de (des)construção e reconstrução se deu e se dá contraditoriamente. Não é surpresa a percepção de que determinado período de desconstrução, muitas vezes, seja responsável, tam-
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bém, por muito mais que uma simples derrocada de imóveis, morros ou aterros, mas por transformações no modo de vida de grupos sociais que acabam reconstruindo suas relações com o meio e com os demais grupos de forma diferente. Por sua vez, determinadas reconstruções, longe de trazer apenas o novo, remetem também a antigas formas de segregação espacial. Ao que parece, esse movimento que simultaneamente (des)constrói e reconstrói é intrínseco do processo que define a espacialidade da cidade. Encontra-se em uma perigosa fronteira o geógrafo Corrêa (1991, p. 74) ao responder a um questionamento feito por si próprio: “como a segregação residencial viabiliza a reprodução das classes sociais e suas frações? Pelo fato de as diversas áreas residenciais, diferenciadas entre si, mas razoavelmente homogêneas quando consideradas internamente, configurarem meios distintos para a interação social, da qual os indivíduos derivam seus valores, expectativas, hábitos de consumo e estado de consciência. A partir do bairro enxerga-se a cidade e o mundo”. Acredita, ainda, que um bairro e seu sistema de valores estável possibilitaria maior reprodução do grupo social que viveria ali, até porque acredita que nas localidades onde residam os capitalistas esteja sendo forjada a próxima geração de capitalistas. E “do mesmo modo, de um bairro de empregados do comércio, de bancos e escritórios, espera-se que saiam os futuros empregados destes setores”. Quando trabalhamos com um encaminhamento como esse dado por Corrêa (1991), temos de tomar cuidado, pois há uma linha tênue que separa tal afirmação daquilo que poderíamos denominar determinismo espacial e da noção durkheimiana de que a integração social refere-se à totalidade, a solidariedade e ao contrato social. Mas o sociólogo Émile Durkheim (1995) entende a totalidade como resultado de uma ordem exterior, em que as formas de classificação ao serem instauradas se exteriorizam através das relações sociais instituídas, pré-existentes, que são a naturalização da ordem social. Durkheim acreditava que não existiam sociedades (totalidades) sem os seus respectivos sistemas classificatórios. Seria pela classificação que se ordenaria o mundo. O sujeito, em Durkheim, não tem autonomia, é uma construção social que se constrói a partir de crenças, valores e práticas sociais. Ou seja, através da integração social discute o sujeito enquanto produto da totalidade e da própria sociedade. A noção de totalidade é bastante importante, mas definitivamente não a durkheimiana.
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Utilizar-nos da consideração do espaço como produto, condição e meio do processo de produção geral da sociedade, permite-nos perceber os agentes que produzem o espaço urbano buscando interligações que, muitas vezes, partem do global em direção ao local, e aí encontram sujeitos que ora apresentam-se como aliados, ora como oponentes. Para tanto, ao analisarmos a ação desses agentes será importante a percepção da (con)formação de espacialidades construídas a partir da relação dialética entre estrutura e ação, conforme enunciada por Gottdiener (1997), que resultaria numa compreensão do espaço que enfatizaria as determinações gerais do modo de produção, ao mesmo tempo em que procuraria entender o papel dos agentes em suas articulações e não como elementos isolados. Assim, temos nessas articulações o proprietário dos meios de produção, o setor imobiliário, “mas também elementos do capital financeiro e corporativo, políticas públicas, grupos locais de ativistas, partidos políticos necessitados de suporte financeiro, ambientalistas, proprietários de casa própria etc” (Gottdiener, 1997, p. 218). São exatamente esses interesses e os conflitos entre eles que formarão o fio condutor das mudanças espaciais. Procuramos até então, no decorrer deste capítulo, deixar clara essa inter-relação entre os agentes que advém ora de interesses comuns ora de contraposições. Atualmente, a velocidade desses processos nos leva a uma simultaneidade de perspectivas. Processos que eram sucessivos, se horizontalizam; ou seja, percebemos uma maior sincronicidade dos processos, que acabam por alterar nossas perspectivas. É como se nosso olhar se tornasse mais complexo e simultaneamente mais superficial: mais rápido, portanto mais superficial; e mais complexo, pois há um maior número de elementos em jogo. Mas isso não desqualifica o espaço, ao contrário, qualifica-o. Na História, a grande compreensão da sociedade se deu através da análise do tempo, da evolução, do processo civilizatório. O olhar que temos, e que foi construído, é o olhar da grande evolução. É a centralidade do tempo e hoje percebemos, também, a centralidade do espaço. De alguma maneira, qualifica o espaço como sendo o centro, já que o tempo adere ao espaço. Isso significa que existe uma sincronização da existência, o que dá mais poder ao espaço. A relação entre espaço e tempo se faz, inclusive, através de um encaminhamento que parte do lugar ao
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global e de volta ao lugar. A inter-relação multi-escalar não é empobrecedora, ao contrário, quando conseguimos fazer uma boa análise multi-escalar, nossas pesquisas crescem analiticamente, mas a questão é que, normalmente, não é fácil fazer essa articulação. Essa centralidade do espaço acentua-se ainda mais quando observamos que a maneira como se dá a governança das cidades vem tomando outros caminhos.
O discurso do “empresariamento” na governança das cidades Partindo do pressuposto de que a produção do espaço é fundamental para a reprodução capitalista, vemos atualmente que a maneira de gerir as cidades tem se transformado bastante, acarretando também repercussões nas aglomerações urbanas. Foram dois sociólogos estadunidenses, John Logan e Harvey Luskin Molotch (1987) desenvolveram interessante discussão acerca do que denominaram “máquina-urbana-de-crescimento”, em que percebiam o lugar como uma mercadoria que podia produzir riqueza e poder a seus proprietários. Assim, é possível compreender porque as elites proprietárias urbanas resguardam com tanto vigor as relações de proximidade com o governo local, que pode regular as práticas espaciais. Os sociólogos focam-se na crítica à tradicional solidariedade entre o poder público e os proprietários urbanos, os quais afirmam que sem tal solidariedade a máquina de crescimento não funcionaria. Nesse sentido, colocar a máquina do crescimento em funcionamento significa defender a promoção do uso mais intensivo da terra, coletar rendas mais elevadas ou espoliar riquezas ali produzidas. Sem crescimento a cidade começaria a se desvalorizar e com ela as propriedades, o comércio, os serviços às empresas e às pessoas, os anúncios em jornais, rádios e televisões, os salários etc. Assim, a cidade perderia valor, assim como qualquer mercadoria quando não encontra demanda no mercado, não conseguindo, assim, passar adiante os efeitos da crise de sobreacumulação. Um discurso do terror, que justificaria a solidariedade entre o poder público e os proprietários urbanos. A arquiteta Ana Cristina Fernandes (2001) encontra proximidades entre a tese de Logan, Molotch (1987) e a formulação da noção de ajuste espacial do geógrafo David Harvey (1982).
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É possível observar que Harvey parte da noção de produção do espaço trabalhada por Lefebvre na década de 1970 e, nesse sentido, o capitalismo ter-se-ia mantido pela conquista e integração do espaço. A produção do espaço mostra-se como um processo implicado na reprodução dos capitais, em outras palavras, estamos falando da transferência de capitais entre diferentes setores da economia, sendo aplicados na construção de obras de infra-estrutura para a circulação de capitais e mercadorias. Harvey denomina ajuste espacial (alguns outros autores traduzem spatial fix como arranjo espacial), o processo de ordenações por que passam as ações dos capitalistas no afã de escapar das crises de sobreacumulação. Caracteriza-se por um momento em que há uma soma de capitais a serem investidos, mas que não encontra essa possibilidade nos circuitos de valorização do capital, não tendo como gerar lucratividade. Trata-se, então, de buscar uma forma de fazer o capital circular, é nesse momento que a produção do espaço surge como solução. Investe-se na produção de infra-estruturas no espaço, contudo esse mecanismo pode amenizar ou postergar os problemas relativos à sobreacumulação. Ao mesmo tempo solução e novo problema: quando o investimento é realizado em grandes obras de infra-estrutura o capital se imobiliza em capital fixado ao solo, sendo obrigado a fixar-se mais tempo para girar os capitais investidos. Ou seja, a própria fluidez acaba gerando também fixidez. As cidades têm sido administradas tendo em conta as estratégias possíveis para incluí-las no circuito mundial dos modelos de sucesso. Assim, cada vez mais, antes de serem percebidas como o lugar fundamental para a reprodução da vida e do cotidiano daqueles que lá vivem, são concebidas como mercadorias; e como tal, para serem vendidas. A tarefa da administração urbana tem se pautado, cada vez, mais em atrair para seu território uma produção altamente móvel e flexível, além de fluxos financeiros e de consumo (como o turístico, por exemplo). Aquilo que Harvey chamou de o novo empresariamento urbano caracteriza-se, também, pela parceria público-privada, tendo como objetivo político e econômico imediato muito mais o investimento e o crescimento econômico através de empreendimentos imobiliários pontuais e especulativos do que a melhoria das condições em um âmbito específico (Harvey, 1996, p. 53). Dentre esses empreendimentos, destacam-se as renovações das frentes marítimas, portos, centros históricos e também os grandes eventos
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internacionais (Jogos Olímpicos, Exposições Universais, Congressos Internacionais etc.), como também parques temáticos de ócio e comércio, parques empresariais e de serviços para empresas, zonas logísticas, condomínios fechados, campus universitários, centros médicos, centros de convenções, recintos de feiras etc. A arquiteta, com doutorado em Geografia, Ana Cristina Fernandes (2001) enfatiza a estratégia municipal de arrecadação de impostos através da valorização imobiliária, ainda mais com a insolvência das atividades tradicionais afetadas pela crise. Assim, é possível entendermos porque os projetos de renovação urbana relacionam-se diretamente com os estratos econômicos mais importantes da cidade, levando a uma espécie de gentrificação planejada, já que esses projetos acabam por elevar os preços fundiários e imobiliários. Em consequência, observamos a chegada de grupos sociais de mais alta renda, o que contribui também para a ampliação da arrecadação municipal. Embora não se restrinja às velhas áreas centrais – sabemos que a expansão da malha urbana tem empurrado para mais longe uma população que há tempos localizou-se na periferia, porém atualmente o processo é mais complexo –, a gentrificação chega com força a essa área da cidade e utiliza-se de outras expressões para disfarçar esse movimento de expulsão da população do local: revitalização, renovação urbana, reabilitação ou requalificação de áreas, por exemplo. Lembra-nos a filósofa Otília Arantes (2000), que à medida que a cultura passou a ser o grande negócio das cidades, é preciso, em nossa análise, irmos além de um alicerce clássico a partir do qual olhamos para a cidade – terra, trabalho e capital – e acrescentarmos outro tripé de trocas desiguais e nesse caso simbólicas: “o ‘visual’ de uma cidade [que] reflete decisões sobre o que, e quem, pode estar visível ou não, (...) uma estetização do poder, da qual o desenho arquitetônico é um dos instrumentos mais aparatosos”; o segundo pé seria a “habilidade dos ‘place entrepeneurs’ em lidar com os símbolos do crescimento e sua promessa de empregos e negócios”; e, finalmente, “a aliança entre os círculos de negócios (...) e o Terceiro Setor, a qual, por uma combinação eficiente de mecenato e orgulho cívico (...) se encarregará de fazer com que se multipliquem museus bombásticos, parques idem e complexos arquitetônicos que assegurem a quem de direito que se está entrando numa ‘world-class-city’.” E esse modo de tratar a cidade vai cada vez
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mais transformando-a em cidade-empreendimento, ou seja, é transformada em mercadoria. Retomando o velho Karl Marx, ao priorizar-se a troca, esquece-se daqueles que vêem e têm a cidade como valor de uso. Esse movimento voltado para fora, causa uma sensação de mal-estar no citadino, que se percebe excluído do projeto de cidade idealizado pelas políticas públicas e pelo mercado imobiliário. Atualmente, independente do município, do país ou do continente, é trivial ouvirmos falar da importância da adequação das formas de gestão e produção dos espaços da cidade. Estamos diante de discursos de competitividade, planejamento estratégico e empresariamento; ou seja, é preciso pensar a cidade “profissionalmente”, como um empresário. Abdicou-se do longo prazo e da percepção da cidade como um todo, passando a pensá-la cada vez mais de maneira fragmentada e a partir de projetos pontuais. O que impressiona mais é que tal conduta é adotada por partidos os mais diversos, sejam os conservadores ou os ditos de esquerda. Tal qual se disseminou o ideário do FMI na década de 1980 e 1990 nos países ditos periféricos, os administradores das cidades do mundo todo procuram seguir os “modelos de sucesso” postos em prática por cidades, que, em geral, muito pouco tem a ver com as suas. As histórias dos lugares são desconsideradas; e isso nos dois sentidos: dos que copiam e dos que são copiados (no Capítulo 3, ao falarmos do exemplo de Barcelona isso mostrar-se-á ainda mais claramente). Os prefeitos cercam-se de profissionais de marketing que tratam de encontrar meios de vender a cidade, atraindo investimentos de capitais cada vez mais disputados. Nesse sentido, o governo das cidades torna-se um agente que ao administrá-las acaba por reproduzir o momento atual do capitalismo, ainda mais seletivo e excludente4. Dessa maneira, o governo e a administração urbana acabam por desempenhar apenas um papel facilitador. As vantagens oferecidas para os investidores são criadas através dos investimentos públicos em infra-estruturas e da redução dos custos lo-
4 Para aprofundar esse debate recomendamos Harvey (2005, 1996), Swyngedouw (2002, 1997), Vainer (2002) e Sánchez et all (2004), dentre outros.
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cais por subsídios – como renúncia fiscal, crédito facilitado e cessão de terrenos. Importa ter em conta que o barateamento dos custos de transporte, acompanhado da redução das barreiras espaciais para circulação de mercadorias, informações, pessoas e moedas, fortaleceu o papel das diferenças do lugar no cenário da competição interurbana do capitalismo. Impressionam as expressões elencadas como fórmulas mágicas: “é necessário criar um clima de sinergia”; “espírito empreendedor”; “o empresariado como parceiro”, “revitalização”, “renovação urbana” e, como não poderia faltar, “a criação de uma cidade sustentável”. Já nos alongamos – acreditamos – suficientemente, no primeiro capítulo, no debate acerca do que vem a ser essa “sustentabilidade” a que todos fazem menção (sem dizer do que se trata), e que por si só se torna justificativa para qualquer ação na cidade. O fato é que o tradicional modelo de planejamento tecnocrático, centralizado e autoritário, que teve curso durante bastante tempo, tem sido substituído pelo denominado planejamento estratégico, que se disseminou mundialmente a partir do último quartel do século XX com as experiências de Barcelona e Turim. O professor de Planejamento Urbano e Regional Carlos Vainer (2000) enfatiza a situação atual, em que esse novo modelo tem sido difundido fortemente em países da América Latina pela ação combinada de agências multilaterais – como o BIRD, Habitat – e de consultores internacionais. Nesse sentido, dentre os consultores, elenca Jordi Borja e Manuel de Forn que fazem uso de agressivo marketing acerca do sucesso de Barcelona, além de, também, Manuel Castells. Aqueles que defendem a adoção do planejamento estratégico pelos governos locais, o fazem por acreditar que as cidades estão submetidas ao mesmo mundo competitivo a que as empresas estão. Assim, assistimos a uma grande mudança no debate acerca dos problemas e questões urbanos. Ao que parece, debates que desde muito tempo foram prioritários, como expansão dos equipamentos de consumo coletivo, crescimento desordenado, regras de uso do solo e movimentos sociais, foram substituídos nos gabinetes de prefeitos e governadores pelo de competitividade entre as cidades. Dessa maneira, as atenções afastam-se dos cidadãos e miram a competição pela atração de investimentos de capital e tecnologia estrangeiros, pela atração de indústrias e do tu-
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rismo. Evidentemente, os investimentos não acontecem sem uma contrapartida dos governos locais; em outras palavras, sem que o governo local ofereça um pacote considerável de ajuda e incentivos fiscais. Para por em prática a lógica do plano estratégico, torna-se necessário o banimento da política e a eliminação do exercício da cidadania. Para tanto, torna-se necessário convencer a população de que a melhor alternativa só pode ser planejada pelos especialistas. Os megaprojetos ganham, então, grande relevância, pois sua grandiosidade parece legitimá-los. Vivemos tempos dos grandes escritórios, das griffes e franquias. Assim, é preciso atrair o capital para investir nas cidades. Ao tentar “vender” a cidade, o foco encontra-se nos atributos valorizados pelo capital, tais quais centros de convenção, parques tecnológicos – atualmente, mas do que nunca, priorizando a biotecnologia e as tecnologias de comunicação e informação – , as firmas de assessoramento a investidores e empresários, segurança, centros culturais e de entretenimento, world trade centers, shopping centers, renovações e enobrecimento de áreas degradadas etc. Não é à toa que autores como Borja e Castells (1997) defendem a importância de ter um centro urbano de gestão e serviços avançados, além de ter também um eficiente sistema de telecomunicações, hotéis de luxo, empresas financeiras e de consultoria, além de um mercado de trabalho local qualificado, e de baixo custo, em serviços de infra-estrutura tecnológica. Esse receituário seguido faz com que todos os planos estratégicos assemelhem-se muito, independentemente da localização e da história das cidades em questão. A arquiteta Esther Limonad (2006, p. 365) corrobora conosco ao afirmar que “em diversas partes do mundo, as diversas tentativas de replicar estas experiências relativamente bem-sucedidas, muitas vezes desconsideram o que as antecede e sucede e menosprezam os condicionantes espaço-temporais das experiências que lhes servem de inspiração”. Todavia, se não há dúvidas de que tal receituário visa ao mercado externo, importa acrescentar que essa abertura é seletiva, já que não interessam visitantes em geral. Isso significa dizer que imigrantes pobres, vindos de regiões ou de países igualmente pobres não são bem-vindos. Portanto, Vainer (2000) acredita que quando a cidade é transformada “em coisa a ser vendida e comprada, tal como a constrói o discurso do planejamento estratégico, a cidade não é apenas uma mercadoria mas
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também, e sobretudo, uma mercadoria de luxo, destinada a um grupo de elite de potenciais compradores: capital internacional, visitantes e usuários solváveis”. Os governos procuram criar um ambiente favorável aos negócios desejados e, assim, atrair o capital. Em todo esse debate, um ponto nos parece também importante: a cidade, nesse discurso, transforma-se em sujeito; o que é, no mínimo, complicado. Os problemas urbanos identificados pelos planejamentos estratégicos, percebidos a partir da reificação das cidades – vistas como sujeitos da ação social – leva a uma identificação limitada desses problemas. Limonad (2006, p. 364) acrescenta ainda que os problemas urbanos tendem “a ser percebidos como específicos e localizados e não como estruturais e resultantes de processos socioespaciais mais gerais. Esta percepção limitada propicia um ambiente favorável à tomada de decisões pragmáticas por parte de técnicos, urbanistas e planejadores. Assim, em nome de um ‘bem e futuro comum’ governos municipais elaboram planos de desenvolvimento e renovação urbana na perspectiva de articular suas cidades aos fluxos globais”. Dessa maneira é comum ouvirmos expressões do tipo: as cidades competem entre si por mais investimentos; as cidades buscam desenvolver sua capacidade de inovação. As cidades não são agentes nem atores sociais. A produção do espaço se dá através de relações sociais espacialmente fundamentadas, em que se encontram em ação distintos atores sociais com objetivos diferentes, que por vezes estão em profunda tensão, e que interagem através de suas práticas espaciais. É preciso ter em conta que o espaço é produzido com uma intencionalidade e que há uma interação com a sociedade, inclusive contribuindo para criar permanências, mobilidades, inquietações e, portanto, busca de possibilidades de transformações. Essa certeza é que levou o geógrafo brasileiro Milton Santos (1996, p. 257) a afirmar que o espaço geográfico é ao mesmo tempo “uma condição para a ação; uma estrutura de controle, um limite à ação; um convite à ação. Nada fazemos hoje que não seja a partir dos objetos que nos cercam”. Por sua vez, o filósofo francês Henri Lefebvre, já nas décadas de 1960-1970, afirmou que “a cidade projeta sobre o terreno uma sociedade, uma totalidade social ou uma sociedade considerada como totalidade, compreendida a partir de sua cultura, instituições, ética, valores, em resumo, suas superes-
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truturas, incluindo sua base econômica e as relações sociais que constituem sua estrutura propriamente dita”5. Isso significa dizer que há uma grande diferença entre ser sujeito e o fato de, após a produção do espaço, essas formas interferirem no cotidiano da sociedade. O ponto de partida deve ter em conta que o espaço é um produto social e nesse sentido, o processo de construção da cidade constitui-se como produto e como condição dos processos sociais em curso. Em outras palavras, estamos dizendo que os citadinos produzem o espaço mas são também dominados e coagidos pela sua própria criação. Parece-nos claro, então, o porquê de Harvey (2005, p. 170) afirmar que “é tão insensato negar o papel e o poder das objetivações, da capacidade das coisas que criamos de retornar como formas de dominação, quanto é insensato atribuir a tais coisas a capacidade relativa à ação”. Evidentemente, essa não é a primeira vez que o planejamento da cidade é baseado na empresa privada. É possível mesmo afirmarmos que o urbanismo modernista esteve ligado diretamente às idéias de racionalidade, funcionalidade e estandardização da fábrica fordista-taylorista. Atualmente, temos percebido que os investimentos tomam forma a partir de uma negociação entre o capital internacional e os poderes locais. Ou seja, o novo empreendedorismo tem como uma de suas principais características o incentivo à parceria público-privada. O próprio Harvey chegou a afirmar que, em geral, o setor público assume os riscos e o setor privado fica com os benefícios, já que no projeto e na execução está sujeita aos riscos associados ao desenvolvimento especulativo. A governança urbana acabou sendo orientada no sentido de criar um ambiente favorável aos negócios, visando à atração de capital às cidades. Tal caminho leva ao direcionamento dos investimentos e das inovações aos interesses do desenvolvimento capitalista. A lógica totalizante advinda daqueles que acreditam que a escala de ação deva partir de uma sociedade global, leva a suposições de que o mundo estar-se-ia tornando unificado e homogêneo. Assim, a intensificação da compressão espaço-tempo – conforme desenvolvido por Harvey (1996a; 1994) – estaria levando ao inevitável recuo das culturais locais; inclusive, a definição de nossos locais de trabalho e de moradia
5
LEFEBVRE, Henri. De lo rural a lo urbano. Barcelona: Península, 1978, p. 141.
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estariam sendo determinados por agências em outras partes do planeta. Nesse sentido, o sociólogo Mike Featherstone (1996, p. 10) afirma que “o localismo e o sentido de lugar recuam diante do anonimato de ‘espaços de não-lugar’ ou ambientes simulados em que somos incapazes de sentir que estamos em casa”. Por outro lado, há os que acreditam que o engajamento das cidades e dos lugares na competição global é caminho a ser seguido. Segundo Vainer (2001), esses autores – denominados localistas – acreditam que os governos locais, mais do que qualquer outra instituição ou nível escalar, estão em condições de atrair e promover a competitividade das empresas e, também, de oferecer base histórica e cultural para integração dos indivíduos. O governo local cumpriria, então, as anteriores específicas funções que cabiam aos Estados, tais quais de acumulação e de legitimação. Ao que se vê, há para esse grupo uma rejeição da escala nacional e do Estado nacional como campo e agente da ação política. Além disso, estão imbuídos da certeza de que a questão da competitividade passou a ditar as políticas desregulacionistas e flexibilizadoras que, como instrumento privilegiado na captação de recursos, fortalece o local. Segundo a Arquiteta Ana Cristina Fernandes (2001, p. 27), a “relocalização facilitada pelo progresso técnico e pela redução da regulação dos fluxos financeiros empurram as cidades para a competição por investimentos por meio da oferta de benefícios e subsídios de toda sorte”. Já na década de 1980, Harvey (2001, p. 284; 1994, p. 163; 1985, p. 231) identificava um encaminhamento em direção a uma dinâmica de acumulação fundada em parâmetros crescentemente instáveis e voláteis que garantiriam atributos de caráter financeiro ao “conserto do espaço”6. Ou seja, a questão da competitividade entre as cidades deriva da própria crise. Para entender a entrada das cidades brasileiras nesse jogo, não podemos deixar de considerar o fato de que a Constituição Brasileira de 1988 deu aos municípios autonomia administrativa e financeira. Des-
6 O conserto espacial a que nos estamos referindo diz respeito àquilo que Harvey denominou spatial fix. A essa temática dedica todo o capítulo quatorze de seu livro Spaces of Capital (2001). É possível encontrar essa mesma temática em The urban experience (1985) e em um artigo na Revista Antipode (1981) sob o título: The spatial fix: Hegel, Von Thünen and Marx.
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tarte, enfatiza a economista Ângela Moulin Penalva Santos (2003), isso possibilita aos municípios a administração de sua política fiscal e a elaboração de medidas quanto à gestão dos recursos arrecadados. Não surpreende, então, a importância que o marketing público ganhou como estratégia utilizada para a ativação e desenvolvimento da economia local. Borja e Forn (1996, p. 44) chegam a afirmar que “para a mercadotecnia da cidade, vender a cidade, converteu-se, portanto, em uma das funções básicas dos governos locais e em um dos principais campos de negociação público-privada”. Assim, a geógrafa Claudete de Castro Silva Vitte (2001, p. 85) afirma que as prefeituras utilizam práticas empreendedoras, quando fazem uso de estratégias baseadas na criação de um bom ambiente de negócios objetivando a criação de uma imagem positiva como atrativo para investimentos. Salienta, no entanto, que esse marketing municipal pode levar a práticas danosas caso haja esforços para dar ao local um caráter competitivo – isenções fiscais, subsídios públicos, mão de obra barata, atenuação da legislação ambiental – em detrimento dos gastos sociais. No Rio de Janeiro tivemos, desde a gestão César Maia (1993-1996), sucedida pelo então vice-prefeito Luís Paulo Conde (1997-2000) e as duas seguintes até 2008, novamente com César Maia, um deslocamento nas formas de pensar e agir sobre o espaço urbano, por parte do poder executivo municipal, em direção de concepções e práticas identificadas com o empresariamento da administração urbana. Essas administrações, segundo o arquiteto Glauco Bienenstein (2001, p. 83), têm procurado “resgatar a centralidade da cidade do Rio de Janeiro no ideário da urbanização brasileira, cuja posição havia sido perdida e/ou obscurecida para a cidade de Curitiba (período Jaime Lerner)”. Temos visto na cidade do Rio de Janeiro uma concentração de gastos em projetos de infra-estrutura, como a construção do teleporto, a modernização do Aeroporto Internacional Galeão-Tom Jobim, a renovação de centros históricos degradados e obras de embelezamento. Além disso, foi investida importante cifra na obra de ampliação e modernização do Aeroporto Santos Dumont. Segundo Harvey (1996b, p. 49), empresariamento urbano referir-se-ia à formação de um complexo espectro de coalizões político-sociais visando a organização do espaço da cidade, objetivando a sua adequação à atual dinâmica econômica. Para alcançar essa dinâmica que tra-
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ria competitividade à cidade, seria necessário a formação de parcerias entre os setores público e privado, que no fundo significa dizer que o setor público assume os riscos e o setor privado goza dos lucros (Harvey, 2000, p. 141) . Segundo Bienenstein (2001, p. 78), “no rol dessas parcerias se inscrevem aquelas iniciativas concentradas no desenvolvimento pontual e, não mais (...) centradas no território, visando a melhoria das condições de determinado grupo sócio-geográfico de maior porte. Aí se incluem empreendimentos imobiliários e programas de reciclagem de determinados segmentos da mão-de-obra local”. As denominadas parcerias público-privadas – já tradicionais nos Estados Unidos, intensificaram-se com a crise de financiamento das décadas de 1970 e 1980 – ganham o mundo e se fortalecem a partir da criação das agências de desenvolvimento, que embora não fizessem parte da administração municipal eram mantidas por ela, e tinham seu conselho administrativo formado por profissionais dos setores privados. A professora estadunidense de planejamento urbano Susan Fainstein (2001) enaltece o poder desse conselho, que era responsável, por exemplo, pela escolha dos terrenos onde seriam realizados os novos empreendimentos, pela definição dos programas financeiros, pela definição das obras de infra-estrutura e pelas sugestões de vantagens financeiras e negociação de contrapartida com os possíveis investidores. Objetivando a promoção econômica da cidade e torná-la cada vez mais competitiva, são criadas novas instituições – por exemplo, a Agência de Desenvolvimento da Cidade do Rio de Janeiro (Agência Rio), criada em 1997, segundo seus idealizadores, com o objetivo de realizar uma interface entre a iniciativa privada e o executivo municipal, viabilizando projetos de interesse da cidade (deveríamos nos perguntar sobre os interesses de quem na cidade...) – que buscam organizar e realizar atividades com fins lucrativos, como feiras, festivais e exposições. Para tanto, é comum lidarmos atualmente com a expressão city marketing. Outra forma de atuação, a partir do ideário do empresariamento urbano, seria a flexibilização do aparato legal, principalmente no que se refere à regulação do uso e da ocupação do solo urbano (Bienenstein, 2001). No Rio de Janeiro, além do movimento em direção da Barra da Tijuca, é possível percebermos o crescimento de empreendimentos ligados a centros hoteleiros, de convenções e centros de entretenimento,
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lazer e consumo. Na Barra da Tijuca, apenas no trecho do início da Avenida das Américas até o Barra Shopping (na Avenida Ayrton Senna) encontramos cerca de dez shoppings. Se o trecho observado seguir a mesma Avenida das Américas até o bairro do Recreio dos Bandeirantes – vizinho à Barra – esse número salta para 21. Levando em conta que os shopping centers acabam sendo percebidos como territórios que reproduzem um ambiente livre da contradição que contrapõe ricos e pobres, esses números são bastante representativos. As cidades buscam também financiamentos e empréstimos junto a agências multilaterais. A esse respeito, a arquiteta Rose Compans (2001, p. 127) aponta para o papel coercitivo e doutrinário dessas agências, mais especificamente o Banco Mundial, já que os programas de ajuda e os empréstimos são condicionados “à adoção de uma agenda de reformas concebidas centralizadamente em Washington”. Acrescenta ainda que as agências possuem formas diferenciadas de relacionamento “com os governos locais, mais ou menos impositivas”, nesse sentido, poderíamos acrescentar que as cidades bem sucedidas – no que concerne ao montante do empréstimo – seriam aquelas que apresentassem projetos dentro do padrão homogeneizador previsto pelas agências. Então, seriam aquelas que sucumbem aos encantos da cidade-mercadoria que receberiam prioritariamente esses recursos. Dessa forma, segundo a arquiteta Fernanda Sánchez (2001, p. 171), “o city marketing ‘vende’ a cidade toda, apresentada na forma produto. (...) De fato, muitos governos locais, através de suas políticas urbanas, fazem uso dos mesmos instrumentos para apresentar ao mundo seus modelos de cidade” e que acabam seguindo o mesmo modelo de outras cidades ditas competitivas, remetendo a simulacros sem identidade própria. Essa imagem de cidade é construída e imposta a partir de uma visão de mundo dos agentes dominantes nos processos de produção do espaço. Nesse sentido, Sanchez (2001, p. 169) enaltece o fato de que essa busca de uma “cidade-modelo constitui uma estratégia a mais na elaboração de uma imagem de cidade inserida, internacional”. Nessa estratégia de “vender a cidade”, é enfatizada a importância da diversidade cultural através da revitalização de “bairros étnicos,” objetivando o desenvolvimento do turismo (Borja e Castells, 1998, p. 37; 1997, p. 227). Assim, em qualquer dessas cidades é possível observar uma espécie de pasteurização das culturas. Não é a toa, que no Rio de Janeiro
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está em funcionamento a “cidade do samba” na área portuária. Destarte, é possível perceber a relação entre o lugar e o global perfeitamente instaurada. Concordamos com Vainer (2001, p. 146) quando afirma que nós “vivemos cotidianamente no mundo e no nosso local” (contudo, melhor seria dizer lugar em vez de local), no nosso município, na nossa cidade, em nosso país. Não nos parece correto acreditar que o cotidiano se realize apenas nas relações do lugar, pois tal consideração mostra-se anacrônica, já que a esfera local não constitui um segmento societário em que haja predomínio das relações comunitárias. Todavia, sua oposição direta – um mundo feito à imagem e semelhança das formas abstratas do capital, em que as relações entre escalas e agentes estivessem em extinção – também parece um grande exagero. Até porque, a noção de que viveríamos em uma aldeia global, em que o mundo seria um só lugar, significa desconsiderar a existência de uma pluralidade de interpretações do mundo. Poderíamos afirmar que não haveria um todo social, mas sim tantas versões quanto o número de sujeitos sociais que o postulam, já que as realidades individuais já são elas mesmas totalidades. Além disso, se em determinados lugares do Rio de Janeiro encontramos pessoas trabalhando em escritórios – de sua própria residência ou da empresa – com equipamentos de alta tecnologia e toda a infra-estrutura necessária, simultaneamente, temos também, no outro extremo, o morador de rua que sobrevive sem o mínimo necessário para ter uma vida digna. Ou seja, o processo de globalização é desigual e é no lugar que afloram as heterogeneidades. Por tudo isso, é difícil pensar separadamente no lugar ou no global e no intuito de reforçar esta afirmação, Featherstone (1996, p. 28) foi muito feliz ao remeter-se ao anúncio da Coca-Cola: “não somos uma multinacional, somos uma multilocal”. Aqui, seria interessante ao introduzir o termo “glocalização” – enunciado e discutido por Robertson (1995), Veltz (1996), Swyngedouw (1997) e Beck (1999) – esclarecer que a relação entre o lugar e o global é extremamente complexa e mesmo que tal expressão, segundo aqueles autores, se refira a uma leitura híbrida da globalização, isto é, não a entendendo apenas como um processo de homogeneização, mas também como incorporador da heterogeneidade, corremos o risco de simplificar demais uma relação que é extremamente contraditória. Não estaríamos vivenciando a pura e
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simples imposição do global sobre o lugar ou, por outro lado, através da leitura dos “localistas”, os localismos não devem ser entendidos apenas como focos de resistência em um mundo globalizado. Nesse sentido, o geógrafo Rogério Haesbaert (2001, p. 1774) procura justificar o termo ao afirmar que “a noção de glocalização permite pensar numa sobreposição de territórios, numa territorialidade multi-escalar com várias formas de inserção nos circuitos da globalização.” Acredita esse autor que tal expressão “destaca também a possibilidade de partilhar mais de um território, tanto no sentido mais literal de sobreposição quanto da possibilidade de acionar, dependendo da situação, diversos territórios. Também neste caso, aquilo que numa perspectiva aparece como desterritorializador, pode, na verdade, estar representando a presença ou a possibilidade de vivenciar múltiplos territórios”. Mesmo que a nossa pesquisa nos remeta a um lugar – o Rio de Janeiro – isso não significa afirmar que vemos a escala local como a instância decisória primordial. Acreditamos, junto com o geógrafo João Rua (2003, p. 276), que há limites para a escala de ação local e que, ademais, “é preciso ter consciência de que a cidadania e a identidade se constroem em todas as escalas”. O fato é que as escalas não estão dadas, “mas são, elas mesmas, objeto de confronto, como também é objeto de confronto a definição de escalas prioritárias onde os embates centrais se darão” (Vainer, 2001, p. 146). Na análise, ao escolhermos uma escala, escolhemos nosso objeto e os sujeitos que estarão em jogo, logo a própria opção torna nossa análise limitada. Temos de ter em conta que o poder das grandes empresas encontra-se menos em seu caráter global, que em sua capacidade de interação entre as escalas global, nacional, regional e local. Dessa maneira, não se trata de considerar o global e o lugar como dicotomia, já que os processos de globalização e localização mostram-se indissociáveis. Em se tratando da chamada indústria do entretenimento, as cidades tornam-se estratégicas para a produção e o consumo, e o turismo ganha uma dimensão inimaginável. A socióloga Saskia Sassen (2001, p. 73) lembra que enquanto “os locais produzidos por outras indústrias raramente se constituem em pólos de atração de visitantes (exceto quando recuperados como sítios históricos ou turísticos), a produção real do entretenimento – e as lojas e restaurantes temáticos que dão ao visitante um
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sentimento vicário de participação no processo criativo – torna-se em si mesma uma atração importante”. Some-se a isso o fato da própria cultura urbana estar se tornando um objeto exótico de turismo. Recorrentemente, os diferentes governos municipais do Rio de Janeiro vêm criando projetos de candidatura da cidade para sediar grandes eventos internacionais. O Rio de Janeiro foi sede dos Jogos Pan-Americanos de 2007 e candidatou-se mais uma vez para sediar as Olimpíadas (2016); além disso, será sede de parte da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Mas isso não é tudo, já que foi oficializado, em maio de 2009, o lançamento da candidatura da cidade do Rio de Janeiro a Patrimônio da Humanidade na categoria Paisagem Cultural, que reconhece a singularidade de regiões onde a relação entre a cultura produzida por seus habitantes e o ambiente resultam em uma identidade peculiar. Durante a cerimônia era possível perceber o trabalho dos publicitários envolvidos com a exibição de um vídeo e com o discurso preparado, que enfatizava o fato de que o Rio poderia tornar-se a primeira metrópole do mundo a receber o título. No vídeo, o foco estava centrado nas florestas tropicais, praias, samba, carnaval, bossa nova e futebol. O publicitário responsável colocou no vídeo de divulgação da campanha várias personalidades, como o príncipe dom João de Orleans e Bragança, o compositor, cantor e escritor Chico Buarque de Hollanda e o arquiteto Oscar Niemeyer falando sobre as belezas naturais da cidade e sua história. A ênfase estava no fato de que, segundo os proponentes, nenhuma cidade no mundo se enquadraria tanto na categoria de paisagem cultural quanto o Rio de Janeiro. O governador Sérgio Cabral, cercado por representantes da Unesco, pelo prefeito Eduardo Paes e por publicitários, afirmava que “todos se sentem bem no Rio. Esse é o barato da cidade. O Brasil inteiro é carioca”. Após o lançamento oficial, para dar continuidade à campanha, serão promovidas reuniões entre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e parceiros privados e públicos dos três níveis de governo. Estiveram presentes, segundo representantes do IPHAN, dentre outras entidades, autoridades federais, estaduais e municipais, representantes da sociedade civil (Associação Brasileira de Letras – ABL, Associação Brasileira de Imprensa – ABI, Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB) e do empresariado local (Associação Comercial, Federação das Indústrias do Rio de Janeiro – Firjan e a Federação de Comércio – Fecomércio), formadores
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de opinião, imprensa e outros agentes multiplicadores. Como resultado desses encontros sairá um dossiê que será entregue à Unesco. Caso seja contemplada, a cidade poderá ter acesso a fundos internacionais para políticas de preservação. Da área previamente proposta como Rio Paisagem Cultural, encontram-se locais e bens já protegidos por órgãos de preservação cultural das três esferas do governo, tais como Floresta da Tijuca, Jardim Botânico, Lagoa Rodrigo de Freitas, Morro da Urca, Parque do Flamengo, Praça XV e Jóquei (tombamento federal), o bairro da Urca, o chamado Corredor Cultural no Centro e as áreas de proteção do ambiente cultural dos bairros do Jardim Botânico, Catete, Glória, Botafogo, Laranjeiras, Ipanema e Leblon (tutela municipal) e a orla de Copacabana (tombamento estadual). É possível percebermos a ênfase na produção e consumo de espetáculos e no turismo; para tanto, torna-se necessário criar uma imagem urbana atraente para “vender” a cidade. Assim, a implementação do empreendedorismo na administração do Rio de Janeiro, contribuindo para a criação de novas espacialidades na cidade a partir de deslocações, desativações e reativações que movimentam vários grupos de agentes que produzem o espaço urbano, é exemplo dessa associação entre lugar e global. O Rio de Janeiro não existe por si só, posto que as formas de produção, dominação e acumulação que o caracterizam não podem ser percebidas e corretamente analisadas, senão a partir de suas inter-relações locais, regionais, nacionais e globais. Por trás de grande parte da propaganda dos projetos de sucesso, é possível observarmos o acirramento de problemas sociais nas cidades: gentrificação atroz e pobreza crescente, por exemplo. Assim, por quanto tempo continuarão acreditando que basta criar centros de convenções, grandes estádios esportivos, shopping centers e zonas portuárias renovadas? Para compreendermos essas transformações, faz-se necessário observarmos como algumas propostas de revitalização de zonas portuárias foram realizadas mundo afora e como elas se tornaram exemplo para os governantes do Rio de Janeiro.
Capítulo 3
Transformações cada vez mais homogeneizantes nas zonas portuárias das cidades Exemplos para o Rio de Janeiro?
As relações porto-cidade têm variado através do tempo. No século XX, essas mudanças vêm se mostrando mais rápidas e profundas. Foi possível perceber um movimento em direção ao oriente, inicialmente ligado ao forte crescimento da economia japonesa, que, em seguida, acabou ajudando a alavancar o crescimento do comércio com os denominados, na época, “Tigres Asiáticos” – Hong Kong, Cingapura, Coréia do Sul e Taiwan –, que apresentavam altos índices de crescimento econômico e de interferência no comércio mundial. Posteriormente, incorporam-se ao grupo Tailândia, Malásia e Indonésia. As mudanças não diziam respeito apenas à direção, mas também às tecnologias usadas no transporte e armazenamento marítimo, o que afetou relevantemente a morfologia das orlas marítimas das cidades. Há autores, como o arquiteto Vicente del Rio (2002), que apontam para um novo momento, em que há uma maior preocupação com o desenvolvimento sustentável – expressão perigosa, que diz tudo e diz nada, simultaneamente. Como diz o geógrafo inglês David Harvey (1996), ninguém é contra algo que é sustentável, porém, a questão é saber o que é isso que chamam de sustentabilidade, como já discutimos no primeiro capítulo. Esse novo momento estaria levando à opção por investimentos para a ocupação dos vazios, a reutilização do patrimônio instalado, a requalificação de espaços e a intensificação e mistura dos usos (Del Rio, 2002). As zonas portuárias centrais e suas frentes marinhas mostram-se assim fundamentais para por em prática tal proposta. As transformações nas zonas portuárias tradicionais das cidades têm sido postas em prática. Com algumas especificidades, com maior ou menor destruição de patrimônios históricos, o movimento na dire 163
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ção da revitalização das áreas centrais acabou sendo aceito como novo modelo para o desenvolvimento urbano. Brian Hoyle (2000, p. 415), que tem publicado inúmeros artigos acerca das transformações que vêm ocorrendo em várias partes do mundo em se tratando de zonas portuárias, aponta três elementos fundamentais para que a reabilitação das frentes marítimas obtenha bons resultados: “primeiro, a integração do passado e do presente, em segundo lugar, a integração de metas e objetivos contrastantes e, em terceiro, a integração das comunidades e das localidades envolvidas.” Evidentemente, esses três elementos demandam a participação dos citadinos e não apenas do poder público, dos técnicos e do empresariado. Contudo, como veremos a seguir, as inúmeras experiências realizadas em diversas partes do globo mostram-nos que o caminho trilhado passou ao largo da participação da população envolvida, tornando os projetos excludentes e voltados para os estratos de alta renda. Neste capítulo, passaremos a apresentar um breve panorama das transformações por que vem passando as zonas portuárias em várias partes do mundo, para posteriormente centrar-nos mais especificamente nas mudanças ocorridas em Barcelona, já que se tornaram sinônimo de sucesso em vários simpósios e encontros internacionais, tendo sido copiadas em projetos propostos para várias cidades do planeta; não é à toa que muitos falam da existência de um “Modelo Barcelona”. Em seguida, torna-se necessário retomarmos a discussão acerca da produção do espaço, iniciada na introdução, mas acrescentando a ela as propostas de renovações e revitalizações no espaço urbano, fortemente amparadas pelo discurso técnico.
O pioneirismo dos Estados Unidos é seguido pelos países europeus O novo sistema de transporte marítimo – navios de grande tonelagem juntamente com o transporte e armazenamento via contêineres – requisitava canais e áreas de cais compatíveis, condições estas inexistentes nos antigos portos, cuja modernização compulsória implicava na conquista de novos espaços, cada vez mais necessários à armazenagem crescente do número de contêineres.
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Agrega-se a isso, a queda das atividades industriais próximas às áreas portuárias tradicionais, em geral localizadas na área central das cidades. Tais mudanças acabaram por deixar ociosas grandes extensões de terra muito bem localizadas e bem servidas de infra-estrutura urbana. Grande número de governantes de cidades portuárias tem se perguntado como recuperar e integrar as zonas portuárias que se tornaram obsoletas à vida cotidiana dos moradores da cidade. Conforme a arquiteta Lilian Pian (2005), “as cidades que tomaram a frente no processo de recuperação destas áreas acabaram por forjar procedimentos de planejamento urbano que se tornaram modelos para as outras, o que demonstra mecanismos de globalização não só da economia, mas também do pensamento contemporâneo”. De forma geral, essas áreas passaram por reconversões das atividades nas zonas portuárias, em que basicamente mesclaram habitação, comércio, serviços e lazer. Houve também um grande volume de dinheiro investido por parte dos governos (nas instâncias locais e nacionais, no que tange à instalação de infraestrutura) e da iniciativa privada. Segundo o geógrafo espanhol Joan Colet Duran (1997), foram os estadunidenses os pioneiros nesse tipo de revitalização, ainda na década de 1960, tendo feito grandes obras na frente marítima de Boston e no porto interior de Baltimore. Foram realizados investimentos de grande monta no intuito de transformar essas áreas abandonadas em locais propícios para alavancar o turismo, combinando atividades de cultura, lazer, shopping centers e habitações para população de alta renda. Com a saída das indústrias, o setor de comércio e serviços passa a ter maior importância. Em Boston, toda a área central, inclusive as edificações do antigo mercado Quincy e Faneuil Hall, de 1820, estava destinada à demolição por um projeto de renovação dos anos de 1950. O novo centro cívico municipal seria o ponto de partida para as mudanças e, segundo Del Rio (2001), as primeiras edificações modernistas, resultantes de concursos públicos, foram construídas em 1963. Segundo o autor, “ao mesmo tempo, a prefeitura e a câmara de comércio contratavam uma equipe de consultores liderada por Kevin Lynch e John Myers, professores do MIT, para um plano de recuperação do waterfront, que proporia a preservação de edificações históricas e a integração da cidade com o
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mar”. Tal integração teve em conta os usos públicos e as continuidade espaciais. Uma das inovações que teria por objetivo dinamizar a recuperação da frente marítima foi o projeto do New England Aquarium sobre um píer da área central. O aquário foi inaugurado em 1969, tornando-se grande sucesso de público e elemento importante da revitalização. Afirma Del Rio (2001) que a repercussão foi tão grande que a firma idealizadora – Cambridge Seven – repetiu o projeto em outras cidades, como em Baltimore, Osaka e Lisboa (Expo ’98). Posteriormente, o aquário de Boston tornou-se pequeno por causa da forte procura. Tendo o píer em que fora construído se valorizado grandemente com a revitalização do centro, decidiu-se pela transferência do aquário público – evidentemente novo e muito maior – para outro local e em seu lugar será construído um novo empreendimento imobiliário. Nos Estados Unidos, o crescimento do ativismo político e dos movimentos preservacionistas, em fins dos anos 1960 e início da década de 1970, acabou por modificar os planos de renovação, que passaram a ter um cuidado maior com a preservação histórica e o respeito aos patrimônios locais. Acreditamos que essa nova trajetória é que tenha levado à afirmação de Del Rio (2001) de que apesar de salvos da demolição em 1964, o abandono das edificações do Quincy Market e Faneuil Hall só seria revertida no início dos anos 1970, “através da associação de Benjamin Thompson, um arquiteto local, dono de restaurante, com uma grande ideia, e James Rouse, empresário de visão, cuja Rouse Company já havia construído a cidade nova de Columbia e alguns shopping-centers em áreas centrais”. Apoiada pela prefeitura, essa associação, transformou o antigo mercado em um conjunto gastronômico e comercial, contando com mercado, restaurantes, bares, lojas e escritórios, o que acabou por se tornar um modelo internacional (Figuras 1 e 2). Esse tipo de proposta foge à arquitetura de shoppings fechados, tendo feito muito sucesso em Boston. A partir daí, a Rouse Company desenvolveu outros projetos semelhantes, que passaram a ser conhecidos como festival malls. Del Rio (2001) apresenta alguns exemplos de implantação do mesmo modelo, com sucesso, em diversas cidades estadunidenses, como Baltimore (Inner Harbor), Nova York (South Street Seaport, o Píer 17) e o Bayside Mall, em Miami (Figuras 3, 4, 5).
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Figura 1. O conjunto histórico Quincy Market e Faneuil Hall, em Boston
É possível observar a proximidade do conjunto histórico com a frente marítima e com o início da verticalização da paisagem. Fonte: www.allposters.com, em 27/01/2009
Figura 2. A verticalização junto à Quincy Market e Faneuil Hall (direita)
O conjunto Quincy Market e Faneuil Hall, em estilo Festival Mall, ladeado por intensa verticalização, atrai grande número de turistas para seus restaurantes, bares e lojas. Lugar para ver e ser visto, trazendo à tona o ser humano unidimensional: conformista, consumista e acrítico. Fonte: www.britannica.com/EBchecked/topic-art/201495, em 27/01/2009
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Figura 3. Área do South Street Seaport, Nova York
Vê-se parte da área do South Street Seaport juntamente com a via expressa suspensa, a área de eventos, onde há apresentações musicais e o shopping center Píer 17, inspirado no estilo Festival Mall. Fonte: Del Rio (2001)
Figura 4. Harbor Place em Baltimore
O Harbor Place foi construído também no modelo Festival Mall e apresenta lojas, gastronomia e uma área aberta para eventos. Fonte: Del Rio (2001)
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Figura 5. Bayside Mall, em Miami.
Exemplo do estilo Festival Mall. Fonte: flickr.com/photos/juansolo82/2400360284/em 27/01/2009
A atração de grande quantidade de turistas acabou tendo consequências para a população do entorno; e isso equivale a dizer que, em meados dos anos 1980, este número já atingia 16 milhões de visitantes por ano. Os promotores imobiliários, percebendo a possibilidade de bons negócios na área, começaram a investir no local, fazendo com que o preço dos imóveis em seu entorno subisse bem mais do que no resto da área central. Fato confirmado pelos planejadores urbanos Bernard Frieden e Lyanne Sagalyn (1990) ao afirmarem que, durante a construção do Market Place, na década de 1970, os preços dos imóveis subiram 13% em um raio de cinco quadras do empreendimento, enquanto, por outro lado, caíam 16% no resto da área central. Se, como afirma Del Rio (2001), houve uma valorização do preço do solo de 20 a 25% e o valor do aluguel de salas de 5 a 15% acima do resto da área central, demonstrando haver sido o Market Place um fundamental catalisador para o processo de revitalização e reaquecimento do mercado, por outro lado houve também uma crescente gentrificação no local.
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Interessante observar que, a cada investimento realizado, outros são propostos para dar sustentação aos anteriores. Hoje, a recuperação da área central e da frente marítima de Boston é propagandeada como uma história de sucesso. O antropólogo estadunidense Timothy Sieber (1995) afirmava que os diversos empreendimentos imobiliários realizados anteriormente no centro justificavam esforços de revitalização. Nesse sentido, apresentava como exemplos de tais esforços o Rowes Wharf – um complexo de uso misto de alta qualidade (Figura 6), três novos centros de convenções e exposições e cinco novos hotéis – três dos quais na frente marítima – já construídos. Além disso, há seis outros sendo projetados. Segundo Sieber (1995), há estimativas de que, como resultado da revitalização e do investimento na reconstrução da imagem da cidade, 10% da receita de Boston seja derivada de atividades relacionadas ao turismo. Em se tratando de Baltimore, Peter Hall (2003) atenta para a importância do processo de conteinerização para as transformações ocorridas, visto que, em 1967, o porto de Baltimore tornou-se o segundo porto público do nordeste estadunidense a desenvolver um terminal de contêineres. Contudo, Harvey (2000) aprofunda mais a discussão acerca das mudanças realizadas na cidade, mais especificamente, em nosso caso, na zona portuária. Afirma que as transformações teriam partido, no início
Figura 6. Complexo de uso misto em Rowes Wharf, Boston A propaganda de lançamento, em toda sua grandiosidade, afirmava que complexo de Rowes Wharf não impedia o acesso à água, onde estão restaurantes, piers públicos e ancoradouros para barcos particulares; mas temos de convir que se trata de um enorme paredão na frente marítima para quem está atrás do empreendimento. Fonte: Del Rio (2001
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dos anos 1970, de um autoritário prefeito – William Donald Schaeffer –, que desenvolveu uma parceria público-privada para investir no centro e na renovação do porto interior para atrair serviços financeiros, turismo e o serviço de hotelaria para a cidade. Para dar partida no processo, grande quantia de dinheiro público foi gasto. Uma vez tendo realizado a parceria para a construção dos hotéis, tornou-se necessário construir um centro de convenções para dar vazão aos quartos criados. Segundo o geógrafo, o Hyatt Regency Hotel custou U$35 bilhões; a iniciativa privada investiu apenas U$500 mil, enquanto o restante foi dinheiro público. Já na década de 1970, as Docklands de Londres, na Inglaterra, sofrem também a intervenção promovida por políticos e urbanistas impressionados com o que foi feito nos Estados Unidos. Duran (1997) aponta os problemas trabalhistas vividos no porto londrino, juntamente com a transferência do comércio para outros portos rivais – Southampton e Roterdam, por exemplo – e a utilização do sistema de contêineres como responsáveis pelo declínio das atividades portuárias a partir de 1967. A transformação intensa da zona portuária seguiu seu curso na década seguinte, sendo considerada um dos maiores casos de revitalização urbana do continente europeu. Em seguida, lembra-nos Pian (2005) acerca da coincidência entre o governo de Margareth Tatcher e a revitalização de Docklands, o que por si só já explica a rapidez com que as obras foram postas em prática. Tal velocidade acabou por gerar equívocos no encaminhamento e na concretização das reformas. Na Isle of Dogs, salienta a autora, o descontrole urbanístico permitiu uma transformação acelerada e um adensamento incompatíveis com a infraestrutura urbana existente, o que acabou gerando sérios problemas. É possível que a privatização exagerada possa ter contribuído para parte do fracasso na área das Docklands, que se espalha ao longo de 13km do rio Tâmisa, no centro financeiro de Londres. Segundo Del Rio (2001), “após projetos pontuais de revitalização, como no caso do Saint Katherine´s Dock – complexo de hotel, apartamentos, escritórios e marina – junto à Tower Bridge, foi instituída, em 1981, pelo governo conservador de Tatcher, a London Docklands Development Corporation”, que obteve o controle da área e buscou, através de pesados investimentos públicos, torná-la um centro de operações financeiras globais.
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Para tanto, essa corporação buscou a atração de investimentos privados, que foram postos em prática sem qualquer controle urbanístico, o que acabou gerando uma enorme especulação imobiliária, além do esvaziamento de outras partes da cidade (Busquets, 1995). Um grande equívoco realizado, segundo Del Rio (2001), ocorreu na área conhecida por Cannary Wharf, com seu plano comercial grandioso, de alta densidade e totalmente desvinculado do resto de Londres (Figura 7). Em 1993, tendo sido superestimado o mercado, a paisagem da área contava com inúmeras torres comerciais vazias. Por outro lado, habitações para a classe média e de interesse social espalhadas pelas áreas acabaram funcionando como uma espécie de contrapeso para a população local em relação aos grandes empreendimentos imobiliários, que fizeram a fama da revitalização. Principalmente, as primeiras intervenções, que foram totalmente negligentes com o patrimônio industrial e com a paisagem da tão enaltecida frente marítima das Docklands, tendo sido, inclusive, aterradas áreas d’água para a obtenção de novos terrenos para as imobiliárias. Em um segundo momento teria havido, esclarece Pian (2005), “uma correção de rota, com a preservação, restauração e reconversão de galpões e armazéns, e uma utilização intensiva das docas como suporte paisagístico e simbólico da nova área”. Fato que contribuiu para se falar mais nos acertos do que nos erros do projeto. Figura 7. O megaprojeto de 1988 para Cannary Wharf, London Docklands
Na imagem é possível observarmos a grande discrepância das novas construções, extremamente grandiosas e causando a sensação de densidade, em comparação com o entorno. Fonte: Del Rio (2001)
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A temática ganha grande dimensão, tendo posteriormente sido criada, em Le Havre, na França, a Association Internationale Villes et Ports (AIVP), da qual fazem parte também a Escola de Southampton, coordenada por Hoyle, e a Equipo de Geografia Portuària (EGP), da Universidade de Barcelona. A associação promove reuniões periódicas, que se realizam em importantes cidades portuárias, além de publicar uma revista mensal chamada “Villes & Ports”, um boletim de documentação e relatórios pelos quais é possível acompanhar as transformações nas zonas portuárias geradas por esse grupo (CONESA, 1997). São apresentados estudos de casos de transformações realizadas em zonas portuárias de cidades europeias, em que Hoyle e Pinder (1992) procuram discutir a relação porto-cidade e as causas que levaram ao abandono desses locais através de comparações entre cidades europeias e da América do Norte. Em trabalhos posteriores, Hoyle (1995, 1994) dá sequência à pesquisa e desenvolve estudo em que apresenta um método de trabalho para investigar as atitudes e percepções sobre a revitalização da orla marítima. Para tanto, parte do olhar de alguns atores envolvidos no processo de tomada de decisão sobre projetos de desenvolvimento das zonas portuárias. Tratava-se de uma pesquisa realizada com o intuito de estudar as dimensões da transformação da frente marítima no Canadá, com base em 46 entrevistas feitas com representantes das autoridades portuárias, com planejadores urbanos e com promotores imobiliários de diversas cidades portuárias canadenses. A pesquisa centrava-se em três questões diretas: “quem é que toma a iniciativa de revitalização da orla marítima? Existem diferenças entre as transformações realizadas na orla marítima e em outras partes da cidade? O que pode caracterizar o período de execução do projeto de desenvolvimento?” Guardadas algumas especificidades, a maioria dos entrevistados afirmou que, em princípio, a revitalização da orla marítima parte de um único agente que apresentou a proposta; que os projetos propostos para a frente marítima são diferentes de qualquer outra parte da cidade; e, finalmente, que o período de execução depende de algum aspecto particular, como um grande evento previsto. Contudo, se houve aproximação em certas afirmações, não se pode dizer o mesmo no que se refere à definição de quem tomou a iniciativa, à definição do que marca a diferença das obras realizadas na orla e ao
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aspecto que marca a sua duração. O que deixa claro o desacordo frente às revitalizações. Apesar disso, Hoyle (1995, p. 368) acredita que “pesquisas como estas são de profunda importância no sentido de promover um trabalho de perspectiva comparativa global, a fim de ter uma boa base para pensar no planejamento futuro desse tipo de intervenção, objetivando o máximo benefício econômico e social”. Acreditamos que deixar de fora da entrevista a população comum e os moradores da área adjacente leva a conclusões perigosas, pois estavam envolvidos na pesquisa apenas autoridades do governo, promotores imobiliários e técnicos. Mas, frente a toda corrente de elogios que vem sendo feita a tais iniciativas, é necessário voltarmo-nos para o tema da injustiça social, que se faz presente através dos grandes investimentos do setor público em parceria com o setor privado, pois sabemos, desde muito tempo, que o setor privado está sempre à procura de lucros no curto prazo e não tem a preocupação de saber se, ao menos em longo prazo, irá beneficiar o resto da cidade e os seus habitantes. O discurso da necessidade ininterrupta de cada vez mais aporte financeiro para esses grandes empreendimentos é criticado por Harvey (2000). Acrescenta o geógrafo, então, que para Baltimore (Figura 8) tornar-se ainda mais competitiva foi feito um investimento público de U$150 milhões para construir um centro de convenções ainda maior. Contudo os planejadores estavam com receio de que o investimento não fosse suficiente e que seria necessário criar um grande hotel, o que Figura 8. Vista panorâmica de parte da zona portuária de Baltimore transformada
Fonte: www.usatourist.com/.../maryland/baltimore.html, em 27/01/2009.
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mais uma vez consumiria grande quantidade de subsídio público (algo em torno de U$50 milhões). Isso não é tudo, pois, para promover a imagem de Baltimore, perto de U$500 milhões foram gastos na construção de estádios esportivos para times com várias estrelas. Inclusive, ainda segundo Harvey, o estado gastou cerca de U$5 milhões construindo uma estação de metrô para o estádio de futebol que é usado não mais do que vinte dias no ano. Enquanto isso, são reduzidos os investimentos em serviços urbanos e em escolas. Ao que parece, esse tipo de plano acaba funcionando como bolas de neve, pois, para cada projeto realizado torna-se necessário realizar outro para fazer o anterior viável, o que demanda cada vez maiores investimentos do poder público. Os planos estratégicos têm sempre enaltecido, para o sucesso dos empreendimentos, a necessidade de por em prática as parcerias público-privadas, contudo, temos observado que nessa forma de parceria as instituições públicas arcam com os riscos e a iniciativa privada com os lucros. Muitas vezes os citadinos ficam à espera de benefícios que nunca se concretizam (Harvey, 2005, 1996). As críticas de Harvey (2000) não param por aí; acrescenta ainda que depois do fechamento, em 1982, do estaleiro Key Highway, foi feita uma proposta de construção de vários arranha-céus na área. O local virou foco de grandes controvérsias, já que sofreu forte oposição da comunidade local, posto que a dimensão do empreendimento assustava a vizinhança, além de comprometer o acesso à orla. Ainda assim, em 1987, foi aprovada a construção de uma série de arranha-céus. O projeto parece nunca ter tido o retorno financeiro esperado, apesar da grande promoção de marketing no lançamento – “um novo estilo de vida urbana” – em 1993. Para tornar o local mais rentável propôs-se construir mais três torres. Se é certo que o investimento de grandes somas de dinheiro público nesses empreendimentos deve ser questionado, fato é que o esforço de renovação trouxe algumas pessoas para o porto interior de Baltimore. Parece que as pessoas se divertem apenas indo para olhar e serem vistas. Há cada vez mais certeza de que para uma cidade ser vibrante e atrair mais pessoas é preciso que funcione 24 horas. Junta-se a isso megalivrarias, bares, restaurantes e lojas da moda. Parece incrível como não pode faltar um Hard Rock Cafe nessas cidades! Sua decoração é igual em
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todos os lugares do mundo, seu cardápio idem e, no entanto, estão sempre cheios. Isso nos remete aos estudos da Escola de Frankfurt, quando apresenta a noção de indústria cultural. Esse termo opõe-se à cultura de massa, que, em princípio, passava a ideia de uma cultura surgida espontaneamente da própria massa. O termo indústria cultural deixa bem explícito que esses locais são produzidos para serem consumidos. E, sem dúvida, os meios de comunicação cumprem importante papel na divulgação da sociedade de consumo. O espetáculo urbano, segundo Harvey (2000), construído em torno de porto interior tem atraído grande número de visitantes a Baltimore, que vêm visitar o Aquário Nacional (Figura 3.9) e o Centro de Ciências de Maryland (Figura 3.10). Mais recentemente, vieram se juntar ao espetáculo a ESPN Zone e o restaurante Planet Hollywood. Todas essas transformações na paisagem urbana vêm contribuindo para uma rápida gentrificação nas áreas adjacentes à antiga zona portuária, trazendo assim classes mais bem aquinhoadas para as redondezas. O fato é que, apesar das fortes críticas, outras cidades continuam seguindo as mesmas fórmulas. Há uma transformação na paisagem industrial da frente marítima central de Toronto, que está sendo mudada para prover os tipos de espaços e lugares que facilitem os novos modos de acumulação do capital. Por isso, segundo Laidley (2007), as transformações realizadas na frente marítima central tornaram-na um local de interesse para a população de alta renda de Toronto. Figura 9. Aquário Nacional de Baltimore
Fonte: Del Rio (2001).
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Figura 10. Centro de Ciências de Maryland, em Baltimore O espetáculo urbano construído em torno do porto interior tem atraído grande número de visitantes a Baltimore, que vêm visitar, por exemplo, o Aquário Nacional e o Centro de Ciências de Maryland. Fonte: www.senate.gov/.../common/image/md_sci_cntr.htm, em 28/01/2009
O planejamento e desenvolvimento proposto para a histórica frente marítima industrial adjacente ao centro de Portland, Oregon, é abordada criticamente por Hagerman (2007). A economia da cidade esteve inicialmente centrada na sua frente marítima, contudo, a reestruturação econômica e o declínio industrial deixaram obsoletos muitos daqueles espaços, seus armazéns e seus pátios ferroviários. Os governantes da cidade depositaram suas esperanças para o futuro no desenvolvimento imobiliário, na biotecnologia e na economia criativa, assim, a frente marítima tornou-se um local de desenvolvimento residencial e comercial, que transformou áreas não utilizadas em áreas de expansão do centro, seguindo o modelo de condomínios, restaurantes, escritórios e galerias. Essas transformações da área da frente marítima podem ser consideradas dentro de uma linha que articula natureza e urbanidade para mudar as expectativas e o tipo de consumo da nova vizinhança. Esse discurso é muito veiculado na mídia: meio ambiente e boa condição de vida. O marketing urbano tem sido construído nessa associação, apontando Portland como estando na vanguarda do progressivo desenvolvimento urbano e político. Mais uma vez o mercado imobiliário tem produzido bens para as classes mais abastadas. Debate semelhante é desenvolvido por Jauhiainen (1995) ao desenvolver estudo sobre os casos de Cardiff (País de Gales), Gênova (Itália) e Barcelona – ao qual mais adiante dedicaremos um espaço maior de
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nossa discussão, uma vez que os governantes brasileiros têm nela se baseado para propor as transformações na zona portuária carioca. Inspirados pela veiculação de grande número de publicações descrevendo os planos de desenvolvimento dos modelos bem-sucedidos de Baltimore e Londres, a revitalização da orla marítima é vista como algo positivo e que traz grandes benefícios. Aflige-nos essa volúpia, visto que parece um equívoco transferir o resultado de Baltimore a quaisquer cidades europeias sem ter em conta as diferenças temporais, espaciais e culturais. No final da década de 1980, segundo o geógrafo finlandês Jussi Jauhiainen (1995), Cardiff, Gênova e Barcelona vivem um momento de euforia por parte das autoridades locais, que queriam criar a imagem de uma cidade próspera com o objetivo de atrair mais investimentos internacionais. Assim sendo, implementaram uma política realizada com a intervenção conjunta da iniciativa pública e privada. Atualmente, é possível perceber que algumas partes dos projetos foram adiadas e outras ainda não terminaram; talvez porque tenha sido superestimada a necessidade de espaço para escritórios e para outras atividades terciárias. Além disso, como constata o autor, o que foi feito até agora não se reflete em benefício claro para os habitantes do lugar. Trazendo ou não benefício para os habitantes do lugar, o fato é que, em tempos de grande competitividade entre as cidades para ter um papel de destaque no cenário internacional, a organização de grandes eventos tem sido uma estratégia usada para galgar esse objetivo. A cidade anfitriã, além de promover-se internacionalmente, aproveita para realizar obras de infraestrutura, como transportes, circulação, comunicação e inovações tecnológicas, além de grandes equipamentos comerciais, culturais, esportivos, recreativos e novas plantas habitacionais. Essas cidades, utilizando-se de um mesmo “padrão de sucesso”, acabam por sustentar-se numa concepção espacial centrada no consumo e no espetáculo. A geógrafa portuguesa Maria Assunção Gato (2004) ao analisar as transformações recentes por que passou Lisboa, compara a cidade com o que aconteceu em Barcelona anteriormente e afirma que “o espetáculo das construções e soluções urbanísticas (...) distingue arquitetos e seleciona utilizadores em solos recuperados da degradação e do abandono”, além disso, essas transformações produzem o consumo do espaço enquanto bem simbólico, identificando assim grupos e esti-
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los de vida, que se encontram amparados por representações espaciais que lhes dão sustentação. Em Lisboa, a Expo ‘98 é mais um exemplo da utilização de um megaevento para recuperar, para uso urbano, terrenos industriais e portuários. Gato (2004, p. 244) enaltece o fato de nesses terrenos terem sido testadas “soluções urbanísticas originais [além de] criar cenários excepcionais, ao abrigo da tripla operação de reconversão requalificada e revitalização espacial”. Evidentemente, esse modelo não foi uma invenção portuguesa, mas sim uma adaptação de projetos espanhóis anteriores, como os Jogos Olímpicos de Barcelona e a Exposição Universal de Sevilha. Talvez, se os idealizadores, as instâncias públicas envolvidas e os empresários fossem inquiridos acerca do que foi mais importante, a herança das infraestruturas e das transformações urbanísticas ou a projeção e visibilidade que tais eventos deram às cidades envolvidas, talvez não houvesse uma resposta em comum. Em se tratando do projeto para a Expo’98 Lisboa, tratou-se de salvaguardar a futura reutilização dos equipamentos que se mostravam necessários, à época, para por em curso tal projeto. Para tanto, segundo Gato (2004, p. 246), dois pressupostos foram fundamentais: estudo aprofundado para produção de “um programa de necessidades urbano-metropolitanas e procurar financiar quase todo o projecto com a venda de terrenos da área envolvente a reabilitar”. O arquiteto português Luís Viana Baptista (2004, p. 197) afirma que para viabilizar financeiramente o projeto, “optou-se por alargar a zona de intervenção de 25 hectares prevista no dossiê de candidatura para uma zona de 340 hectares, com cinco quilômetros de frente de rio”, obviamente transformando a Expo em uma operação imobiliária muito maior, “que aproveitasse as grandes infraestruturas projectadas e a projectar e, simultaneamente, servisse de garantia à necessária operação financeira”. A sempre premência na execução das obras traz consigo o discurso da necessidade de criar rapidamente condições para viabilização dos projetos. Assim, em Lisboa, foi constituída uma sociedade de capitais exclusivamente públicos para realização do planejamento, cadastro, demolições, descontaminação do solo, infra-estrutura, construção e operação da zona de intervenção. Viana Baptista (2004) aponta como outro fato importante a criação da sociedade que iria por à frente o empreendimento, mas com poderes totais, já que a partir da “constituição de um regi-
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me de excepção que dotasse a Parque Expo S.A. de condições especiais para levar a tarefa a bom termo em tempo razoável”. Houve, por isso, diversas críticas, uma vez que tais ações eram vistas como violadoras de princípios da democracia, posto que retiravam poderes de decisão das autarquias, além de isentarem o processo de participação e discussão pública formal. Viana Baptista (2004, p. 199) apresenta a impressionante observação feita por um funcionário da Parque Expo S.A. que afirmou que “quanto à suposta participação pública, verificamos que, por vezes, se trata de processos pouco esclarecedores, presenciados por grupos de contestatórios que não têm um propósito colaborativo, mas sim, e apenas, o de agitação mediática”. Como se esse tipo de urgência na implementação de projetos justificasse qualquer negativa à intervenção, no âmbito da participação dos cidadãos, que viesse a desacelerar o processo. O projeto lisboeta trazia muitas das ideias de festa e do espaço expositivo de Sevilha, mas também grandes semelhanças com o modelo urbano de Barcelona. Era possível perceber que a expansão urbana a oeste e para o interior acabou por levar à fixação, a leste, de atividades industriais e portuárias em ambas as regiões. Todavia, o declínio, acompanhado do gradual abandono daquelas atividades, levou a frentes marítimas abandonadas, poluídas e, de certa forma, afastadas da cidade pelas barreiras físicas rodoviárias e ferroviárias. Portanto, salienta Gato (2004), vê-se a oportunidade de devolver às cidades uma parte privilegiada de seu território, porém “devidamente renovado e capaz de oferecer qualidade de vida e ambiental”; seja lá o que isso queira dizer! Sim, pois independentemente disso, essas expressões têm grande força. Porque quando acrescentamos à frente de um substantivo a palavra “qualidade”, parece que tornamos a conjunção formada algo inquestionável. Mas tais transformações, além de promover uma nova centralidade, trariam para as cidades imagens de modernidade e inovação. Após a Expo’98, em Lisboa, uma “nova cidade”, com 340 hectares, que se estende ao longo de cinco quilômetros de frente de rio, acabou surgindo; o que não deixa de ser uma cópia mais densa e ampliada da Vila Olímpica de Barcelona. Segundo Gato (2004, p. 247), “em Lisboa repetiram-se algumas boas soluções urbanísticas – como são os passeios ribeirinhos/marítimos, os espaços verdes e os públicos, que convidam às atividades de recreio e lazer”, além do enorme aquário que atrai inúmeros visitantes (Figuras 3.11 e 3.12).
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Figura 3.11: Vista panorâmica da área construída para a Expo’98 de Lisboa
Aqui é possível ter uma pequena ideia da dimensão da área que sofreu a intervenção. Ao final da Expo’98, uma “nova cidade”, com 340 hectares, que se estende ao longo de cinco quilômetros de frente de rio, acabou surgindo. Fonte: http://farm4.static.flickr.com/3055/2513077565_534a833bf8.jpg, 03/02/2009
Foto 3.12: O enorme oceanário, como é chamado o aquário de Lisboa
Em outubro de 1998, o oceanário foi aberto ao público. Durante a Expo’98 funcionou como Pavilhão dos Oceanos: exemplo da estratégia de usar os grandes eventos para promover a cidade internacionalmente e, posteriormente, atrair turistas para visitar mais um aquário construído na zona portuária transformada. Fonte: http://galeria.blogs.sapo.pt/.../Oceanario_Expo98.jpg, em 03/02/2009
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A propósito, a especulação imobiliária em ambas as cidades também levou à criação de espaços muito semelhantes em termos sociais. Nunca é tarde para lembrar que o direcionamento e a concentração de equipamentos continuaram mesmo depois da Expo, tendo tido em meados dos anos 2000 sua instalação, no parque das Nações, do Casino de Lisboa. A área, em Lisboa, foi projetada para abrigar aproximadamente 25 mil habitantes e o espaço público ribeirinho criado é usado, segundo Gato (2004), como elemento diferenciador para quase tudo, ou seja, qualidade e preço das habitações, prestígio e status social, estilo de vida, funções urbanas, estética das edificações e, evidentemente, como um dos grandes benefícios do projeto em proveito de toda a população metropolitana, tal qual o discurso feito, na época, para Barcelona. Porém, no caso de Lisboa, foi assumido desde o princípio que seria através da venda do projeto ao setor privado que se daria a viabilização da realização da Exposição Mundial; o que por si só já remete à certeza da produção de um espaço dirigido a determinados estratos sociais. Outro dado interessante que nos traz a autora, ao afirmar que esse projeto converteu-se na melhor operação de marketing realizada em Portugal, foi que os principais problemas que afetam os moradores são a grande quantidade de visitantes que para ali se desloca nos fins de semana, o ruído, o tráfego intenso, a insegurança e o sentimento de ter seu lugar invadido frequentemente. O’Callagham, Linehan (2007) trazem ao debate as políticas de desenvolvimento propostas para a revitalização da frente marítima ocorridas durante a preparação de Cork, na Irlanda, para ser a Capital Europeia da Cultura. Muitas cidades, nas últimas décadas, têm-se utilizado de propostas ligadas aos setores culturais e das artes como uma via para a regeneração urbana. Essa estratégia foi utilizada também em Cork para projetar as transformações na cidade. Contudo, essas estratégias urbanas estiveram articuladas com os atores das elites, que se aproveitaram do evento Capital Europeia da Cultura para por em prática seus planos para a cidade e para a zona portuária em particular. Como pudemos perceber, as transformações realizadas em Barcelona tiveram grande influência nas propostas idealizadas para outras cidades da Europa.
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O “Modelo Barcelona”: produção a serviço do capital? Se fosse possível definir em poucas palavras no que se baseou a transformação realizada em Barcelona, talvez pudéssemos apontar dois eixos importantes, quais sejam, a criação de espaços públicos (inicialmente com foco bastante local) e as grandes operações urbanísticas (nesse caso operando em uma escala bem maior) ligadas a grandes eventos, como, por exemplo, as Olimpíadas de 1992 e o Fórum de las Culturas, realizado em 2004. Acredita a geógrafa espanhola Nuria Benach (1993) que tudo isso demanda infraestrutura de comunicações, vias expressas, um aeroporto moderno e torres de telecomunicações. Mas não se tratou apenas de transformações materiais, pois era necessário, segundo a geógrafa (2000), associar tais mudanças a uma nova imagem da cidade. Houve grandes transformações, que vão desde a escala local à grande escala, tendo como exemplo a área do centro histórico, a Villa Olímpica, Poblenou – tradicional bairro industrial que tem sido transformado no denominado 22@, local planejado para abrigar um distrito para empresas de alta tecnologia e comunicações (obviamente acompanhado de rede hoteleira, centros comerciais e de convenções), a área do Fórum de las Culturas, a criação de vários museus e centros culturais, além de novos espaços de consumo. A partir disso, é construída uma nova imagem de Barcelona como centro cultural, comercial e turístico. Barcelona, sem dúvida, não foi a primeira cidade a fazer uma grande transformação em sua zona portuária, contudo, talvez tenha sido a primeira a produzir um discurso de mudança que tenha contagiado boa parte da população e da mídia de forma tão contundente. Por isso, segundo Gato (2004, p. 245), “um dos aspectos que frequentemente é apontado como o mais decisivo para o sucesso dos Jogos Olímpicos enquanto evento e, sobretudo, no respectivo impacto urbano que deixou de herança, foi o facto de terem sido assumidos por todos (...) como os jogos da cidade e para a cidade”. Talvez isso tenha sido crucial para a projeção publicitária que Barcelona teve internacionalmente, contribuindo para que outras cidades quisessem repetir esse caminho. O problema não vislumbrado teria sido o fato de que essa trajetória tem origem numa história construída através do tempo e não factível de reprodução com os mesmos resultados. Não estamos afirmando que o
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projeto realizado em Barcelona quando sediou as Olimpíadas foi perfeito ou que não houve problemas, estamos apenas partindo do questionamento da existência de um “Modelo Barcelona”. Como falamos de uma construção histórica, convém lembrar que, segundo o geógrafo espanhol Horacio Capel (1994), os políticos e os técnicos dispunham de mais recursos públicos do que em qualquer outra época, devido ao crescimento econômico e a uma reforma fiscal que aumentou a capacidade de investimentos públicos. O crescimento foi tal que a Espanha chegou a ocupar o oitavo lugar entre os países de maior Produto Interno Bruto (PIB). Na época, segundo o autor, isso correspondia a dizer que o PIB produzido por 39 milhões de espanhóis era maior do que o produzido por mais de um bilhão de chineses. Isso fez com que pudesse ser investida grande quantidade de recursos na cidade. Esses recursos foram importantes também para sanar o deficit habitacional, que, segundo o geógrafo (2005, 1994), chegou a ser bem grave, já que o município que contava com cerca de 1.300.000 habitantes em 1950, chegou a 1970 com um total de, aproximadamente, 1.775.000. Contudo, esse crescimento não se manteve no mesmo ritmo durante as décadas seguintes, tendo inclusive sofrido um decréscimo de 110.000 pessoas entre os anos de 1981 e 1991; fato este ligado à crise econômica da década de 1970 e da redução da corrente migratória, posto que houve fechamento de empresas e aumento do desemprego, que alcançou 21% em 1986.
O início da reconstrução da cidade O longo período franquista acabou por desenvolver um movimento crítico, o qual, segundo Horacio Capel (2005, p. 10), fez com que “a transição política depois da morte de Franco (1975) tivesse encontrado Barcelona com uma forte e articulada base social de esquerda e com as associações de bairros bem organizadas, que fizeram ativamente reivindicações sociais, muitas delas relacionadas aos equipamentos urbanos”. Depois de cerca de quarenta anos de ditadura franquista, aconteceram as primeiras eleições livres, em 1979, e, segundo outro geógrafo
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espanhol, Francesc Muñoz (2008), o urbanismo acabou se convertendo em um instrumento de comunicação dos novos ideais democráticos nas grandes cidades espanholas. Desde então, tem havido continuamente governos de esquerda no poder, contudo, inicialmente, a escassez de recursos públicos, devido à crise, fez com que os projetos de construção de novas moradias dessem lugar à valorização das já construídas, sua conservação e reutilização. Vários profissionais que estiveram comprometidos com os movimentos das associações de moradores (época próxima ao final da era franquista), segundo Capel (2007), assumiram cargos políticos, o que levou à adoção de “medidas de forte conteúdo social para reduzir os deficits existentes e para implementar equipamentos urbanos, principalmente nas periferias”. Percebia-se que o governo eleito pretendia criar políticas setoriais que deixassem claro que a sociedade estava mudando. Assim, o direcionamento das ações mirou a melhoria dos bairros construídos aceleradamente e sem serviços coletivos, que se tornaram característicos das décadas de 1960 e 1970; a reabilitação dos bairros históricos; as operações de conectividade entre os espaços da cidade; o estabelecimento de programas sociais e políticas de equipamentos; e, segundo Muñoz (2008), a recuperação de diversas áreas destinadas, anteriormente, “à edificação massiva que haviam caído no limbo temporal durante anos e que foram finalmente urbanizadas como zonas verdes”. Mas, de fato, a grande marca do “novo urbanismo democrático” foi a recuperação do centro histórico e a reabilitação das periferias habitacionais. Embora não objetivemos fazer um apanhado histórico completo de como se deu essa transformação inicial de Barcelona pós-Franco, concordamos com Capel (2007, 2006, 2005, 1994), quando afirma ser importante voltar a essa época para entendermos o que deu origem à transformação que ficou, posteriormente, conhecida como o “Modelo Barcelona.” Segundo o geógrafo, o primeiro prefeito socialista, Narcís Serra, posteriormente substituído por Pasqual Maragall, era importante personalidade do socialismo catalão e espanhol e suas atuações em Barcelona, juntamente com “as transformações urbanísticas da cidade, fizeram aparecer a imagem do ‘Modelo Barcelona’, que tinha essencialmente uma dimensão urbanística, a qual em seguida se acrescentaram também outras”. Um dos responsáveis pelo processo, teria sido o arquiteto Oriol Bohigas – secretário de Urbanismo do Município de Barcelona, entre 1980
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e 1984 –, que posteriormente escreve um livro chamado Reconstrucción de Barcelona, no qual apresenta as ideias gerais que caracterizaram a política urbana na década de 1980, deixando evidente a importância da reabilitação de moradias no centro histórico como política inspirada na preservação e reconstrução do tecido residencial antigo, além da reurbanização do espaço público – ruas, praças e parques –, seja no centro histórico ou nas periferias. Enfatizava o retorno da ideia da rua, da praça e do jardim conformados pela arquitetura frente ao automóvel. As atuações que objetivavam a reabilitação das áreas centrais, focadas em uma pequena escala de intervenção – como procuramos, anteriormente, enfatizar: ruas e praças –, e o esforço para suprir de equipamentos urbanos as áreas periféricas foram fundamentais para, segundo Capel (2007), “fazer da necessidade virtude, devido à situação deficitária e de crise econômica”. Ao que parece, essa linha de ação acabou por equipar a cidade de maneira equilibrada e, inclusive, melhorar a qualidade de vida da população (Capel, 2007, 2006, 1994). Na década de 1980, também desapareceram as favelas,1 que se espalhavam, principalmente, pela área periférica do município. A primeira favela que se tem referência se localizava na atual área em que posteriormente teve lugar o Fórum de Culturas de Barcelona. Nessa área surgiu o bairro de Pekín, que era formado por pescadores, provavelmente, de origem filipina. A partir daí começam a surgir pequenas favelas ao longo do litoral barcelonês. Posteriormente, surge outra importante favela em Montjuïc, que era habitado por trabalhadores das pedreiras. A atuação do município no que se refere à remoção de favelas encontrou-se ligada a momentos em que organizara eventos importantes na cidade. Um exemplo disso foi a Exposição Universal de 1929, quando se criou o projeto das “Casas Baratas”, que retirou toda a faixa de barracos que se localizava próxima da feira. Com a celebração do Congresso Eucarístico, em 1952, foram eliminados os barracos localizados na Avenida Diagonal. Pouco antes das Olimpíadas, são retiradas da cidade as Optamos por usar as expressões “favela” e “favelização” para utilizar as palavras pelas quais conhecemos esse tipo de habitação e o seu processo, embora, tanto em Capel (2007) como em outras referências, os termos usados sejam “barracas”e “barraquismo”. 1
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últimas favelas – La Perona e El Carmelo –, e desde então estas foram eliminadas da cidade. Um dos diretores da exposição “Barracas. La ciudad informal”, Maximiliano Díaz (2008), afirma que a favela em Barcelona ainda não acabou, pois atualmente existem outras formas de favelização. Estar-se-ia referindo às favelas ocultas, invisíveis ou verticais, em que teríamos apartamentos “realugados”, onde viveriam duas famílias ou mais. Todavia, não vamos entrar no debate acerca da erradicação das favelas em Barcelona, pois, além de ser tema muito amplo, não é nosso objetivo aqui. Mas, fato é que as que estavam em solo público e sem títulos de propriedade foram demolidas e os seus habitantes realocados em novas moradias, ao passo que as que estavam situadas em áreas consideradas ilegais – não urbanas –, mas com título de propriedade, tiveram fortes investimentos públicos em infraestrutura. Ao mesmo tempo, segundo Capel (2007), “a estabilidade econômica e política permitiu que as famílias que viviam nessas moradias pudessem investir em sua melhoria. Atualmente, os antigos bairros de autoconstrução apresentam em geral uma paisagem integrada ao tecido urbano”. Retornando às áreas mais centrais do núcleo histórico – Ciutat Vell, Born e Gràcia –, foi possível observar um movimento de substituição da população mais idosa por uma classe média que começa a comprar ali moradias, além da pressão exercida pelo mercado imobiliário, que criava um novo nicho ligado ao aluguel de habitações para uma população temporária –, seja ela ligada ao trabalho flexível, seja aquela referente a estudantes estrangeiros, que passam a procurar essas localidades para sua moradia. Lembra Muñoz (2008) que o projeto de reconstrução do centro histórico havia sido idealizado em um momento no qual as migrações internacionais, inclusive a chegada de grandes contingentes de imigrantes pobres, não foram previstas, nem na forma, nem na magnitude ocorridas na década de 1990. Se por um lado aquele tecido urbano manteve, como planejado, a função residencial; por outro, boa parte dessas residências tem sido ocupadas por imigrantes marroquinos, chineses, equatorianos e de Bangladesh. Além disso, o centro histórico tem funcionado muito mais como um “núcleo cultural”, frequentado por visitantes de todo tipo, do que como bairros habitados por residentes (Figuras 13 e 14).
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Figura 13. O Bairro Gótico: área central da cidade apinhada de turistas
Fonte: http://image16.webshots.com/16/1/56/53/188015653DNOGiD_ph.jpg
Figura 14. Las Ramblas: os turistas tomam a rua
Fonte:www.viewpoints.com/images/review/2007/313/8/1194619915-775_full..jp
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A cidade e o mar: os Jogos Olímpicos de 1992 Parece ter sido muito importante construir no imaginário social a necessidade de abrir a cidade ao mar. Para tanto, resgata-se histórias e retóricas acerca da histórica ligação de Barcelona com o mar Mediterrâneo. Segundo Muñoz (2008, p. 165), trata-se de construir uma imagem (para ser vendida, é claro) de Barcelona ligada à ideia de “mediterraneidade”; “uma característica que se redescobre com o urbanismo dos Jogos Olímpicos”. Assim, o Mediterrâneo era colocado como algo ligado à cidade, perdido durante séculos e agora recuperado, devido ao projeto urbano que abria a cidade ao mar. A vitória na disputa, por ser a sede dos Jogos Olímpicos de 1992, muda o foco de ação do governo de Barcelona. Passa-se da escala dos bairros para a da cidade. Grandes obras foram pensadas e postas em prática, objetivando criar uma melhor infraestrutura para a cidade, mas não apenas isso. Nos anos de 1980, uma série de medidas sociais, políticas e econômicas foram postas em prática, sendo cruciais para o que teria sido o “Modelo Barcelona”. Capel (2007) destaca o papel dos movimentos sociais e as reivindicações urbanas, além da ênfase na participação e no acordo popular em relação às transformações por que passava a cidade. Elenca também a “descentralização municipal, as estratégias culturais, a preocupação com a coesão social, o foco no planejamento estratégico, a parceria público-privada e as atuações para a melhoria da paisagem urbana”. Tão importante quanto a herança das infraestruturas e das transformações urbanísticas deixadas, acabou sendo a projeção e a visibilidade que esse evento deu à cidade. Outros municípios espalhados pelo mundo procuraram estudar e seguir os caminhos traçados em Barcelona. A abertura da cidade ao mar, tão propagandeado pela mídia, através do programa urbanístico da Villa Olímpica, tornou-se o mote mais importante para a realização de um objetivo ainda maior: a articulação com outros dois projetos de frente marítima, que eram o prolongamento da avenida Diagonal até o mar e a renovação da foz do rio Besòs. Na época, os organizadores optaram por situar todas as zonas olímpicas dentro do continuum urbano, procurando criar uma articulação de áreas vazias com o centro e objetivando o surgimento de novas centralidades, sobretudo em áreas periféricas e carentes de equipamen-
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tos e serviços. A Villa Olímpica foi construída em um local com uma história industrial e de infraestruturas portuárias e ferroviárias, o que proporcionou a oportunidade de utilização de um solo central de baixo valor comercial (Busquets, 2004). Quando do início do projeto da Villa Olímpica, o discurso inicial era o mesmo da reconstrução da cidade histórica. Nesse sentido, falava-se da área como um novo bairro desde o início. Além disso, segundo Muñoz (2008), os arquitetos buscaram fazer referências à cidade histórica, objetivando criar um vínculo entre história e cidade: passeios, jardins, fontes e praças (Figura 15). Um dos pontos fundamentais do projeto da Villa Olímpica era a intenção do governo de colocar no mercado grande parte das novas habitações a preços acessíveis. Entretanto, segundo Gato (2004, p. 247), a posterior “entrada do setor privado no financiamento desse projeto, sendo decisiva para sua realização, também acabou por contrariar os pressupostos iniciais” e, nesse caso, as habitações entraram no mercado a preços superiores aos valores médios praticados na cidade. Acabou-se formando um bairro dirigido a estratos sociais mais elevados. Se durante o projeto a administração pública do município apresentava um grande número de moradias ditas de “proteção social”, o que
Figura 15. Arcos e passagem. Referências à cidade velha É possível, ao menos aos olhos dos urbanistas, perceber a referência à cidade velha a partir do prédio construído com uma passagem bem na parte central. Esse tipo de construção remeter-se-ia aos inúmeros prédios do Bairro Gótico, por exemplo, em que arcos em meio a prédios servem de passagem para outras ruas. Foto: Cláudia Orfaliais, 25/02/2009
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se viu posteriormente foi a entrada massiva dos promotores imobiliários na construção de moradias voltadas a outro estrato social. Assim, segundo Francesc Raventós (2000), apenas um número simbólico de moradias foi classificada como de proteção social, sendo vendidas ou alugadas a baixos preços para a população de renda inferior. Também o capital industrial é beneficiado, já que grande parte de industriais possuía terrenos obsoletos próximos à Port Vell, que foram expropriados pelo poder local – por valores considerados bem elevados – para a realização das obras à época dos Jogos Olímpicos (Moreno, Montalban, 1991). Segundo Adriano Botelho (2004), “muitas das empresas expropriadas foram doadoras de recursos, a fundo perdido, para o ‘esforço olímpico’ (ou seja, para a nominação de Barcelona em 1986 como sede dos jogos)”. Já nesse momento, podemos observar a grande diferença desse projeto em relação às primeiras transformações do início dos anos 1980. Os interesses privados superpuseram-se e os objetivos dos promotores imobiliários foram determinantes para tal. Afirma Muñoz (2008, p. 162) que, inicialmente, existia “a intenção de manter uma porcentagem importante das novas construções como edifícios públicos”, contudo a pressão dos incorporadores imobiliários para o aproveitamento de uma área de grande potencial em curto prazo reduziu a previsão inicial a uma presença apenas residual. Assim, o que se viu na frente marítima foi o crescimento do número de hotéis, escritórios e principalmente residências destinadas às classes mais elevadas (Figuras 3.16 e 3.17). O geógrafo espanhol Oriol Nel.lo (1999) afirma que isso gerou críticas ao projeto e à atuação do setor público, que, por sua vez, contra-argumentou com a sua incapacidade de criar, com recursos públicos, habitações em um espaço tão central e representativo da cidade. Alegava ainda que mais importante do que os destinatários dessas habitações, era a recuperação dos espaços públicos para usufruto de toda a cidade. Em se tratando da transformação da frente marítima, foram representativos a Villa Olímpica e a transformação do antigo porto urbano – Port Vell. Na área portuária foi construído o complexo Maremagnun, que conta com shopping center, salas de cinema IMAX 3D e um aquário, no qual é possível ver peixes, raias e enormes tubarões nadando sobre nossas cabeças, tal qual os outros tantos aquários espalhados por outras cidades do mundo, como mencionado anteriormente. Avista-se
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Figura 16. Praça e edifícios de escritórios
Remetimento à histórica valorização dos espaços públicos em praças, com esculturas modernas gigantes (exacerbação da monumentalidade). Além disso, dois arranha-céus foram erguidos junto à Villa Olímpica, bem na frente marítima. Foto: Cláudia Orfaliais, 25/02/2009
também o World Trade Center (um dos muitos espalhados pelo mundo). Curiosamente, bem próximo dali, ao lado de tamanha exuberância, encontra-se o bairro marítimo da Barceloneta, que, segundo a geógrafa espanhola Mercedes Tatjer Mir (1973, p. 15), constitui “um dos exemplos mais representativos e interessantes do urbanismo barroco espanhol”. O bairro, que não tem praticamente espaços livres, caracteriza-se por uma total continuidade da edificação e data basicamente do século XVIII. O traçado ortogonal tem quarteirões curtos (8,40 m) e as casas inicialmente ocupavam toda a sua extensão, indo de uma rua à outra, tendo de frente também 8,40m. Eram compostas originalmente de dois andares, o que correspondia, a 141,12m2. Contudo, com o passar do tempo, o segundo andar foi separado do primeiro, dando origem a duas moradias. Mais tarde, a casa que tinha então 70,56m2 é novamente dividida, passando a ter 8,40m de frente por 4,20m de profundidade, o que fez com que cada moradia ficasse reduzida a apenas 35,28m2. Trata-se de um bairro com moradores de baixa renda em que, muitas vezes, acumulam-se em espaços mínimos, com famílias de quatro, cinco e até mesmo seis pessoas (Tatjer Mir, 1973).
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Figura 17. Escultura gigante, prédio de escritórios e bares e restaurantes
Um peixe? Uma baleia? A escultura, que se avista de longe, encontra-se em frente a dois arranha-céus, na frente marítima. Logo abaixo, em estilo Festival Mall, há uma grande quantidade de restaurantes e boates a beira-mar, com seus cardápios em várias línguas, garçons e garçonetes sorridentes e poliglotas. Foto: Cláudia Orfaliais, 25/02/2009.
São projetos grandiosos que culminam com as obras relacionadas ao evento denominado Fórum de las Culturas (2004), que não fez mais do que repetir os caminhos iniciados pelo projeto da Vila Olímpica.
A última fronteira da frente marítima: o Fórum de las Culturas Se o projeto de reconstrução do início da década de 1980 partia da morfologia da cidade histórica, o que se fez na área destinada ao Fórum de las Culturas foi o total abandono desse modelo, substituindo-o pela “arquitetura de assinatura”, típicas dos resorts turísticos que se espalham por todo o globo (Figura 3.18).
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Figura 18. Edificio Fórum, assinado por Herzog & de Meuron Architects
Foto: Cláudia Orfaliais, 25/02/2009
O local destinado ao Fórum era uma área próxima à foz do rio Besós, ou seja, o setor mais oriental da frente marítima; fechava-se aí o processo de renovação urbana iniciado com a construção da Villa Olímpica. Ali foram construídos dois grandes complexos: o Centro de Convenções (Figura 19) e o Edifício Fórum. Afirma Limonad (2005) que junto às duas construções “se estende a segunda maior praça do mundo, [e a] área conta ainda com equipamentos, parques e áreas de exposição”. A margem direita do rio Besòs abrigou grandes infra-estruturas pesadas, como depuradora e incineradora, que afetaram fortemente o meio ambiente. O rio chegou a ser considerado um dos mais contaminados da Europa, tendo em seu entorno bairros suburbanos de população muito pobre. Fato é que o Fórum serviu para incorporar a última parte da frente marítima, contudo a mudança radical da paisagem, introduzindo usos do terciário – com forte presença hoteleira – de forma intensiva gerou grande debate na cidade. Exemplo disso é a observação de Carolina Ladinamo, citada pela arquiteta Esther Limonad (2005), que pergunta: “em que se diferencia isso tudo das atividades que organiza a associação cultural do teu bairro?” Em seguida, ela mesma responde ironicamente: “bem, provavelmente não contas com um pressuposto de 2,2 milhões de
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Figura 19. Centre de Convenciones Internacional Barcelona
Foto: Cláudia Orfaliais, 25/02/2009
euros, sendo mais da metade dinheiro público.” Segue Limonad (2005) afirmando que o Fórum “dotou a cidade de instalações grandiosas, a saber: um colossal centro de convenções, um novo porto esportivo, uma nova praia e um par de ilhas artificiais. Sem dúvida instalações há muito necessitadas pelas classes populares!”. Obviamente, tanto Ladinamo quanto Limonad, com suas observações em forma de humor ácido, deixam bem claro o que representou a nova transformação da cidade com o projeto do Fórum de las Culturas; tratou-se de abrir aos promotores imobiliários, ao setor comercial e à rede hoteleira, por exemplo, a última parte da frente marítima de Barcelona (Figura 20). O que mais impressiona é que cada grande projeto acaba por gerar a necessidade de outro que venha a lhe dar sustentação, o que obviamente demanda mais investimento público. Apesar do Fórum de las Culturas ter acontecido em 2004, ainda há inúmeras construções em curso no seu entorno imediato (Figuras 21 e 22). Outro grande desafio para a equipe de marketing da cidade é, depois de todo os gastos com infraestrutura e com a obras monumentais, criar
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Figura 3.20: A rede hoteleira faz-se sempre presente
Foto: Cláudia Orfaliais, 25/02/2009
Figura 21. Cada grande empreendimento gera novas necessidades
Nesta imagem é possível vermos refletido na fachada espelhada do Edifici Fórum o guindaste utilizado na construção de novos prédios próximos à área do Fórum de las Culturas. Imagem impactante: o novo reflete o ainda mais novo! Foto: Cláudia Orfaliais, 25/02/2009
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Figura 22. A viabilidade do empreendimento gera cada vez mais investimentos
Foto: Cláudia Orfalais, 25/02/2009
eventos para movimentar a área e gerar ocupação na cada vez mais elevada da capacidade da rede hoteleira criada. Finalmente, importa ao menos mencionar aquilo que ficou conhecido como projeto 22@. Trata-se da conversão do setor industrial e residencial de Poblenou em um polo de tecnologias do conhecimento. Porém, o que salta aos olhos é a grande quantidade de imóveis derrubados (Figuras 23, 24 e 25) – em alguns casos são quarteirões inteiros – e a construção de moradias para estratos sociais médios e altos, escritórios, além de hotéis e restaurantes. Segundo Capel (2007), isso vem junto com a aceitação das ideias sobre a pós-industrialização, que levaram “à ênfase na economia dos serviços, na terciarização, no turismo e na cultura. A aposta nas atividades de produção tem sido grande, com ênfase na medicina, biotecnologia e na eletrônica”. Esse tipo de projeto, levando à reabilitação de grandes áreas, acaba afetando principalmente a população de mais baixos rendimentos. Sobre isso nos fala Capel (2007), ao referir-se às expropriações de residências populares realizadas a baixo preço em Poblenou, área localizada
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Figura 23. Exemplo do volume de plantas industriais derrubadas
Foto: Cláudia Orfalais, 25/02/2009
Figura 24. Protestos na antiga fábrica de Can Ricart, Barcelona A opção pelo abandono das atividades industriais tem gerado desemprego e é possível perceber a insatisfação da população através das pixações que aparecem em vários muros do bairro. Esta se encontra no muro da antiga fábrica de Can Ricart, bem próximo à avenida Diagonal e ao Parc del Centre de Poblenou. Foto: Cláudia Orfalais, 25/02/2009
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Figura 25. Criatividade nas manifestações que demonstram a insatisfação
Foto: Cláudia Orfalais, 25/02/2009
entre a Villa Olímpica e a área do Fórum de las Culturas. Apesar da derrubada desse padrão de habitações, ao contrário do que possa parecer, denuncia Capel (2007) e Tatjer Mir (2005), não foram construídas moradias populares para absorver essa população. Afirma o geógrafo que “um dos setores mais significativos é o da avenida Diagonal Mar, onde não se cumpriram as previsões sobre a recuperação de parte dos ganhos gerados pela abertura dessa via com vistas à criação de moradias sociais públicas”.
As transformações nas zonas portuárias chegam ao hemisfério sul Também na Oceania temos exemplos desse padrão de transformação. Page (1993) apresenta importante debate acerca dos planos de revitalização da frente marítima de Wellington, capital da Nova Zelândia. A zona portuária da cidade ocupa uma posição central, o que representa uma localização estratégica para as empresas. Como vem se repetindo, na década de 1970, com o deslocamento das atividades comerciais, o porto deixou disponíveis cerca de 20 hectares de orla marítima da cidade para projetos de revitalização. Segundo o autor, um concurso públi-
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co para selecionar propostas para a revitalização das zonas portuárias obsoletas foi realizado em 1982. No ano seguinte foi organizada uma conferência intitulada “Ideias para a ação”. Como resultado da conferência e das negociações entre a Câmara Municipal e as autoridades portuárias de Wellington, em 1985, estabeleceu-se uma espécie de agência supervisora, denominada “Projeto de Desenvolvimento Lambton Harbor”, e outra de desenvolvimento, chamada “Lambton Harbor Management Limited”, que tinha como objetivo incentivar o investimento do setor privado na frente marítima. Um dos mecanismos utilizados foi a venda de terrenos a preços abaixo do mercado, com a aprovação da agência supervisora que representava o interesse público. Segundo Page (1993), o projeto original, embora apresentasse uma grande área comercial, tinha uma preocupação com a conservação do patrimônio arquitetônico da zona portuária e apresentava ênfase no turismo e lazer. O projeto enfatizava a necessidade de criar um ambiente urbano na orla marítima para o lazer de todos que viviam e trabalhavam nas cercanias do porto. Assim, mais de metade da área seria constituída de áreas abertas e de parques, o que supriria uma necessidade da cidade. Todavia, a versão final do projeto incluiu não apenas parques, praças e complexos comerciais, mas também um hotel internacional, um condomínio residencial, um novo museu, uma galeria de arte e uma enorme torre comercial. Assim, o setor privado deixou claro que essa área, mais do que ser um lugar para as pessoas das cercanias, era um ponto central de Wellington para visitantes e turistas. Por isso, apenas uma avaliação contínua por um órgão independente seria capaz de avaliar se os benefícios comerciais do projeto atingirão também, ao menos em longo prazo, a população da cidade. Oakley (2005) critica a forma como os processos de empreendedorismo urbano esforçam-se por transformar as paisagens através da reconstrução em locais que são verdadeiros patrimônios históricos, destruindo essa imagem para recriar uma forma alternativa. A proposta de fazer a frente marítima do Porto de Adelaide tornar-se “um estilo de vida” e um destino para turistas vai transformar dramaticamente a organização espacial do trabalho e da vida da comunidade que vive ali e nas cercanias da área do porto. A remoção de um pequeno grupo de operadores de embarcações do porto interior, como parte do novo projeto, é simbólica, pela maneira
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como o poder local despreza a história do lugar, contribuindo com a perda potencial de um tipo particular de trabalho e de vida da comunidade, que estava mergulhada na história e no patrimônio que era peculiar da frente marítima de Porto Adelaide. Os resultados da pesquisa de Oakley (2005) sustentam a afirmação de que o empreendedorismo urbano transforma o imaginário do lugar, é seletivo e excludente. Além de contribuir para a criação de um espaço de lazer coreografado e para ser consumido (Stevens, Dovey, 2004). Em estudo mais recente, afirma Oakley (2007) que a frente marítima do Porto de Adelaide é representativa, no que tange ao tipo de governança urbana empreendedora que enfatiza formas específicas de acumulação do capital. Assim, os projetos de frentes marítimas como um problema urbano, sejam na Austrália ou em outros países, têm sido postos em prática através das parcerias público-privadas baseadas no mercado para revitalizar a área portuária. O governo da Austrália vem facilitando uma forma específica de desenvolvimento da frente marítima, que envolve a transformação da paisagem industrial e marítima “sem uso” do porto em um local de produção para o consumo. Isso significa uma reconstrução radical da identidade do lugar, da função econômica e das relações sociais. O artigo também investiga o impacto na estrutura social preexistente, formas construídas e atividades econômicas, e sugere que o projeto das frentes marítimas não deveria se limitar a “reimaginar” a identidade do lugar, mas estender-se mais amplamente ao encontro dos objetivos institucionais da metrópole e do planejamento regional. Isso significa levar em conta mais do que apenas os interesses econômicos de determinados grupos sociais. A cidade de Jacarta tem recebido grande investimento financeiro e o próprio governo, nos anos recentes, promoveu centenas de projetos, como a modernização do centro, a integração do sistema de transporte público, o novo desenvolvimento da frente marítima e o novo porto, a conservação da antiga cidade e a criação de alguns parques gentrificados. Enquanto esses novos projetos estão em curso, muitos problemas ambientais e de infra-estrutura continuam a prevalecer, e preocupa-nos substancialmente a política pró-ricos e antipobres. No entanto, o governo da cidade e os promotores imobiliários só falam do “salto de Jacarta para a modernidade”.
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Ao falar sobre as transformações sofridas na zona portuária de Victoria e Alfred, na Cidade do Cabo, desde o início dos anos 1990, Killian e Dodson (1996) seguem o mesmo caminho. Mudanças econômicas e tecnológicas transformaram as frentes marítimas de diversos países do mundo em locais propícios a uma nova acumulação de capital. Acreditam que o regime de acumulação flexível contribuiu para prover as bases para essas mudanças de uso. Ao final de seu trabalho, enfatizam como o processo de mercadificação e espetacularização têm sido usado para forjar (e consolidar) uma paisagem totalmente falsa, porque homogeneizante, no porto. O mesmo Hoyle, que acreditava que as revitalizações poderiam trazer bons resultados, afirmou mais recentemente (2001, 2000) que acreditava que as revitalizações realizadas nas áreas portuárias têm contribuído mais fortemente para o desenvolvimento do turismo. Um de seus estudos apresenta a experiência de Mombasa, no Quênia, onde a remodelação da frente marítima tem sido um sério problema para a conservação da área central histórica. Na América do Sul, um bom exemplo da reprodução desse tipo de intervenção ocorreu em Buenos Aires. No final da década de 1980, o governo argentino abraça fortemente a ideologia da globalização e passa a centrar sua atenção para o papel e a imagem da sua capital no sistema global (Keeling, 1996). Em novembro de 1989, o ministério das Obras Públicas e Serviços, o ministério do Interior – ambos representando o Poder Executivo Nacional – e a prefeitura da cidade de Buenos Aires assinaram um acordo pelo qual foi decidida a criação de uma empresa chamada “Corporación Antiguo Puerto Madero S.A.”, a fim de promover o desenvolvimento da zona de Puerto Madero. O governo nacional transferiu os 170 hectares de propriedade, naquela área, que tinha um imbróglio de competências entre a Administração Geral de Portos, a empresa Ferrocarriles Argentinos e a Junta Nacional de Grãos à Corporación Antiguo Puerto Madero S.A., enquanto a prefeitura de Buenos Aires ficou responsável pela criação das regras que regeriam o desenvolvimento urbano. A corporação definiu alguns pontos que julgava cruciais: promoção de edificações para atividades terciárias – tais quais escritórios públicos e privados, serviços comerciais e culturais –, além de edificações de tipo residencial; incorporação de áreas verdes para recreação e lazer. O plano mestre da revitalização de Puerto Ma-
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dero foi formulado com a cooperação da prefeitura de Barcelona, que havia feito anteriormente uma grande transformação em sua zona portuária (a qual será abordada posteriormente). O projeto vitorioso acabou preservando os prédios situados na franja oeste dos diques que acabaram por se constituir no principal patrimônio histórico-arquitetônico, marcando a identidade da zona portuária (Figura 26). Atualmente, a área tornou-se importante polo gastronômico da cidade, atraindo grande número de visitantes que, como nos outros projetos em várias partes do mundo, circulam pelas áreas abertas a fim de consumir de alguma maneira os produtos ali oferecidos (Figura 27). O setor leste de Puerto Madero apresenta uma área muito maior, algo em torno de 1.500.000m2, e apresenta basicamente construções novas com arquitetura contemporânea. Há escritórios e prédios residenciais (Figuras 28 e 29). Os diversos condomínios criados para habitação destinam-se à classe média alta e em nenhum momento, no projeto, foi cogitada a construção de habitações populares. Nesse grande empreendimento não poderiam faltar os prédios-sede das grandes empresas – como da Seguradora Mapfre, da Daimler Crysler e da Telecom – e a rede hoteleira, com a presença, dentre muitos, do Hilton, Sofitel Madero e Universe Hotel, por exemplo. Todos tendo recebido uma série de incentivos para ali se instalarem (Figuras 30, 31, 32).
Figura 26. Docas refuncionalizadas em Puerto Madero, Buenos Aires No total, são 16 prédios que acompanham os diques, em um total de 320.000m2 cobertos. O uso é basicamente para escritórios, restaurantes e há, inclusive, quatro prédios do dique dois que se destinam à Universidad Católica Argentina. Fonte: http://www.puertomadero.com, em 02/02/2009
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Figura 27. Os visitantes nas áreas livres de Puerto Madero
Há inúmeras possibilidades de consumo em Puerto Madero, que vão desde os inúmeros bares, restaurantes e boates até as lojas de grifes e de serviços. Fonte: http://www.puertomadero.com, em 02/02/2009
Figura 28. Torres El Faro, no setor leste de Puerto Madero
Dentre um conjunto de torres de escritórios, as Torres El faro são as mais altas ,com 46 andares e 170m de altura, sendo unidas por um conjunto de pontes suspensas. Fonte: http://www.puertomadero.com, em 02/02/2009
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Figura 29. Santa Maria del Puerto, no setor leste de Puerto Madero
Os primeiros núcleos habitacionais foram inaugurados por volta do ano 2000, mas evidentemente disponíveis para um estrato social de poder aquisitivo elevado. Fonte: http://www.puertomadero.com, em 02/02/2009
Figura 30. Prédio da Telecom, em Puerto Madero
Fonte: http://www.puertomadero.com, em 02/02/2009
Figura 31. Prédio da Seguradora Mapfre, em Puerto Madero
Fonte: http://www.puertomadero.com, em 02/02/2009
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Figura 32. Hotel da Rede Hilton, em Puerto Madero
Três exemplos de grandes empreendimentos que se instalaram em Puerto Madero, com incentivos do setor público. Fonte: http://www.puertomadero.com, em 02/02/2009
Figura 33. Anfiteatro em Puerto Madero
O anfiteatro inaugurado no ano 2000 tem capacidade 2.500 pessoas. Lá acontecem eventos de música, por exemplo, que atraem grande número de visitantes, que fazem uso do polo gastronômico de Puerto Madero, obviamente desde que possam passam pagar por isso. Fonte: http://www.puertomadero.com, em 02/02/2009
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Há também um espaço para shows ao ar livre que, quando realizados, atrai grande número de visitantes que irão fazer uso de toda a infraestrutura gastronômica criada em Puerto Madero, desde que obviamente possam pagar por isso (Figura 3.33). Esse tipo de espaço construído repete as fórmulas usadas em Boston, Baltimore, Londres e tantas outras zonas portuárias transformadas nos últimos quarenta anos. Toda essa enorme construção foi realizada a partir das parcerias públicoprivadas, em que o Estado tem arcado com os investimentos de infra-estrutura – não apenas a abertura de vias, a despoluição da área, o esgotamento e a iluminação, mas também a logística de circulação do sistema de transportes tem sido repensada para facilitar o acesso dos turistas e visitantes ao local – e o setor privado entra com os empreendimentos comerciais e de serviços, certamente com os incentivos fiscais promovidos pelo governo.2 Fato é que o projeto ainda está inconcluso e que os problemas econômicos por que passou a Argentina nos últimos anos estagnou o seu prosseguimento. Se a crise global se prolongar por demais, é possível que haja ainda maior estagnação do projeto. Puerto Madero ainda carece de melhor serviço público de transportes e é possível perceber um distanciamento entre os usuários e visitantes do local em relação à comunidade do entorno. Em Puerto Madero, criou-se uma paisagem urbana do espetáculo digna dos exemplos da globalização mundial, contudo excluindo a maior parte da população de Buenos Aires do envolvimento com o projeto, de maneira significativa. Na verdade, os fundos gerados pela venda de terras públicas em Puerto Madero poderiam ter sido mais bem investidos em projetos de bem-estar social no resto da cidade. Se os chamados fenômenos globais de reestruturação das áreas portuárias são muito variáveis culturalmente, espacialmente e surgiram inicialmente nos países centrais, nos dias de hoje, como vimos, estes fenômenos alcançaram também os países periféricos e em número muito maior do que o aqui por nós exemplificado. Talvez o mais importante seja perguntar a quem isso tudo serve. Onde está a justiça social quando toda essa festa e gastança são manti-
2 Pütz e Rehner (2008) apresentam interessante debate acerca das parcerias público-privadas para a execução do projeto para Puerto Madero.
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das, em grande parte, pelo dinheiro público e só são aproveitadas por um certo segmento da sociedade? Onde está a justiça social se apenas aqueles com poder de compra é que podem se dar ao luxo de participar dos eventos que lá ocorrem, das exposições e dos aquários? Um ponto interessante levantado por Jauhiainen (1995) refere-se a pensarmos sobre o fato de que, quando esse tipo de revitalização da orla marítima sair de moda, os espaços físicos permanecerão, tornando-se um grande problema para as cidades, pelo menos até que se faça uma nova revitalização nessas áreas. Quem sabe a partir de outro “modelo” que venha a surgir...
A produção do espaço: renovações/revitalizações ou homogeneizações? Ao falarmos das mudanças ocorridas em várias cidades do mundo, percebemos que algumas delas tornaram-se “exemplo de sucesso” para os governantes de outras localidades; e eles procuram reproduzir os mesmos projetos nas cidades que governam. Tudo isso parece perigoso, pois há fortes críticas que partem da academia da própria cidade de Barcelona. No entanto, parece que a palavra transformação exerce grande fascínio nos governantes. Estamos falando de grandes transformações que estiveram em curso em um período de apenas, aproximadamente, duas décadas e meia. Como vimos, parece-nos que a primeira fase das mudanças encontra-se bem distinta das subsequentes. Nos projetos de grande escala, o espaço público não teve o protagonismo anterior – embora tenha assumido papel importante –, estando ligado à mobilidade: acesso a shoppings ou a obras ligadas à monumentalidade, ou seja, ligado apenas a espaços de passagem. Além disso, determinadas áreas da cidade foram valorizadas em função dos padrões colocados pela economia global. Foi dessa maneira que se construiu um imaginário urbano a partir de uma nova lógica, que foi, e continua sendo, fundamental para a venda do lugar. Fato é que cada vez mais foi havendo um afastamento do “modelo anterior”, que tinha um maior conteúdo social (Capel, 2007, 2006). Muñoz (2008, p. 163) fala de “um processo de ‘brandificação’ do espaço urbano e, sobretudo, da própria imagem da cidade”. O geógrafo
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entende que “brandificação” da cidade referir-se-ia a um processo pelo qual os valores e atributos das marcas teriam passado da mídia e de outdoors a sua materialização em espaços urbanos concretos. Em outras palavras, estaríamos falando da configuração de um espaço global fisicamente descontínuo que cruza territórios – em múltiplas escalas: municipais, nacionais, continentais –, mas mantém uma contiguidade das formas visuais. Estamos nos referindo a uma espécie de homogeneização das formas de certas áreas das cidades, totalmente desprendidas de sua historicidade. Isso é fato, mas junto com isso estão as mesmas pautas culturais e formas de consumo. Mas, se no início dos anos de 1980 houve grande aprovação das transformações, segundo Capel (2007), na metade dos anos de 1990, “o modelo seria questionado a partir de diferentes perspectivas do empresariado aos movimentos críticos dos cidadãos”. Em se tratando dos empresários, argumentam eles contra o excessivo foco no turismo, nos grandes eventos, nos serviços e na promoção imobiliária. Por parte da esquerda, segundo o geógrafo espanhol, tem havido críticas acerca de como a cidade tem se transformado em um parque temático, onde se tratam os cidadãos como turistas e, além disso, há críticas ao crescente investimento em alguns grandes eventos enquanto, certamente, ainda se mantêm grandes carências sociais e urbanísticas. Capel (2007, 2006) aponta, ainda, o fato de “alguns dos antigos protagonistas estarem se distanciando do modelo e considerando que a intervenção realizada na cidade durante os anos 1980 mudaram de forma substancial entre 1992, data dos Jogos Olímpicos, em que se construiu o bairro conhecido como Villa Olímpica, e 2004, celebração do Fórum de las Culturas, que deu lugar ao crescimento do setor litoral conhecido como Diagonal Mar”. Dentre esses protagonistas a que se refere Capel, estariam Jordi Borja e Oriol Bohigas. Borja (2005), por exemplo, afirma que “o encanto dos anos 1980, o momento mágico de 92, o consenso ativo que teve o urbanismo de então é hoje passado”. Acredita que os novos projetos não geraram o entusiasmo e o aceite de antes, enfatizando o fato do “êxito global não se reproduzir no âmbito do local”. De certa forma, o que leva a essa hipótese vai ao encontro das diversas críticas feitas por Capel (2007, 2006, 2005, 2003) e por outros autores, como Delgado (2007, 2005) e Gato (2004), que apontam para o afastamento desses grandes
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projetos em relação aos anseios e necessidades da população. Isso acaba por passar para a população nativa a sensação de que a cidade cada vez lhes pertence menos, o que nos parece já ter ficado esclarecido quando falamos da ocupação da cidade histórica pelos turistas; o que se repete nas Ramblas. O geógrafo espanhol Jordi Borja (2005) parece perceber as contradições que se apresentam em Barcelona ao afirmar que o projeto urbano converteu-se em metáfora do indesejável. Ao se referir ao projeto do Fórum de las Culturas apresenta o que acredita ser uma tripla negação do espaço público: “a Diagonal se perde como passeio na medida em que chega ao mar, as torres residenciais somente geraram vazios em seu entorno, o interessante projeto de parque (Miralles-Tagliabue) foi pervertido para dificultar o trânsito de pessoas do entorno e favorecer a privatização de seu uso.” O antropólogo espanhol Manuel Delgado (2007), de forma bastante dura, argumenta que Barcelona teria se transformado em um cenário de fraude e fracasso. Em se tratando da fraude, elenca a atuação de políticos e urbanistas que conceberam e empreenderam o “Modelo Barcelona” através da promoção imobiliária, comercial e turística da cidade. Esse autor redige em uma espécie de desabafo e compara Barcelona a uma topmodel, “uma mulher que foi produzida para permanecer atrativa e sedutora, que se maquia para depois exibir-se e ser exibida nas passarelas das cidades-fashion, o mais in em matéria urbana”. Apresenta, assim, uma cidade-êxito, que está na moda, como demonstra a fascinação que desperta em turistas de várias partes do mundo. Todavia, Delgado (2007) não para por aí; acredita que Barcelona tem sido modelo para outras coisas, pois todos os processos por que tem passado a cidade têm transformado-a em “modelo de como uma cidade se concebe só com poder e dinheiro, alheia aos problemas mais prementes de seus habitantes e à perspectiva de elevar os níveis justiça e liberdade”. Vê nas transformações vividas em Barcelona, “o fracasso de uma cidade que se levanta cega ante às misérias que acoberta, surda-muda ante às exclusões que gera sem parar”. Essa é apenas mais uma imagem de um mundo que produz cada vez mais paisagens homogeneizantes. O que se espera e se quer que seja visto seria, usando a expressão de Delgado, a Barcelona topmodel, todavia, reproduzem-se também paisagens muito próximas de cidades
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pobres, de países periféricos: estações de metrô sujas e apinhadas de sem-tetos, apartamentos muito pequenos que abrigam várias famílias, ruas repletas de trabalhadores informais, sem-tetos que se abrigam embaixo de marquises ou até em vãos de fachadas de museus (como é o caso do MACBA – Museu de Arte Contemporânea de Barcelona), ou seja, bem à vista de quem tem olhos de ver. Então, essa Barcelona se assemelha bastante a todas as grandes cidades capitalistas, onde a luta por ser competitiva exclui questões sociais importantes, em que há o predomínio do viés econômico em detrimento das questões sociais. Como apresentamos no Capítulo 2, vivemos um momento em que a competitividade empresarial global chega às cidades, que buscam ser cada vez mais competitivas. Isso significa ter maiores possibilidades de atrair investidores e, assim, mais “empresas de grife”, mais turistas e, possivelmente, mais capital volátil; nesse sentido, a crise do capital é uma crise urbana. O que se vê é cada vez mais a homogeneização das formas urbanas, pois, se tem dado certo em determinada cidade, é preciso seguir esse caminho para atrair os investidores. Assim, assistimos a uma interminável repetição dos mesmos cenários, dos mesmos restaurantes, das mesmas formas de lazer, das mesmas músicas, das mesmas marcas; aliás, nesse cenário de simulacros, a própria cidade busca transformar-se em uma marca. Àquele projeto original, em que se pensava em uma cidade compacta, em que se enfatizava a necessidade de construir sobre o construído e que deu origem às transformações urbanas, se seguiu uma forte expansão da região metropolitana de Barcelona, gerando grande dispersão. Cada vez mais, o discurso da importância da densidade, da mistura de usos e da diversidade da paisagem urbana vai se perdendo frente a uma realidade de urbanizações de baixa densidade, a especialização funcional e a uma repetição de formas espaciais sem identidade. Talvez seja por tudo isso que Muñoz (2008, p. 170) declara que “a paisagem metropolitana vai sendo edificada através de ilhas urbanas homogêneas, ligadas por rotundas, espaços comerciais e postos de gasolina”. Tudo isso não só contradiz a imagem criada e vendida do “Modelo Barcelona”, como mostra, inclusive, a ausência de qualquer modelo.
Capítulo 4
A produção do espaço urbano do Rio de Janeiro Entre projetos de revitalização para a zona portuária e (i)mobilismos
“Temos dois modos para não sofrer. O primeiro é fácil para muitos: aceitar o inferno e fazer parte dele até o ponto de não percebê-lo mais. O segundo é arriscado e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo e dar-lhe espaço”.
Italo Calvino
Este capítulo trata do embate – muito frágil – e da conjugação de forças dos atores sociais envolvidos na proposta de revitalização da zona portuária. Tantos projetos, tanto dinheiro comprometido, prefeito e governador falando no que seria melhor para a cidade, no entanto aqueles que deveriam ser ouvidos – os moradores dessas áreas e os moradores da cidade como um todo – não têm voz. A cidade do Rio de Janeiro teve desde sempre uma história de grandes transformações, que sempre foram decididas autoritariamente pelas instâncias governamentais, pelos especialistas, e, pelo que estamos vendo, a história torna a repetir-se; até quando? Acreditamos que seja necessário pensar na utilização da velha zona portuária da cidade, entretanto o atual projeto baseia-se em “fórmulas de sucesso” realizadas em outras cidades mundo afora; o foco encontra-se na atividade turística como mobilizadora dessa área. De fato, os governantes têm “vendido” a cidade do Rio de Janeiro no cenário internacional como algo único, um lugar que reúne a modernidade de uma grande metrópole e as belezas naturais incomparáveis. Entretanto, historicamente os recursos adquiridos através do turismo não têm sido 213
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investidos nas necessidades mais prementes dos moradores da cidade, assim é questionável o discurso de que serão utilizados em benefício de todos. A aplicação dos recursos públicos vem desde muito tempo dirigindo-se aos bairros nobres da cidade. No início do século XXI, percebemos que cada vez mais os governantes procuram construir uma marca para suas cidades; porém o “sucesso” de uma determinada cidade acaba provocando um movimento que objetiva copiar aquilo que teria dado certo, levando à homogeneização das formas-conteúdo, pois acreditam que assim atrairiam investidores. Contradição. Tem-se, simultaneamente, um discurso que defende a manutenção dos centros históricos – vislumbrando o potencial de exploração turística dessas áreas – e o crescimento do número de condomínios fechados e shopping centers. Os velhos centros muitas vezes não são vistos como opção para habitação, mas como possibilidade para o crescimento de atividades comerciais. Nesse caso, mais a frente falaremos do processo de gentrificação. A cidade do Rio de Janeiro, com sua frente marítima belíssima e com forte apelo turístico – pensemos em Copacabana, Ipanema, Leblon e, mais recentemente, a Barra da Tijuca –, deixou em dúvidas o empresariado no que se refere à possibilidade de investir na velha zona portuária, que se tornou obsoleta há algum tempo. Assim, houve pouca pressão dos promotores imobiliários junto aos governos anteriores para a implementação de obras naquela área. É verdade, também, que apenas em 2009 temos uma configuração política que alia as três instâncias de governo: federal, estadual e municipal. Esse cenário traz a possibilidade de colaboração para a cessão dos imóveis e terrenos daquela área, que em grande parte pertencem a essas três esferas do poder; fato é que atualmente configurou-se uma sinergia em que as áreas urbanas centrais e a zona portuária carioca ganham a cena nessa aliança. Em administrações anteriores, alguns prefeitos falaram da “necessidade de revitalizar a zona portuária”, mas os projetos mantiveram-se apenas nas gavetas; alguns simples, outros mais exuberantes, como a proposta do então prefeito César Maia que quisera construir uma filial do Museu Guggenheim, que teria parte do prédio sob as águas da Baía de Guanabara. Outro prefeito, Luiz Paulo Conde, falara em por abaixo o elevado da Perimetral – que tem enorme fluxo viário – para devolver
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a vista da baía para a cidade, contudo especialistas da engenharia de tráfego afirmavam que tal obra daria um nó no trânsito da cidade e afetaria inclusive a cidade vizinha, Niterói. Evidentemente, tal proposta recebeu essa crítica justamente devido à opção feita pelo automóvel durante o crescimento e expansão da malha urbana; o Rio de Janeiro tem problemas significativos no que tange ao transporte coletivo, mas abordaremos essa discussão mais adiante. Todavia, impossível negar que a construção do elevado da Perimetral é um grande transtorno não apenas no sentido estético, mas também no que se refere à vida dos cidadãos, que é afetada por essa via. O elevado que surgiu como solução para um problema, trouxe outros malefícios para toda a área envolvida, inclusive a área central e a zona portuária, que se tornaram escuras e vazias. O elevado da Perimetral (Elevado Juscelino Kubitschek) é uma via expressa de aproximadamente 7 Km de extensão, que liga a zona norte à zona sul da cidade. Foi construído em partes, tendo sido o primeiro trecho idealizado na década de 1940 e ligava a área do Calabouço – onde se localiza atualmente o Aeroporto Santos Dumont – à altura da Igreja da Candelária; posteriormente continuou pela Praça Mauá, contornando o Mosteiro de São Bento e seguindo sobre a Avenida Rodrigues Alves; apresentando a sua última fase de ampliação em sua ligação com a Ponte Rio Niterói, mas isso já se deu no início dos anos de 1970. A obra visou desafogar o trânsito, já denso na época, permitindo que os veículos atravessassem da zona sul a zona norte sem ter que passar pelo centro da cidade. Obra tão grande que acabou por destruir boa parte das pequenas ruas no entorno do Museu Histórico Nacional, becos que datavam da época da ocupação do Morro do Castelo. Outra construção belíssima que se perdeu foi o Mercado Municipal. Atualmente, mais uma vez, agora com as três esferas de governo alinhadas, surge um projeto de “revitalização da zona portuária” – chamado pela prefeitura de Projeto de Revitalização Porto Maravilha – e se fala em por abaixo parte do elevado. Com a vitória da candidatura carioca para sediar as Olimpíadas de 2016, já há urbanistas que defendem a utilização da zona portuária para realização de certas competições; entretanto, isso significa alterar o projeto aprovado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), visto que grande parte está prevista para realizar-se na Barra da Tijuca. Aliás, uma observação cuidadosa dos
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vídeos produzidos pelos representantes do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) apresentando a candidatura do Rio de Janeiro ao júri internacional, permite-nos perceber uma cidade idealizada, um sopro de ilusão, a criação de uma imagem que não corresponde ao real. Parece-nos que a mercadificação da cidade, o city marketing e a implementação do empresariamento na sua governança trazem consequências danosas aos citadinos; estamos de acordo com o geógrafo inglês David Harvey (2005, p. 189), o qual acredita que o fortalecimento da competição de mercado entre as cidades produz impactos regressivos na distribuição de renda e a efemeridade dos benefícios trazidos por muitos projetos. Acredita ainda que “a concentração no espetáculo e na imagem, e não na essência dos problemas sociais e econômicos também pode se revelar deletéria a longo prazo, ainda que, muito facilmente, possam ser obtidos benefícios políticos”. Acreditamos que se torna cada vez mais necessária a criação de formas de participação, por parte dos cidadãos, nas decisões de produção do espaço da cidade e que tais formas não devem se ater aos marcos institucionais do Estado; estamos pensando em ir além das propostas de orçamento participativo, por exemplo (adiante retomaremos este debate). Participar significa desejo de intervir, significa ter um sentimento de pertencimento a um grupo social, à cidade, e vontade de transformar o estado de coisas atual. É também sobre essas questões que buscaremos tratar neste capítulo.
Mercadificação da cidade, city-marketing e a implementação do empresariamento na sua governança Depois da Segunda Guerra Mundial, o Estado-Nação era a escala ao redor da qual se organizavam as atividades econômicas; entretanto, como vimos no primeiro capítulo, após a reestruturação econômica ganham força as administrações locais. Acostumamo-nos a ouvir e a ler inúmeros debates que apresentavam narrativas escalares do “fim do Estado”, do “novo regionalismo”, do “espaço dos fluxos” ou daquilo que ficou conhecido como “morte das distâncias”. Esses discursos serviram para justificar o estilo empreendedor dos políticos locais e Sara González (2005) acredita que fazem
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parte da cartilha da globalização. De alguma forma, a defesa da suposta super-mobilidade do capital contribui para que os governos locais sintam-se pressionados a oferecer as melhores condições empresariais, tornando o mercado de trabalho mais flexível e criando condições fiscais vantajosas; uma boa crítica a essas afirmações podem ser encontradas, por exemplo, no geógrafo Eric Swyngedouw (2002, 2000). Muitas cidades têm seguido as definições de uma política empreendedorista, investindo em infra-estrutura ligada às atividades turísticas, muitas vezes aproveitando-se de eventos internacionais, como o fizeram Barcelona (Jogos Olímpicos, 1992 e o Fórum de las Culturas, 2004), Lisboa (Expo’98) ou Sevilha (Expo’92); o Rio de Janeiro vem seguindo o mesmo caminho: Jogos Pan-Americanos 2007, Copa do Mundo de Futebol 2014, Olimpíadas 2016. A cidade do Rio de Janeiro tem uma especificidade que a diferencia de outras, visto que foi capital da Colônia, do Reino Unido, do Império Brasileiro e depois capital da República. Sem dúvida esse fato fez com que grande parte do acervo cultural do país para ali se destinasse e, obviamente, há ainda reflexos disso: sai do Rio de Janeiro cerca de metade da produção teatral do país, aproximadamente 60% da produção cinematográfica, 75% do conteúdo audiovisual independente, sem falar da indústria fonográfica – visto que a Sony Music-BMG, Universal Music, Warner Music, EMI mantêm sua sede na cidade –, encontra-se na cidade o maior número de museus do país (são 80 museus, segundo o cineasta Sérgio Sá Leitão), a Biblioteca Nacional, considerada pela UNESCO uma das dez maiores bibliotecas nacionais do mundo e a maior da América Latina, o Real Gabinete Português de Leitura (com o maior acervo de literatura portuguesa fora de Portugal) etc. Além disso, conta ainda com diversas universidades públicas, das quais saem aproximadamente 40% da produção científica do Brasil. Segundo dados de 2005 e 2006, o Rio de Janeiro foi a cidade brasileira que mais lucrou com cultura no país; o equivalente a 7% do PIB, ou seja, algo em torno de R$4 bilhões por ano. Em se tratando da morfologia urbana, observando a orla carioca é possível identificar as tendências da arquitetura moderna através do tempo: o centro da cidade com prédios dos anos de 1910 a 1920; o bairro do Flamengo representando a década de 1940; Copacabana, os anos de 1950; Ipanema a década de 1960; Leblon os anos de 1970; São Con-
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rado e o início da Barra da Tijuca, a década de 1980; e o resto da Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes, os anos de 1990 a 2000. O casario do Centro do Rio apresenta riqueza incrível, com uma variedade de estilos que vão desde a arquitetura típica colonial portuguesa, com sobrados e azulejos, até as construções inspiradas nos prédios de Paris, como, por exemplo, o Theatro Municipal (inspirado no Opera de Paris) e a Biblioteca Nacional. Além disso, há inúmeros exemplos de Art Deco, modernismo e pós-modernismo. Tamanha variedade esteve também ligada ao fato de ser a cidade capital por tanto tempo. Contudo essa capitalidade não trouxe apenas benefícios, e um exemplo disso é o fato de o Rio de Janeiro não ter construído uma oligarquia local estruturada em torno de interesses regionais. A cidade estava acostumada a ser administrada por elites recrutadas em todo o país e as decisões compatíveis com os interesses da nação compunham o quadro de referência para a prosperidade urbana. Isso levou o economista Carlos Lessa (2001, p. 355) a afirmar que “o Rio viu seus interesses locais serem atendidos sempre subordinados e em nome da função política maior da nação. Não se sentia discriminado, pois, pelo contrário, estava acostumado a ser pioneiro nas atenções. Essa displicência, explicável pelo seu longo passado como capital, lhe custou caro quando perdeu a função”. Ao que parece, a população carioca, sem uma retaguarda econômica regional espacialmente definida, acabou não desenvolvendo uma força política em defesa da cidade, isso porque como o progresso do Rio de Janeiro derivava, em grande parte, de sua capitalidade, os aperfeiçoamentos aconteciam sem competição inter-provinciana. Quando da mudança da capital para Brasília, a cidade viu-se perdida, visto que sua história fora construída praticamente durante toda sua existência baseada em uma realidade que não mais existia. Entre um breve período em que se transformou em Cidade-Estado (Estado da Guanabara), logo após a mudança da capital para Brasília, permaneceu distante do interior – Estado do Rio. Porém, o golpe militar além de trazer máculas que nos assombram até hoje, promoveu a fusão do Estado da Guanabara e do Estado do Rio, dando origem ao Estado do Rio de Janeiro que conhecemos atualmente. Não é nosso objetivo aprofundar-nos nesse debate, mas ainda hoje surgem vozes que clamam pela “desfusão”. Fato é que, a partir de então, o município teve
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que lutar por recursos, fato pelo qual nunca havia passado e talvez ainda precise aprender a fazê-lo. Nesse período, vários governadores passaram pela administração do estado, determinadas vezes priorizando a capital e em outras, o interior. Curiosamente, no que tange aos governadores, tem havido uma grande alternância nas eleições, o que dá margem a pensarmos que isso se deve à falta de paciência do eleitorado do Rio de Janeiro ou ao fato de dar pouca importância à continuidade do trabalho realizado pelos governantes. Incertezas. O atual governador, Sérgio Cabral, tem priorizado fortemente o município em sua gestão, confundindo inclusive suas ações com as do prefeito Eduardo Paes. Contudo, há problemas que acompanham a cidade desde muito tempo, como a não resolução do sistema de transporte de massas. Como já discutido anteriormente, a necessidade de proximidade ao local de trabalho – devido à precariedade do transporte coletivo – contribuiu para intensificar a favelização. Em termos de números, poderíamos dizer que, na década de 1980, o crescimento da população que vivia em favelas1 cresceu cinco vezes mais que a global do município. Evidentemente convém lembrar também que essa década ficou conhecida no Brasil como década perdida, uma referência à estagnação econômica, um período marcado por forte retração da produção industrial, crescimento do desemprego e baixíssimo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), dessa maneira, quando se fala do crescimento das favelas também devemos considerar esse fato. Se no início do século XX já havia problemas ligados ao transporte coletivo, esse problema continuou existindo, principalmente com a prioridade dada ao automóvel. O Plano Doxiadis (1965) – encomendado pelo então governador Carlos Lacerda – projetou o Rio de Janeiro como metrópole polinucleada e organizada segundo corredores rodoviários. Aliás, o próprio Plano Lúcio Costa para a Barra da Tijuca (1969) corrobora essa lógica. No Plano Doxiadis já estavam previstas
A geógrafa Marta do Nascimento Silva (2010) desenvolveu importante debate acerca da crise urbana e habitacional, tendo no crescimento das favelas na Zona Sul da Cidade do Rio de Janeiro o seu foco. Em sua dissertação de Mestrado intitulada “A favela como expressão de conflitos no espaço urbano do Rio de Janeiro: o exemplo da Zona Sul carioca” podemos encontrar ótima contribuição a essa temática.
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vias expressas, as chamadas linhas Vermelha, que liga o município do Rio de Janeiro ao de São João de Meriti; Amarela, do bairro da Barra da Tijuca à Ilha do Fundão; Lilás, a primeira a ser realizada, ligando o bairro de Laranjeiras à Santo Cristo (contudo em alguns pontos perde a característica de via expressa); Azul, não realizada, que iria da zona sul à Barra da Tijuca; Marrom, também não realizada, que ligaria o bairro do Rio Comprido – passando por vários bairros da zona norte – à Santa Cruz, na zona oeste; e, finalmente, a Linha Verde, que ligaria a Rodovia Presidente Dutra (conhecida como Estrada Rio-São Paulo) ao bairro da Gávea, na zona sul da cidade. Esta linha não foi concluída, tendo apenas a avenida Automóvel Clube e o túnel Noel Rosa sido realizados. Um dos empecilhos para a sua concretização foi a pressão dos moradores da Gávea, que acreditavam em uma possível desvalorização de seus imóveis com a realização da obra. No governo de Carlos Lacerda (1960-1965), foi realizado o aperfeiçoamento das avenidas Suburbana e dos Democráticos, além da construção dos viadutos de Benfica e Del Castilho, das avenidas Radial Oeste e Maracanã e, também a construção do túnel Rebouças (2720 m). A febre do automóvel tem sequência no governo de Negrão de Lima (19651970), que concluiu 22 novos viadutos (cinco já estavam em construção anteriormente), alargou a avenida Atlântica, construiu a Perimetral e duplicou a pista da Lagoa. Por sua vez, na administração do governador Chagas Freitas (1971-1975) foram construídos os dois túneis de acesso à Barra da Tijuca e a totalidade da estrada Lagoa-Barra, além de inaugurar a Ponte Rio-Niterói. Todas essas obras, embora importantes, contribuíram para o abandono do transporte sobre trilhos, haja vista que a primeira linha de metrô no Rio de Janeiro é inaugurada tardiamente em março de 1979. Apesar de até agora contar apenas com duas linhas (Saenz Peña-General Osório e Estácio-Pavuna ou Botafogo-Pavuna, em uma estratégia bastante questionável para reduzir a lotação de trens), com aproximadamente 42 Km, é a segunda maior do país em extensão, perdendo apenas para São Paulo. Fato é que essas duas linhas não atendem às necessidades da população e chega a ser absurdo que uma cidade do porte do Rio de Janeiro tenha apenas duas linhas; não há basicamente entroncamentos para transferência. No entanto, em seu projeto constam mais cinco linhas: São Cristóvão-Botafogo (Linha 1A); Carioca-Guaxindiba
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(Linha 3), que cruzaria a Baía de Guanabara; Rio Sul-Alvorada (Linha 4), que já teve a previsão da estação inicial da zona sul alterada algumas vezes; Ilha do Governador-Santos Dumont (Linha 5), ligando os dois aeroportos da cidade, além de passar pela Cidade Universitária; e Alvorada-Galeão (Linha 6), ligando a Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional (Figuras 1 e 2). Contudo, o atual governador tem manifestado-se quanto a construção da Linha 4, que iria até a Barra da Tijuca, até porque seria uma forma de facilitar o deslocamento, visando já à Copa do Mundo de futebol em 2014 e às Olimpíadas de 2016. Em janeiro de 2009, o vice-governador e secretário de Obras, Luiz Fernando Pezão, apresentou projetos a então ministra da Casa Civil Dilma Rousseff, objetivando conseguir algo em torno de R$4,7 bilhões em recursos do Programa de Aceleração do Crescimento2 (PAC) voltado à mobilidade. Dentre os projetos apresentados, dois referem-se às Linhas 3 e 4 do metrô. Segundo entrevista aos diários cariocas Jornal do Brasil e O Globo, o vice-governador afirma que a Linha 4 – que liga a zona sul à Barra da Tijuca – seria iniciada ainda em 2009 (o que efetivamente não ocorreu, tendo o início das obras ocorrido apenas em meados de 2010), mesmo que com recursos do estado e de parcerias com a iniciativa privada. Essa linha está orçada em R$2,7 bilhões, tendo 13,7 quilômetros e com previsão de término em quatro anos. Atualmente, o valor do orçamento da obra encontra-se na casa de R$8,5 bilhões; basicamente o triplo do previsto inicialmente. A Linha 3, no trecho de Niterói a São Gonçalo (Guaxindiba), estava estimada em R$1,3 bilhão, terá 23 quilômetros de extensão e o prazo para conclusão das obras é de três anos. Em setembro de 2013, a atual presidente do Brasil Dilma Rousseff, junto com o governador Sérgio Cabral e seu vice-governador Pezão, anunciou a liberação de recursos para o início da obra (agora orçada em R$2,5 bilhões), cabendo ao governo federal algo em torno de 41% desse montante. A linha 3 será construída no sistema de monotrilhos.
2 O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi lançado em 28 de janeiro de 2007 e é um programa do governo federal brasileiro. Engloba um conjunto de políticas econômicas, pensadas para os quatro anos seguintes, tendo como objetivo acelerar o crescimento econômico do país através de investimentos totais de R$503,9 bilhões até 2010. Tem como prioridade o investimento em infra-estrutura, como saneamento, habitação, transporte, energia e recursos hídricos, dentre outros.
Fonte: baseado em CBTU, 2007.
Figura 1. Mapa Metroferroviário da Região Metropolitana do Rio de Janeiro
Central – Trem Diesel: 75 km METRÔRIO: 42 km
Supervia – Trem Diesel: 15 km Supervia – Trem Elétrico: 219 km
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Fonte: baseado em CBTU, 2007.
Figura 2. Mapa Metroferroviário com o projeto de expansão do Metrô
MetrôRio Implementado Supervia – Projeto de Modernização: 219 km
Pref. Mun. Rio – Projeto VLT: 42,5 km MetrôRio – Projetos: 117 km
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Evidentemente, é difícil acreditar que a realização da Linha 4, como mera expansão da Linha 1 do metrô, resolverá o sério problema de transporte – e por consequência de (i)mobilidade – da cidade. Trata-se de estender “indefinidamente” uma linha, sem priorizar o que é básico na formação de uma rede metroviária: pontos de baldeação, de transferência para as outras linhas. Temos ainda hoje apenas duas linhas e, apesar do discurso da concessionária que o administra falar em metrô de superfície, o que temos em superfície são ônibus que fazem uma espécie de integração à malha metroviária. Se atualmente a população residente na Barra da Tijuca e cercanias sofre nos engarrafamentos diários para chegar à zona sul e ao centro da cidade, com a expansão até a Barra serão os moradores da zona sul que terão de usar o automóvel ou a terrível frota de ônibus da cidade para circular, visto que o metrô já chegará até a zona sul lotado. Este fato não ocorreria se o governo tivesse optado pelo projeto original – apoiado pela população – e que faria outro trajeto, atendendo a demanda tanto dos moradores da zona oeste litorânea quanto da zona sul da cidade (Figura 4.2). Além disso, se assim o fosse, a prerrogativa criação de estações de transferência estaria observada, contribuindo para a melhoria da mobilidade na cidade. Em geral, prefeito e governador argumentam que o custo de implantação do metrô é cerca de 15 vezes maior que a implementação do sistema Bus Rapid Transit (BRT), um conjunto de quatro vias de circulação (Figura 4.3) em que os ônibus articulados trafegam em vias segregadas. Essas faixas exclusivas localizar-se-ão à esquerda e terão estações com cobrança de tarifa antecipada. O projeto propõe quatro linhas: TransOeste (parte dela já em funcionamento), TransCarioca, TransOlímpica (ligação exigida pelo COI – Comitê Olímpico Internacional) e TransBrasil. Entretanto, importa salientar que há trechos com mais de 40 km de extensão, além de que não compactuamos com a ideia segundo a qual o sistema de BRT seja a solução para uma metrópole como o Rio de Janeiro. Entendemos tal sistema como transporte complementar, servindo como alimentador, não como solução. Aliás, a administração de várias cidades que se utilizam do sistema BRT já percebeu que o investimento no sistema metroviário é fundamental para a mobilidade dos cidadãos. O discurso acerca do custo é injustificável, visto que a malha metroviária permite a expansão do metrô a várias
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partes da cidade e de maneira constante, acompanhando o crescimento da cidade e seus eixos de expansão. Ademais, pensar a melhoria da mobilidade na cidade não deve ser percebido como custo, mas como investimento na qualidade de vida da população. Além disso, há estudos que afirmam que no curo prazo o preço de construção do sistema metroviário é maior, mas ele se reduz no médio e longo prazo. Ao que parece, trata-se de acordos e investimentos no transporte automotivo – neste caso nos ônibus – e que os administradores públicos não desejam romper. Até mesmo a implantação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a formação de cartéis de empresas de ônibus e sua associação com patrocínios de campanha eleitoral para políticos, prefeitos e governadores tem tido dificuldades para ser colocada em prática.
Figura 4.3. Mapa das quatro linhas do sitema BRT no Rio de Janeiro
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1476600&page=99
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Figura 4. Vista aérea da Cidade do Samba, na zona portuária carioca
Fonte: Diário do Rio de Janeiro, 25/06/2009.
A verdade é que a administração pública do Rio de Janeiro priorizou, de fato, por muito tempo o transporte viário. Para a indignação de Lessa (2001, p. 369), além da prioridade ao automóvel, acabaram utilizando “em seu sistema de circulação de passageiros, outro veículo automotor: o ônibus. Hoje incorpora a van, cuja forma pré-histórica foi a lotação”. Todavia, mais uma vez os governantes voltam a apontar para a necessidade de se repensar tal estratégia e asseguram que agora não é possível resolver o problema do trânsito na cidade sem ter em conta a alternativa do metrô. Curiosamente, o ponto de partida não é a necessidade de dar melhores condições de transporte coletivo à população da cidade como um todo, mas “desafogar” o trânsito; isso deixa nas entrelinhas o objetivo de facilitar a vida de quem circula de automóvel3. O geógrafo Gustavo do Nascimento Lopes (2009), em sua dissertação de mestrado intitulada “Embaralhando as pernas: diferentes visões da bicicleta como forma de mobilidade urbana”, apresenta importante debate acerca da opção pelo automóvel. Acredita que “o automóvel, objeto técnico fundamental nesse projeto de transformação do urbano, ao mesmo tempo em que se desenvolve, cria sua própria dependência”. A partir de então, passa a analisar como foram desenvolvidas as políticas de incentivo ao modal cicloviário na metrópole do Rio de Janeiro (1990-2009), associando-as ao debate acerca do direito à cidade. 3
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Mas falamos, há pouco tempo, do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016; isso faz parte de uma estratégia para alavancar o nome do Rio mundialmente e atrair mais capital para a cidade. A todo o momento, os dirigentes das três instâncias seguem afirmando que estão trabalhando juntos pelo Rio de Janeiro. Entretanto, sediar as Olimpíadas era um sonho anterior a esse governo, visto que a cidade havia concorrido para sediá-las em 2012. Torna-se claro o marketing realizado junto à população carioca e brasileira para apoiar a candidatura da cidade e o trabalho realizado no exterior objetivando convencer os membros do COI (Comitê Olímpico Internacional). Os administradores têm-se tornado cada vez mais uma espécie de “vendedores de cidades”, em que o mais importante é criar uma imagem vendável do lugar. Os dirigentes procuram incessantemente adaptar as cidades aos mercados internacionais e um dos meios utilizados é o denominado planejamento estratégico. Embora já tenhamos dedicado parte do segundo capítulo desta obra a essa discussão, retomaremos aqui alguns pontos importantes para darmos sequência ao nosso debate atual. O geógrafo espanhol Jordi Borja (1996) afirma que o plano estratégico é a definição de um projeto de cidade “que unifique diagnósticos, concretize atrações públicas e privadas e estabeleça um quadro coerente de mobilização e cooperação dos atores sociais urbanos”; cremos que a expressão “projeto de cidade” tem muita força, tal qual – como deixamos claro anteriormente – a expressão “desenvolvimento”. O geógrafo espanhol aponta para a necessidade de haver a presença de uma forte liderança para conduzir as ações do plano estratégico, e isso vai ao encontro da postura de nossos ex-prefeitos e do atual, que procuram a todo custo deixar a sua marca, preferencialmente com grande monumentalidade. Caberia também ao prefeito a capacidade de articulação com as outras instâncias de governo (estadual e federal) para a viabilização de grandes projetos, a promoção interna da cidade – criando nos habitantes o desejo de ver o projeto acontecer – e construir uma promoção externa, visando à atração de investidores. Como vimos no capítulo anterior, algumas cidades fizeram uso de grandes eventos internacionais para implementar grandes transformações urbanas, como Barcelona (Olimpíadas de 1992) e Lisboa (Expo ‘98). Esperamos que esses casos, discutidos anteriormente, tenham dei-
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xado claro que os resultados finais não necessariamente são aqueles prometidos inicialmente pelos atores sociais envolvidos no projeto. Para a implementação desses projetos, o city marketing cumpre importante papel, pois, como lembra o geógrafo Georges José Pinto (2001, p. 21), “é uma promoção da cidade que objetiva atingir os seus próprios habitantes bem como os possíveis e eventuais investidores, que busca a construção de uma nova imagem de cidade, dotada de um forte impacto social”. Trata-se da espetacularização da cidade, e, para tanto, projetos com nomes impactantes são importantes: Favela-Bairro, Rio-Cidade e Porto Maravilha são exemplos para o caso do Rio de Janeiro.4 Certamente, por trás desses projetos há articulações de diversos grupos econômicos, visto que as transformações nas cidades envolvem atores sociais ligados aos setores imobiliário, de transportes, de turismo, de construtoras e de prestadoras de serviços de modo geral. Por tudo isso, o Rio de Janeiro tem se tornado cada vez mais uma mercadoria, um objeto a ser negociado em um mercado competitivo, o que autoriza o professor de planejamento urbano e regional Carlos Vainer (2000) a afirmar que houve uma transposição do modelo estratégico do mundo das empresas para o universo urbano. Assim, agências multilaterais – BID, Banco Mundial, PNUD, Agência Habitat, dentre outras – e consultores internacionais acabam construindo ideários e modelos que afirmam que as cidades devem comportar-se como empresas e adotar uma postura vencedora em um mundo que é visto como um mercado em que cidades competem entre si. Dessa forma, esse ideário defende que grandes projetos urbanos, recuperação de centros históricos, parcerias público-privadas e revitalizações fomentam a produtividade e a competitividade da cidade, assegurando – graças à atração de investimentos, turistas e grandes eventos – uma inserção de sucesso no mundo globalizado. Além disso, surgem também como opção a criação de parques associados a grandes projetos imobiliários de condomínios de alto poder aquisitivo e de shopping centers. A parte do tecido urbano avaliada pelos empreendedores como degradada ou habitada por grupos sociais de baixo poder aqui-
4 SÁNCHEZ, Fernanda (2001 e 1999), MOURA, Rosa (2001) e SÁNCHEZ, Fernanda, MOURA, Rosa (1999) tratam da utilização do city marketing em Curitiba.
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sitivo, como velhas áreas fabris, armazéns em antigas zonas portuárias, tornam-se áreas potenciais para passar por refuncionalizações e para transformarem-se em novos complexos de consumo. Os condomínios fechados crescem ininterruptamente, o que levou Lessa (2001, p. 426) a afirmar que teria surgido “o paradigma do viver e ser, que impregna a cultura de consumo e pela porta territorial, projeta-se mimeticamente em uma Alphaville em São Paulo e na Barra da Tijuca no Rio”. Mas não apenas na Barra, pois em outros bairros da cidade crescem os condomínios fechados ou seus correlatos: as ruas fechadas e com guaritas. Segue o economista enaltecendo o fato de que nas metrópoles “são criados padrões de uniformidade que modelam hábitos e os subordinam aos roteiros do trabalho e do lazer. O processo de globalização estaria criando, segundo alguns, uma ‘megametrópole’ mundial desterritorializada que, pelo modo de alimentar-se, vestir-se, divertir-se etc., praticaria um ‘idioma’ universal e integrativo”. Nesse sentido, todo lugar acaba tornando-se um uma espécie de McDonalds, em que surgem paisagens urbanas cada vez mais repetitivas que se descolam da própria realidade e da história do lugar. Para tentar escapar desse tipo de crítica, tem sido comum que os agentes produtores busquem construir um discurso de valorização da identidade do lugar, que muitas vezes resume-se a fotos históricas, em outras realizam-se a partir de grandes empreendimentos como a Cidade do Samba, na zona portuária carioca (Figura 4.4); projeto que possibilita a realização de eventos das Escolas de Samba durante todo o ano e não apenas no Carnaval, mas que também serve, ao mesmo tempo, como “barracão” das escolas. Em outras cidades, fala-se na importância da diversidade cultural e da valorização e revitalização de “bairros étnicos”, mas, no fundo, o que existe nesses lugares é a construção de uma identidade falsa, que na maioria das vezes não representa nem de longe a história do lugar e que serve apenas como atração de turistas. Os shopping centers acompanham os projetos para as cidades, mas não são um fenômeno nascido agora. Aliás, no Rio de Janeiro começaram a crescer no início do último quartel do século XX e, de alguma forma, alguns trouxeram movimento a áreas que haviam sido deixadas de lado, como, por exemplo, o Norte Shopping, que surgiu no local da antiga indústria Klabin, ou o Shopping Nova América, fruto da indústria têxtil homônima no bairro de Del Castilho. Há também o caso dos
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grandes supermercados, como vimos no primeiro capítulo desta obra, como o Supermercado Extra Boulevard, no bairro de Vila Isabel, ou o Carrefour, no bairro de Vicente de Carvalho, que ocuparam antigas fábricas: América Fabril e Stander Electric, respectivamente. Os prefeitos que estiveram à frente da cidade nos últimos dezesseis anos – e agora o atual prefeito – procuraram passar a imagem de que são empreendedores, algo para eles muito mais importante do que serem administradores. Os governos municipais procuram transformar a cidade em imagem publicitária, em produto-cidade, assim o city marketing cuidará de produzir imagens sínteses, já que não são mais apenas parcelas do solo que são vendidas, mas eles criam uma imagem de cidade que se refere a uma parte, mas que é vendida como se valesse como um todo. Durante os Jogos Pan-Americanos 2007, no Rio de Janeiro, as imagens que eram veiculadas na TV, pouco antes da entrada dos comerciais, eram as praias, o Corcovado, o Pão de Açúcar, a Lagoa Rodrigo de Freitas, o Maracanã; as imagens aéreas que se sucediam mostravam um Rio de Janeiro sem favelas, por exemplo. Grande parte dos projetos de revitalização, que alteram as características do lugar criando novas fronteiras urbanas, acaba levando a processos de gentrificação, que de certa forma não deixa de ser uma forma de espoliação. Cabe, aqui, fazer um breve esclarecimento acerca da expressão gentrificação, que nasce do termo inglês gentrification, cunhado por Ruth Glass (1963), para esclarecer o repovoamento, por famílias de classe média, que vinha acontecendo em bairros desvalorizados de Londres na década de 1960, levando à transformação do perfil dos moradores. Atualmente, usa-se gentrificação para falar da “revitalização”, da “recuperação” ou da “requalificação” (seja lá qual for a expressão) de locais degradados a partir de iniciativas públicas e privadas. Trata-se de um fenômeno de natureza multi-dimensional, que reúne modernização e deslocamento; ou seja, referimo-nos à modernização e à melhoria de antigos prédios associadas ao desenvolvimento de atividades culturais em determinadas áreas residenciais, levando ao deslocamento dos antigos moradores. A questão é que, após o investimento em infra-estrutura, há uma maior valorização do lugar; assim, observamos que os antigos moradores não resistem ao encarecimento do local, tendo que buscar outra área com custo de vida mais baixo. Se, inicialmente, a
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gentrificação ligava-se ao mercado residencial, o enobrecimento dos lugares acabou incorporando áreas de lazer com complexos culturais voltados também para o turismo. O geógrafo belga Mathieu Van Criekingen (2007) define dois tipos de gentrificação – residencial e de consumo – que levam à produção glamourizada do espaço através da maior sofisticação dos ambientes. A mídia exerce importante papel ao promover esses locais, ajudando a criar um discurso hegemônico acerca do lugar, que contribui cada vez mais para a atração de consumidores.5 Contradição explícita na cidade do Rio de Janeiro, em que, como em tantas no Brasil, o tema da habitação popular precisa ser retomado. Aliás, o programa de habitação esteve abandonado por muito tempo. No entanto, na década de 1990, embora constasse das promessas de campanha, o governo federal priorizou reformas no ensino. Lessa (2001, p. 395) faz dura crítica a isso, acrescentando que “o esforço nacional para enfrentar o problema social restringiu sua prioridade à educação. A educação para a cidadania é uma proposta digna, porém educação para a prosperidade futura é uma escamoteação do presente. Transporta, em última instância e subliminarmente, a afirmação de que os pobres são pobres porque não foram educados”. Isso é importante, pois essa “idéia projeta o problema do enfrentamento prioritário da questão social, no presente, para os resultados em futuro indeterminado e aberto à competição ampliada no mercado de trabalho”. Mantém, assim, longe do debate a luta pelo desenvolvimento de fato e pela necessidade de criação de novos e melhores postos de trabalho no presente. Nesse sentido, ganha força a ideia fortemente disseminada de que a globalização é um processo inexorável de acirrada disputa e que a cidade tem que ser mais competitiva para inserir-se no mercado mun-
5 A geógrafa Vanessa Jorge de Araújo (2009) traz importante contribuição a esse debate em sua dissertação de mestrado intitulada “Lapa carioca: uma (re)apropriação do lugar”. Essa autora apresenta três exemplos de cidades em que o processo de gentrificação se dá de formas distintas: Bruxelas, Nápoles e Barcelona. Na primeira, ter-se-ia dado pela valorização de áreas centrais com a construção de residências para consumidores de renda média, tratando-se “portanto de uma gentrificação residencial”; em Nápoles, o processo se deu pela valorização de sua imagem para os seus habitantes e para os turistas divulgando-a como “o maior museu aberto do mundo”, nesse sentido tratando-se de uma gentrificação de consumo; finalmente, em Barcelona houve um “modelo misto de renovação, com uma dupla gentrificação, tanto residencial como de consumo turístico”.
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dial. Tornar-se competitiva virou sinônimo de ter capacidade de atrair investimentos internacionais, porém para isso são necessárias grandes reformas estruturais para adaptar as cidades às exigências internacionais, o que leva as administrações públicas a assumirem custos altíssimos, que são socializados com toda a população. Os profissionais de publicidade contratados têm importante papel, já que elaboram discursos que dão sustentação aos projetos propostos. Procuram incutir no imaginário social, inclusive até no dos mais despossuídos e excluídos do seu usufruto, que esses projetos trarão mais “qualidade de vida” aos habitantes. Há de se perguntar: qualidade de vida para quem? No Rio de Janeiro foi comum ouvir – antes, durante e depois – que os Jogos Pan-Americanos 2007 foram bons para a cidade; bons para quem? O que ficou de benefício para os habitantes da cidade? É difícil identificar benefícios de fato. Mas falávamos, anteriormente, da necessidade de retomar o tema da habitação popular, para tanto se faz necessário retroceder até a década de 1960. À época, o Banco Nacional de Habitação (BNH), que existiu de 1964 a 1986, apontava dois grandes objetivos da política habitacional: alavancar o crescimento econômico através dos efeitos multiplicadores gerados pela construção civil; e atender a demanda habitacional da população de baixa renda. Se é possível afirmarmos, junto com o arquiteto Adauto Lúcio Cardoso (2001), que houve um boom imobiliário, não podemos afirmar que atendeu à população de baixa renda; aliás, houve crescimento de favelas e da periferia pobre. A especulação, no que se refere ao preço do solo urbano, dificultou o sucesso dos programas habitacionais – a propósito, como veremos em seguida, este continua sendo o grande problema para os programas habitacionais, vide o atual do governo federal (Minha Casa, Minha Vida), que passa pelo mesmo problema – e aproximadamente 50% das moradias construídas destinaram-se à classe média. Durante os anos 1960 e 1970, as experiências de remoção de favelas tomaram força, mas os custos políticos e sociais envolvidos não vinham surtindo efeito, pois os conjuntos habitacionais construídos não conseguiam manter as famílias removidas das favelas, muitas vezes devido à distância dos postos de trabalho e à falta de transportes coletivos eficientes, noutras vezes por causa do isolamento a que eram submetidas essas famílias, já que boa parte desses conjuntos habitacio-
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nais localizava-se em periferias distantes, sem qualquer infra-estrutura de comércio e serviços. O que se via era que boa parte dessas famílias retornava às favelas. Assim, a partir da segunda metade da década de 1970, foram postos em prática os “Programas Alternativos”, que se baseavam na autoconstrução. Na década seguinte, a Secretaria de Ação Comunitária cria linhas de crédito para atender as famílias de baixa renda (até três salários mínimos) através, novamente, de programas alternativos, dentre os quais, sistema de mutirão e de lotes urbanizados. Durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, na segunda metade da década de 1990, o ajuste fiscal promovido pelo Plano Real acaba por reduzir ainda mais os investimentos habitacionais, além disso, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) – grande financiador dos programas habitacionais – encontrava-se altamente afetado pela crise econômica, haja vista a grande informalização do trabalho. Durante esse período, os empréstimos habitacionais limitaram-se a atuação do setor privado ou dos empréstimos individuais, o que levou ao não cumprimento do objetivo principal, que seria o atendimento às camadas de menor renda. Importa lembrar, também, que a nova Constituição descentraliza as políticas habitacionais, o que acaba gerando uma troca de acusações por parte das três instâncias de governo acerca da falta de projetos habitacionais. Além disso, cabe lembrar que a renda das famílias de baixa renda cada vez mais estava associada ao trabalho informal, o que acabava levando à perda da capacidade de endividamento, já que não havia como comprovar os rendimentos. Por sua vez, o aumento do peso do custo do transporte no orçamento familiar acabava inviabilizando a periferia distante, contribuindo para o crescimento contínuo das favelas. Atualmente, estima-se que cerca de 1,5 milhão de pessoas vivam em favelas no município do Rio de Janeiro e que o deficit habitacional esteja na casa de 350 mil moradias. O secretário municipal de habitação, Jorge Bittar (do Partido dos Trabalhadores), em entrevista no mês de janeiro de 2009 ao Jornal do Brasil, afirmou que em quatro anos seriam entregues 100 mil moradias populares, acrescentando que o custo de cada uma delas estaria na faixa de R$40 mil. Evidentemente, esses números estão repletos de condicionantes: possibilidade de utilização de verba federal do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC);
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dos recursos específicos para a Habitação de Interesse Social (HIS); de maior volume do FGTS; e de um incentivo à parceria público-privada a partir do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que funciona como um leasing para famílias que ganhem até três salários mínimos, que pagariam um aluguel por 15 anos e ao final seriam proprietárias do imóvel. O próprio governo federal lançou, no ano de 2009, o programa “Minha Casa, Minha Vida” e o ministro das Cidades, Marcio Fortes, falou sobre o programa habitacional e sobre as ações do Ministério no âmbito do PAC. Segundo ele, a meta é construir um milhão de moradias para famílias com renda mensal até dez salários mínimos. Acredita que seria possível reduzir em 14% o déficit habitacional no país, estimado em 7,2 milhões de moradias, com investimento federal de R$ 34 bilhões. O principal foco, segundo o discurso oficial, está na população que ganha entre zero e três salários mínimos e, nesse sentido, do total de um milhão de moradias, 400 mil seriam destinadas a esse segmento. A prestação seria de no mínimo R$ 50, e, no máximo, 10% da renda do beneficiário, pelo período de dez anos, sendo o restante subsidiado por R$ 16 bilhões do Governo Federal. O programa habitacional também prevê a construção de 400 mil moradias para quem recebe entre três e seis salários mínimos, contudo as condições do financiamento serão diferentes, subsidiadas por R$ 2,5 bilhões do Governo Federal e R$ 7,5 bilhões do FGTS. O valor da prestação não poderia superar 20% da renda do beneficiário e o valor do subsídio individual variaria dependendo da localização do imóvel e da renda. Os financiamentos habitacionais para as pessoas que recebem entre seis e dez salários mínimos serão estimulados com o acesso a um Fundo Garantidor e com a redução dos custos do seguro. Todavia, há certas observações que se fazem necessárias, pois segundo o governo federal, a distribuição dos recursos dar-se-á de acordo com o deficit habitacional, mas isso, embora pareça lógico, significa dizer que haverá uma grande concentração nas regiões metropolitanas, que respondem por cerca de 28,5%. Há poucos esclarecimentos quanto à localização desses imóveis, visto que a regularização e a propriedade fundiária continuam sendo entraves para esses projetos, por isso, segundo as estimativas, um imóvel popular não sairia por menos de R$52 mil. Assim, torna-se claro que o planejamento é fortemente afetado pela
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oferta de solo urbano e seus parcelamentos, que dizem respeito a um jogo de forças que envolvem proprietários, especuladores imobiliários e as próprias instituições públicas. O governo federal afirma que depende da vontade dos governadores e prefeitos e de sua contrapartida para que o programa dê certo (o que, de fato, é verdade, mas que ao mesmo tempo deixa tudo muito aberto). Outro detalhe foi o lançamento desse projeto já no fim do governo Lula, o que levanta dúvidas quanto ao seu caráter eleitoreiro. O problema referente ao deficit habitacional, como já vimos em capítulos anteriores, acontece desde muito tempo no Rio de Janeiro e no Brasil como um todo (Graficos 1 e 2), e parecia difícil, já na época do lançamento do projeto, acreditar que seja possível construir um milhão de moradias nos últimos 18 meses de governo; parece que vivemos em um grande turbilhão de marketing. Gráfico 1. Déficit Habitacional do País concentra-se por renda
Fonte: IBGE – PNAD 2007.
Gráfico 2. Déficit Habitacional do País por região
Fonte: IBGE – PNAD 2007.
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Como é possível observar, o grande deficit habitacional concentra-se na faixa entre zero e três salários mínimos (90,9%), no entanto, segundo o programa divulgado pelo governo, apenas 40% das moradias destinar-se-ão a essa faixa de renda. A questão da habitação parece ser mesmo um tema recorrente quando se fala dos problemas da cidade do Rio de Janeiro, onde temos visto o crescimento das favelas, dos sem-teto e das ocupações de prédios abandonados, principalmente na área central da cidade. Aliás, no projeto idealizado para a zona portuária carioca, segundo os representantes do município, há espaço para a construção de habitações populares.
“Grandes projetos para a zona portuária” e a negociação entre as instâncias de governo e o empresariado Como já adiantamos anteriormente, vários prefeitos falaram da necessidade de realização de projetos para a zona portuária da cidade, contudo, com muita falácia e pouca ação, nada se fez por aquela área da cidade. De fato, a conteinerização contribuiu para a obsolescência de inúmeros armazéns, que sem uso e muitas vezes abandonados foram se degradando. Recentemente, em meados de 2009, foi realizada uma cerimônia no Píer Mauá, centro do Rio de Janeiro, que contou com as presenças do presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva, do governador Sérgio Cabral e do prefeito Eduardo Paes, em que foram assinados os acordos que dão andamento, oficialmente, ao projeto. A presença das três esferas de governo – que vem se repetindo constantemente: nas cerimônias para a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e para a apresentação da candidatura do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016, por exemplo – objetiva reforçar a união em torno do mesmo objetivo. No evento, foi divulgado que a revitalização da zona portuária teria como objetivo a atração de empresas, a melhoria da infra-estrutura turística do porto e um projeto habitacional para 499 unidades residenciais em 24 imóveis antigos dos bairros da Saúde e Gamboa, apoiando-se no programa federal “Minha Casa, Minha Vida”. A primeira fase do projeto conta com investimentos de US$ 187 milhões, dos quais 50% vem do governo federal, e refere-se à abertura de ruas e praças, ilumi-
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nação pública, recuperação de vias, drenagem, construção de garagens subterrâneas, jardins, quiosques e ciclovia. Falou-se que a revitalização beneficiaria algo em torno de 400 mil turistas, que anualmente chegam ao porto do Rio, e também os cerca de 25 mil moradores, que poderiam aproveitar as transformações para lazer e entretenimento. Os editais definem as regras para execução das obras para o projeto denominado “Porto Maravilha” (Figura 5), abrangendo 13 ruas e avenidas do perímetro urbano delimitado pelo Cais do Porto, Morro da Conceição, Praça Mauá e Avenida Barão de Teffé. O cronograma oficial aponta para dois anos a conclusão do novo acesso à área de cargas do porto pela Avenida Brasil, na altura do viaduto de Benfica (margeando o Canal do Cunha, passando sob a Linha Vermelha e atravessando o bairro do Caju), e ainda a demolição de uma rampa de acesso ao elevado da Perimetral em frente aos armazéns. Nessa primeira fase, a Praça Mauá seria reurbanizada e ampliada até a beira-mar, juntamente com reurbanização das principais vias de acesso (Avenida Rodrigues Alves e Rua Sacadura Cabral). O estacionamento subterrâneo seria sob a própria praça e teria capacidade para mil carros, mas seria administrado por uma empresa privada, por concessão. Após a desapropriação por decreto (devido a uma disputa judicial entre o fundo de pensão Porthus e a massa falida do antigo Banco Santos), o Palacete Dom João VI, também na Praça Mauá, transformou-se na Pinacoteca do Estado do Rio (MAR – Museu de Arte do Rio) e foi realizado em parceria com a Fundação Roberto Marinho. Segundo o próprio prefeito, foi depositado em juízo o valor da desapropriação, algo em torno de R$ 4,5 milhões e R$ 5 milhões. O museu, além de destinar-se a exposições, terá também uma escola de arte dirigida, principalmente, a crianças e jovens. O palacete funcionará acoplado ao prédio da Polícia Civil, que o ladeia sendo unidos por uma espécie de ponte. Segundo o projeto de lançamento, contará ainda com salas de aula, auditório, livraria, midiateca, restaurante e cafeterias. As obras foram concluídas e totalmente financiadas pela prefeitura. Outra localidade, bem próxima do Píer Mauá, que também receberá investimentos será o Morro da Conceição. Situado no centro antigo da cidade, com o casario em arquitetura colonial portuguesa, é visto como grande potencial para o turismo e sofrerá intervenções, como a sua rede elétrica, que passará a ser subterrânea, suas ruas, que serão
Fonte: baseado no projeto da prefeitura divulgado em 23/06/2009.
Figura 5. Projeto prevê modificações na legislação urbanística da zona portuária
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reformadas e o casario histórico, que será restaurado. Inclusive, consta do projeto a construção de um teleférico, que ligará o Museu de Arte do Rio (MAR) ao Morro da Conceição; as gôndolas partiriam do terraço e iriam direto ao morro, entretanto esta parte do projeto (ainda) não foi realizada. A história do Rio de Janeiro estará representada em exposição permanente e o teleférico fará com que a visitação saia das salas da Pinacoteca e chegue aos pontos históricos – então transformados em pontos turísticos prontos para serem “vendidos” – como a Pedra do Sal, a Fortaleza da Conceição, a Igreja de São Francisco da Prainha e o Observatório do Valongo. Contudo, perguntamo-nos se aqueles que lá moram, em um bairro tranquilo no coração da cidade, gostariam de ter seu cotidiano invadido por inúmeros turistas. Ou se ocorrerá ali o que já ocorreu em outros centros históricos, que depois de valorizados têm impossibilitado a permanência de seus antigos moradores no local. Mas estamos falando de parceria público-privada, o que aponta para o lucro como objetivo fim. A parceria público-privada será, mais uma vez, utilizada para a implementação do Museu do Amanhã, que, inicialmente, localizar-se-ia nos Armazéns 5 e 6 e no prédio da Polinter – que seria cedido pelo governo do estado ao projeto –, destinando-se a exposições interativas, com enfoque no tema da relação do homem com o planeta. Uma estratégia econômica, que se aproveita de um momento em que se fala de aquecimento global, de efeito estufa... A parceria entre as três esferas de governo ainda fez com que a União cedesse oficialmente a propriedade do Píer Mauá para o município, que, segundo o projeto, seria transformado, recebendo quiosques, chafarizes, pérgulas, anfiteatro e um espaço multiuso, tornando-se mais um parque para a cidade do Rio de Janeiro. Essa parceria mostrou-se importante, visto que a situação fundiária da zona portuária englobava as três instâncias de governo (Figura 6). Entretanto, pouco antes de serem iniciadas as obras, o projeto do futuro parque no Píer Mauá já foi alterado pela prefeitura da cidade. O próprio prefeito afirmou que a ideia anterior dará lugar “a um equipamento público desenhado por um arquiteto de renome internacional”. O arquiteto escolhido para a criação foi o espanhol Santiago Calatrava, que se destaca pelos projetos de extrema leveza e que se remetem a animais. Sendo assim, o Museu do Amanhã que se localizaria nos Ar-
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Figura 4.6. Situação fundiária da zona portuária
Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/ipp/
mazéns 5 e 6 (cedidos pela Companhia Docas) e no prédio da Polinter passará para o Píer Mauá (Figura 4.7). Acredita o prefeito, que o projeto tornar-se-á um marco da Terceira Cúpula da Terra (Rio+20) – evento que acontecerá no Rio, no final de 2012, e que terá como objetivo o engajamento dos líderes mundiais com o desenvolvimento sustentável do planeta (seja lá o que ele entenda por essa expressão!). O arquiteto espanhol foi o responsável pelo projeto da Gare do Oriente, em Lisboa; esse complexo, que engloba estações de metrô, ônibus e um centro comercial, foi construído para a Expo ‘98 Lisboa. O desejo do prefeito carioca vai ao encontro dessa máxima, que vê esses grandes projetos arquitetônicos de grande monumentalidade como alavancadores de investimentos para as cidades. Fica evidente, também, que procura aproveitar-se da sequência de eventos que movimentarão a cidade nos próximos anos: Jogos Mundiais Militares, em 2011; Terceira Cúpula da Terra (a Rio+20), em 2012; Copa do Mundo de Futebol, em 2014; e os Jogos Olímpicos, em 2016. Fica a pergunta: que será feito com os Armazéns 5 e 6 e com o prédio da Polinter?
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Figura 4.7. A imagem virtual transformada em paisagem: o Museu do Amanhã
Fonte: http://www.porto maravilha.com.br
A prefeitura acredita que o Museu de Arte do Rio (MAR) juntamente com o Museu do Amanhã, orçados em aproximadamente R$ 150 milhões, podem servir como “âncoras culturais” da iniciativa (Figura 4.8). Ao se afirmar que os dois museus serão realizados em parceria com a iniciativa privada, significa dizer, que as obras serão realizadas com recursos públicos do Ministério do Turismo e da prefeitura; já o conceito, a elaboração e a implantação estariam a cargo da Fundação Roberto Marinho. O convite teria sido feito, segundo o secretário-geral da fundação, devido ao histórico de projetos realizados, como os museus do Futebol e da Língua Portuguesa, em parceria com o governo de São Paulo. O empresário da Fundação informou que estavam elaborando, para o Rio de Janeiro, um conceito de museu que debata a relação do ser humano com o planeta, a sustentabilidade e o futuro da sociedade (até porque o Homem nunca produziu tanto conhecimento como nos últimos duzentos anos e, simultaneamente, produziu inúmeras ameaças a sua existência), mas para isso pretendem trabalhar com exposições interativas.
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O projeto do museu, anteriormente, previa a ocupação dos Armazéns 5 e 6 e do prédio da Polinter, então uma ponte, que seria construída sobre a Avenida Rodrigues Alves, ligaria o prédio aos armazéns. Ainda segundo o empresário da Fundação Roberto Marinho, fará parte do museu um fórum permanente – o Observatório do Amanhã – de debates acerca de questões que envolvam temas como clima, energia, saúde, água, alimentos, educação, habitação e conflitos sociais. O presidente da fundação, em discurso empolgado, afirmou que “no Brasil, o lugar ideal para a construção do Museu do Amanhã é o Rio de Janeiro, dono de beleza natural incomparável e palco de um marco histórico pela conservação da natureza, a Rio-92” (jornal O Globo de 21/06/2009). Durante a apresentação do projeto, foi divulgado que o Museu de Arte do Rio (MAR) teria consultoria de Leonel Kaz, curador do Museu do Futebol, e Paulo Herkenhoff, que foi curador do Museu de Arte Moderna (MAM) da cidade. O secretário geral da Fundação Roberto Marinho falava a todo momento que o sucesso da revitalização da zona portuária dependia de “intervenções-âncora”, cumprindo essa função esses dois museus. É também proposta do prefeito carioca, a transferência da Câmara de Vereadores – que, há quase 90 anos, ocupa o Palácio Pedro Ernesto, na Cinelândia, Centro do Rio de Janeiro – para a zona portuária. O Palácio passaria a abrigar o Museu Histórico da Cidade. Além disso, como criado em praticamente todas as grandes obras de transformação das zonas portuárias de outras cidades espalhadas pelo globo, há o projeto do AquaRio, o Aquário Marinho do Rio, que prevê a reutilização do antigo armazém frigorífico da Cibrazem, na zona portuária. O diretor-presidente do AquaRio, Marcelo Szpielman, afirmou que o fundo já está sendo formatado para ser submetido à aprovação da Comissão de Valores Mobiliários. Os investidores interessados, em troca do financiamento da obra, teriam participação na operação do empreendimento. O aquário teria cinco andares, sendo dois de visitação, dois de garagem e um terraço com restaurante panorâmico. Recentemente foi divulgado que um dos grupos que está investindo no empreendimento é a Coca-Cola, e que o início das obras estava previsto para o ano de 2010 (embora até hoje não tenha sido iniciado), com prazo de dois anos para a conclusão. Assim, de acordo com o diretor-presidente, tão logo o licenciamento seja liberado, será iniciada a demolição da parte interna
Figura 4.9. Projeto prevê arranha-céus de até 50 andares na Zona Portuária
Fonte: baseado no Jornal O Globo, 03/08/2009. A produção do espaço urbano do Rio de Janeiro 243
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do armazém, já que apenas a fachada, protegida por decreto municipal, será mantida.
Figura 4.8. Museu do Amanhã, que antes ocuparia Armazéns 5 e 6 e o prédio da Polinter no projeto original
Fonte: Jornal O Globo, 23/06/2009 (Custódio Coimbra). Na Imagem é possível vermos os Armazéns 5 e 6 reformados, o prédio da Polinter (do outro lado do Elevado da Perimetral) e, ao fundo, o Píer Mauá que acabou tomando o lugar dos armazéns para sediar o Museu do Amanhã, além, também, da Praça Mauá (localizada logo após o Palacete Dom João VI).
A concessionária que administra o terminal de passageiros da Praça Mauá, também anunciou investimentos para a área, acenando com a possibilidade de construir um complexo de 70 mil metros quadrados, com salas de escritórios e hotel na Avenida Rodrigues Alves, que seria erguido em um galpão arrendado à Concessionária Píer Mauá por 50 anos pela Companhia Docas, e que se localiza em frente aos armazéns três e quatro. Contudo, o projeto dependia de modificações na legislação urbanística, já que a área do porto estava até então definida, basicamente, como de atividade industrial; para isso precisaram ser aprovadas na Câmara de Vereadores as alterações. Bem, aqui começam a sur-
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gir os primeiros indícios de problemas. Sim, mas problemas para quem? Antes de qualquer coisa, sempre que grandes projetos chegam sem discussão preliminar à câmara, há necessidade de negociações junto aos líderes partidários com o infeliz, mas já conhecido, “toma lá, dá cá”. Um exemplo recente diz respeito à liminar que impediu o início do funcionamento do Instituto Europeu de Design (IED), no antigo cassino da Urca. Além disso, a Câmara dos Vereadores aprovou recente projeto do vereador Eliomar Coelho (PSOL), que tomba o prédio do cassino, permitindo apenas atividades culturais. Esse vereador acredita que o prédio não deve abrigar uma escola, devido aos graves impactos à circulação do bairro. Procurando resolver logo o imbróglio, o prefeito da cidade acenou com a possibilidade de transferir o IED para o Porto do Rio, contudo a direção do instituto não ficou satisfeita com a proposta. No jogo de forças estabelecido, ficou decidido que o prefeito entrará com recurso judicial para derrubar a liminar que impede o início do funcionamento. Aliás, parece-nos pertinente, agora que mencionamos o tombamento do prédio do antigo Cassino da Urca, fazer algumas considerações breves acerca do patrimônio construído. O patrimônio construído, infelizmente, exposto à lógica do capital corre o risco de desaparecer. Principalmente, porque essa expressão ou “patrimônio arquitetônico” remete a edificações “com assinatura” ou de caráter monumental, com uma carga simbólica e remetimento ao passado, que leva a uma significação histórica indiscutível, como nos lembra o historiador espanhol Francesc Caballé i Esteve (2003). No entanto, o que foge dessa característica leva, muitas vezes, a pessoa comum a não se incomodar com a derrubada de “prédios velhos e sem uso” (expressão usada por vários moradores da cidade ao se referirem aos antigos galpões e fábricas da zona portuária). Em se tratando da questão legal, os próprios órgãos responsáveis emitem definições generalistas (e, acreditamos, não há como não ser assim), que propiciam escolhas que se adequam aos interesses dos atores sociais envolvidos. No Brasil, o reconhecimento formal do patrimônio construído – tombamento – ocorre em três níveis: municipal, estadual e federal. Em âmbito federal, é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) que faz o reconhecimento do bem que deve ser tombado. Assim, temos definições como “construções representativas, que por seus estilos, época de construção, técnicas
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construtivas utilizadas, entre outros, são reconhecidas como patrimônio arquitetônico”; ou aquelas que afirmam que os tombamentos “têm como objetivo preservar bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo a destruição e/ou descaracterização de tais bens”. Portanto, impossível não concordar com a afirmação de Caballé (2003), quando diz que é justammente a partir dessas definições, que começam a aparecer os problemas. Sim, pois como se mede essa importância, esse interesse para a sociedade, “esse valor que implica a posteriori uma determinada política e ação de proteção?” A história da cidade do Rio de Janeiro tem mostrado que algumas vezes bens têm sido tombados inexplicavelmente – haja visto alguns prédios de apartamentos baixos do bairro do Leblon, na Zona Sul carioca, acerca dos quais alguns moradores afirmavam tratar-se de uma estratégia do prefeito, que se utilizava do tombamento para evitar a verticalização do bairro –, e em outras, prédios importantes são perdidos sem muito se lamentar, como por exemplo uma das poucas casas projetadas pelo arquiteto Oscar Niemeyer, no bairro de Botafogo, que foi demolida para dar lugar a um prédio de apartamentos. Estudar e analisar o patrimônio construído seria a maneira para determinarmos seu possível valor histórico, porém, de forma geral, o que se tem utilizado como regra, pode ser sintetizado na afirmação “não é singular, então não há interesse ou valor”. O mesmo Caballé (2003) afirma que não se deve julgar o que se desconhece, estamos de acordo com isso; o verdadeiro problema é que, as vezes, se quer desconhecer voluntariamente, pois assim a ignorância pode tornar-se extremamente rentável. Acrescenta ainda o historiador espanhol, que quando se fala em revitalização ou em reabilitação que venha a afetar o patrimônio construído, dever-se-ia buscar o máximo de informação acerca do objeto dessas intervenções. Entretanto, a cartilha reza que não há problemas em proteger igrejas ou palácios, mas acrescentar valor histórico a imóveis que se desconhece a singularidade e que pudesse dificultar a especulação, deve ser desconsiderado imediatamente. Os projetos têm privilegiado o valor especulativo e a busca de maiores lucros e dividendos eleitorais. O Rio de Janeiro tem tido pouco cuidado com seu patrimônio construído e o pouco caso, por exemplo, pôs abaixo também o Palácio Mon-
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roe na década de 1970. Obra projetada para a Exposição Internacional de Saint Louis, em 1904, e que foi premiada; foi a primeira vez que uma obra arquitetônica brasileira foi reconhecida internacionalmente6. Se grandes obras não têm recebido o devido cuidado, que dizer daquelas menos emblemáticas? Aliás, ao contrário do que deveria, os valores históricos dos imóveis são vistos pelos proprietários, promotores imobiliários e administração pública como empecilhos para a realização de seus projetos; o que aponta para o risco de perda de uma parte de nossa história. As construções localizadas na zona portuária estão sujeitas a esse risco, já que a administração pública apresentou o novo projeto de revitalização, denominado Porto Maravilha, e para angariar mais verba para o empreendimento pretende ter a ajuda da iniciativa privada. Acreditamos que os maiores problemas recairão sobre a população mais pobre que reside nos bairros da zona portuária; o que, em princípio, pode parecer contraditório, visto que no projeto da prefeitura, há lugar para construção de habitações. O que nos assusta é a maneira segundo a qual a prefeitura vai angariar verba para dar sequência à segunda fase do projeto. O próprio prefeito já afirmou que a sua meta é demolir o trecho do Elevado da Perimetral, que vai do Mosteiro de São Bento (próximo à Praça Mauá) até o armazém seis do Cais do Porto, construindo em seu lugar um mergulhão, ou seja, uma passagem subterrânea. Os recursos para a obra viriam do lançamento no mercado – por uma empresa municipal chamada Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio (CDURP) – de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC), os quais seriam títulos, que dariam aos empreendedores direitos de construção gerados pelas modificações na legislação urbanística da área. O próprio prefeito apresentou o projeto dos CEPAC, em que constava a criação dessa companhia, que receberia os terrenos das três esferas de poder localizados na zona portuária. Após a modificação da legislação urbanística, essa sociedade negociaria no mercado os CEPAC. A CDURP, então, será res6 Ao final da exposição o prédio foi reconstruído na Avenida Central, no Rio de Janeiro, em 1906. Segundo o carioca André Decourt, abrigou a Convenção Sul Americana, Câmara dos Deputados e finalmente o Senado. Foi demolido por ordem do General Ernesto Geisel (na ditadura militar) e teria tido a chancela de Lúcio Costa e do dono das Organizações Globo, Roberto Marinho. Para mais detalhes, ver http://www.almacarioca.com.br/monroe.htm.
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ponsável pelo controle da operação financeira de emissão dos CEPAC, que foram vendidos a partir do segundo semestre de 2010. Será, ainda, a instituição que administrará a também instituída Operação Urbana Consorciada do Porto do Rio, que, por sua vez, gerirá a segunda fase do Projeto Porto Maravilha. Em outubro de 2010 encerrou-se o processo licitatório para a execução da segunda fase do Projeto Porto Maravilha; o vencedor foi o Consórcio “Porto Novo”, formado pelas empresas Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia, que será responsável, durante os 15 anos de concessão, não só por realizar as obras de reestruturação urbana, mas também por gerir os diversos serviços públicos no âmbito daquele local. Essa Parceria Público-Privada foi apresentada pelo Prefeito Eduardo Paes como a maior Parceria Público-Privada do Brasil, sendo avaliada em R$7,3 bilhões. A Operação Urbana Consorciada (OUC) incorre em um conjunto de intervenções coordenadas pelo Município e demais entidades da Administração Pública Municipal em parceria com atores privados, configurando sua atuação mediante parcerias público-privadas. Ao que parece, trata-se de uma espécie de enclave territorial, já que aquela área passa a ser gerida de forma diferenciada do resto da cidade, colocando-se à parte da estrutura executiva municipal. Segundo a geógrafa Nana Vasconcelos Orlandi (2013), esse enclave territorial é “delimitado no art. 3° da LC n° 101/09, que criou e delimitou a Área de Especial Interesse Urbanístico da Região do Porto do Rio (AEIU), onde se concentrarão as ações da Operação Urbana Consorciada”. A utilização de instrumentos de marketing é imensa e a geógrafa lembra-nos ainda que o site Porto Maravilha, “além de uma diversidade de informações e notícias sobre o projeto conta com o ‘Canal do Investidor’, que oferece entre outras coisas uma ‘Calculadora de consumo de CEPAC’; a revista ‘Porto Maravilha’, com milhares de exemplares (...) distribuídos em diversos pontos da cidade”. Outro elemento que serve de propaganda para o empreendimento foi a inauguração de uma sala de exposição interativa denominada “Meu Porto Maravilha”, que inclui uma perspectiva histórica da zona portuária e apresenta imagens e projeções das intervenções em andamento. Trata-se de vídeos e projeções em 3D em que a prefeitura e a CDURP projetam como ficará a cidade após as obras, utilizando-se de manipulações e criando um novo imaginário sobre a zona portuária carioca.
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A prefeitura acenou com a revisão da legislação nos bairros da Gamboa, Saúde, Cidade Nova, Caju e da zona da Leopoldina, apresentando no projeto áreas de uso residencial, comercial, misto e de habitação social. Assim, ao adquirir os CEPAC, os interessados poderiam utilizar o potencial de construção gerado pelas alterações. O dinheiro auferido com a venda dos certificados, segundo representantes do governo, financiaria parte das obras de revitalização do Porto do Rio e, dentre elas, a demolição de parte do elevado da Perimetral, que consta dos planos previstos para a segunda fase do projeto. O prefeito afirmou, também, que o dinheiro gerado pela negociação dos CEPAC financiaria as obras de infra-estrutura urbana, orçadas em R$ 3 bilhões, em uma área de cinco milhões de metros quadrados, no entorno do porto. O investimento destinar-se-ia à adequação da área para atrair grandes empresas e grandes empreendimentos residenciais; para isso, seriam recuperados – ou, em parte, criados – 61 quilômetros de ruas e, também, haveria obras de urbanização e implantação de ciclovias, além da ampliação das redes de água e esgoto, energia elétrica, gás e telecomunicações; inclusive, a rede de iluminação seria totalmente subterrânea. A área contaria ainda com duas linhas circulares de Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que ligariam o porto à Estação Central e à estação Cidade Nova do metrô. É possível imaginar que os investidores esperados pelo governo somente interessar-se-iam pelo investimento nos Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC), se vislumbrassem um retorno financeiro apropriado. Nada mais lógico! E é justamente essa lógica, que nos faz acreditar que a mudança na legislação urbanística da zona portuária atenderá aos interesses dos possíveis investidores e não da população mais necessitada. Todo processo tem tido como objetivo a preparação da zona portuária para a demanda por empreendimentos comerciais, de entretenimento e residenciais, a começar pela aprovação da construção de arranha-céus de até 50 andares em determinados trechos (Figura 4.9), em troca de recursos para investir em infra-estrutura urbana na área, incluindo os bairros de São Cristóvão, Cidade Nova, Saúde, Gamboa, Caju, Santo Cristo e parte da Avenida Presidente Vargas e ruas internas, a partir do uso dos CEPAC. Nos terrenos incluídos no projeto do Porto, poderão ser construídos prédios residenciais ou mistos (também com aproveitamento como escritórios), universidades,
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supermercados, clubes, hotéis, hospitais e igrejas. Repete-se, no Rio de Janeiro, aquilo que temos observado em outras cidades ao redor do mundo, que fazem enormes e custosas obras de infra-estrutura – objetivando o crescimento de entrada de investimentos – e que se vêem obrigadas a fazer novos investimentos para viabilizar aquilo que foi construído inicialmente7. Pressionados pelo executivo municipal, os vereadores aprovaram um pacote de incentivos fiscais, que conta com isenção do Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) por dez anos àqueles que construírem na zona portuária nos próximos três anos. Outra medida do pacote beneficia os proprietários de imóveis preservados na Área de Preservação do Ambiente Cultural (APAC) dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, já que aqueles que fizerem obras de recuperação desses prédios, nos próximos três anos, receberão perdão das dívidas de IPTU anteriores a dezembro de 2009. Mas os incentivos não param por aí, há também a isenção do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) nas relações de compra e venda, além da isenção do Imposto Sobre Serviços (ISS) para empresas de construção civil que atuarem na área, também nos próximos três anos. Houve redução de ISS de 5% para 2% para hotéis e atividades de entretenimento e de educação. O núcleo central da cidade teve proibida a utilização de imóveis para uso residencial, até meados da década de 1990, o que acabou promovendo o esvaziamento da área após o horário comercial. Como apontamos no Capítulo 2, a expansão dos negócios em direção da Barra da Tijuca contribuiu ainda mais para a migração de empresas do Centro do Rio de Janeiro, o que levou à alteração da lei, permitindo então o uso residencial na área do núcleo central. A atual proposta de transformação da legislação de uso do solo na zona portuária traz, novamente, o risco de redução do uso residencial, desta vez, devido ao crescimento de empreendimentos imobiliários que privilegiem prédios de negócios, hotéis, restaurantes e de lazer. A pressão da academia e de alguns grupos organizados8 sobre os administradores públicos fizeram com que a É possível ver exemplos desses procedimentos em Harvey (2005; 2004; 2000; 1996b), quando apresenta as transformações urbanas em Baltimore, nos Estados Unidos. 8 Mais a frente, esclareceremos um pouco a presença de algumas mobilizações sociais no que tange à proposta de transformações na zona portuária. 7
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prefeitura apresentasse propostas de uso residencial para a área. Como observamos anteriormente, na Figura 4.4, há áreas previstas para uso residencial, para uso misto (residencial e comercial) e para habitação popular. Além disso, o projeto intitulado Segunda Fase de Reurbanização da Zona Portuária prevê que as empresas que optarem pela construção de prédios residenciais, poderão usufruir de 30% a mais em metros quadrados em comparação com os empreendimentos comerciais. Evidentemente, essa estratégia aponta para a possibilidade de balancear a população da área que sofrerá intervenção, evitando o predomínio de empreendimentos comerciais, entretanto, não há garantia de que o empresariado opte por tal opção. Historicamente, o empresariado carioca tem sido avesso ao investimento em moradias no Centro do Rio de Janeiro, tendo se concentrado na Barra da Tijuca e em bairros da Zona Sul. Fato que reforça isso é a concentração da maior parte dos equipamentos previstos para a Olimpíada de 2016 dirigirem-se para a Barra da Tijuca. O único grande empreendimento residencial construído recentemente na área central da cidade foi o condomínio Cores da Lapa (sucesso de vendas), mas que foi realizado por um grupo paulista. No material divulgado acerca do projeto Porto Maravilha, como pudemos observar anteriormente na Figura 4.4, vemos uma área destinada à implantação de habitações sociais, entretanto aquela já é uma área habitada por moradores de baixa renda, que se encontram nos bairros de Gamboa e Santo Cristo. Em outras áreas da zona portuária e adjacências – com extensão bem maior –, em que estão previstos usos residenciais ou de uso misto (residencial e comércio), não há previsão de habitações sociais. Aqui, mais uma vez, vemos um sério problema, pois se criticávamos o programa do governo federal “Minha Casa, Minha Vida”, que destinava um percentual pequeno aos financiamentos para a população mais necessitada de moradia (91% encontra-se na faixa de zero a três salários mínimos), o projeto Porto Maravilha sofre do mesmo mal. São tais constatações que nos levam a acreditar que os interesses dos proprietários fundiários e dos promotores imobiliários, além dos setores de comércio, têm sido privilegiados em detrimento das necessidades da população de mais baixa renda. Alem disso, na zona portuária há algumas favelas, inclusive uma delas localizada bem próximo da Ci-
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dade do Samba e dos Armazéns 5 e 6 (Figura 10). Todavia, não se cogita investir em melhores condições de vida para aquela população. Parte dessa área da cidade, como afirmamos anteriormente, tem característica residencial, constituída de imóveis de arquitetura colonial portuguesa. Alguns se encontram bem conservados, no entanto outros, bastante degradados (Figuras 11, 12 e 13). Há também no local, um importante e reconhecido hospital público federal: Hospital dos Servidores do Estado (Figura 14). Com 107.000m2 de área construída, conta com 450 leitos e Centro Cirúrgico com 20 salas em funcionamento; além disso, mantém mais de 50 serviços especializados e a Unidade Ambulatorial conta com 186 salas de atendimento. O hospital, que foi inaugurado em 1947, durante o governo do Presidente Eurico Gaspar Dutra, é um exemplo da arquitetura Art Deco no Brasil. Evidentemente, a zona portuária e suas adjacências precisam ser vistas com mais cuidado, e é necessário que se façam investimentos para a melhoria das condições de vida dos moradores do local. Como pudemos perceber, há, nessa área, várias habitações de população de classe média baixa e de baixa renda. Os moradores mais antigos do bairro, que vivenciaram um período de grande movimentação no porto e de Figura 10. O Muro da Cidade do Samba com a Favela do Morro da Providência ao fundo
Foto: Cláudia Orfaliais, 24/06/2009.
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Figura 11. Sobrados do início do século XX em bom estado de conservação na Gamboa
Foto: Cláudia Orfaliais, 24/06/2009.
Figura 12. Propaganda enganosa: a simulação é mais importante que a realidade
DE UNIDADES CONST RUÇÃO PAR A HABITACION AIS BAIX A RENDA POPUL AÇÃO DE
A propaganda de construção de unidades habitacionais para população de baixa renda afixada pela prefeitura na fachada do prédio (que já não tem mais telhado) está lá há mais de três anos e até então nada se fez. Foto: Cláudia Orfaliais, 24/06/2009.
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Figura 13. Conjunto arquitetônico do início do século XX com o Moinho Fluminense ao fundo
Este conjunto arquitetônico que se encontra em mal estado de conservação localiza-se em frente ao Hospital dos Servidores do Estado e é possível avistar um dos silos do Moinho Fluminense, que funciona ali e é responsável por um grande fluxo de caminhões de transporte de farinha que por lá circulam diariamente. Foto: Cláudia Orfaliais, 24/06/2009.
Figura 4.14. Hospital dos Servidores do Estado: exemplo de arquitetura Art Deco
Foto: Cláudia Orfaliais, 24/06/2009.
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empregos gerados pelas fábricas na década de 1950, são os mais preocupados com o abandono dos bairros. Houve importante êxodo residencial, comercial e industrial da área denominada zona portuária, assim o abandono de galpões e mesmo de residências permitiu a ocupação de vários deles por moradores de rua. Segundo pesquisa realizada, cerca de 40% dos entrevistados reside na área há mais de 20 anos. Segundo os dados do Instituto Pereira Passos, somando-se os moradores do bairro da Gamboa (10.490), Santo Cristo (9.618) e Saúde (2.186) temos um total de 22.294, em um total de 6865 habitações; o que não dá uma média de moradores por residência muito diferente de bairros como Ipanema (zona sul) ou Grajaú (zona norte): 3,25. Se acrescentarmos o bairro do Caju, o número de habitantes ultrapassa o número de 36.000 habitantes. Entretanto, em se tratando de escolaridade, aproximadamente 50% da população tem o ensino fundamental incompleto e 80% obtém rendimentos de até três salários mínimos. Como facilmente podemos constatar, trata-se de população de baixa renda e que seria a principal beneficiada por um programa habitacional sério. Para atender a esses quatro bairros, que fazem parte da 1ª Região Administrativa (RA) do município do Rio de Janeiro, existem apenas dois postos de Saúde da Família, que atendem apenas as famílias cadastradas, que moram nas favelas da área. Em se tratando de indicadores de saúde, por exemplo, o número de internações por doenças diarréicas agudas corresponde a quatro vezes a média da cidade, o que representa a precariedade da saúde infantil na região. No que tange à educação, a baixa oferta de vagas no ensino médio dificulta a permanência de jovens na escola, visto que os bairros da Gamboa, Santo Cristo e Saúde são atendidos por apenas dois colégios, que funcionam no turno da noite, já que durante o dia essas unidades funcionam como ensino fundamental. Outro índice preocupante é o de abandono no ensino fundamental, que chega a 5,38% dos alunos matriculados. Como vemos, a zona portuária e adjacências têm graves problemas a serem resolvidos, que vão de saúde e ensino públicos até a construção de habitações populares. Contudo, o empresariado só terá interesse em investir nos CEPAC se tiver, no horizonte, um retorno garantido para seu capital. Assim, sem uma organização da sociedade em torno de seus anseios para a área, muito provavelmente, a velha zona portuária da cidade transformar-se-á em uma cópia de outras denominadas revitalizações realizadas em
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outras cidades ao redor do planeta, e que podem não estar condizentes com as necessidades da população, pois sabemos que o capitalismo tem se reproduzido, produzindo novos espaços, entretanto o faz através de fragmentações e de segregação espacial.
Quem dá ouvidos à população? Que fazem os movimentos sociais? Estes questionamentos são de difícil resposta. Passamos, por cerca de duas décadas, por uma ditadura militar que restringiu muitíssimo a participação da sociedade nas decisões do governo, e, nesse período não eram permitidas as manifestações populares. Durante esse tempo, houve um afastamento da maior parte da população dos assuntos ligados às administrações públicas. Com o passar dos anos e o fim da ditadura, na primeira metade da década de 1980, havia uma efervescência no povo brasileiro, uma movimentação social grande, que passava pelas associações de bairro, pelo nascimento de novos partidos políticos e pelos sindicatos de trabalhadores. Entretanto, na década seguinte essa mobilização arrefeceu-se. Denúncias de corrupção de políticos, troca-troca de partidos, o impeachment por corrupção do primeiro presidente eleito, diretamente, após a ditadura – Fernando Collor de Mello –, de alguma forma contribuíram para a implementação de um discurso de que política era coisa de pessoas mal intencionadas. É preciso que tenhamos em conta que a política não se limita ao que fazem os políticos eleitos, sendo uma atividade extremamente importante e que diz respeito à atividade do cidadão quando intervém nos assuntos públicos com sua opinião, voto ou por qualquer outra forma de manifestação. Certa vez, ouvi uma observação vinda de um motorista de táxi: “a política é importante demais para se deixar apenas nas mãos dos políticos”. Acreditamos ser importante reivindicar a função política dos cidadãos, pois toda a vida é política e a transformação somente é possível através dessa atividade. É preciso que tenhamos a consciência de que é necessária nossa participação nas questões que dizem respeito à coletividade, é preciso que nos sintamos responsáveis e pertencentes a um grupo social, que vive em determinada rua, em determinado bairro, cidade, país...
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O marketing e a publicidade de que falamos anteriormente em relação às cidades, são também usados pelos políticos, que cada vez mais se afastam da população. Os meios de comunicação servem para informá-los dos desejos do eleitor. Nesse sentido, os telejornais acabam tornando-se os produtores da agenda política e definem também as conversas que serão travadas na manhã seguinte pelos telespectadores. São esses mesmos órgãos de imprensa, que afirmam que a população carioca aprovou a realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007, ou que é a favor das Olimpíadas de 2016 na cidade, ou, ainda, que aprova o projeto de revitalização proposto pela prefeitura. Para escapar desse labirinto de (in)certezas, é preciso que sejam criadas formas de participação cada vez mais fortes e que contribuam para construirmos cidades, que verdadeiramente representem o desejo dos cidadãos. Mas para isso, convém trazer para o debate a questão dos movimentos sociais e para que servem eles. Vivemos em uma grande cidade, e é comum ouvirmos falar na necessidade de restabelecer a ordem, inclusive o prefeito Eduardo Paes iniciou sua administração propondo choques de ordem. Quando se fala em restabelecer a ordem, é porque há desordem e aí as (in)certezas do labirinto crescem bastante. Habituamo-nos a entender a ordem através do viés do engenheiro e dos arquitetos, um ordenamento que se mostra na organização dos quarteirões, ruas, sinais de trânsito, nas praças e na segurança pública. Lembra-nos a geógrafa Júlia Berezovoya Assis9 (2008, p. 15), que para alguns, “a desordem pode ser o comércio informal dos camelôs, as moradias populares nas encostas dos morros, a prostituição. Para outros, a desigualdade, a densidade demográfica, o desrespeito aos moradores de rua”, ou também o preconceito contra os moradores de favelas. Importa, antes de tudo, ter em mente que para falarmos de movimentos sociais, torna-se necessário partir do cotidiano, que engloba grupos organizados, valores, meios de produção, lugares de encontro e de conflito, diferenças... Assim, afastamo-nos do discurso que associa relações de poder apenas ao Estado; o poder é multidimensional, visto A geógrafa desenvolveu interessante dissertação de mestrado, na qual discute as estratégias territoriais das associações políticas do bairro de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro. 9
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que as relações sociais são relações de poder. Se acrescentarmos a esta afirmação, o fato de serem as relações sociais também relações espaciais, o grau de complexidade torna-se ainda maior. Nesses termos, não há dúvida: onde há poder, há também resistências. Todavia, o Estado exerce papel diferenciado nesse jogo, pois é uma instância de poder separada do restante da sociedade, por configurar uma divisão estrutural entre dirigentes e dirigidos. Esse fato, faz com que o geógrafo Marcelo Lopes de Souza (2006, p. 39) afirme que, associando a forte correlação entre o exercício do poder estatal, a reprodução de privilégios econômicos e a exploração de classe, percebamos que “o Estado é uma instância não somente de poder, mas de dominação”. Neste ponto, acreditamos que a sociedade civil tenha um papel fundamental, mas é necessário que ultrapasse apenas a crítica (quando muito...) e se constitua numa opositora aos projetos conservadores. Sabemos que o espaço é um produto social e, nesse sentido, produzido com certas intencionalidades, o que nos faz acreditar, que é preciso que a sociedade civil elabore suas próprias propostas e lute por sua implementação, independentemente dos mecanismos elaborados pelo Estado. Alias, Souza (2006, p. 273) acredita que a sociedade deve gestar “suas próprias propostas e, à revelia do Estado, apesar do Estado e contra o Estado, [deva buscar] concretizá-las”. Em cada período histórico são construídas formas espaciais que dêem sustentação ao modelo vigente; assim, mesmo as decisões sendo econômicas na base, são sempre opções políticas. Neste livro, não entraremos no debate travado pelas principais correntes teóricas e sua conceituação de movimentos sociais10, partiremos da percepção de movimentos sociais urbanos como aqueles que se colocam em oposição à determinada situação do cotidiano, tentando – a partir de sua organização – transformar aquilo que lhes aflige, podendo para isso usar a força ou a coerção. Essa é uma percepção generalista, pois em se tratando da história recente brasileira, os movimentos não têm feito uso da força. Ao que nos tange, as mobilizações têm se concentrado na pressão ao poder público para Segundo a literatura, as principais correntes teóricas classificam movimento social a partir das abordagens estrutural, cultural e institucional. Tais abordagens e seus desdobramentos podem ser encontrados, dentre outros, em Regina Bega dos Santos (2008), Maria da Glória Gohn (2007; 2008), Ilse Scherer-Warren (2005). 10
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conseguir suas reivindicações. Quando pensamos em movimento social, referimo-nos a uma ação coletiva decorrente de uma luta social, política, econômica ou cultural. Temos em conflito, aliados e adversários, que procuram se mobilizar através de diversas práticas espaciais, fazendo uso de inúmeras formas de ações comunicativas, desde as mais diretas até as que se utilizam das mais avançadas tecnologias de comunicação e informação. É possível afirmarmos que, de certa maneira, os movimentos sociais são a expressão de um conflito de classes e, assim, podem ter um caráter defensivo ou contestatório. Grande parte das ações coletivas que se põe em curso atualmente, apresenta-se sob a forma das denominadas Organizações não Governamentais (ONGs); o que de certa maneira interfere nos movimentos de reivindicação, já que parte da população comum acredita, inclusive, que tais organizações poderiam ser consideradas movimentos sociais. Entretanto, isso não é verdadeiro, pois uma característica fundamental dos movimentos sociais é nascer de uma vontade coletiva, representando, segundo a cientista política Maria da Glória Gohn (2008), ao mesmo tempo um conflito social e um projeto cultural, além de ser uma forma de pressão política. As ONGs, devido à necessidade de recursos financeiros para levar adiante sua ação, acabam por se alinhar com as instituições governamentais a partir de projetos sociais, tendo, em contrapartida, que seguir uma série de normas, que acabam por descaracterizar e enfraquecer esse tipo de ação política. Ou seja, ao contrario dos movimentos sociais, que surgem espontaneamente a partir de uma convergência, de uma vontade coletiva de transformação, as ONGs se organizam de cima pra baixo, e muitas delas acabam por se comportar como verdadeiras empresas. Os movimentos sociais procuram pressionar o governo, apresentando-se como forças centrais da sociedade. Há grupos que imprimem às suas bandeiras, um caráter de luta contra o Estado e as instituições constituídas, partindo para a luta por uma sociedade mais igualitária e para a transformação do sistema político. O tratamento de temas ligados à igualdade e à diferença têm feito parte da pauta reivindicatória. O sociólogo francês Alain Touraine (1997) acredita que a noção de movimento social só é útil se permitir pôr em evidência um tipo de ação coletiva que coloca em questão uma forma de dominação social. Por outro lado, há movimentos de âmbito apenas reivindicatórios, que terminam logo após a conquista do objetivo. Quando nos referimos
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aos movimentos sociais urbanos, temos de ter em conta sua diferença em relação àqueles de caráter mais universais, já que, em geral, estão ligados à luta por moradia, pela melhoria de serviços públicos, como transporte coletivo de qualidade, etc. Fato é que não precisaria ser assim; aliás, pelo contrário. Melhor seria pensarmos em movimentos que, em sua luta, levassem em conta o curto, médio e longo prazo em suas reivindicações pelo direito à cidade. Dessa maneira, incorporaríamos aos movimentos sociais urbanos clássicos, outras lutas também fundamentais e complementares, que envolveriam movimentos por direitos universais, ambientalistas, de gênero, étnicos, religiosos... Estaríamos aproximando-nos do verdadeiro direito à cidade e ao direito de pensar e construir uma outra cidade. A geógrafa Regina Bega dos Santos (2008) faz uma aproximação interessante, que explicita a inter-relação entre as reivindicações, pois um movimento feminista pode lutar pela ampliação e construção de creches, “para que as mulheres, que também são mães, consigam trabalhar em uma atividade remunerada, importante para a libertação do patriarcalismo imposto economicamente pelo marido”. Isso é importante, pois sugere a saída de uma luta apenas reivindicatória simples – mas real e necessária – para um espaço de luta social. Perfeito. Mas como escapar da possibilidade de cooptação dos movimentos sociais pelo governo estabelecido? Alain Touraine (1989) acredita que, entre uma miríade de limitações aos movimentos sociais, sua subordinação à ação do Estado caracteriza-se como uma das mais evidentes. No Brasil, saímos, na década de 1980, de uma ditadura militar que durou, aproximadamente, duas décadas; ou seja, a própria vivência e construção dos movimentos sociais é frágil. Muitas vezes, um partido político que chega ao poder e aponta transformações e possibilidades de participação popular em sua gestão, contribui, simultaneamente, para a cooptação dos movimentos sociais a partir de sua burocratização. Nesse sentido, não se estaria modificando a estrutura estabelecida. Além disso, é necessário perceber que os problemas que, em princípio, podem parecer locais, ligam-se a questões estruturais de âmbito global. A (re)produção do espaço dá-se a partir de intencionalidades construídas pelos e para os grupos hegemônicos. O discurso do localismo contribui para ocultar essas intencionalidades; e a maior parte dos citadinos não se vê ou não consegue participar das decisões
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sobre o seu cotidiano, além de não perceber sua inter-relação com outros problemas, que atingem outras reivindicações. Perseguindo ainda a importância da participação da população no planejamento e na transformação das cidades, após muitas negociações e adiamentos, o Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Cidade. Consta nas diretrizes do Estatuto, que os planos diretores devem contar com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos econômicos. O Estatuto criou regras para garantir a função social da propriedade11, o que implica dizer, que o proprietário não pode usá-las, por exemplo, como reserva de valor. Ademais, obriga a prefeitura a fazer audiências e consultas públicas quando for tomar alguma decisão importante para a cidade. O Estudo de Impacto de Vizinhança pode ser solicitado pelos moradores quando uma grande obra é projetada para determinada região. Entretanto, para por em curso o Estatuto da Cidade é necessário que o Plano Diretor seja cuidadosamente elaborado, pois será através dele que encontraremos as determinações quanto ao bom uso das propriedades. Há algumas maneiras de pressionar o proprietário que tem um imóvel que não está cumprindo uma função social: parcelamento e edificação compulsórios (prazo de dois anos para dividir o terreno, construir ou reformar seu imóvel); Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo (caso o proprietário não cumpra a lei, terá seu IPTU dobrado a cada ano enquanto não cumprir a lei); desapropriação (se o dono do imóvel pagar IPTU progressivo durante cinco anos e não der um uso social ao seu bem, perde a propriedade; pago pela prefeitura através de títulos da dívida pública, só recebendo o montante total após dez anos). Há, também, outras possibilidades interessantes, como as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que correspondem à reserva de espaço para moradia popular em áreas com boa infra-estrutura. Isso facilita a reserva de terrenos ou prédios vazios para moradia popular, a regularização de áreas ocupadas e de cortiços. Quando se fala sobre a importância do Estatuto, é comum ouvirmos que os cidadãos têm o direito e o dever de exigir que seus governantes Marcelo Lopes de Souza (2005) apresenta importante debate acerca da incorporação, na Constituição Brasileira de 1988, de um pequeno capítulo com dois artigos abordando a reforma urbana.
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encarem o desafio de intervir concretamente sobre o território. Em geral, a forma de participação dá-se através da procura de um movimento social, sindicato ou associação de bairro; mas não somente assim, pode também acontecer a partir de coleta de assinaturas com propostas de planos ou de alterações nas leis da cidade. Tais propostas seriam discutidas e votadas na Câmara de Vereadores. Em um momento em que boa parte dos pesquisadores aplaude a aprovação do Estatuto da Cidade no Brasil, importa refletirmos até que ponto o “direito e o dever” do cidadão não estariam correndo o risco de serem, utilizando a expressão cunhada por Souza (2006), “domesticados”; ou seja, até que ponto o discurso em defesa dos orçamentos participativos, a participação no âmbito de institucionalidades como conselhos gestores não acabaria por “desarmar” os ativismos? Entretanto, o próprio geógrafo afirma também que “as ações do Estado (...) podem representar avanços reais em matéria de conquistas materiais, de disparidades sócio-espaciais e, mesmo, excepcionalmente, de expansão da consciência de direitos e práticas de organização popular” (2006, p. 174). Paradoxos. Contudo, muito antes da aprovação do Estatuto da Cidade, a socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (1990) levantava a importância de percebermos a reforma urbana para muito além dos planos diretores; visão premonitória, já que presenciamos uma homogeneização dos planos diretores, indicando a sua própria mercadificação. Em tempos de mobilizações cada vez mais isoladas, que procuram reivindicar questões extremamente particulares, sem nenhum outro desdobramento, talvez fosse importante pensar em novas formas de associação entre as várias mobilizações, na busca de uma transformação mais abrangente. Nesse sentido, estamos nos remetendo àquilo que o geógrafo David Harvey (1996; 2000) apresentou como o “embate” entre particularismos militantes e lutas de ambição global. Não estamos negando a importância das mobilizações mais próximas do cotidiano dos citadinos; longe disso, já que são movimentos ligados à ordem próxima, apenas acreditamos ser importante irmos para além deles. É preciso escapar das armadilhas que propostas, inicialmente vistas como grande avanço, podem representar. A associação capital-Estado usa o espaço de forma a assegurar o controle dos lugares, através da homogeneização do todo e a segregação das partes. Assim, a “organização espacial” representa a hierarquia do poder, que procura fazer as transformações
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necessárias para dar sequência ao processo. O projeto para a zona portuária carioca trilha a mesma lógica, e faz uso da construção do discurso – fortemente apoiado e divulgado pela mídia – de que as modificações serão benéficas para todos, sejam moradores do local ou não. A proposta de transformação da zona portuária, ao contrário do discurso, corre o risco de produzir novas seletividades e afastamentos sociais, promovendo repetição em série de modelos tidos como bem sucedidos. Referimo-nos à produção de espaços públicos, que podem se tornar cenários para uma sociabilidade fictícia. Todavia, a disseminação de discursos elogiosos e suas imagens correspondentes são instrumentos fundamentais para a promoção e legitimação desses novos projetos de cidade, nos quais a cultura e o lazer mercadificados são promovidos como pólos de atração turística e geradores de renda. Esses modelos não são dados objetivos e consensualmente aceitos, mas socialmente construídos. Nas palavras do filósofo Henri Lefebvre (2008, p. 127), “tais projetos parecem claros e corretos porque são projeções visuais sobre o papel e sobre um plano de um espaço, desde o início, postiços.” Contudo, cada lugar apresenta sua singularidade e nos bairros relativos à zona portuária não seria diferente. Os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, em sua história, apresentam fatos que, muitas vezes, se confundem com a própria história da cidade do Rio de Janeiro: representaram fragmentos, testemunhos de resistência; mas também testemunhos de esquecimento, de ritmos diferentes de desenvolvimento do capital e de organização da vida social frente à tendência de homogeneização. Nesses bairros, a pesquisadora Nana Vasconcelos Orlandi (2009), participante de nosso Núcleo de Estudos e Pesquisa em Espaço e Metropolização (NEPEM), deparou-se com duas principais formas diferentes de organizações coletivas, que se originaram frente à preocupação com a iminência da concretização do Projeto de Revitalização da Região Portuária. A primeira denominava-se “Porto Cultural”, agregando diferentes grupos ligados a atividades culturais localizadas naqueles bairros, entre blocos de carnaval, escolas de música e grupos de teatro, além de membros de algumas associações de moradores, como, por exemplo, a do Morro da Conceição. Os encontros visam a debater o projeto, buscando formas de inserção nas ações por ele propostas. Dentre os grupos participantes identificamos a Escola de Percussão Batucadas Brasileiras, o Afoxé Filhos de Gandhi, o bloco carnavalesco Vi-
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zinha Faladeira, o grupo de teatro Grande Companhia de Mystérios e Novidades e etc. Se durante a conversa com representantes desses grupos ficou a impressão de que os debates não tinham avançado muito – já que alguns impasses surgiram devido ao foco no desenvolvimento cultural de alguns grupos e as diferentes demandas por parte dos moradores – , acreditamos que esses espaços de debate sejam fundamentais e enriquecedores, já que com o passar do tempo, podem gerar ações que representem a contra-racionalidade do lugar. Outro grupo tem se reunido no Centro Cultural José Bonifácio, com o nome de Reunião de Moradores e Gestores da Região Portuária. Esse grupo é formado por, aproximadamente, trinta pessoas, que se dividem entre integrantes dos grupos culturais que atuam na região, ativistas sociais, integrantes das ocupações de sem-teto e antigos moradores dos bairros. Há um sentimento de insegurança nos depoimentos, já que o projeto não foi esclarecido para os moradores, que há anos e diariamente produzem tais espaços. O medo é que esses empreendimentos levem à valorização dos bairros, inviabilizando a permanência dessa população, que tradicionalmente fez desses espaços o locus de reprodução de suas vidas. Segundo Orlandi (2009), um dos pontos que mais chama atenção é a preservação da memória dos bairros, onde nasceram a primeira escola de samba (Vizinha Faladeira), o Clube de Regatas Vasco da Gama e onde está localizado um cemitério de escravos, que hoje faz parte do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), criado e mantido por uma moradora da Gamboa. Nas proximidades do Centro Cultural José Bonifácio, foi possível encontrar o antigo diretor do centro e ex-presidente da antiga associação de moradores da Gamboa, Renato Branco, conhecido por todos, professor de música, dança, fundador do Partido Democrático Trabalhista (PDT), o qual acredita que a falta de interesse dos moradores perante os projetos da prefeitura dá-se “de um lado, porque os nordestinos vieram para cá e não se preocuparam em estabelecer um vínculo com o lugar, por outro lado, porque a prefeitura, não incentiva nada, nenhuma participação”. Se procurarmos pela existência de associações de moradores, é possível encontrar dezesseis do Caju até a Saúde, entretanto, nenhuma ativa. Diante da aparente inevitabilidade de implantação do projeto de transformação e da força dos agentes que estão sendo chamados a participar desse projeto, na Reunião de Moradores e Gestores da Região
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Portuária surgiu a ideia de criar o Conselho de Gestores da Região Portuária, que seria um instrumento através do qual seria possível unificar as demandas, para que, a partir de representações locais, se tentasse integrá-las aos projetos para a região. Nesse sentido, a unificação das demandas em cada área – saúde, educação, trabalho, lazer e etc. – seria fundamental para que tais reivindicações apresentassem peso social frente ao poder público. Os traços de participação dos moradores, através da existência das reuniões no centro cultural, para elaboração de projetos a serem enviados ao Instituto Pereira Passos, é uma primeira tentativa. No entanto, não há contato formal com a prefeitura ainda; segundo o ex-diretor do centro cultural, “estamos brigando, são só projetos. Como sempre, acredito que tudo será de cima pra baixo”. Os moradores e os comerciantes da zona portuária dividem-se entre descrença e desconhecimento do projeto Porto Maravilha. Questionado acerca da tal revitalização da zona portuária, um casal de moradores, há mais de 45 anos no local, afirmava que somente sabia da revitalização pela TV. Outros diziam ouvir falar sobre isso desde a época do prefeito César Maia, mas não sabiam exatamente o que pensar, pois acreditam que “o governo deve demolir e reconstruir tudo; o que deixa todos apreensivos e curiosos”. Dentre os comerciantes, há quem acredite que “vai ser muito diferente, vamos ter mais vida nesse lugar. Aqui, só o samba é que dá vida.” Em relação à associação de moradores, alguns moradores e comerciantes afirmaram que havia “um cara que tentou montar há um tempão atrás uma associação, mas eu não queria nem quero nada com essas associações, esses caras são muito pilantras”. Outros dizem que até acham importante a existência de uma associação, desde que seja ativa. Aqui é possível percebermos como aqueles que se mobilizam e muitas vezes “fazem discursos meio revoltados” (segundo alguns moradores), muitas vezes são vistos como baderneiros. Há uma espécie de “criminalização” das mobilizações... o que contribui ainda mais para seu enfraquecimento. Em relação aos problemas levantados pelos habitantes da zona portuária, foram citados “a falta de polícia, enchentes e presença de lixo em praça pública”. Um morador, que vive no local há 31 anos, reclamava do descaso do pessoal da prefeitura, que não aparece para lhes esclarecer acerca do que irá acontecer. Além disso, afirmava ter ouvido que “vão
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retirar a rodoviária intermunicipal”, e que não sabia “para onde o povo vai”. Não concorda com o processo de revitalização, pois acredita que “deve ser coisa pra inglês ver”. Um morador, há 38 anos no local, afirma que “a única mudança nesse bairro sempre foi assim: nenhuma mudança”. Também é contra a revitalização, pois “a obra deveria ser para o bairro. Os empregos tinham que ser para o pessoal daqui”. Entretanto, nenhum deles disse participar de qualquer associação para lutar pela implementação de suas idéias. Todos têm reclamações quando perguntados, porém ninguém procura qualquer forma de mobilização, pois acreditam que isso é coisa para os especialistas, afinal “eles se prepararam para isso”... Todavia, mostram-se empolgados quando aventam a possibilidade de valorização de seus imóveis, talvez, sem saber que a valorização do solo pode contribuir também para a inviabilização de sua permanência e de seus vizinhos na área. Mesmo sabendo que no Morro da Conceição houve algumas reuniões, na Igreja, para se discutir a proposta de transformação da zona portuária, a grande maioria das pessoas disse não ter participado, por não acreditar que isso faria alguma diferença. Entretanto, há sinais de alguma forma de organização, que inclusive acontece em um tradicional bar da Gamboa, o Cais do Pão. Reuniões com a presença de moradores acerca do projeto para a zona portuária, mas sem qualquer vínculo com a prefeitura, apontavam para o desejo de participação nas decisões, apesar de não saberem como poderiam se engajar. Outros grupos de artistas e músicos também têm se reunido, mas são sempre atos isolados, com número muito pequeno de participantes, o que acaba contribuindo para a não continuidade dos encontros, ou, ao menos, para a presença sempre inconstante dos participantes. Assim, encontros que poderiam dar origem a uma possível rede de resistência, acabam não se realizando. Há alguns exemplos importantes acerca do surgimento dessas redes, que procuram desenvolver suas ações centradas na arte, cultura e comunicação12. Evidentemente, todas essas dificuldades estão ligadas à característica – tão metamórfica – do modelo capitalista, que se reproduz produzindo novos espaços, em que A dissertação de Mestrado da geógrafa Ananda de Melo Martins (2009), intitulada “Rede de Resistência Solidária: resistência e cotidiano na luta pelo direito à cidade em Recife-PE”, é um exemplo importante desse debate. 12
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a segregação espacial é cada vez mais intensa. A (i)mobilização acaba se dando no âmbito da opção, ainda que inconsciente, pelo direito à cidade “real” (ou àquela que nos é vendida como sendo a cidade real), em que a urgência liga-se às questões da sobrevivência e da falta de tempo, em vez de optar pelo direito à cidade enquanto obra, em que buscamos alcançar a concretização de resultados, que reflitam uma cidade mais justa e mais humanizada. Estamos nos referindo ao direito à vida urbana, transformada no lugar do encontro, em que o valor de uso sobreponha-se ao valor de troca e em que a produção do espaço se realize para os cidadãos. O geógrafo Milton Santos (1996) acredita que as tentativas de mobilização devem ser construídas historicamente e fortalecerem-se no cotidiano através de infinitos debates – estamos nos referindo àquilo que denominou solidariedade horizontal –, que levariam a ajustes inspirados na vontade de reconstruir, em novos termos, essa própria solidariedade. Entretanto, essa luta torna-se árdua, já que vai de encontro à solidariedade vertical, que agrega os atores hegemônicos, dificultando qualquer possibilidade de articulação e criação de redes de resistência. No entanto, ainda assim, tais mobilizações são muito importantes, pois como nos lembra Santos (2000, p. 132), “é dessa forma que, na convivência com a necessidade e com o outro, se elabora uma política, a política dos de baixo, constituída a partir das suas visões de mundo e dos lugares. Trata-se de uma política de novo tipo, que nada tem a ver com a política institucional.” Entretanto, há contradições mesmo entre aqueles que se localizariam no âmbito da “política dos de baixo”, como pode ser percebido através do outro exemplo de impasses trazido por Orlandi (2009), quando nos fala do preconceito existente por parte dos moradores, em relação aos integrantes de ocupações em prédios abandonados; o que faz com que aqueles que lutam contra o processo de exclusão acabem por ter ideias segregadoras. Retomando o debate acerca do Estatuto da Cidade, convém afirmar que mesmo tendo na proposta (e na aposta) da participação popular sua força, mantém-se preso às racionalidades técnicas e às associações entre o Estado e os proprietários e investidores, já que o “direito à cidade” aparece – como bem argumenta a geógrafa Ana Fani Alessandri Carlos (2005) – através da realização da função social da propriedade e não na sua negação como fundamento da segregação na cidade.
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Cabe ressaltar que a possibilidade de participação popular no debate acerca de projetos da magnitude do Porto Maravilha não é excluída por parte do poder público. Pelo contrário, o Estatuto da Cidade e o plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro prevêem, explicitamente, que somente assim poder-se-ia construir um espaço, que atenda aos anseios e demandas da população. Inclusive, o plano diretor da cidade prevê um instrumento denominado Relatório de Impacto de Vizinhança, que acabou sendo ignorado pelo governo municipal. Esse instrumento destina-se à avaliação dos efeitos negativos e positivos decorrentes da implantação de um empreendimento econômico no local, visando à identificação de medidas para a redução, mitigação ou extinção dos efeitos negativos. Existem leis, instrumentos legais e previsão de participação da população na decisão do futuro da cidade, entretanto a mobilização tem sido aquém do necessário. Embora não objetivemos aprofundar o debate, convém lembrar que houve grande mobilização da população na década de 1980 (pós-ditadura militar), no entanto acreditamos que a derrota da esquerda nas eleições de 1989, juntamente com a instauração de um governo de cunho neoliberal tenham contribuído bastante para o crescimento de um viés individualista e para a posterior desmobilização da população. Até mesmo um exemplo enaltecido por todos, como o orçamento participativo (em Porto Alegre), que tem dinamizado a sociedade civil, de alguma forma contribui, simultaneamente, para mantê-la presa a uma agenda que é determinada pelo Estado. Isso é grave, pois faz a sociedade acreditar que as determinações têm partido dela, quando de fato, muitas vezes, não têm. Não podemos perder de vista a autonomia, a capacidade de imaginar outra possibilidade de cotidiano, de cidade, de mundo. A possibilidade de mobilizações para a transformação do espaço urbano deve ter no horizonte ações de curto, médio e longo prazo, inclusive porque o contato constante para debates acerca dos problemas que afligem a população, podem ajudar a construir um senso de participação de cunho político-pedagógico, que venha a contribuir para o crescimento dos movimentos de transformação. Evidentemente, não estamos afirmando que ações que provenham do Estado não contribuam, também, para minimizar a segregação – e as estatísticas das duas gestões do Governo Lula apontam para uma diminuição da pobreza no Brasil –, mas continuamos acreditando que seja importante
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construirmos na população, a percepção da necessidade de participação na definição do futuro que queremos para nossas cidades. Talvez, o mais importante caminho para buscar a transformação, o verdadeiro direito à cidade e a justiça social, tenha de ser percorrido guardando múltiplas escalas espaciais e temporais de ação. No que tange às escalas espaciais, é preciso “costurar” os particularismos militantes, mobilizações sem pretensões mais amplas (mas de grande importância para aqueles que àquilo reivindicam), com ações de âmbito global; ou seja, que levem em conta não apenas os problemas conjunturais, mas também os problemas ligados à estrutura. Embora os movimentos sociais tenham seu nascedouro em problemas que acontecem no lugar, é necessário buscar as conexões com escalas espaciais mais amplas, em um movimento do lugar ao mundial e de volta ao lugar. Esse movimento nos obriga a, também, pensar em escalas temporais de ação diferenciadas; ou seja, estaremos trabalhando com ações de curto e longo prazo. Temos, desde muito tempo, falado da importância de resgatar a utopia. O que importa na utopia é justamente o que não é utópico, é o processo de sua busca. É verdade que, muitas vezes, por mais que nos empenhemos nunca teremos absoluta certeza a que resultado chegaremos, e isso acaba sendo um enorme fator de imobilização. Resgatando Harvey (2000, p. 254), a fuga da incerteza acaba fazendo “com freqüência que demos preferência aos males conhecidos em vez de buscarmos refúgio noutros males ignorados”. É preciso resgatar o pensamento utópico para transformar; afinal, estamos falando daquilo a que Marx deu o nome de “o movimento real que vai abolir o estado de coisas atual”. A solução não está no curto prazo, e nele é mesmo inalcançável, mas começa nele. O projeto de transformação da zona portuária traz à população do lugar inúmeros desafios, já que a ausência de participação foi visível e que a falta de organizações coletivas contribuiu para que a proposta de produção do espaço atendesse, principalmente, aos interesses do empresariado. Importante entendermos que o conceito de espaço incorpora o quadro físico, mas também o mental e o social, com sua prática espacial. Tais práticas tratariam do mundo das interações dos seres humanos com a materialidade, construindo no cotidiano a experimentação. O projeto concebido para o porto, apresenta-se como uma solução para uma área que se encontrava com sérios problemas ligados à falta de investimentos. Fato é que certas afirmações são por nós assumidas
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sem qualquer reflexão: representações de mundo, definições de formas e funções nas cidades. Nossa experiência cotidiana, em nossas práticas espaciais, no ordenamento espacial da cidade, é mediada por tais concepções, que, muitas vezes, não estão de acordo com nossos interesses. Simultaneamente, a maneira como respondemos a essas determinações através de nossas ações no espaço, inclusive em manifestações espaciais –, sejam culturais, artísticas ou uma passeata, por exemplo –, interferem na maneira como vivenciamos e entendemos as representações. Seria correto afirmar que projetos criados sem a participação dos envolvidos e dos atingidos, encontram-se ligados a práticas sociais que estabelecem relações entre a materialidade e pessoas, através da lógica capitalista de produção do espaço. A força que a mídia tem dado ao projeto de transformação da zona portuária contribui para a incorporação dessa lógica ao cotidiano, à vida urbana, na qual, em nossas práticas espaciais, vivenciamos um espaço de sobredeterminação do valor de troca em relação ao valor de uso. É preciso escapar desse aprisionamento e passar a pensar a produção do espaço criticamente, o que contribuiria muito para modificar a maneira segundo a qual agiríamos na luta pela transformação do espaço urbano e na luta pelo direito à cidade13. Se o espaço é construído socialmente, temos de ter em mente que, em nosso cotidiano, as formas produzidas imbricam-se às funções e estrutura; por isso, sabendo que o espaço traz em si a dominação através das formas – há uma intencionalidade na produção das formas –, quando os citadinos tomarem para si a responsabilidade de concepção das práticas espaciais, o caminho trilhado, com certeza, tomará outro rumo. A luta ganha outra dimensão, porque o ato de habitar não se restringe ao espaço privado; envolve, como nos lembra Lefebvre (2008; 1991), uma relação com os espaços públicos, como lugares do encontro, reunião, reivindicação e sociabilidade. Estamos fazendo menção, exatamente, à tensão entre apropriação e dominação, pois a propriedade privada é fundante da segregação ao determinar as possibilidades de uso dos lugares. Assim, a cidade revela os conflitos da produção do espaço
A geógrafa Odette Seabra (1996) traz ótima contribuição acerca desse debate a partir da utilização das tríades lefebvreanas do espaço percebido, concebido e vivido, e das práticas espaciais, representações do espaço e dos espaços de representação.
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Epílogo... Ou em busca de aberturas e possibilidades
“Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura. Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
Carlos Drummond de Andrade
Esta epígrafe é-nos inspiradora, uma vez que aquilo a que nos propomos é tarefa árdua, pois pensamos na produção de um espaço urbano alternativo, que priorize as pessoas e a participação nas decisões do futuro das cidades. Quando falamos de produção do espaço, não estamos nos referindo apenas à produção stricto sensu, mas também à reprodução das relações sociais. Acreditamos que engloba também as localizações particulares e os conjuntos espaciais característicos de cada formação social. Nesse sentido, essa prática espacial assegura um determinado relacionamento da sociedade com aquele espaço; em outras palavras, são práticas sociais projetadas no espaço. Todavia, essa relação não se dá de maneira simples e sem conflitos, pois incorpora concepções, representações que são ligadas às relações de produção e 271
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à ordem que essas relações impõem, estando, portanto, ligadas ao conhecimento, aos signos, aos códigos, que podem partir de cima para baixo ou de baixo para cima. Uma terceira dimensão da produção do espaço diria respeito a outras interpretações, outros códigos do espaço, que persistem nos interstícios do modo de produção capitalista, principalmente nos espaços de representação, ou seja, nos lugares de outra apropriação simbólica, de um código que não seria o hegemônico.1 Os conflitos entre os grupos sociais na luta pela imposição de suas posições abarcam várias frentes e tem saído vitoriosa a construção da sociedade de consumo, trazendo consigo o espaço do mundo da mercadoria e o próprio espaço “mercadificado”, do trabalho abstrato... Tivemos a opor tunidade de discutir as transformações na cidade do Rio de Janeiro através do tempo, e mostrou-se clara a maneira segundo a qual os atores sociais associavam-se para construir um ideário de necessidades e valores, que acabavam sendo incorporados por todos os citadinos, mesmo aqueles que não usufruíam de qualquer benefício. Evidentemente, tais estratégias têm tomado grandes proporções desde a última década do século XX e a utilização de grandes eventos internacionais tem sido usada para criar novos espaços para a reprodução do capital. Esses conflitos têm se realizado em múltiplas temporalidades e espacialidades, eis também um dos porquês de nossa opção por caminhar do presente ao passado, de volta ao presente e olhando para o futuro; esse movimento esteve presente em todo o livro, como um looping que nunca chega ao mesmo lugar. Assim, rastreamos a realidade atual, investigamos a herança inscrita no espaço e chegamos ao virtual, ao projeto possível, às possibilidades de futuro, para de novo retornar ao presente e elaborar estratégias de ação. Aqui lembramo-nos das palavras do geógrafo Milton Santos (1996, p. 265), inspirado por Sartre, ao afirmar que “se o Homem é projeto, é o futuro que comanda as ações do presente”; entretanto, não devemos confundir tal afirmação com o abandono do presente, ao contrário. É preciso aprofundar o presente
Henri Lefebvre (1994), principalmente na obra The production of space, apresenta profícuo debate acerca dessa temática, apresentando várias tríades analíticas, como espaço percebido, espaço concebido e espaço vivido; práticas espaciais, representações do espaço e espaços de representação; espaço absoluto, espaço abstrato e espaço diferencial; e material, mental e social.
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Epílogo... Ou em busca de aberturas e possibilidades 273
ao máximo, pois, cotidianamente, é nele que vivemos as nossas práticas espaciais com todos os conflitos, desejos e esperanças. A produção do espaço, dando-se a partir de forte tensão entre as intencionalidades, anseios e sonhos dos distintos grupos sociais, apresenta uma dimensão de projeto, de concepção, que não se limita ao pensamento, pois arquiteta uma prática concreta que parece impingir a sociedade para sua representação do espaço. No caso do projeto de transformação da zona portuária, tende, também, ao homogêneo, mas devido à necessidade de sua materialização vê-se envolvido com contradições que o impedem de ser plenamente homogêneo. Por mais que os projetos possam ter um caráter global e terem sido pensados desde uma ordem distante, sua materialização dá-se no âmbito do lugar. Estamos nos referindo aos atores sociais que se mobilizam contra determinações que não lhes parecem adequadas, ou aqueles que lutam pela melhoria da sua condição de sobrevivência na cidade. Assim, quando analisamos o espaço urbano carioca, entendemo-lo como esfera do encontro das múltiplas trajetórias, da interdependência e da interrelação. Assim, junto com a geógrafa inglesa Doreen Massey (1999, p. 283), acreditamos que os agentes, através dessas interrelações, produzem o espaço que, por estar sendo constantemente construído, está sempre por concluir. Ou seja, o jogo de poder está sempre aberto. Fato é que as interações ocorrem diferencialmente em cada lugar, já que cada localidade mantém características próprias, construídas a partir de uma leitura particular e diferenciada da sociedade como um todo. Isso porque cada membro de um determinado lugar dispõe de uma leitura própria da localidade em que vive. Mas tal localidade não é senão o conjunto dessas leituras. Nesse sentido, não podemos deixar de perceber que o plano que emerge contribui para a construção do próprio plano gerador, posto que é produzido com determinada intencionalidade. Assim, mais uma vez reafirmamos que, de certa maneira, a sociedade produz o espaço que a produz. Foi possível, também, identificarmos diversos agentes que, individual e associadamente, contribuem para a transformação da cidade, pois as ações dos agentes imobiliários, do Estado, da mídia, das construtoras e dos próprios moradores (com a sua leitura a propósito dessa proposta de transformação da cidade – leitura esta influenciada pela maneira como lhes é “vendida”) estão contribuindo para a criação de novas espacialida-
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des na cidade do Rio de Janeiro. A espacialidade na escala intraurbana estaria sendo construída a partir da ação desses agentes produtores do espaço urbano. Ação que, em determinados momentos combinaria coligações de interesses e, em outros, conflitos entre os agentes. Portanto, as transformações que emergem na cidade do Rio de Janeiro são fruto dessa correlação de forças que se estabelece. Aliás, uma rápida avaliação dos grupos financiadores da campanha do prefeito e do governador nos ajuda a entender o porquê do encaminhamento dado aos inúmeros projetos que estão sendo postos em curso na capital carioca. As transformações do espaço urbano carioca tiveram, desde muito tempo, uma história de invasão de territórios e de destruição de imóveis da classe operária com o objetivo – algumas vezes implícito, outras explícito – de segregação espacial; acreditamos que o projeto da zona portuária trará consigo o mesmo resultado, apesar de a mídia enaltecê-lo ininterruptamente. Assim, é importante lembrar que, segundo a cientista política alemã Hannah Arendt (1993, p. 26), se compreendemos o poder como a capacidade de conduzir a ação do outro em direção de nosso próprio desejo, podemos perceber a importância do papel dos meios de comunicação na condução de uma ação coletiva, muitas vezes, em direção de um projeto exógeno, mas que precisa do lugar para se materializar. Não podemos esquecer que vivemos um momento em que a globalização, cada vez mais, reforça o lugar. Foi tal certeza que levou o geógrafo João Rua (2003, p. 284) a afirmar que “o mercado global precisa do lugar para se concretizar, tanto no que promove (conduz), como no que busca no próprio lugar. (...) Por isso, o global e o local não podem ser entendidos como polaridades opostas, mas como par dialético e complementar”.. Não é a toa que pudemos observar, anteriormente, uma série de estratégias utilizadas pela prefeitura do Rio de Janeiro com o intuito de demonstrar como a cidade é capaz frente à competição global. O fator que causa a emergência dos aspectos reificados da vida social – que a filósofa húngara Agnes Heller (1991, p. 206) descortinou com clareza – não seria a reprodução da intencionalidade dos atores sociais em suas consciências individuais, mas, na verdade, os mecanismos que procuram fazer desaparecer tal intencionalidade através da interação deles. É através, também, dessa interação que muitas vezes interesses globais se combinam e se tornam capazes de interferir localmente na ação dos indivíduos através da própria opacidade que tais interesses carregam. É
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necessário compreendermos a cidade em sua dinâmica interna – em que se destacam as ações no lugar –, mas, ao mesmo tempo, não devemos desprendê-la do movimento relacionado à totalidade. É possível afirmarmos, em concordância com o geógrafo Saint-Clair Trindade Júnior (1999, p. 153), que o espaço socialmente produzido “é fruto, de um lado, do papel da estrutura, que define as determinações do modo de produção e, de outro, do papel da ação, ligada aos agentes locais, que, por sua vez, definem coligações de interesses, envolvendo grupos ou frações de classes”. Acreditamos que os lugares não apresentam identidades únicas; ao contrário, estão repletos de conflitos internos. A especificidade do Rio de Janeiro é continuamente reproduzida, porém não se trata de uma especificidade internalizada, apenas. A especificidade do lugar derivaria, também, da noção de que cada um deles seria o centro de uma miríade de relações sociais ma is amplas com as mais locais. Uma mistura como essa em outro lugar não necessariamente teria resultado semelhante. Sendo assim, quando Massey (2000, p.. 185) afirma que “todas essas relações interagem com a história acumulada de um lugar e ganham um elemento a mais na especificidade dessa história, além de interagir com essa própria história, imaginada como produto de camadas superpostas de diferentes conjuntos de ligações tanto locais quanto com o mundo mais amplo”, nossa concordância não poderia ser maior. É possível observarmos que a relação do citadino com a cidade, em suas práticas espaciais, muitas vezes se dá sem que se perceba que a produção do espaço carrega em si intencionalidades. Há um jogo de forças na definição das estratégias de ação, que são construídas a partir de lógicas de dominação: materiais e imateriais. Procuramos associá-las à utilização de ideologias e representações, que tornam decisões que se baseiam em ordens distantes do lugar em verdades absolutas, inquestionáveis. Entretanto, em geral, is so não fica tão claro no cotidiano. O cotidiano,2 embora muitas vezes banalizado, já que se expressa por sua miséria e riqueza a partir de eventos triviais, caracteriza-se
2 Um importante debate acerca do cotidiano pode ser encontrado, por exemplo, em Lefebvre (2008, 1991, 1982, 1961, 1947). Evidentemente, como sabemos, o filósofo francês prefere apresentar noções, que acabam ganhando sempre novas dimensões em suas obras posteriores. Assim, encontramos novos desdobramentos em seus vários outros trabalhos.
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como a mediação entre a repetição e a criação, entre a alienação e a liberdade, como a clara explicitação da imbricação entre espaço e tempo. As inúmeras possibilidades de apropriação do cotidiano resultam da vivência, da experiência vivida, e têm grande potencial criador, possibilitando a formação e permanência de resistências. Portanto, quando através da apropriação do espaço da cidade reconstruímos a cotidianidade, é possível pensarmos na formação de movimentos que lutem pela emancipação e pela sua transformação. Na experiência vivida, entretanto, é preciso romper diariamente com aquilo que Lefebvre (1968) chamou de a cotidianidade programada, que através da articulação global do capital procura fragmentar as relações do lugar, fragilizando assim a construção de identidades e de solidariedade. Inclusive, é possível articular essa “programação” à sociedade burocrática de consumo dirigido e à sociedade do espetáculo,3 muito bem explorada pelo francês Guy Debord. A sociedade de consumo, além de consumir as mercadorias convencionais, o faz também em relação ao espaço; passamos, assim, do consumo no espaço apenas ao consumo do espaço; no que se refere a isso, o que vem sendo feito e proposto para o Rio de Janeiro reflete bem tal momento. Para entendermos a reprodução da sociedade, é preciso que compreendamos a produção e o consumo do espaço; em outras palavras, faz-se necessário perceber a dinâmica espacial do processo de construção social, que se dá cotidianamente. Ao falar de importância da cotidianidade, o geógrafo Milton Santos (1996, p. 257) acredita que seja através do entendimento do cotidiano o caminho para a compreensão da relação entre espaço e movimentos sociais, entendendo a materialização das intencionalidades no espaço como “uma condição para a ação; uma estrutura de controle, um limite à ação; um convite à ação. Nada fazemos hoje que não seja a partir dos objetos que nos cercam”. É verdade, entretanto, para priorizarmos o convite à ação, a luta pela transformação que seja de interesse do cidadão, torna-se fundamental aprofundar as possibilidades de apropriação Houve, na França, um movimento bastante interessante que ficou conhecido como “os situacionistas”, do qual fizeram parte, por exemplo, Guy Debord e Raoul Vannegam, tendo o próprio Henri Lefebvre bastante diálogo com o movimento. O grupo fazia forte crítica ao cotidiano programado e à sociedade do consumo. 3
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do cotidiano, já que, sendo o lugar de reprodução das relações sociais, as lutas ainda encontram-se ligadas ao sentido imediato da sobrevivência, o que é legítimo, mas que deve ser apenas o ponto de partida. Aliás, a geógrafa Ananda de Melo Martins (2009), em bela e importante apreciação, afirma que devemos considerar “o imediato tão importante quanto a possibilidade de perspectivas futuras de construção da cidade, pois, no processo de resgate individual, o sorriso, o brilho nos olhos e a possibilidade de perspectivas fazem com que a coletividade seja possível de ser construída”. Assim, a atuação política dos movimentos populares, mesmo não sendo construída a partir de grandes mobilizações, pode funcionar como uma espécie de processo de conscientização do grupo social. Desafios. O cotidiano é, simultaneamente, o trivial e o pouco provável; a velocidade e o tempo lento; o lugar e o global; ou, como nos lembra a geógrafa Amélia Damiani (2002, p. 164), “o extraordinário do ordinário, o sentido do insignificante”. É no lugar, no dia-a-dia, que encontramos as respostas e também as dúvidas; como dissemos, os desafios. É no lugar que optamos por adaptar-nos ao que é (im)posto ou procuramos subverter o jogo, buscar outras intencionalidades que não as hegemônicas. Isso levou Santos (1996, p. 227) a afirmar que as racionalidades dos setores hegemônicos buscam criar um cotidiano obediente e disciplinado, entretanto, s e o lugar é o destino da finalidade “imposta de fora, de longe e de cima, [é também] o da contrafinalidade, localmente gerada. Elas são o teatro de um cotidiano conforme, mas não obrigatoriamente conformista, e, simultaneamente, o lugar da cegueira e da descoberta, da complacência e da revolta”. Voltamos a reafirmar, então, que o espaço é fundamental para buscarmos a transformação, pois, se queremos algo diferente, isso significa a produção de outro espaço; para mudar a vida, precisamos mudar também o espaço em sua forma-conteúdo. Dessa maneira, trabalhamos com a noção de outro projeto de cidade e de mundo, que, como nos lembra a socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (2003, p. 32), precisa ser “portador de força necessária à superação potencial da reificação e da alienação”, mas, para tanto, faz-se necessário a “compreensão dos sentidos da ação e, assim, a da própria existência”. Não estamos dizendo que os sentidos da ação não devem estar apenas ligados ao presente, mas sim que o presente deve conter também
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o projeto de futuro. Assim, precisamos construir mecanismos de ação que nos levem a possibilidade de transformação. Não há dúvidas de que o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) pode ser considerado um mecanismo importante, até porque tem por objetivo a criação de regras para garantir a função social da propriedade. Dentre suas diretrizes, destacamos a garantia do direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer; gestão democrática, por meio da participação da população e de associações representantes dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos e projetos de desenvolvimento urbano; ordenação e controle do uso do solo, objetivando evitar a utilização inadequada dos imóveis urbanos, a retenção especulativa de imóvel urbano que resulte na sua subutilização ou não utilização; e a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização. Há centenas de imóveis públicos, inclusive na zona portuária, que podem ser destinados à habitação popular, de acordo com a Lei 11.124/2005, que instituiu o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e determinou a destinação de imóveis públicos para esse fim. Assim, temos muitas possibilidades, pois se tratam de leis, embora saibamos que sua interpretação tem sido objeto de disputas. Como vimos, o centro da cidade apresenta grande quantidade de imóveis vazios (e isso não é exclusividade do Rio de Janeiro), sejam prédios residenciais ou comerciais, totalmente desocupados ou subutilizados. No caso carioca, durante muito tempo houve uma lei que impedia a utilização de imóveis do núcleo central da cidade para fins de habitação, o que, associado à opção de saída da classe média que preferia morar em casas ou apartamentos mais modernos, acabou contribuindo para seu “esvaziamento”. Aliás, a perda da capitalidade contribuiu para o abandono de inúmeros prédios públicos. Mesmo que desde meados da década de 1990 a lei já permita a habitação inclusive no núcleo central, as famílias de menor renda não têm acesso a esses imóveis deixados vazios, acabando por se acomodar em favelas ou loteamentos precários e irregulares. Aqui poderíamos fazer uso do estatuto em benefício dessa população, pois estaríamos incluindo-a na cidade formal, permitindo-lhe habitar em uma área consolidada e com toda a infra-estrutura necessária, além de localizar-se em um lugar próximo – ou pelo menos de fácil acesso – ao local de trabalho. Sendo assim,
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haveria também grande economia no tempo de deslocamento, o que possibilitaria a utilização do tempo economizado para realização de outras atividades, além de diminuir a queima de combustíveis fósseis devido ao longo deslocamento para as periferias. No Brasil, tem-se optado pela construção nova como única forma de provisão habitacional – parece que a expressão “primeira locação” exerce uma força muito grande no imaginário da população. O próprio programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal, fez tal opção, com o discurso de que incrementaria a indústria da construção e geraria mais empregos, em detrimento da recuperação do estoque construído na área central, ou seja, nos bairros do Centro, da Gamboa, do Santo Cristo, da Saúde, do Caju e de São Cristóvão, por exemplo. A opção pelas construções novas – seja pelos programas de governo ou pela iniciativa privada – acaba levando ao espraiamento desenfreado da malha urbana, acarretando altos custos ao próprio governo, que tem de levar infraestrutura às áreas cada vez mais distantes. Não estamos nos referindo apenas às periferias destinadas às classes de baixa renda, mas também às áreas criadas pelo mercado imobiliário – grandes condomínios fechados – para a população de média e alta renda. Reafirmamos, então, que o programa Minha Casa Minha Vida vale para imóveis novos, para novas construções; e nas áreas nobres da cidade não há muitos terrenos disponíveis para construção de imóveis novos para população de baixa renda. Isso é importante, pois os moradores não devem ser transferidos para localidades extremamente distantes de seus locais de trabalho. Essa observação nos leva à outra também fundamental: não se pode pensar que a habitação por si só resolva o problema; é necessário pensarmos no tripé habitação-trabalho-transporte. O direito à cidade é mais do que um habitat, é o direito a habitar. O habitat liga-se à morfologia urbana, mas o habitar é uma atividade; referimo-nos à apropriação. Habitar é apropriar-se de algo, o que é bastante diferente de tê-lo como propriedade. Significa fazer do espaço sua obra, modelá-lo, apropriar-se dele. Mas é também o lugar dos conflitos, porque o espaço é um produto social, mas é também “produtor”, já que as formas construídas interferem no cotidiano da sociedade. A produção do espaço traz consigo uma intencionalidade, por isso é o lugar dos conflitos. É preciso questionar a forma como ele é produzido
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e buscar fazê-lo de outra maneira, com objetivos que não priorizem a especulação e a dominação do espaço. Em outras palavras: para mudar a vida, é preciso mudar o espaço, questionar a propriedade privada do solo, valorizar o espaço público e lutar por ele e contra o movimento dos condomínios fechados, das ruas fechadas. Porque, como afirma Lefebvre (2008), “excluir do urbano grupos, classes, indivíduos implica também excluí-los da civilização, até mesmo da sociedade”. O habitar transcende a moradia, pois significa viver a cidade em toda sua intensidade e complexidade. Significa acesso à educação, à saúde, ao lazer e a todas as possibilidades que o espaço urbano de uma grande metrópole pode oferecer. A um sistema de transporte coletivo digno e eficiente, que permita a locomoção da população sem ter que se sujeitar a viagens de mais de duas horas, sem um sistema sério de bilhete único e refém de empresas de ônibus que prestam serviços precários, principalmente para a população mais pobre. Significa investir em um sistema de transporte que permita tirar da rua um volume cada vez maior de automóveis, que contribuem para o aumento dos engarrafamentos e para a poluição do ar. É preciso que os moradores que vivem em condições de moradia precária, muitas vez es em favelas em áreas de risco, tenham trabalho. É preciso criar cursos profissionalizantes sérios para essas pessoas, além de promover espaços para o exercício de suas profissões nos imóveis destinados a essa população. Não podemos prescindir do pequeno comércio, pois é ele que possibilita a fixação aos moradores, além de, evidentemente, postos de saúde, escolas e serviços de modo geral. Assim, estaríamos começando a deixar de tomar medidas apenas emergenciais e passando a pensar em ações de curto e longo prazo. Fácil? Não, mas factível. A cidade do Rio de Janeiro apresenta forte especificidade por sua história como antiga capital do Império e da República. Entretanto, a transferência da capital para Brasília provocou forte impacto em uma cidade que vivia em função da capitalidade, e que acolhia a maioria dos edifícios governamentais, que, atualmente, em muitos casos, encontram-se em péssimo estado de conservação e abandonados. Isso sem falar da zona portuária, que tem seus armazéns abandonados e vários imóveis da área em condições precárias. A crise que abateu o país na década de 1980 também colaborou para o aumento da favelização, pois, sem uma política habitacional séria e
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com o aumento do desemprego, a população mais pobre não teve outra opção senão a ocupação dos morros, que, de certa maneira, os mantinha próximos do mercado de trabalho. Nesse período, o crescimento do trabalho informal foi altíssimo e perdura ainda hoje. Destinar a periferia à população pobre sem uma rede de transporte de massa eficiente e barata significa a total inviabilidade para as táticas de sobrevivência dos mais pobres, uma vez que as fontes de trabalho e renda se concentram nas áreas centrais da cidade. Assim, por que não usar os diversos lotes e edifícios que se encontram ociosos, muitos deles edifícios públicos, para abrigar a população que se encontra desabrigada, sem-teto, ou morando em áreas de risco? Na Figura 1 é possível observarmos as inúmeras possibilidades de recomposição dessa população na área central da cidade, que tem toda a infraestrutura instalada e que poderia sanar grande parte do problema habitacional. O censo do ano 2000, do IBGE, apontou que o deficit habitacional brasileiro encontra-se na casa dos 6,5 milhões, enquanto há aproximadamente cinco milhões de imóveis urbanos vagos. No Rio de Janeiro, por exemplo, esse número corresponde a 18% do total de domicílios
Figura 1. Levantamento dos vazios urbanos e do uso residencial da RA do centro
Cidade Nova Desapropriados DOCAS
Fonte: BORDE (2006)
ed. residencial >5 pav. fachada e interior semi destruído fachada e terreno vazio
FGTS PORTUS estacionamento
RSFSA ROUANET sem edificação e uso
UNIÃO
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da área urbana. Impressionante! Todavia, como se já não bastasse a pressão do mercado imobiliário, ainda é necessário conviver com os preconceitos e a falta de disposição da sociedade em defender a criação de habitação popular em áreas tidas como valorizadas (ou com possibilidade de). A utilização do estoque imobiliário do velho centro histórico para o repovoamento realizado pela prefeitura de Barcelona, no final da década de 1970 e até meados da década seguinte, não foi o modelo copiado pelos nossos governantes, mas sim a Barcelona Olímpica. Infelizmente optamos pela mercadificação da cidade, pela cidade produzida para ser vendida. O projeto Porto Maravilha, como procuramos deixar claro, da forma como está contribuirá para a “expulsão” da população residente e de baixa renda da zona portuária, já que as intervenções urbanísticas propostas levarão à atração de mais investimentos públicos e privados que, ao valorizar muito aquela área, inviabilizarão a permanência da população mais pobre. O que se espera com o projeto é o desenvolvimento de equipamentos culturais, de entretenimento e de gastronomia para a atração de turistas e visitantes, além de prédios de escritórios vinculados à gestão de negócios globalizados, ao marketing e design de produtos, que, segundo as expectativas dos governantes, alçaria a capital carioca a um novo patamar no ranking global das cidades. Aqui, mais uma vez, a utilização do Estatuto da Cidade pode contribuir para minimizar esse problema, pois temos dois itens importantes que poderiam ser utilizados: o Estudo de Impacto de Vizinhança e a criação das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Ao Estudo de Impacto de Vizinhança cumpre o papel de mediação entre os interesses privados dos empreendedores e dos moradores e “usadores” (para utilizar a expressão de Henri Lefebvre) do lugar, colaborando para dar voz à população diretamente afetada pelos impactos dos grandes empreendimentos. Por sua vez, as ZEIS correspondem a partes do zoneamento da cidade que são destinadas `a construção de moradias populares, podendo referir-se a prédios ou áreas vazias, ou subutilizados. Outras áreas da cidade também poderiam ser empregadas, como, por exemplo, o bairro de São Cristóvão, que foi muito afetado pelos impactos negativos decorrentes de várias intervenções ligadas à infraestrutura de transportes; foram linhas ferroviárias e metroviárias, via-
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dutos, elevados, avenida Brasil e Ponte Rio-Niterói. Em São Cristóvão, encontramos diversas edificações desocupadas, sejam de médio ou pequeno porte, e inúmeros galpões de antigas fábricas abandonados. Há também áreas de tamanho bastante considerável destinadas à atividade militar. Mas na própria zona sul da cidade há terrenos disponíveis que poderiam ser utilizados para a construção de habitações populares, como é o caso dos terrenos do metrô. Foi, inclusive, noticiado que o governo do estado do Rio de Janeiro preparava-se para vender 73 terrenos remanescentes das obras do metrô e que o dinheiro seria usado para financiar a expansão para a Barra da Tijuca. Segundo o próprio governador Sérgio Cabral, o negócio poderia render aos cofres estaduais cerca de R$ 700 milhões. Esses terrenos seriam uma ótima oportunidade para começar a construir um mix de classes sociais pelos bairros da cidade, pois a opção por colocar a população pobre nas periferias ou empurrá-las para as favelas acaba gerando investimentos diferenciados nos lugares. Ou seja, áreas habitadas pela população de renda mais elevada recebem muito mais investimentos do que aquelas habitadas pela classe mais pobre. E o mais interessante é que há terrenos do metrô em áreas muito valorizadas, pois há grande raridade de espaço em localidades da zona sul, como uma quadra quase inteira entre as ruas Tonelero, Siqueira Campos e Figueiredo Magalhães, em Copacabana; como dez lotes ao longo das ruas Marquês de Abrantes e Paulo VI, no Flamengo; e mais 11 lotes em Botafogo, como os da rua Muniz Barreto. Há também 19 terrenos na Tijuca – zona norte da cidade – como alguns concentrados na avenida Heitor Beltrão. Por que não utilizar parte desses prédios e terrenos para construção de habitações dignas para a população mais pobre? A cidade é para ser vivida em plenitude por todos os cidadãos, assim é necessário articular arte, cultura, comunicação e direcionamento político para realizar a verdadeira transformação do espaço urbano; em outras palavras, é necessário ultrapassar o momento atual – da cidade como produto, comercializável – e restituir o sentido da cidade enquanto obra, produzida no cotidiano pelas pessoas, pelas diferenças e não pela mercadoria. Ou seja, estaríamos caminhando para a retomada, pela sociedade, da definição de seu destino, para uma espécie de autogestão. Se por um lado os usadores do espaço urbano podem alienar-se pelas representações do espaço, como no projeto de mercadi-
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ficação da cidade, na produção do espaço voltado ao turismo; por outro lado, podem se apropriar dela de outra maneira, a partir de uma miríade de possibilidades – inclusive como espaço de reivindicações –, e vivê-la como o lugar do encontro, da festa, das manifestações culturais espontâneas dos moradores. Entendemos assim, porque Lefebvre (1994, p. 349) acreditava que a apropriação e o uso do espaço podem persistir nos espaços de representação, abrindo a possibilidade de pensarmos na construção de um espaço diferencial,4 visto como resistência e como potencialidade, como “uma iniciativa utópica alternativa para o espaço existente atualmente”. Indicar o que é possível exige que se entre no terreno das opções políticas, mas importa não perder o compromisso com a esfera que ultrapassa as escolhas imediatas. A utopia envolve, simultaneamente, as limitadas escolhas do imediato e as possibilidades ilimitadas do futuro. Importa romper com a força que a tecnocracia tem ao empreender seus projetos e propostas, pois o conhecimento técnico desprendido da abertura para ouvir os citadinos de nada vale. O Estado tem sempre prescindido da participação dos interessados. É necessário fazer-se ouvir, mostrar aos políticos e aos tecnocratas aquilo que verdadeiramente interessa à população. O direito à cidade não se refere a uma espécie de direito contratual, que se realiza apenas pelo Estado. Participação não significa reunir algumas dezenas ou centenas de pessoas e apresentar-lhes um projeto de intervenções urbanas ou o que será realizado. Isso definitivamente não é participação; é apenas uma forma de publicidade com duplo sentido: a primeira, ao apresentar as propostas do governo, e a segunda, no sentido de fazer crer que o governo implementa a participação popular. A verdadeira participação deve partir da população e deve ser ativa e constante; não deve esmorecer quando da conquista dos primeiros resultados, ao contrário, isso deve significar que é possível transformar, esse é o momento de reavaliar os resultados e lutar por novas conquistas. Feito assim, estaremos deixando de ser apenas citadinos para passarmos a ser verdadeiros cidadãos.
É possível relacionarmos esse debate à noção de heterotopia desenvolvida pelo filósofo francês Michel Foucault (1986; 1981).
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É preciso partir dessa percepção, pois temos observado a aceitação passiva, por boa parte da sociedade, do discurso e conteúdo da modernização: privatização dos serviços coletivos, transformação dos modos de vida, aceleração da compressão espaço-tempo etc. Contudo, como nos lembra Ribeiro (2000a, p. 240), essa é apenas “uma das possibilidades abertas pela nova frente modernizadora, correlata a tendências observadas nos países centrais”. Importa valorizar a história única da sociedade brasileira, e, obviamente, isso não significa que nossa cultura não contenha traços – inclusive fortes – de outras culturas. Talvez seja por isso que a socióloga acredite que existam “atos a serem reconhecidos e valorizados e, ainda, vozes a serem ouvidas e inscritas na formulação dos futuros possíveis”.. Se, atualmente, é impossível não ser influenciado por acontecimentos externos ao cotidiano do lugar, é verdade também que cada indivíduo ou grupo social faz uma leitura do global que, de alguma forma, o diferencia de outro. Destarte, o Rio de Janeiro responde às influências externas, que o integram ao mundo como um todo, a partir de suas singularidades, que reforçam uma identidade do lugar. A noção de uma única forma de desenvolvimento que nos é imposta – e o que é pior, aceita –, faz com que olhemos para o espaço urbano como problema e não como questão, faz-nos percebê-lo como atrasado em relação a este ou aquele modelo e não como objeto de luta e de utopia. Isso é ruim, pois se há nesse olhar críticas sérias, há também, como nos mostra Ribeiro (2000a, p. 242), “projetos de nova modernização mimética e, assim, de rápida imposição de modelos e práticas que impedem a verdadeira modelização de futuros possíveis”. E, nesse sentido, é importante termos em conta que os espaços produzidos contribuem para a reprodução de modelos que atendem a interesses de grupos específicos e não à sociedade como um todo; o que não é novidade. Estamos criticando, sim, o discurso hegemônico de que determinado projeto será ótimo para a cidade; ou seja, o que envolve determinadas partes é “vendido” como bom para a totalidade. É a partir da vinculação entre o passado – com toda nossa historicidade – e o futuro – com o projeto utópico que almejamos – que poderemos construir as mudanças. Estamos certos de que as espacialidades e temporalidades do cotidiano não se separam da dimensão do concreto e nesse sentido, como afirmamos anteriormente, devemos fugir
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do risco das reificações; senão, estaremos caminhando na direção da naturalização das fraturas sociais, passando a ver como normais a segregação espacial e a s enormes desigualdades na apropriação da cidade. É preciso lutar pelo direito à cidade em sentido amplo – que incorpora o direito à diferença e à informação – , que deveria modificar, tornar mais concretos e práticos os direitos do cidadão, usuário de múltiplos serviços. Direito ao uso da centralidade, dos lugares privilegiados, em vez de se ver dispersados, rechaçados em locais segregados para trabalhadores, para imigrantes e para marginalizados. Nesse sentido, como nos lembra o economista Carlos Lessa (2001, p. 429), “o Rio idealizado como tendo dito ‘não’ à segregação foi uma invenção intelectual. Os bairros do Rio contêm todas as frações sociais, porém, no interior de cada domicílio, existem simultaneamente a proximidade e a distância sociais”. Se escaparmos dessa naturalização, a percepção das fraturas sociais – que são também espaciais – podem contribuir para a formação de movimentos de luta.5 Estamos falando da luta pela apropriação do espaço a partir da busca de racionalidades alternativas. Escapar dessa armadilha é preciso; logo, se falamos de uma produção da cidade e das relações sociais na cidade, estamos falando de uma produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mas do que de uma produção de objetos. Aqui, procuramos apresentar problemas, criticar ações tomadas pelos órgãos de governo, mas objetivamos também incentivar a mobilização da sociedade no intuito de transformar o estado de coisas atual, de levar adiante outros sonhos, novas possibilidades. Para tanto, não podemos aceitar o fato de que os projetos de revitalização – requalificação, ou seja lá o nome que for usado – sejam sinônimos de exclusão da presença da população mais pobre. Assim, além das ações que propusemos anteriormente, torna-se imprescindível o estímulo à formulação e gestão participativa da sociedade na definição desses projetos; a preservação e conservação do patrimônio construído e cultural dessas áreas, melhorando a condição de vida dos antigos moradores; o reaproveitamento dos imóveis construídos nas áreas centrais, ao inv és da A socióloga Ana Clara Torres Ribeiro tem desenvolvido importantes trabalhos ligados à teoria da ação, em que desenvolve bastante esta temática em inúmeros artigos e capítulos de livros, como os aqui referenciados. 5
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tendência de espraiamento exacerbado da cidade; o desenvolvimento de uma política habitacional que tenha em conta a ocupação de imóveis vazios ou subutilizados; o incentivo ao pequeno comércio e serviço como forma de apoiar a permanência e a inclusão da população de baixa renda que mora ou trabalha nessas áreas; a participação efetiva dos conselhos organizados pela sociedade civil e membros do governo na aprovação de diretrizes e estratégias, além de definir as prioridades para o desenvolvimento de políticas públicas para cada área de interesse; o incentivo à retomada do importante papel das associações de moradores na identificação dos problemas e na definição das prioridade; além do mais importante: o incentivo à mobilização e conscientização da população acerca da importância de sua participação na definição do futuro de nossas cidades. A participação da população é fundamental, porque os diversos grupos sociais têm distintos interesses – aliás, contraditórios – naquilo que deveria ser proposto para as diferentes áreas da cidade; referimo-nos aos proprietários imobiliários, industriais, comerciantes, promotores imobiliários e aos moradores das diversas classes sociais. Dessa maneira, a presença dos grupos mais vulneráveis – aqueles mais atingidos pelos efeitos da valorização imobiliária e pelo aumento de impostos – deve ser não apenas garantida, mas priorizada. Estamos propondo uma transformação na maneira de pensar nossa rua, nosso bairro, nossa cidade, nosso país, o mundo... Mudando a forma de pensar o mundo, mudamos a nós mesmos e o mundo; portanto é preciso pensar em novas formas espaciais e de ação para por a transformação em curso. Somos seres políticos e, como tal, temos que saber lidar e ter em conta a existência de interesses de classes, poderes políticos, orquestrações de discursos e da própria opinião pública, todos mobilizados simultaneamente; faz-se necessário questionarmos acerca do que estaria por trás desses discursos, de quem ganha com isso. É preciso pensar além do imediato e buscar estratégias de longo prazo, sem desmerecer o agora, e para isso vale lembrar que boa parte das normas sob as quais vivemos foram forjadas por grupos sociais que não representam a maioria da população. Talvez seja por isso que o geógrafo inglês David Harvey (2004, p. 315) afirme que a “formulação de regras que sempre constituiu a comunidade tem de ser posta em tensão com a violação de regras que propicia as transformações revolucionárias”.
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Não há dúvida de que os movimentos têm sua origem e ponto de partida no lugar, mas, como procuramos deixar claro, é preciso ir além das particularidades e transcender o lugar. Falamos da construção de uma espécie de colcha de retalhos que procure costurar as particularidades através de um nexo aglutinador; aqui transparece a importância dos movimentos sociais, das associações de moradores, por exemplo, para tentar traduzir esses objetivos mais universais. Aqui, vemo-nos numa espécie de labirinto, em que temos de fazer uma escolha: enfrentamos a incerteza e os riscos de tentar transformar ou optamos, como nos aponta Harvey (2004, p. 333) ao citar Hamlet, pelos “males conhecidos em vez de buscar refúgio noutros males ignorados”. Um importante ponto de partida para a construção desse movimento, que pode ajudar-nos a construir novas possibilidades para a produção do espaço, através de ações de curto e longo prazo (e não apenas emergenciais), seria a luta pelo direito à cidade. Esta expressão acaba por unir a academia através de vários campos das ciências, como a Geografia, Sociologia, Ciência Política, Arquitetura, Direito, órgãos governamentais e a sociedade de forma geral. O direito à cidade não pode referir-se apenas a simples área construída, mas como o lugar da inclusão e da dinâmica cultural, construído a partir de uma miríade de individualidades, como espaço das diferenças, da multiplicidade de usos. Nesse sentido, vamos ao encontro do geógrafo espanhol Francesc Muñoz (2008, p. 215) quando afirma que precisamos construir espaços que permitam, em definitivo, escapar de uma espécie de monocultura turística, da estandardização da paisagem ou da elitização social. A luta pelo direito à cidade tem implícita em si a participação cidadã, que deve ter como objetivo não somente a participação, porque isso esvaziaria de conteúdo esse direito, tornando-o apenas um cumprimento formal. A participação é um meio para conseguir determinado objetivo e deve partir da própria população, pois, como nos demonstra Fernando Pindado (2008, p. 80), se a intencionalidade da participação é simplesmente legitimar os órgãos de governo, estaremos perdendo uma oportunidade de aproveitar a energia cidadã para ajudar a transformar a realidade de nossas cidades, alcançando melhores condições de bem-estar e felicidade. Participar não se limita a opinar sobre um determinado projeto, supõe também a vontade de intervir na produção do espaço; a participa-
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ção cidadã, como já vimos afirmando há mais de uma década, conecta a pessoa com a coisa pública, e isso não deve acontecer apenas nos marcos institucionais do Estado, deve partir da sociedade organizada. Assim feito, não correríamos o risco de aceitar que o “sucesso” de um projeto de revitalização fosse pautado pelo retorno financeiro dos investimentos ao invés de ter em conta os efeitos para os moradores do local6 . Em geral, e isso é absurdo, não são as necessidades dos cidadãos o que se tem em conta, mas sim a lógica dos promotores imobiliários e das empresas de construção. Concordamos com o geógrafo espanhol Horacio Capel (2003, p. 09) quando afirma que são esses agentes que atuam e conduzem a intervenções que “supõem uma profunda destruição do patrimônio herdado com o objetivo de favorecer a construção de novos prédios e o desenvolvimento do negócio imobiliário”. A transformação da cidade deve partir de uma inversão de prioridades; significa deixar de gastar milhões em obras monumentais e passar a investir em infra-estrutura básica, habitação e ampliação e melhoria dos serviços públicos municipais. Historicamente, sabemos que grandes obras favorecem as empreiteiras e têm pequeno retorno social; obras monumentais não são sinônimo de boas administrações. Quando falamos de inversão, referimo-nos à valorização da apropriação coletiva da cidade por quem a produz e nela vive e, nesse sentido, importa elevar os investimentos nas áreas mais carentes da cidade e não concentrá-los nas áreas nobres. Importa inverter o foco que está no mercado e dirigi-lo à sociedade. Há uma certeza: a mudança somente tornar-se-á possível através da mobilização da população. É possível percebermos uma sutil mobilização internacional contra a globalização, inspirada no princípio de que “o mundo não é uma mercadoria”, mas que, segundo o sociólogo Michael Löwy (2008, p. 37), está longe de ser homogênea, pois há os que acreditam ser possível regular o sistema, mas há também um amplo setor dos movimentos que “é abertamente anticapitalista, e pode se encontrar uma fusão entre as críticas romântica e marxista da ordem capitalista, de suas injustiças sociais e de sua avidez mercantil”. Entretanto, ainda é impossível prever para onde caminha esse movimento,
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Ramirez (1998) faz importante crítica ao processo paternalista de planejamento.
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contudo já mudou o clima intelectual e político em alguns países. “Ele é realista, o que significa que reivindica o impossível.” Cabe-nos incentivar cada vez mais a participação e o fortalecimento das mobilizações, e se uma boa estratégia para isso é que os movimentos sociais mobilizem e exijam o direito à cidade para todos – como por exemplo, o direito de retomar os prédios e terrenos abandonados em favor de todos –, é fato também que esses grupos enfrentam visões deturpadas, que os consideram baderneiros. Com isso, os movimentos sociais estão sempre na defensiva, o que prejudica a elaboração de estratégias e a própria visão do todo, da busca da “costura” das inúmeras particularidades em busca do universal. Harvey em afirmação dura, durante o Fórum Urbano Mundial em 2010, no Rio de Janeiro, afirmou que “para termos o direito à cidade temos que desapoderar os que abusam do direito à cidade! Nunca poderemos tê-lo até estarmos preparados para lutar contra o verdadeiro problema: o capitalismo”. O geógrafo inglês tem no horizonte o longo prazo, mas como vimos este não é o único; aliás, encontra-se ele sempre mais distante do cotidiano da população. Temos que encontrar novas formas de pensar e produzir nossas cidades. É necessário impor aos políticos nossos desejos, mas para tanto torna-se necessário nos organizarmos. Devemos lutar contra a prepotência dos técnicos que se acham os únicos preparados para pensar a cidade, e, nesse sentido, é preciso recorrer sempre ao diálogo. Dessa maneira, compreendemos o porquê de Capel (2001, p. 142) recorrer a um esquema muito importante, que aponta para a mudança na maneira de pensar e planejar as cidades, assim torna-se necessário mudar a fórmula vigente que poderia ser esquematizada como “Saber profissional (Ciência)==>Retórica profissional==>Diálogo==>Decisão” para “Diálogo==> Saber profissional (Ciência)==> Diálogo==> Decisão==> Diálogo”. Acreditamos que tal ajuste venha a alterar radicalmente a maneira segundo a qual as cidades são produzidas, pois o discurso dos técnicos – extremamente elaborado – por vezes assusta e contribui para o afastamento da sociedade na definição e formulação de propostas. Por outro lado, quando partimos do diálogo, ou seja, das necessidades da população para somente após levar à proposição dos técnicos, teríamos um forte avanço. O diálogo deve atravessar todo o processo; mesmo após a concretização do projeto, ele deve ser reavaliado pela população envolvida e repensado.
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Não há dúvida quanto à importância da participação da população no planejamento e gestão das cidades; o nosso desafio é encontrar formas de fazer com que os citadinos tenham essa consciência e realizem uma participação verdadeiramente revolucionária e de auto-gestão. É necessário que nós, acadêmicos, construamos um discurso mais próximo da população de forma geral e criemos veículos de informação – sejam jornais impressos ou eletrônicos de circulação gratuita, por exemplo – para a sociedade como um todo e não apenas para nossos pares no meio universitário. É necessário traduzir nossas pesquisas para a pessoa comum, fazer-nos entender. É preciso ouvir e estar dispostos a aprender com a população humilde que vive apenas um dia após o outro. Enfim, quando propusemo-nos a desenvolver possibilidades e aberturas, sabíamos que estaríamos correndo riscos, pois passamos a falar daquilo que ainda não ocorreu... aquilo que ainda não existe. Mas acreditamos ser necessário experimentar “outros males ignorados”. O direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual para ter acesso a recursos urbanos, é o direito de mudar-nos a nós mesmos, transformando a cidade. O geógrafo espanhol Horacio Capel (2009) apresenta de maneira simples, mas certeira o sentido de nossas ações ao afirmar que “não podemos fazer nada a respeito do passado, mas podemos influenciar o futuro, modestamente com a ação individual, e de forma mais intensa com a ação coletiva. São muitos os futuros possíveis, porém alguns são preferíveis a outros. Somente haverá um futuro entre os muitos possíveis, (...) e os cientistas sociais devem ajudar a construí-lo”; nossa concordância não poderia ser maior.
Posfácio
João Rua1
A tese de banalização e tendência à homogeneização do espaço urbano relacionada a “modelos de sucesso internacional” desafia-nos permanentemente. Como se dá a relação dos processos que valorizam tais modelos na escala planetária e aqueles que a desenvolvem em escala local? Neste livro procura-se discutir essa tese, criticando-a e demonstrando a enorme complexidade dessa banalização que tem levado a crescentes desigualdades sócio-espaciais. Alvaro Ferreira procura uma maneira de demonstrar tal tese a partir das transformações que a cidade do Rio de Janeiro vem sofrendo, particularmente desde o início do século XX. Focando os planos de “revitalização” da zona portuária, o autor reflete sobre a cidade como um todo, as cidades atuais, principalmente aquelas que passaram por planos urbanísticos que renovaram seus waterfronts marítimos ou fluviais e nas maneiras como se vêm dando a dominação do espaço e a imposição do valor de troca, em um movimento em direção ao reforço da visão da cidade como mercadoria e como cidade-empresa. A tese, acima referida, é amplamente comprovada nas argumentações do autor, nas quais se destaca a ideia de que tais intervenções têm redundado no favorecimento das classes média e alta e de que é necessário “revitalizar” os movimentos sociais, compreendendo- os como atores fundamentais na produção de novas geografias nas cidades, particularmente no Rio de Janeiro, para que não se reproduza “mais do mesmo”, como escreve, numa alusão à tentativa de homogeneização do espaço, perseguida por tais intervenções. A cidade do Rio de Janeiro, além da complexidade inerente à grande metrópole que é, difere, em muitos aspectos, das cidades que serviram
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de modelo para as intervenções que nela foram implementadas, sejam as atuais, sejam as anteriores, particularmente aquelas produzidas ao longo do século XX. Um dos aspectos mais relevantes relaciona-se a sua capitalidade,2 ou melhor, as suas capitalidades, integradas a distintos estatutos jurídico-político-adminstrativos. Capital da Colônia desde 1763; capital do Reino entre 1808 e 1822; capital do Império entre 1822 e 1889 (sendo considerada como município neutro a partir de 1834); capital da República entre 1889 e 1960 (denominada Distrito Federal); cidade-estado (capital de si mesma) no período de vigência do estado da Guanabara (1960-1975); capital do estado do Rio de Janeiro, desde 1975, necessita, ainda, fortalecer as relações com o interior do estado, objetivo que vem norteando o exercício da capitalidade nas últimas décadas. Esses diferentes estatutos deixaram/deixam marcas distintas, traduzidas em intervenções urbanas relacionadas a cada período histórico dessas capitalidades, pois, como nos lembra Abreu (1987, p. 11), “o Estado [principalmente, acrescentamos] formularia políticas integradas aos momentos de organização social em que foram formuladas e que, mesmo variando na forma e conteúdo, pouco têm diferido ao longo do tempo”. As alterações do estatuto jurídico-administrativo-político têm afetado a identificação e a valoração simbólica dos habitantes da cidade e dos que a ela se remetem, pois conectam o indivíduo a eventos históricos mais amplos, que, muitas vezes, criam dificuldades de compreensão e aceitação, como tem sido, por exemplo a fusão Guanabara-estado do Rio de Janeiro que, após 35 anos de implantação forçada, ainda apresenta problemas a serem superados. As intervenções efetuadas na cidade tornaram-na um lugar da política, da cultura, da modernidade, do poder e da memória, além de foco de civilização e núcleo da sociabilidade intelectual, em escala nacional, como nos elucida Motta (2004, p. 9), ao se referir às cidades-capitais, em geral.
Os autores com quem dialogamos preferencialmente nesta temática são: MOTTA, Marly Silva da. Rio, cidade-capital. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004 e OSÓRIO, Mauro. Rio nacional – Rio local: mitos e visões da crise carioca e fluminense. Rio de Janeiro: Senac, 2005. 2
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Assim houve reformas/revitalizações que se tornaram símbolos da capitalidade da Colônia, do Reino e do Império. Neste livro, as atenções voltam-se para as reformas que marcaram os diferentes momentos das capitalidades do século XX e inícios do século XXI. A República, imbuída dos ideais de ordem, modernização e progresso (integrados aos princípios da modernidade ocidental) formulou, desde os primeiros anos do século XX, políticas de reforma/renovação/ revitalização que vêm servindo de base à construção de representações ligadas à europeização da cidade e, mais recentemente, à internacionalização (inserção em circuitos internacionais de eventos, por exemplo) da metrópole. A representação de Cidade Maravilhosa (desde os anos 1930) vem alicerçando a construção da cidade-vitrine (termo usado por diversos autores para se referir à crescente mercantilização da cidade3) em “ondas” de revitalizações que vêm marcando o Rio de Janeiro ao atravessar a República Velha, o Estado Novo, a cidade-estado e, desde 1975, de capital do estado do Rio de Janeiro. Em cada momento, os planos urbanísticos, adquiriram feições que se explicitaram em formas-conteúdo particulares integradas ao jogo de forças que produziam tais planos e a sua execução (ditaduras, democracia, p opulismos, por exemplo), resultando, quase sempre, na remoção de populações pobres para áreas distantes ou de pior localização, quando próximas ao Centro. Nesse aspecto, a lógica segregadora vem se mantendo há mais de cem anos. Não se pode deixar de distinguir os momentos históricos das revitalizações: Na República Velha (Reforma Passos, como mais expressiva), quando se buscava competir com Buenos Aires como cidade-porto do Atlântico Sul e se construíam as bases para a cidade-metrópole, de expressão internacional, verdadeira “vitrine” do Brasil republicano, que continuariam com as construções ligadas ao centenário da independência; as reformas do Estado Novo, com a monumentalidade de grandes avenidas e de prédios suntuosos na esplanada do Castelo – a esplanada dos ministérios de então; as intervenções na cidade-estado da Guanabara, principalment e nos governos Carlos Lacerda e Negrão de Lima, com suas importantes obras de infraestrutura e de embele-
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A título de exemplo, Arantes e Vainer (2000), como consta das referências deste livro.
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zamento, mas com suas remoções forçadas de populações faveladas da zona sul para conjuntos habitacionais e novas favelas na zona oeste (Campo Grande, Santa Cruz e baixada de Jacarepaguá). A lógica da segregação continua após a fusão, com a construção do metrô e de grandes obras viárias, estas servindo, também, ao propósito de criar maneiras de distanciamento das classes de maior rendimento em relação às de baixa renda, já que se constituíram em corredores de passagem/eixos de travessia, verdadeiras vias expressas “indiferentes” aos lugares por onde passam, dificultando a convivência espacial. Tais vias serviram, também, para melhorar as ligações com o interior do estado, amenizando alguns problemas de integraçã o pós-fusão. Em fins do século XX e início do século XXI, sem deixar de ser a cidade-vitrine (para o restante do Brasil e para o mundo) que foi durante os últimos cem anos, a cidade do Rio de Janeiro vai se integrando a outras lógicas de gestão, dessa vez menos estatal, passando a ser percebida, também, como uma grande empresa, sujeita à racionalidade da relação custo-benefício , na qual o anterior planejamento efetuado com base em normas do estado é substituído por um planejamento estratégico, influenciado pelo financiamento oriundo de organismos internacionais4 (aceitando os governos locais como clientes) e desenvolvendo-se com base em parcerias público-privadas, com cada vez menor participação dos movimentos sociais e da sociedade civil como um todo. Essa nova forma de gestão, que muitos autores denominam de cidade-empresa, definiu-se, de forma clara, a partir dos anos 1990, particularmente ao longo da era César Maia, que, por muitos anos, esteve (direta ou indiretamente) à frente dos destinos da cidade. Mesmo hoje, com outros governantes, os princípios elaborados em seus governos permanecem como balizamentos para a ação oficial, definida no I PEC RJ (Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro – Rio Sempre Rio – 1996) e no PEC II (Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro – As Cidades da Cidade – 2000). Enquanto no primeiro se percebe a influência dos consultores catalães, no segundo, sem que a influência dos priA título de exemplo, podia-se ler no sítio da prefeitdade do R.J., em 20/08/2010, que “Prefeitura e Banco Mundial formalizam empréstimo de 1,9 bilhão de reais para investimentos na cidade”. Segundo o noticiário, o dinheiro serviria para amortizar em até 25% as dívidas com a União (acessado em 20/12/2010). 4
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meiros deixe de existir, percebe-se mais claramente o discurso do Banco Mundial de que as cidades devem ser competitivas e com aptidão empresarial, com gestão eficiente do Estado em que “os pobres sejam beneficiados”, percebidos como contribuintes e clientes dos serviços públicos. Ainda nesse segundo Plano, encontra-se a ênfase no planejamento local para cada uma das 12 regiões (subprefeituras) da cidade. É preciso deixar claro que toda essa mudança de gestão se desenrola em um cenário global de hegemonia do capital financeiro e receituário neoliberal, em que até mesmo os direitos humanos são apropriados, numa leitura contraditória na qual os pobres são vistos como clientes desejáveis, mas, nas políticas locais, como moradores indesejáveis. Mais uma vez lembramos que as formas-conteúdo podem variar, mas o sentido da organização social permanece. Ao longo do século XX e início do XXI, percebe-se duas feições de segregação socioespacial integradas à mesma lógica excludente: uma primeira feição estaria ligada à remoção forçada ou induzida, que parece preceder a especulação imobiliária. Historicamente, estaria vinculada ao combate à insalubridade, ao embelezamento e à construção de grandes eixos viários. Percebemo-la como uma remoção mais “física”, ligada a deslocamentos maciços do centro e da zona sul, dependendo da época em que ocorreram. Hoje em dia, esse tipo de remoção (ainda existe) parece estar, também, associada à questão ecológica, em que os riscos ambientais constituem elemento-chave para a sua realização. Já se fala em redução da área ocupada por favelas,5 embora sem se falar da verticalização que nelas ocorre. Outra feição da remoção de moradores, esta mais atual, parece estar ligada aos níveis de rendimento das populações e ser resultante da especulação imobiliária. Nela, as pessoas seriam “removidas” por falta de condições de permanecer em áreas que sofrem revitalizações. Uma variante dessa feição parece desenhar-se integrada à instalação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora)6 em favelas da cidade, que va-
5 Em 30/01/2011, o jornal O Globo trazia, em sua página 16, a manchete: A ilegalidade perde terreno – IPP constata que área ocupada por favelas encolheu nos últimos dois anos. A reportagem enaltece as parcerias público-privadas nos planos de construção de habitações populares e antes de 2008 as favelas não paravam de se expandir. 6 O jornal O Globo de 30/01/2011, na página 31, chama atenção para as parcerias pú-
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lorizariam tais locais e o seu entorno, antes muito depreciado. Quando se coloca este fato no contexto geral da especulação imobiliária que se observa no Rio de Janeiro pré-olímpico, não é de se estranhar que muitas pessoas de baixa renda não possam aí permanecer. Não se trata de se contrapor aos projetos de revitalização/urbanização de favelas ou remoção em áreas de risco (se efetivamente necessárias, mas para todos, não apenas para os pobres). Trata-se, sim, de explicitar a complexidade e as contradições contidas em tais intervenções e as decorrências que acarretam. Ao mesmo tempo em que vemos as revitalizações como necessárias, devemos explicitar os interesses que muitas vezes escondem. Por que os pobres não podem permanecer, com melhores condições de vida, nos lugares onde moram? Por que, nas áreas revitalizadas da cidade, só podem viver pessoas de maior poder aquisitivo? A própria lei tura neoliberal de pobreza não é aceita integralmente pelos que elaboram os planos de revitalização, uma “nova vida” para os lugares escolhidos para essas ações, como se lá não existisse vida ou a que existe não merecesse existir, pelo menos ali. E, afinal, a quem se destinam as intervenções urbanas? A tudo isso Alvaro Ferreira se refere, neste livro, com muita propriedade. Como promete em sua introdução, analisa a ação dos atores sociais, a localidade – a cidade do Rio de Janeiro – em sua complexidade e o uso do espaço nas cidades em suas contradições e tensões entre o valor de uso e o valor de troca, nos quais a mercadificação do espaço traz consequências graves para as camadas mais pobres. De há muito a ação dos componentes sociais gera efeitos específicos na cidade do Rio de Janeiro. É claro que isso vale para qualquer cidade e para qualquer parcela do espaço. Entretanto, a geografia histórica da metrópole carioca oferece particularidades nos processos de uso da terra e de produção das formas espaciais da cidade dificilmente encontradas em outras cidades. Serão particularidades da totalidade mundial. Particularidades que se inte-relacionam, formando singularidades sempre provisórias, em movimento de um refazer permanente que marca o lugar. Totalidade, particularidade e singularidade; modeblico-privadas que ajudariam a instalar e manter as UPPs em vários lugares da cidade, evidenciando aí os interesses do capital privado na pacificação da cidade. A reportagem traz como título: Os padrinhos que apostam no sucesso das UPPs.
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lo societário global e formação socioespacial local; capitalismo global e leituras particulares pelos atores sociais – produtores do espaço na cidade do Rio de Janeiro. Tudo se entrelaça no livro de Alvaro Ferreira, alicerçado por sólido embasamento teórico, tornando o livro ainda mais atraente e necessário para se compreender melhor a banalização (busca da homogeneização pelos atores hegemônicos) do espaço nas cidades contemporâneas e como, nela, os movimentos sociais podem intervir lutando para manter a diversidade e a riqueza cultural, não como uma mercadoria a mais, mas como parte do viver cotidiano das pessoas, em que não haja excluídos.
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Esta obra foi produzida no Rio de Janeiro pela Editora Consequência em outubro de 2013 e impressa na Gráfica Singular. Na composição foram empregadas as tipologias Minion e Helvetica.