A Capital e o sonho de uma petit Paris


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A Capital e o sonho de uma petit Paris

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/f'f-'A- rH 981,511

S587c AnnyJackelineloires Silveira

1:335

A CAPITAL E O SONHO DE Ul\1A PETIT PARIS Os cafés no cotidiano de Belo Horizonte: 1897-1954.

Dissertaçãoapresentadaao Curso de Mestradoda Faculdadede Filosofiae CiênciasHumanas,como requisitoparcialà obtençãodo título de Mestreem História Área de concentração: Relações Sociais de Dominação. Orientadora: Prof ElianaReginade FreitasOutraUFMG

l.2:5010

U.F.M.G. • BIBLIOTECA UNIVERSITARIA lil ll lil lilill lilill li111111111111111

226101101

NÃODANIFIQUE ESTAETIQUETA

BeloHorizonte Faculdadede Filosofiae CiênciasHumanasda UFMG 1995

Dissertaçãodefendidae aprovada,em 29 dejuoho de 199~.pelabancaexaminadoraconstituída pelosprofessores:

Prof ElianaReginade FreitasDulra

Prof HeloísaBuarquede Hollanda

Pro! ReginaHortaDuarte

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À Dirceu Goulnr1Silveira. que 11111dia me contou histórias de outros cafés. outros homens. de mn outro lugnr. de há muito tempo ntuis.

Agradeci1'fent0$:

Regina Helena, que,,,, apresentou a cidade, feus tipos, seus traçOf, fUas palavras;

Patrícia e Sügio, Dirceu, FL~io,

Vera; Valhia, aos t:Vffigosdo lfftitrado; fotos: P,dro, Marc,Lo, B.atri1; Dôro..Marco, V~: EliQJllaDurro.. co,,, qu,,,, CQJffi11h1i;

lffopd:

Rqi11tiHorta - ond, a história co,,.,çou.

Lr, trob4Uto c011toucolff fll}Oiojl1111Jfc1irodo CNPq.

Euquit1ra Vir o mwtdo Co1'1oo vi Str~io Btrnardo: Vir, ,ro mundo, M muitM ii6J'IOt. qu, vi,;Ollf toh os coit•. Smtir, toh afom,o., asfof11fas, oi tqrldos da 1'1atíria 111tZii • tatura dM io,rhM d, qw r,forw,a o r,.J. (CulM Dru,,,11101ld)

Sumário

Introdução......................................................................................... 01

1-Ocafee a il!'.agemde civilização.................................................. 12 19 Ummodelodecivilização............................................................ 35 O Brasil e a civilização................................................................ U~ arraial perdido no tempo...................................................... 54

11-Fabrl.cll1l.do reflexos.................................................................... 72 76 UmJJ capitaldesonhos................................................................ Oscafésnoespaçoda cidade..................................................... 98 111-Acidadeparaalémdoespelho................................................. 129 Osdoisdiscursossobrea cidade............................................... 134 Lugaresde civilidade ................................................................. 143 Oshomense os cafes................................................................ .162 IV- Numpaís de há muitotempo.................................................... 201 "Seqüestro de Guilhermina César- czocomplttar r,tmt'fl1toi" (C.D.Alldrade)......................................... 202

Oscafésnocotidianoda capitaL............................................ 207 Temposmodernos,cafesapressos.......................................... 229 Considerações Jinais..................................................................... 2.53

.Anaos............................................................................................ 277 Bibliograji,a................................................................................... 280

INTRODUÇÃO

&a ainda no tempo dos ''ficus", de uma Belo Horizonte de dois andares, de ruas vastas perfumadas a magnólias, de cidadãos funcionários públicos, estudantes, e os quase s~e

esquecidos cidadãos operários. Tempo de

uns rapazes cheios de idéias, de projetos, de desejos e de vida, que gastavam suas horas em discussões literárias regadas a cerveja ou café e àgua eme as mesas redondas de mánnore de certos cafés da capital. Tempo em que os políticos, buscando avaliar a repercussão de seus atos; junto à população, mandavam proceder a uma "pesquisa de opinião" na porta das casas de café. Cafés onde os operários esqueciam as angústias do dia, se divertiam entre goles de diferentes bebidas, ou trabalhavam pela uniio da classe na luta por seus direitos, e por isso, rrnJitas veus, eram levados ao xadrez. Tempo em que respeitáveis senhores e jovens da alta-roda protagonizavam escandalos entre a sociedade, ao se apaixonarem pelas coristas que se apresentavam nos cabarés e cafés-concerto da cidade. Casas de café não faltaram àquela jovem capital dos anos dez e vinte. Aftnal, uma cidade que se queria moderna e cosmopolita, como estampavam as

plmu e discursos dos responsáveis por sua construçio, não poderia dispensar a presençadesse tipo de estebelecimento comercial, vitto por

m1ito1

homens da

épocacomoverdadeirotímbolo de refinamemo e civilir.açio da IOciedade. A bem da verdadeOI cafél nlo erammencionado,pelOI idealizadoretda nova cidade. Pua o lazerpúblico el• haviamdelltinadopraça•,avenidu, pradode corrido,

Introdução

3

teatro, e um amplo parque. Porém os homens que acompanharam a faina cotidiana para o cwnprimento do decreto de transferência da capital mineira, desde sempre apontavam a necessidade da abertura de estabelecimentos do gênero, afim de lhe dar vida, movimento, "ares" de uma grande cidade. E muito breve esse desejo seria satisfeito. Os pnmel.l'os cafés belorizontinos foram abertos ainda antes da inaugunção da cidade (1897), quando, segundo BARRETO (1936), receberam um grande número de freguêses que comemoravam a instalação da sede do governo. Os anos seguintes veriam abrir, naquelas ruas traçadas a esquadro, outras várias casas do gênero. Cafés grandes ou pequenos, de diferentes tipos e qualidade.

Alguns se notabilizaram pelo

refinamento no serviço e na decoração, enquanto outros ostentavam menos elegância; no geral, graduavam-se entre casas de certo requinte e bom gosto até

aquelas-de "quinta categoria": balcão e garrafas, e quase sempre, moscas. Alguns seriam mais "persistentes", atravessando anos a fio a história da cidade, e dos homens da cidade que ocupavam seus salões ou se postavam junto às suas portas. Outros de pouca duração, dos quais se encontra apenas uma referência, wrgern por um momento em meio às páginas dos periódicos ou das memórias sobre a capital, e depois mergulham no esquecimento: nenhum novo dado, nenhuma outra menção.

Mas, fossem ou não duráveis, esses cafés marcaram a memória da cidade. Beirando seus vinte e poucos anos porém, a Belo Horizonte idealizada segundo os últimos preceitos urbanísticos dividia opiniae,. Discurso, opostos eram

construído■

e

divulgado■

através da imprensaquamoao fato da capital ter ou

nlo chegado a bom termo em relaçlo habitaras:

u

moderna e civilizada, trepiduu,

a■piraçõea

de

■eu,

uma verdadein

cOClltrut«es e capital;

~

ao

lntroduç8o 4

contrário, urna cidade pacata e provinciana, perdida em

rrw,10

a1 montanha• de

Minas. e onde, pela sua sem-gracesa, nem mesmo o trem tem vontade de parar. O mesmo podia ser observado no que diz respeito à1 suas caias de café, variando na sua qualificação do "chie" e refinado ao sirnple1 "rastaquera". E

e11a1

imagens

heterogêneas acerca da cidade e de seus cafés haveriam de persistir por mai11de quatro décadas entre seus moradore1, croni.tail e vi&itarw.e1. Apesar da diversidade com que eram percebidos, e11e1 cafés são lembrados, na história que foi e ainda vem sendo construida sobre a capital mineira, como um dos principais espaços do encontro e da sociabilidade da sua população. Lugar de reunião. de debates políticos e literários acalorados. de irradiação de notícias e boatos, de contrato de negócios, de softer de dores de amores, de aprender as novas modas e os comportamentos "civilizados", de iniciar e estreitar amizades, ou de contatos breves e superficiai&. É como cenário de prática• assim tão variadas que es■as caias se converteram para nós rum importante objeto de pe1quisa a partir do qual tentamos acessar a51>ectosdiversos da vida da cidade de Belo Horizonte. Através da análise dos estabelecimentos de café, da sua freguesia, da fonna como ela usava esse espaço, e mesmo da memória sobre eles produzida, acreditamos ser possível perceber

01

costumes, as formai de laz.er, práticas comerciais, a1 experiências de

convivência e de relacionamento social, 01 wlore1, •• preocupações

existenciai■

ou cotidianas, isto é, um pouco do ambieru cultural ou da cultura urbana dotl homens que viveram na capital.

E p111 aWrndeua■ qu~•.

oa caféa foram ainda tomadoa enc:,.aado

elememos resweserutivM dai rrudanç11 e tranafonnaçan

dai quai1 a cidade

1e

Introdução

5

tomaria palco. A distribuição espacial destes estabelecimentos, e os deslocamentos de concentração que sofreram durante os anos, são elementos, no nosso entender, reveladores

do movimento de ocupação

da capital,

da importância

que

deteminadas àreas adquiriram, seja no que diz respeito às atividades comerciais ou sociais. Da mesma fonna nos foi possível acompanhar, também, os processos de crescimento, desenvolvimento e de especulação imobiliária que atingiram a cidade. E, além de todos esses a5ipectos, a crescente supremacia dos cafés de balcão em relação aos antigos cafés-sentados, entre os estabelecimentos abertos na cidade a partir de meados dos anos trinta, foi tomada como fato sugestivo, ou mesmo como uma evidência, tanto dessas transformações que ocorreram na capital mineira, como ainda, das mudanças no comportamento e nas necessidades cotidianas que as acompanharam. A recotlW'Ução da história das casas

de café oferece-nos

a

possibilidade de abordagem de variados assuntos relativos à história da cidade e, ainda, à dos homens que percorreram, viveram e sonharam por entre suas ruas longas e retilíneas. Acompanhar o dia a dia no interior desses estabelecimentos é uma maneira possível de buscar perceber como se desenvolvia a vida na Belo Horizonte: as fonnas como seus habitantes se relacionavam, os procedimentos em público e as rewas de comportamento, formas de associação, constituição e convivência de determinadoa !,UJ>09 de interesses úms (literatos, esportistas, político■

...), a amizade,••

preocupaçõe■,

e ainda oa confronto■ e conflito.. E além

disso, como já foi mencionado, é perceba- também como se desenvolvia a própria

Introdução

6

Belo Horizonte, ao relacionar as t.ruw"ormações sofridas por esse tipo de casa comercial com as mudanças que atingem a cidade ao longo dos anos. A análise dessas casas de café nos possibilitou ainda, pensar a respeito de alguns símbolos e idealizações que povoavam a mente dos homens a respeito ela cidade, afinal os cafés eram percebidos, juntamente com o teatro, o cinema, os ''boulevards", como espaços de "civilização". A idéia sobre o que era ser civilizado filiava-se aos modelos europeus: Paris, Londres, Berlin .. . E seria com os olhos voltados para esses modelos que os homens julgariam, não só as casas de café, como a própria cidade. São esses estabelecimentos tomados wn dia como modelo - os cafés do continente europeu - e a forma como são percebidos e trabalhados por diversos autores,

como BÕDEKER. (1990), LECLANT (1951 ), SENNETT

(1988),

A.GUI.RON (1971), HABERMAS (1984), que servem de orientação nesta análise das casas de café belorizontinas. Abordando desde o surgimento e a difusão do hábito do consumo do café enb'e as classes altas da sociedade européia, até sua expansão para as camadas populares e a abertura dos estabelecimentos de venda pública do café, esses autores discutem sua relação com as t.ransfonnações em aspectos diversos da sociedade, como a estrutura social, a cultura, a sociabilidade, o espaço urbano, e ainda, a emergência de outros, como a opinião pública ou as idéias de civilização e cosmopolitismo. Através do diálogo com a• visõe1 e irurpretações

que esses autores constroem a respeito do• cúé•

continente, é possível pensar e analinr

do velho

o• estabelecimemos do gênero na capital

mineira - naquilo que os aproxima e os diltincia do1 seu1 1imilves europeu,. nas 111asespecificidades. conforme os comextos diferedes nos quais estio inseridos.

Introdução

7

Mas, assim como as próprias cidades mudam com o correr dos anos, seus

cafés

também

estabelecimentos

nlo

serão

elementos

estáticos.

Afinal,

se

esses

emergiram ligados às transf onnações sociais que atingiram a

sociedade e o mundo urbano - por volta dos séculos XVII e XVIII no continente europeu, e no século XIX no caso do Brasil - e se é possível considerar que essa sociedade e o mundo urbano estão em movimento constante, em uma sucessão contínua de novos momentos, os cafés também serão atingidos por essas mudanças. É o que se verifica em Belo Horizonte [e ainda em outros importantes centros do país] no decorrer das década&ide quarenta e cinqüenta, com a crescente substituição

dos antigos café5-sentados pelos pequenos estabelecimentos

que

serviam a bebida exclusivamente em balcões. Através da supremacia alcançada por esses cafés de balcão entre os novos estabelecimentos abertos nesse periodo, é possível perceber e sinalizar outras transformações no contexto social e urbano

da capital mineira. Assim, esse trabalho teve como objetivo perceber

as relações

possíveis que podem ser estabelecidas entre as casas de café e a capital mineira: o tipo de destinação dada a estes estabelecimentos, quer nas imagens e definições que informaram seus planejadores,

quer nas definições e práticas de seus

habitantes. A medida que é possível perceber uma certa identificação entre o café e uma idéia sobre o que seria a ..civilização", buscamos mostrar como esn idemificaçlo se insaeve no plano da nova capital, ou como é possivel, atnvés desses estabelcimemos identificar um projeto de ordenação e um ideal elitista e

burguês,de determinados setore• da sociedade, a respeito do que deveria ser a cidade. Ao mesmo tempo, buscamos mostrar também, como esses mesmos cafés oferecem a pos1ibilidade de leitura de

outro■ discurso■

e

projeto■,

diversos e

Introdução 8

mesmo contrários

àquele acuna citado, através da análise da forma como a

população dessa mesma cidade cria, se apropria e convive no espaço dessas casas de café. Nessa história dos cafés-sentados belorizontinos o tempo é um elemento amplo se pensado em relação à idade da própria cidade. Inaugurada em dezembro do ano de 1897, meses antes a capital mineira veria abrirem suas primeiras casas comerciais chamadas café. Assim, o início da nossa história sobre os cafés da cidade começa na época em que ainda não eitavam terminados os trabalhos de sua construção (entre abril e junho de 1897), e, talvez se possa dizer, antes mesmo da abertura dos seus primeiros exemplares, uma vez que alguns dos primeiros cronistas daquele ex-arraial quase-cidade já reivindicavam a necessidade da abertura de estabelecimentos do genero, afim de honrar-lhe o nome de capital. Antecipando-se à inauguração da própria cidade, duraram anos esses cafés. Por quase quatro décadas eles imperaram no espaço urbano e na preferência dos habitantes da capital, e no decorrer dos anos quarenta seriam paulatinamente superados pelos cafés de balcão. Porém, durante certo período ainda conviveram com estes e outros gêneros de estabelecimentos de venda pública de bebidas e pequenos quitutes. O último café-sentado seria fechado apenas no ano de 1969, melhor dizendo, transfonnado em moderno café de grandes balcões de alumínio. Porém, a história aqui esaita avança apenas até os primeiros anos da década de cinqüerta, mai1precisarneme 1954, mornerto em que, a caminho de se tomar a tio sonhada "metrópole moderna, cosmopolita e trepidante", a capital já não precisa mais das velhas casas de café pua lhe conferir o grau de cidade civilizada.

Introdução

9

Esta imagem encontrada entre os primeiros cronistas da capital que associa o estabelecimento de café com a "civilização" é o pano de fundo do primeiro capítulo. Nele se discute como e onde surge a construção dessa associação, tomando para isso os modelos que são propalados nessas mesmas crônicas: o Rio de Janeiro e, em especial, a Europa. Introduzido em meio às camadas privilegiadas de alguns países europeus por volta do século XVIII a partir dos contatos que estabelecem com o oriente, o café será apontado como elemento transformador dos costumes, em virtude da difusão dos hábitos refinados e delicados da sua sociedade de origem. A expansão do seu consumo será tomada como um movimento capaz de promover a "civilização" do comportamento nos outros extratos da população. Essa expansão porém, se dá num contexto de importantes mudanças de cunho burguês que atingem as cidades e a organização da sociedade, e também, quando começam a ser estabelecidas novas formas e lugares para o contato social. Esses novos modelos de cidade, sociedade e sociabilidade servirão de paradi~a

para muitos homens que estavam buscando construir wna imagem

positiva da nação brasileira que nascia sob o advento do fim da escravidão e da proclamação da república. O mesmo pode ser percebido em relação à construção da nova sede do governo mineiro, assunto discutido no secundo capitulo. Preocupados em dar a Minas uma capital moderna e cosmopolita, di~a ~za

do estado e capaz de lhe imprimir desenvolvimento e prowesso,

da 011

planejadores e cronistas da Belo Horizonte iriam fundar nesses modelos o ideal

paraa nova cidade. E, sob a roupagem desse discurso moderno - tanto no que se ref«e à organizaçlo do espaço urbano como

também.da

própria populaçlo da

capital - se tnveste um projeto de ordenaçlo social de cunho elitista.

Introdução

10

Ao mesmo tempo o capítulo aponta as semelhanças e as diferenças que a nova cidade apresenta em relação ao movimento de instalação e expansão das casas de café verificado em meio à sociedade européia. Através dessa abot·dagem é possível marcar as especificidades que esse movimento adquire na capital mineira e de que forma elas iriam influenciar nas imagens produzidas a respeito de seus cafés. O capítulo traz ainda um mapeamento das casas de café belorizontinas: a localização, a qualidade, a clientela entre outros, a partir do qual é possível perceber de que forma eles se insa-evem (ou não) nesse projeto burguês de cidade. O terceiro capitulo aborda os discursos construídos sobre a cidade e seus espaços de sociabilidade

- o moderno e o provinciano. É através dos

argumentos que apoiam cada uma dessas visões que se buscou rastrear a cidade mesma, para além de qualificativos.

Quais e como eram os espaços

de

sociabilidade dessa capital? Apontando os diversos lugares e situações onde se revelam a interação e os contatos estabelecidos entre os habitantes da cidade, a análise se detém nos estabelecimentos de café. A partir das práticas e das relaçõeii que têm lugar

no interior dessas casas buscou-se

sociabilidade que aí

5e

caracterizar o tipo de

desenvolveu, apontando também a importância que ela

adquiriu na vida de relação da capital. Tradição no cotidiano dos moradores da cidade, a casa de café começa a se transformar a partir de meados dos anos trinta e quarenta, despertando em muitos deles um serâimento de saudosiano - do■ velho■ cafés, da velha cidade, de um tempo que já parecia distaru. Este e outros aspectos ão tratados no quarto capitulo.

Alnvés

desse saudosismo é possível acompanhar nlo apenas

a■

Introdução

11

mudanças que atingem os antigos cafés da capital, mas também a relação que elas guardam com as transformações que a própria cidade atravessava. Novos discursos inauguram um novo tempo - o da modernização - e os estabelecimentos de café mudam para acompanhar a nova realidade e as novas necessidades da cidade e da sociabilidade de sua população. Ao tratar a história dos antigos cafés da Belo Horizonte, buscou-se aqui aproximar-se da história da própria capital. Se essa cidade, seus espaços e o tipo de vida que neles se queria ver desenvolver, podem ser lidos enquanto constituintes de um projeto de ordenação da sociedade, elaborado pela elite entre fins do século XIX e irúcio desse, os cafés podem ser tomados como lugares onde é possível perceber como tal projeto é inuojetado e contestado pela sociedade. Porém, como aponta K. LINCH (1988), a percepção dos observadores e participantes da vida de um centro urbano é, na maior parte das vezes, parcial e fragmentada; talvez assim também seja no que diz respeito a visão construída sobre a capital mineira através de suas casas de café. Certamente a abordagem que sua análise nos oferece não dá conta de todos os aspectos e de todos os assuntos importantes relativos à vida da cidade. Certamente também, este trabalho não tenha esgotado todas as possibilidades que o exame desse tipo de estabelecimento proporciona para a compreensão da história da cidade e da de seus habitantes. Mas na certa, reconta-a sob um certo ângulo.

CAPÍTULO] O CAFt E A IMAGEM DE CIVILIZAÇÃO

"Custei a me acostumar com a febre diurna das derrubadas e construções, e a z.ueira noturna das brigas (...) Eu vagava pelas ruas ainda virgens de casas à procura de um caie inencootrável, enquanto os italianos suaremos se comprimiam à porta da farmácia do meu mestre Teófilo lage, disptnndo limonadas purgativas ( ...)" (1).

&a assim, lamentando a ausência de wna casa de café, que no ano de 1897 um cronista do jornal Diário de l\finas lembrava seus primeiros dias naquele canteiro de obras em que havia se convertido o pequeno arraial do Curral dei Rei, futura cidade de Belo Horizonte. Ao que parece, um estabelecimento de café era algo indispensável numa cidade, para os homens dos fins do século XIX e inicio deste. Indispensável e, como será visto, especialmente vulgar - isto é, comum dentro do espectro de estabelecimentos comerciais que normabnente estavam em funcionamento no eipaço urbano das cidades mais importarte• naquele período.

O. maiores cedroa do país, como São Paulo, Rio de Janeiro ou Salvador comav~

cada um, com seus exemplares, de tipo■, tamanhoa e cp1alidadeso• mai■

vviados. O Rio de Janeiro e Salvadcw por sinal, já metade

do século XIX.

01

possuíam desde a primeira

O cefi , a /ma1emd, civilização

14

Ponto de passagem entre o caminho para alguma atividade, o descanso do sol quente da rua, o aperitivo ou café acompanhado de um quitude para enganar a

fome, da conversa despretenciosa ou, ao contrário, de assunto grave e

melindroso, os cafés faziam parte do dia-a-dia dos moradores daquelas cidades. Além disso, eram vistos, ainda,como espaço de aprendizagem e de civilização para a população - moda, boas maneiras em público, contatos diversificados e numerosos, acesso às mais variadas informações e aos novos conhecimentos: em suma, educação para o tisico e a alma. Era portanto, o núnimo que se esperava pudesse oferecer um lugar digno do nome de cidade, quiçá, o de capital. Mas, arraial acanhado, o Curral del Rei não tinha lá esses luxos, afinal, talvez não tivesse nem mesmo freguesia suficiente para ocupar durante cada diferente hora do dia, e diariamente durante os anos, um bem montado salão de café. Ía-se vivendo, porém, com uma ou outra venda de produtos sortidos. Se a falta de uma casa de café não incomodava os habitantes do lugarejo, seria algo insuportável para os primeiros visitantes do local, logo que, definido como lugar da nova capital do Estado, começaram a ser executados os primeiros trabalhos para sua construção (2). Inexistente nos caminholi empoeirados daquele "canteiro de obras", os cafés, porém, já faziam parte dos sonhos e das intenções dos homens que haveriam de fuer com que tudo cp1eestava presente naquelas plantas que se estendidam sobre o pequeno arraial- plarta1 elaboradas por uma comi1são nomeada pelo do1 trabalhOI de planejamento e de construção da governo do Estado, encarregada

nova capital - se tr1namt11se ruma cidade. Este era, por ~lo, de um aonista do jomal A Capital, publicado em julho de 1897:

o caso do artigo

O cofl e a imagemde cívilização 15

"Cidade em construção,verdadeira oficina de trabalho,BeloHorizonteaindanão tem a sua rua do Ouvidor,o pontoprediletopara as palestras~o lugar para o madamismo chie exibindoa toilette dignade nota (...) Falta-nostambémo café com as suas pequenasmesas,o brouhahada freguesia,os infalíveis italianostocando,emharpae rabecas,valsasemvoga e polkasafandangadas (...)" (3). Estas observações, regiitradas ainda no período da construção da cidade, revelam alguns componentes do ideal de metrópole concebido por muitos mineiros naqueles anos, ideal que também conformava algumas imagens que muitos homens con...qruíamsobre aquela capital. Tomando os grandes centros europeus e, também, o Rio de Janeiro como referência, a nova cidade deveria ser "efervescente", povoada por pessoas elegantes, de modos refinados, enchendo de vida

tão moderno espaço que estava sendo erguido pelo governo do Estado.

Efervescência cultural e social nos moldes da rua do Ouvidor, a versão carioca do 'Pal.aysRoyal.',onde "... tudo que era inédito e civilizado estaria: vit.rines, sorvete, bondes, literatura, iluminação à gás, e la mode. (...) Fm termos simbólicos, a rua do Ouvidor( ...) era a Europa" (NEEDEU..,1993, p.193-194). Efervescência dos cafés, ambientes pontuados de luz e de sons, de arte, de política, de bom gosto, como no Rio, como em Paris, Londres, Berlin ... Porém, como revela BARRETO (1936), ainda naquele mesmo mês, o jornal anunciava a abertura daquele que seriaum dos primeiros estabelecimentos de café belorizontinos: "A 24 de julho de 1897, registrou-se um

acomuimemo notávelpara aquelesdiu iniciai• de BeloBorizode: imopava-se o C1f4tMIMln, o Bar

O co,fé, a imagem de civilização 16

do Pomo do nascer da cidade( ...) Azevedo Júnior, no dia imediato, pel'A Capital, comentava o acortado1, vitrines, jardins, clubes, teatroa, cinemas, confeitarias e cafés de qualidade edre outro■, vieram ocupar as novu e bel11 avenida• da uea cenlnl da cidade do Rio de Janeiro, tnrmormando-N e■pecialmede da

em npaçoa

de ■ociabilidade de m.aita

pra,

gerucbic e elepd,e. Ai. mesmo a ~ vista ameriOfflMdecomo

o cefí,

a ;,,,a1 ,,,, d, civilízaçlo

49

uma ameaça à moral da instituição fanúliar, se constitui• agora em outro lugar privilegiado para as relações sociais. Com Passos a cidade ganhou o seu boMlnard (a Avenida Central)e a "família perdeu a cerimônia de frequentar a rua" (ARAÚJO, 1993, p.284).

Seguindo os dadosapresentados no trabalho de GO:MES (1989) sobre os antigos cafés da capital do Rio de Janeiro, é possível perceber um aumento considerável no mímero de estabelecimentos do gênero abertos naquela cidade, a partir das décadas finais do século passado e início deste. Crescimento que se refletiria também na cp1alidade destes estabelecimentos - na decoração, nos produtos, nos serviços postos à disposição do público. Casas de café que, em grande parte das vezes, buscavam seguir o melhor e mais famoso modelo de bom gosto e de refinamento eme este tipo de estabelecimento, o já citado Café Procope de Paris. Ponto pan o encontro de

político■,

literatos, estudantes, caixeiros,

funcionários, negociantes, cocott•s,coristas, cronistas ou dos "encantadores da avenida", as casas de café atraiam pelo debate, o movimento, as noticias, pelo difereru e por aquilo que elas podiam t.ransmitirde novo. Algumas pelo sentimento de idemidade e intimidade criado entre clientes, funcionários e proprietários, pela possibilidade de observaçlo, de abancar-se muna men e esperar o Seu Oraçom • ...

lruer deprena uma boa média que nlo 1eja requedada, um pio bem queme com fflldeiga i beça. um guardanapoe um copo d''gu• bem gelada", como cutava Noel Ron, erdo cliera 111íduodo Café Bahia,localizado na e.quina da avenida

Memde

Sá com rua da Lapa no centro boêmio do Rio de Janeiro nu primein1

décadu date NCUlo(GOMES, 1989, p.88). Decançlo, iauaria■, requitu I apuro

O cofl , a lma11md, clvilizaçlo

50

enm também, outros importantes elementos influêntes na freqüência a muitos desses cafés. E estes eram, especialmente, espaços onde essa sociedade procurava expor um pouco de sua cultura, de sua sofisticação, de sua socialidade, de seu cosmopolitismo, nos moldes daqueles "grandes cafés" das cidades européias. Outra conhecida cidade na qual é possível perceber a ação dos refonnadores brasileiros é a capital do Estado de São Paulo. Centro urbano acanhado até por volta da década de setenta do século XIX,a partir deste período a cidade entraria num process:o de aescimeuo e desenvolvimento que acabaria provocando diversas transformações em seu espaço urbano. Inicialmente as alterações se deram através de pequenas intervenções isoladas. com demolições e construções de ediflcios públicos, do clero e de residências particulares de arquitetura inspirada em modelos europeus. Escrevendo sobre a história da cidade, BRUNO (1954) aponta a existência de variados projetos visando a execução de alguns melhoramemos urbanos naquela

"acanhada" capital paulista, porém esses

projeto■

estavam

nonnalmente relacionados a áreas bastante reduzida~ ou então a conjwtos arquitetônicos definidos, não possuindo abrangênciapara wna região mais vasta da cidade. O primeiro grande plano de remodelação espacial e que incluia a região central e alguns lugares próximos, elaborado pelo arquiteto ftanc~s Bouvard, só seria executado, e mesmo assim apenas em parte,no■ anos compreendidos entre 1910 e 1914. Como informa BRUNO (1954), foi no periodo que ■e atende de 1871

a 1918, que a paingem urbana de 810 Paulo laia gamado nova feiçlo, fu.endo

•"' d, civili,a,;ão 51

com que a cidade se desvencilhasse daquele seu velho ar de província colonial: "ruas largas e jardins públicos perderam aqueles traços rústicos que traziam do tempo em que a povoação não passava de pequeno arraial de sertanistas" (39). Abeitura de avenidas, arborização, pavimentação e nivelamento de vias, praças e parques refonnados, largos e varzeas saneados, bondes e luzes, aliados às novas edificações, estavam criando uma nova face pai-a a capital paulista. Até meados da década de dez, a cidade teria passado por inúmeras mudanças e, ao mesmo tempo em que ie embelezava, a "nova" São Paulo também se preparava para o desenvolvimento. A expansão e os melhoramentos verificados em certas regiões da cidade, prnmover·amreflexos consideráveis em suas atividades comerciais. O serviço de bondes e o embelezamento progressivo das áreas centrais, propiciaram a ocupação desses lugares por estabelecimentos mais confortáveis e bem cuidados, estimulando o paulistano ao passeio e às compras "nesses magazines do Triângulo (40), que lembram os da cotte pela sua elegância" (Bruno, 1954, p.1132). Hotéis, cafés, confeitarias de luxo, lojas de produtos estrangeiros inseriamse na paisagem urbana e no cotidiano de algumas camadas sociais. Mais uma vez, a "civilização" era importada das terras de além-Atlântico, na palavra mágica "Europa". Sobre essa cidade de São Paulo assim se expressaria, anos mais tarde em suas memórias, o mineiro Caldeira Brandt: ''Para quemviera de OuroPreto aquiloera umaParis em ponto pequeno. Não me fartava de passear pelo Triângulo, entrando nos cafes e confeitarias" (BRUNO,1954,p.911). Paris, cafés, gente, moviment.o ... imagens do que ~e imaginava ser a grande metrópole francesa. Imagens que povoavam a cabeça desse estudante

O cefl , a Jma11md, civilização

52

uuropretano, e que, como deixa perceber, estavam m•lito além daquilo que oferecia a velha sede do governo mineiro. Da mesma fonna que a capital paulista, os estabelecimentos de café tamb~ foram lugar de profündas transformações neste petiodo. As informações a respeito deste tipo de comércio em São Paulo são bastante reduzidas, mas deixam entrever que ele não se diferenciava muito das primeiras casas encontradas; no Rio ou em Salvador (41). No entanto, ao final do século XIX, o número e a qualidade destes estabelecimentos já apresentavam algumas mudanças. "Serviço especial" ou "prestimoso", "luxo e esmero", "luxo e comodidade" eram os qualificativos com os quais diversas casas se apresentavam à clientela (42). Nos primeiros anos deste século, ao lado de cafés populares como o América, "uma espécie de bas-Jond central" (Bruno, 19.54, p.11.58), São Paulo oferecia casas como o Café Guarani. Lugar de grande movimento e freguesia elegante, era aí que a boêmia paulistana se reunia, especialmente à noite, após as récitas, o café-concerto ou o teatro, como recorda José Agudo, cronista da época:

"Á porta, transbordando sobre o passeio, havia o habitual agrupamentode bacharéis em perspectiva, queali costumavamexpor diariamenteaos transeuotes pacatos o irrepreensível corte das calças vincadas e dos paletós cintados, a cromática mirabolância das gravatas e a extravagânciamorfológicados chapéus" (BRUNO,1954,p.1157). Tanto para São Paulo c~mo para o Rio de Janeiro, esse processo de tranformações e de crescimento urbano se tomou maii acelerado nas décadas finais do século passado: Como foi mencionado, ele estava relacionado à abolição da

o cef, , a /magtm dt clvill'lação 53

,scravidão, à instituição do sistema republicano e à outras alterações a elas articuladas, como por 'ex_emplo,o estimulo à imigração. A República acenava com novas expectativas de ·vida para a sociedade, buscando incluir o país no rol das pdes

nações civilizadas. No que se refere a esse último aspecto, porém, pode-se perceber uma

certa continuidade naquilo que era intitulado e almejado enquanto "civilização", com o predomínio do modelo europeu, sobretudo francês que, como se viu, já estava presente no país desde o início do século XIX (NEE)EI.L, 1993). Literatura, teatro, conversa elegante, educação, ordem, refmament.o nos modos, no comportamento,nos lugares - e, neste caso, muitas casas de café foram percebidas como espaço propício para a aprendizagem e o exrecício destes preceitos. Passear pelas ruas da cidade, envergando temo, chapéu e bengala, sentar-se à mesa de um café de bom gosto, onde se pudesse conversar e conhecer pessoas de bom tom, ver e ser visto, tomavam-se, cada vez mais, costume diário nas novas São Paulo e Rio de Janeiro reformadas. E, se para estas duas cidades a "civilização" estaria, em certa medida,· incorporada nas mudanças que tiveram lugar em seu espaço urbano, o que pensar sobre Belo Horizonte, cidade construida no final do século passado tendo por base as últimas idéias do urbanismo europeu, e como principais modelos as intervenções efetuadas no espaço das grandes cidades do velho continente, sintonizadas, cada uma delas a seu modo, com um "projeto de modernidade"?

O cofl • a imo.6t"' de civlliz,:u;t1c .54



Um arraial perdhlo no tempo F.m Belo Horizonte

os primeiros estabelecimentos de café, ao

contrário do que foi vis.to para outros centro5 ud>ano5 do país e_xan)inadoi anteriormente, nasceriam antes mesmo que a própria cidade, no período que se extende entre 1894 a 1897, isto é, nos anos compreendidos entre a instalação e os

primeiros trabalhos da Comissão Construtora da nova capital e a sua inauguração. ''E como se aquela notícia fosse mn toque a retmir·,por toda parte, operários, artífices, cientistas, industriais, comerciantes e grande número de aventureiros de toda espécie atentaram para o caso e se puseram a preparar, afim de se transportarempara o novo campo de atividade, em busca da fortuna e da felicidade, fossem iniciados os trabalhos de demolição logo que do arraial e construção da cidade" (BARRETO, 1936, p.13).

Seduzidos pelo que se dizia ia ser a nova capital, muitos se decepcionavam com o "arremedo de cidade" que era, a vista d'olhos, aquele pe~eno arraial: " - Deveras?l (...) :Masentão é aquilo a nova Capital, que tanto se elogia?{ - perguntei,pasmado ao Jacinto, alongando o olhar decepcionado pela vastidão populosa que tinha em frente" (BARRETO, 1936, p.387-388).

A reação de malograda surpresa do meruno Abílio Barreto, diante daquele Belo Horizonte _ belo pela paisagem, belo pelo futuro que prometia quando chegou, em setembrc .-ie 1895, foi partilhada por outras diversas pessoas. Nos. primeiro 5 dia, do mêii de abt·il do ano anterior,

o engenheiro e arquiteto

O cq/1, a lma,tm d, civilização

H

português imegranteda Comissão Construtora, Alfredo Camarate,apontavanas

páginasdo jornal h-finas Gerais, o quão desguarnecido e deficiente em conforto,

gêne.rose indústria era o arraial. Vendas mal fomidas, hospedarias - se assim se podma chamá-las - de sétuna categoria, nem luz, nen1 água, nem restaurante, nem café... (43). Como havia dito em crônica de maio de 1894, algo realmente impensávelpara aquele "suprin1ento[extra) de população" que ... "(...) vinha quase todo _habituadoao conforto e comodidadeque proporcionavam os grandescentros de população,e que dispostoa privar-se de muita coisa agradávele supédlua,não esperavaencontrarse num meio absolutamentedesprovido mesmo daquilo que é considerado o rigorosamente indispensável"(44). E foi somente após o desembarque dessa "gente extra" nas poucas ruas

daquele lugarejo - entre eles, encarregados, engenheiros, operários e alguns comerciantes, atraid05 pela promessa de maior fomento daquele pequeno mercado local em função das obras da nova cidade - que este quadro de desalento ensaiou seus primeiros passos de mudança. F.scolhido como local para a futura sede da ~a

capital do Estado de Minas, o velho Curral dei Rei toma,,a contato com

iq>ortantes transformações. Reduzido às adjacências da Matriz da Boa Viagem,

poucas ruas e comércio limitado, o pequeno arraialcomeçaria a se expandir e adensar com a chegada daqueles aventureiros e operários, a tomar novas feições com o início dos trabalhos da Comissão:

"Por todas as ruas, travessase largos,por todas as picadase veredas,o solojá está crivadode estacas, enterradascoma cabeçaà flor da terra(...); a todasas horas e por todos os montes e vales das

O

1

cJI , il /111011,,,,ti, 1·/v///'10

11 0

" circunjaccnciaa, os engc1d1c,lros, manur,ettndo o rúvel, o teodolitoou o b·Bnlto,coodutoros e au.xillnre1.1, b1do numafbinnde quemquercho311r doprc"ait,e r,c,mpre C('m n convicçãode que não du1gnr60 tifo depres!JII quantoo dr.AarioReiade11eja" (45).

A neceHid11dede atender n

HH

"populaçílo"que H dirigio p1.1no

arraial, assim como aquelas que ainda seriam criadas com o andamento dot trabalhos de cor&struçãoda capital, propiciarao-1a instttlaçlo de novas casu comerciais.Porém, o rúvet dos estabelecimentos continuaria sendo de um grau inferior,especialmenteno ~e diz respeito às c11nsde repasto e ao11olojamento,;. É novamenteAlfredo Camarate,na mesma crônica de maio de 1894 citada acima, quemrevela, a paitir das mudanças que presenciou,o estado de car!ncia e privação (no que se refere a algumas comodidades cotidianas comuns em oulro&icentros urbanos)em que vivia a população do lugar: "Abriu-seum boteimais dignodeate nome,onde ae comeregulannente,que ostentaaqui o inauditoluxo de daraos seus hóspedesquartosassoalhadose no qual a donada casa proporcionao aconchegode lar às famíliasque ali se hospedam.(...) A mesaé farta, variada e boa, os quartostodos assoalhado,(!) têm mobilia decente,roupa limpa nas camas, lavatório, jarTo e bacia (li). Neste ponto estamosjá com os recursosde umagrandecidadee ficamospor umavez Jivresde certosestalajeirosque,faz.endo-nos comere dormir como animais,em celha e chiqueiros,nos cobravama razãode cincomilreis diârios.(...) e não levarámuitosdias, quenão vejamospor aqui:cafés, botequins, restaurantes,lojas de confeiteiros,de ferragens, e de alfaiates, annauns de modas, perfiimarias(...) To~osda lo_calidade se ufanam_pOI' já posauiremumpadearofrances,por se matarboatodos os dias, por teremcarpinteirosde verdade,boticários

O cqfi , a lmo{J,md,

c/1J//lz.11;,fo

57

,r (...\, bando1de turcos butàrlnhondo ninhariu de t llt.:lt'"umcemltól'io provisório" (46). ro1êrn, me mo com todas e ,u mudança,, tudo era ainda como o proprioOd4' 1unobtunv11d1 ruttJdlv-,rt11n d t1 ríçóe"

h&J1t01, )lftJ'I ,abr I o o d

nctiipúlJJk11 dt cb1'â fU'l'\)JüdllnpoJ"OOM:ll O CaféJforhuutto(inido do ~ •* Ã,') 1 mlnodo omoum"bolo(juim modo~to". O C1r6Pari,, d4!irwlfiJ~ao"chu'", • apt~fOtl\do comoum "ttmnvl"llhlt"'c-t11lm", Por outro Indo,dênr v ndo o iru rfor do tàm ao r J1ndo 1rêGlobo,nb rto elo" plano sobre ela: "( ...) o triunfo da linha reta e dos ânguloa agudo,. e esta [era) a razão porque, fm todo o mundo c~ería) a única urb!; dentro da qual, em qualquer ponto, !;e veêm as ruas em toda a ma extensão, como 5e fossem fita!; i.mensasdeitadas ao longo de suas casas". (8).

Em 17 de dezembro do ano de 1893, uma lei adicional à Constituição do Estado definia finalmente, após alguns estudos em diferentes localidades,

o

lugar destinado a abrigar a nova capital de Minas. Quatro anos passados e um antigo e pequeno arraial conhecido como Curral dei Rei, amanhecia um "Belo Horizonte" (9). Muitos dos projetos que constavam do plano elaborado pela Comissão Construtora

ainda não estavam completamente

temúnados,

alguns

acabariam não sendo sequer executados, no entanto, o essencial para que a nova sede do governo mineiro pudesse entrar em funcionamento já tinha sido concluí.do. Mas, se nem tudo que constava das plantas elaboradas pela Comissão estava pronto, já estava ao menos projetado, e assim, a 12 de dezembro de 1897 a cidade era "inaugurada" com toda "pompa e circunstância" necessárias à ocasião. Autoridades e comitiva desembarcando de trem, discursos pronunciados na Praça

da Liberdade, o centro dos poderes do Estado. AJ comemorações contaram com salva de tiros de canhão e banda de música, ruas efusivamente ornamentadas



bandeirolas, arcos, festões, galhardetes e gente, ocupando todos Oi lugarei onde

Fabricando reflexo~

81

havia festa - que iria se prolongar até alta noite nos bares da Belo Horionte. E para fechar em grande estilo os festejos de instalação da novíssima cidade, haveria, ainda nesse mesmo dia, o nascimento daquela que seria a primeira cidadã da nova capit.al, chamada por isso mesmo; de I\-finas Horizontina (BARRETO, 1936, p.713-

739).. .~ _!e~ta~oroava uma grande v~tóri~, que seria percebida num artigo publicado no jornal A Capital, como a vitória do progresso, da razão e da inteligência. Uma grande cidade com grandes possibilidades, voltada para o futuro, o desenvolvimento, o moderno, o cosmopolita. Uma capital digna "dos foros de povo civilizado"

~

dos "benéficos influxos do progresso" inst.aurados com o novo

regime (1O). Tmha-se um espaço invejável, ordenado, limpo, racionalizado, primor da estética, como ,

alegria nos clubes, nos cafés finos. Que se enchesse de

Fabricando ,,jlao;

81

Uurburinhoo parque, as avenidas, a cidade . . . Finalmente, o povo mineiro já podia contar com uma capital civilizada, ou quase. Afinal, é preciso pensar que, por mais que os planejadores tenham idealizado o· espaço da nova sede do gov~o

aímado

com as ent.ão '!modernas" idéias do urbanismo, uma cidade não se faz apenas através de traços retos, praças, casas ou palacetes. O elemento humano é que dá vida a esse espaço. Assirn, as relações que seus habitantes estabelecem, os lugares que eles criam, a maneira como eles ocupam a cidade são, da mesma f onna, aspectos determinant.es na qualificação que se possa fazer a respeito dessa cidade. E nesse sentido, é possível perceber que, em Belo Horizonte não é apenas a cidade que era idealizada, mas ainda, a própria população - gente fina, elegante, culta ... Da mesma forma que a planta projetada para a cidade

seguia o~

modelos europeus, como por exemplo Paris ou Viena, a população, as casas comerciais e as atividades nela estabelecidas também haveriam de seguir um tipo de padrão considerado como civilizado e moderno. É a classe but·guesa européia, seus comportamentos, seus gostos, suas instituições culturais e sociais que se constituem no pattern a set" copiado. Todos esses elementos enumerados acima eram parte integrante da idéia que se fazia do "ser civilizado": movimento, moda, hábitos elegantes e educados, teatro ... E esta tta uma das razões da presença dos cafés nas imagens construídas a respeito de como deveria ser a moderna capital. Dessa forma, o café pode ser pensado aqui como espaço que funcionaria ~.nquanto um auxiliar na promoção daquele projeto de ordenação elitista e burguês. Esses desejados estabelecimentos de café iriam adquirir uma grande importância em meio à sociedade belorizontina nas primeiras décadas de sua existência, e sua presença entre as ruas dessa "urbs de linhas retas"

pode ser

>

Fabricando ,qluo& 83

pensada através de aspect.os bastante semelhantes aos que foram apresentados no capítulo anterior para os estabelecimentos europeus e, também, para aqueles café5, abertos em algumas cidades brasileiras. Se na Europa, como foi visto, as· mudanças verificadas no âmbito da sociedade aristocrática. durante o séculos XVIl e XVIII e as alterações urbanas que elas engendraram, exerceram influências na abertura e expansão das casas de café, no Brasil as transformações política·s, econômicas, sociais e urbanas, entre outras, vividas no decorrer do século XIX e início do atual, contribuíram no mesmo sentido. É nesse contexto que a nova capital mineira e os seus estabelecimentos de café serão analisados aqui. Cidade republicana, erguida no final do século

~

Belo Horizonte

não conheceu o apogeu da sociabilidade aristocrática, dominada pela hierarquia, formalidade e a restrição reinantes nos salões da corte e das famílias nobres

~

que

predominavam no período colonial e, também, na época do Império. Ao contrário, a nova capital nascia num momento em que um novo tipo de sociabilidade~ mais aberta e mais diversificada no que diz respeito às normas hierárquicas e aos estratos sociais, começava a surgir e a se sobrepor àquelas antigas fom1as de relacionamento presentes na sociedade. Um tipo de sociabilidade que, como se v'iu no capitulo anterior, comportava o estabelecimento de contatos mais divei·sificados e menos dependentes da possibilidade de classificação dos interlocutores, como aqueles que se davam no interior dos cafés. Tomando o caso europeu como referência,

~i

(1974)

ªPonta que, com o crescimento e a diversificação verificados no universo ut'bano, a associação entre os homens de fins do século >...rvme XIX não se apoiava mais em Critériosde posição social. Afinal, os novos tempos, a nova organização social e

p l'ahrícando

refle::xof

84

e51>1cial das modernas cidades do velho mundo ao promoverem a individualiza.ção

e a indeterminação do sujeito, praticamente inviabilizavam as relações daquela natureza. No tempo e cidade modernos predominava o chamado "tipo anônimo de integração"·(ll);·bastante·diverso

daquele que regia a interação entre os homens na

velha sociedade aristocrática. Nesse mesmo sentido, SENNETT (1988) aponta: "À medida que a cidade continuava a se encher de ••gentê; as pessoas foram -peraetido cada vez mais o contato funcional umas com as outr·as nas ruas. Havia

mais estranhos. e eles estavam mais isolados. (p.172)." · ''Além do mais, não há meios claros para se dizer quem são os homens ~as grandes cidades, de tal mo.do que a ênfase [para julgá-los ou ciassificá-los] recai

inteiramentesobre aquilo quefazem"(p.141). Porém, como apontam SENNETT (1988) e

MANNHETh,{

(1974), esse

anonimato que regia as relações modetnas não foi suficiente para sepultar ou extinguir o elitismo e a segregação social em meio às essas relações. Isto significa que, essa nova sociabilidade não era de fato inteirament.e "democrática" como se

arvorava, ou, dizendo de outra forma, o anonimato que passava a reger o contato enlre as pessoas na sociedade moderna não deve ser tomado como garantia de relações sociais mais "democráticas". •.Analisando a experiência dos habitantes da capital mineira dentro deste novo contexto das relações sociais é possível verificar que. ainda que nascida num mome:ito em que o contato entre os hon1ens era regido por novas regras, o tipo de integração e de sociabilidade que caracterizavam a cidade não se encaixavam ip.ris litarls nesse chamado modelo "anônimo" de interação. Uma

b

b

l'ab,icando ,eflaos

8.5

consultaàs crônicas e obras literárias produzidas na e ~obre a cidade apontam

que,para uma parte significativa de sua população e em especial aquela ligada à burocracia, esse anonimato não era moeda corrente. As lembranças de Nava (1985) são ·exemplo:· quando aiesenta

seus personagens ele tece toda sua genealogia,

expondo também as relações de amizade que aproximavam grande parte das famílias. Outro autor

quenos

fala a eite respeito ·é RENAULT (1988): "A

populaçãc se conhecia e se cumprimentava. Aquele que mora no bairro dos Funcionários sabe o nome de todos seus residentes" (p.17). Nessas lembranças sobre a Belo Horizonte dos anos vinte, a cidade se apresenta como um espaço no qual quase tudo e quase todos eram reconhecíveis. No C{Ue diz respeito aos seus habitantes, isto significava que quase toda pessoa era passível de ser classificada, reduzida "às proporções de

alguém a quem na

verdade se conhecia, se não pessoalmente pelo menos de modo abstrato, como sendo aparentada, de forma mais ou menos estreita, com alguma família" (CONNERTON, 1993, p.20-21). A cidade produzia, em relação aos seus habitantes, uma sensação de existir, de ser conhecido e reconhecido, em contraste com· o anônimo. Isto, em certa medida, facilitava as relações cordiais entre os indivíduos: sorrisos, cumprimentos, saudações, troca de palavras. É nesse sentido

quese pensa a cidade como umà ''unidade de vizinhança" (ARGAN, 1992, p.235), em oposição à grande metrópole, ocupada por uma população [multidão] desconhecida e inclassificável. • Certame~,

é preciso relativizar esse aspecto dentro de uma cidade

construída como a capital mineira.Elitista, a cidade não favorecia relações entre pobres e ricos. Estes, inclusive, tinham já seus lugares demarcados e definidos no

,ah,Jc,md~ ,,,Jln,;;: 86

eap■ ço

urbano. P rém, •dedro

RENAtJLT ~

1U

de1H1

como

lugue1 (ou baitrOf) defmidos,

ere acima, era pouivel obtervar esse tipo de te1aeionamento.

im, é nec

árjo re ,altar, também que, 1e é poHível detectM relações mai

cordíait, apar

• maie famíliaret ou íntimas, i~so não 1ítpifícava, ou era

suficíenu par• caractttízá,..Ju como menos etítistu e mais democráticas.

~ensacb desde sanpre como lugar d'> moderno~ do novo, seja no -que . . - se rd.eria ao seu espa~o fi1íco, ao seu plano urbano, seja no seu aspecto humano, ,.

social, Belo Horizonte deveria reproduzis-o que de melhor havía no &asíl ..., no n1Jndo ... , na "cívitização"t É a metcópol.e~rguesa moderna que serve de modelo a nova capital, e eram as novas formas de relacionamento dominanta nos grandes centros que povoavam~• ídéias_dos seus cria.dores e de alguns de seus primeiro.ó aorusta1. No erâanto, mesmo que liberadas das ~,elhas regras e ímpedímentc,s hierárquicos, as relações estabelec,idu pelos habítarus da cidade não reproduziam {ampla e repetidamente) os modelos erúo dominantes na sociedade européia. Meano que o projeto da capital mineira tenha surgido sob um IJlOIDredO de rmdança1, de ucenção de novas prátícu e valores no campo da int«a.ção eláe os

homem(e mesmo que não u

reproduza quando ganhe vida), ele niescondia seu

fundo elitista - eJe nio comporta as cbun

baíxu, que são lembradas sempre na

forma da excludo, para além dai fronteiru da cidade (12). Na verdade, a cjdade

ji era elitista e estratíftcada de.de sua própría concepção. Esns caractmsticu

se

farto •entir também em relação aoa estabel.eeimed.os de ct.f~ da nova etpital. npecialmette

no que se ref«e à relaçio entre cpJalidade e loc

verá mais adiuu.

r

ç-o corno se

l'abricando r,jlao&

87

Outra relação possível entre a difu!-;ão das casas de café em Belo Horizonte e em outros centros refere-se ao aumento da população urbana. Se a expansão urbana - fruto das mudanças vivenciadas pela Europa entre os séculos

XVIll e XIX, e XIX e XX pelo Brasil - influiu nas formas e caracteristicas das relações mantidas pelas pessoas, ela também extendeu seus reflexos na difusão das casas de café, tanto lá como aqui. A ampliação das can1adas médias e mais a sua conseqüente.demanda.por.outros espaços de.interação social foram.fato:-es que exercei-aminfluências importantes no surgimento e expansão dos estabelecimentos de café, ou mesmo, um dos seus elementos determinantes. Atinai, como aponta

AGUUION (1971), a nova diversificação da estratificação social não suportava a antiga dualidade elite-polular no que se refere aos espaços do encontro e da troca social em público, e é no vàcuo dessa diver-sificação que os cafés alcançaram projeção. No caso da capital mineira, porém, não foram necessárias mundanças

para o surgimento de uma camada média significativa. Construída e:,q>ressamente para se tomar a nova sede do governo do Estado sob o nascente regime republicano, Belo Horizonte contava com um número e,q,ressivo de elementos da classe média em meio a sua população. Muitos diriam dela nestes seus primeiros anos:cidade burocrática ... ,

"(...) dos estudantes, dos soldados, dos fimcionál-ios [públicos] tipo "A", tipo ''B" ou tipo "C", segundo a

casa em quehabitassem"( 13). Situação que perduraria por certo tempo, como revelam os dados do Anuá1io Estatisôco (1922-1925) (14): em 1920, num universo de 19.323 pessoas





Fabricando .-,:J:aoi 88

ocupadas profisc-ion1lrnente (numa população total de .5.5..563), o setor terciárió absorvia 10.838 habitantes (56.1%), dos quais 3.314 (30,6%) apenas nos serviços burocráticos e na força pública. Segund~ OUTRA (1988), "a grande concentração na administração é natural numa capital de estado, onde as tarefas administrativas e burocráticas possuem enorme peso" (p.57). Dessa forma, para

B~lo Horizonte

aquele fator - existência de uma camada social média expressiva e suas demandas

- precedia a própt·ia cidade. Isto é, ele esbva dado de antemão por sua deíuúção mesma enquant.o capital. E neste caso, Wlla clientela de hábitos sociais menos restritivos ou aristocráticos

não faltaria para ocupar os diversos cafés que

haveriam de se instalar em meio a suas ruas e avenidas. No que se r~ere ao seu espaço urbano, Belo Horizonte também não vivenciou o periodo marcado pelas cidades arcaicas e acanhadas, como meninas feias e desengonçadas, que predominavam no país durante a época

imperial.

Cidades que não apt·esentavam qualquer atrativo, dominadas por ruelas pequenas e tortuosas, sem saneamento e mal iluminadas; ocupadas por tabernas, vendedores ambulantes e escravos,

e

consideradas como verdadeira ameaça à mo111l da

família - lugar da pennissividade, da imprevisibilidade, da decepção. Na ausência de um espaço público à sua "altura", as famílias viviam praticamente em reclusão

doméstica (15). Cidades como a São Paulo ou Rio de Janeiro do século XIX, que, como foi examinado no capítulo anterior, precisaram ser alvo de detemunadas reformas (em certos casos, como na capital do país, bastante radicais) a fim de oferecer opções e lugares com pouco mais de refinamento e comodidade para o desenvolvimento da vida social pública de sua população, assim como aquela que tinha lugar nos melhores centros europeus.

-

Fabricando r(/lao& 89

É preciso ressaltar porém que, ao apontar a ausência de opções que favorecessem o desenvolvimento de uma sociabilidade de cunho familiar dentro do universo

urbano

nos grandes

centros

brasileiros

- ou,

e:,--pecificamente,da rua e das casas comerciais nela estabelecidas

mais

não se

pretende n~gar a e.xist.ência de troca social, de interação entre alguns

dos

habitantes das cidades nesse tipo de espaço. Afinal, se a rua (assim como suas &abemas,.seus quiosques ou qualquer outra.espécie.de.estabelecimento públ!co que as ocupavam) não possuia atrativos suficientes capazes de seduzir ou de estimular

a freqüência da "família", outras camadas da população não deixavam de usufruir desse espaço. No ~nto,

a "princesinha" mineira, ao contrário de outros importantes

centros brasileit·os do século passado, nascia sob o signo do planejamento, da ordenação, da definição dos espaços urbanos inspirados no modelo já consolidado das grandes cidades européias. Espaços

[desejados]

de vida e movimento,

comiopolitas, civilizados: parques, boulnards, clubes, praças, cafés ... Esses eram alguns dos adjetivos e dos elementos que apoiavam o seu plano e que, também,. ~ervtam de substrato a tudo que se idealizava em relação àquela

nova capital.

Dessa forma, Belo Horizonte já nascia com "tudo no seu devido lugar", não seria necessário nenhum tipo de reforma para "civilizar" seu espaço urbano, como •averia de ocorrer nas duas cidades citadas acima. Na verdade, resultado de urn projeto detalhadamente elaborado segundo as idéias que regiam o p~amento

do modemo urbanismo no velho

eontinente, a própria cidade já se constituía numa intervenção, iniciada com o decreto de sua cri~ção e com as demarcações determinadas em seu plano, e que

---

Fabricando refl.ao&

90

se mmteria por longo tempo, através de diversos

atos administrativos

de seu

governo. Como é possivel verificar em vários documentos e em diferentes esferas da vida de seus hahitantes,

a capital surgia como uma imposição, que trazia

definidos nom1as e preceitos a respeito do desenho de suas ruas, de suas casas; do modo como ela deveria ser ocupada; de como ela deveria funcionar e se desenvolver, e ainda, rio que se refere ao comportamento de sua população e às formas coh10 ela deveria usufruir o espaço público urbano (16): ''Fica proibido o uso dos jardins públicos, praças e do parque mtinicipal a pessoas ébrias, alienadas, indigentes, e as que não estiverem decentemente trajadas, e bem assim as que lev2rem consigo ( ...) volumes excedentes de 30 centímetros de largura por 40 de comprimento" (Decreto n.10, 24 de jtmho de 1925). ''Nenhum indivíduo poderá pedir esmolas, no distrito da cidade, sem •esm inscrito como mendigo, no respectivo livro da Prefeitura" (Decreto n.143.5,27 de dezembro de 1900). "O adquirente de lote nos termos desse regulamento, além de sujeiw-sc 3s regras de construção, higiene e segurança dos prédios que forem posteriormente estabelecidas, ainda se sujeitará ( ...) às seguintes cláusulas: •.

1- O adquirent~ de lotes urbanos para prédios mbanos os edificará num prazo fatal de quatro anos ( ...); e quando os lotes sejam contiguos, até o número de três, poderá fazer uma s~ edificação o~ casa, mas ~om a obrig3 ção de cultivar flores, arvores 1hitifet.i~: hortaliças, pelo menos na metade de todo o terreno (Decreto 803, de 11 de janeiro de 1895).

--



FQhrlcando .·rflcro~

91

"~.,enas a uma das avenidas (...) dei a largura de ~O ~etros. para_ constitui-la em centro obrigado da Ct~adee, assnn, forçar a população, quanto possível, a tr ~e ~e~envolvendodo centro para a periferia" (Comtssao Construtora.,oficio n.26, 23 de março de 1895). "As a~enidasde 3.5metros de largira, terão passeios latet·ais de 4 metros de largura, duplo renque de árvores.junto aos p$i~_seiQj)_ tkan.do _Q_cenu-.9 tQqo(....)_.___·-· para trânsito livi·e dos can·os e tram-ways" (Revü,1a Geral dos Trabalhos, 1895). • Essas

vias

urbanas

iluminadas, eram, teoricamente

da nova

capital,

saneadas,

arborizadas

e

(17), um espaço propício para o usufruto da

"família", para o desenvolvimento

daquele

novo padrão de sociabilidad'._S,

moderno, burguês e civilizado. E, conforme a crença de muitos, o estabelecimento

de um comércio de qualidade só haveria de reiterar essa suposta qualidade do espaço público da cidade. Porém, nem tudo que parece tão bem pensado, definido e articulado num plano urbano, necessariamente funciona quando vira t·ealidade. Na experiência cotidiana dos primeiros moradores da Belo Horizonte, as ·vias

urbanas não se tran,_c.:formaram Qum espaço de vida social intensa e trepidante. num lu_garde contato e troca social múltiplos, na exata medida em que havia sido idealizado e desejado:

"A capital mineira estava longe de cumprir essa vocação. (...) ao invés de estimulara intenç.ão social. seu espaço a constrangia,comprometendo,é claro, sua vida pública. (...) ao mesmo tempo que oferecia espaços adequados e atraentes para o convívio, contraditoriamente [a cidade] inibia, com sua 'geografia' segregacionista e disciplinador~ a





Fflhrlcando

r~oor

91

interação entre os indivíduos." (JUUÃO 1992 p.86 e 90). ' ' Essa visão do espaço urbano planejado das cidades modernas como elmiento inibidor do estab~lecin1ent.o de trocas, de relações sociais entre os seus habitantes, é um dos principais argumentos dos críticos de algumas soluçoes urbanísticas, con10 as que foram postas em prática através das reformas parisienses de Haussmann., até mesmo àquelas ..preconizadas. por Le __ Corbusier seguidores.

A priot-idade que davan1 ao movimento,

à vi5ibilidade

e seus e

à

racionalidade, mais o contro_te,a ordenação e a segregação que possibilitavam são apontados como fatores detetnlinantes de uma cett.a supemcialidade,

de un1 certo

constrangimento, ou mesmo de um declínio na vida pública dessas cidades (18). Nesse sentido, é importante ressaltar

que a interação entre os

habitantes no espaço urbano da bela Belo Horizonte não se desenvolveu exatamente segundo os n1oldes das grandes cidades ew-opéias que havian1 lhe servido de inspiração - "intensa e trepidante", "elegante e civilizada". Afirmar esse descompasso entre o ndesejado" e o "realizado'\ no entanto, não significa neg.u· a existência de vida pública na nova capital. Assim, se no traçado moderno de suas vias a cidade constrangia, ela não deixa de apresent.ar outros an1bient.es pa.n o desenvolvimento dessa vida píablica. Se a imensidão da rua não favorecia

à

reunião, espaços, como por exemplo cafés e cinemas (entre outros), que para elas abriam as portas, foram lugares importantes para o encontro da população dessa cidade. Se enquanto espaço alternativo às vias e praças da cidade. os cafés podem ser tomados muitas vezes como uma forma de reagir às imposições que

0

f abricQJ'/do t'{ffr:xoi

93

pllno da cidade carrP.ga;se esse plano induz ao constrangimento no que se refere ao contato· entre os homens, esses podem criar ou se apropriar de outros espaços da cidade, entre os quais o café. Idéia a primeira vista ambígua, se lembrarmos das possibilidades de controle e ordenação que se inscrevem na visão que toma o café como lugar de civilização. Porém, no fundo, o café é espaço de manifestação e confronto dessas duas forças: se ele se presta à ordenar, dirigir, impor normas e comportamentosburgueses, serve também como e~aço· para burlar essas mesmas normas,para a criação e\ou prática de formas de comportamento que se inscrevem

emregistros diversos ao do "moderno e civilizado burguês", como espaço onde se criamrelações que fogem à essa tentativa de a tudo controlar. Se um dia a nova cidade teria seu café elegante (o Estrela), aberto

r.J

rua mais elegante, onde se reunia o funcionário público classe média e ot medalhões locais [o que, para certos cronistas ainda não bastava para igualá-lo aos cobiçados modelos europeus], ela também teria, espalhados em várias de suas ruas, outros diversos cafés, pequenos e simples, e cuja freqüência mais popular os caracterizaria, na opinião de alguns, enquanto espaços de desordem e provincianismo, como era o caso, em especial, de alguns estabelecimentos da região do meretrício, que costumavam aparecer nas notas policiais dos jornais da capital cm função dos excessos cometidos por seus frequentadores. Até mesmo algumas casas da região central protagonizaram momentos de desordem: brigas, tiros, bebedeiras no Bar do Ponto, no Trianon [assunto a ser observado no próximo capítulo]. Outro momento onde é possível perceber os cafés na contramão dos projetos de ordenação da sociedade está no fato desses estabelecimentos lerem sido tomados por vários clientes como lugar de ócio ou de negócios, (flebrando a funcionalidade e a classificação que o plano original buscou imprimir



Fabrícandor,j/exoi 94

ao espaç_o~..~-~pital. Passar o dia no café contrariava

O projeto

urbano, que havia

designado a casa (familiar) como espaço do descanço, e também o projeto social, que buscava criar e controlar o homem digno e trabalhador. Para além dessa questão, um outro aspecto influênt.e no prestígio que os cafés haveriam de adquirir na nova capital diz respeito a própria experiência urbana anterior que teriam alguns moradores que para ela se transferiram. Ao que parece, para muitos daqueles habitantes que se fixaram na cidade, a freqüência a est3belecimentos desse gênero já era como que um hábito, fazia parte de seu cotidiano·.É por exemplo, o· que nos sugere a crônica publicada em dezembro de 1927 no jornal Diário de ~finas, citada no capítulo anterior, na qual o autor recorda a demora em acostumar-se· à inexistên.:ia de uma casa de café na cidade ainda em construção (19).

Fm Ouro Preto, lugar de origem da grande maioria dos funcionários que viriam se instalar na nova capital, essas casas de café não eram nenhuma novidade em meio à população. Como revela o cronistá MoaC)T·Àlldrade, o sr. Felipe Longo - antes de se tomar proprietário do mais famoso café belorizontino, o

Cafée Bar do Ponto - mantinha na antiga cidade de Ouro Preto estabelecimentos de café e bilhares (20). Outra informação sobre a presença desse tipo de estabelecimento aberto ao público na velha capital mineira é dada pelo gaúcho Pedro Rache. Em suas memórias sobre a época de estudante naquela cidade, ele aponta a presença de algumas casas de

café entre um universo de diferentes

estabelecimentos comerciais em funcionamento. Recém-chegado à velha capital de Minas na última década do século passado, ele se surpreendia com a animação e a variedade do comércio local:



Fabricando refle.xoI

9.5

"(._..) a rua principal movimentada. com bons cates. l~Jas de fazendas bem sortidas, gente de bom aspecto cu~tand~ pela limpa calçada de paralelepípedos. Aqu~lo nao era tão ah-asado como supunha e mais admirado ficou quando o seu cicerone, ao entrarem num café, pediu uma garrafa de cerveja Pá, de fabricação alemã'" (21)

Além de sugerir uma familiaridade

entre razoável

número

dos

habitantes da nova capital e os estabelecimentos de café, essa passagem aponta para outra questão importante: em que medida a presença de um estabelecimento de café no espaço urbano da cidade era sinal, ou mesmo medida de civilização?

Afinal, a "provinciana" e "acanhada" Ouro Preto, assim como o velho Rio de Janeiro antes das reformas de Pereira Passos, jâ possuíam seus exemplares do gênero (22), n1as, apesar disso, essas cidades na maior parte das vezes não eram vistas como exemplos de centros civilizados. Neste caso, é possível pensar que o café em si não constitui um sinal de civilização ou cosmopolitismo. O que lhe confere esse caráter são o serviço, a decoração, a clientela (com seus modos e comportamentos), que juntos poderiam criar um ambiente elegante e refinado. Como será visto, mesmo na Belo Horizonte de meados da década de trinta alguns moradores iriam considerar os cafés locais extremamente n1edíocres. Mas se essas casas de café não foram

parte da experiência, da

realidade anterior presente no dia-a-dia de todos aqueles que seriam seus futuros ~

.

habitantes. elas não deixaram de compor as citadas imagens que grande parte deles faziam a respeito de como deveria ser uma verdadeira capit.al. Afmal a Europa era pródiga neste tipo de- estabelecimentos, e se essa mesma Europa era o exemplo







l'ahricando r,J[c.o; 96

5Upremode civilização e cosmopolitismo, aquela nova e moderna capital, de futuro úo promissor, não poderia prescindir deles. No que se refere a todo esse discurso sobre a decantada modernidade daquela Belo Hor-izonte, é preciso ter em mente que, mesmo que tenha sido

planejada e construída para o novo, a capital e os seus habitantes não se constítuiram como um exemplo acabado e perfeito

do que se considerava o

moderno, o civilizado. Diversamente disso, a cidade e a sua ocupação também ofereceram exemplos: de provincianismo, seja em seu espaço urbano, seja no âmbito social. Algumas crônicas, reportagens, e mesmo obras literárias revelam imagens bastante contraditórias àqueles ideais de modernidade em meio aos quais

a cidade foi pllú..c:jada- tanto no que se refere às plantas da Comissão Construtora como em relação acs sonhos, aos desejos de grande parte dos homens que viriam

habitá-la. Como será visto de forma mais abrangente

no

capítulo seguinte, a

capital haveria de conviver por um longo período, com dois discursos distintos e antagônicos a respeito dessa sua tão almejada "civilização".

Em diversas lembranças produzidas

sobre a cidade, é possível

det.edara presença de um certo arcaísmo, um ar de coisa ultrapassada, de coisa como que parada no tempo. Um bom exemplo des:se tipo de sensação está nes~

passagem do escritor Cyro dos Anjos a respeito das suas primeiras in1pressões sobre a capital nos começos dos anos vinte:

"( ...) pelo menos nas aparências, o estilo de vida dos fins do século XIX imperava, ainda, em Belo Horizonte, quando para lá fui, adoleGcente, fazer os meus preparatórios. (...) O certo é que pude ver,

-

,ahrícar.do rq/aoi

97

ainda, na capital mineira,as marcasdo rm.mdoantigo.. (Anjos, 1974,p.117). Entre elas, cita o autor, estavam o poder dos antigos próceres do império, os ctvalheiros em velhos fraques, os passos pachorrentos, monóculos, tílburis e cupês, a quadrilha, a valsa ... uma gente com seus modos e seus valores, bem específicos e tradicionais, inclusive no que diz respeito ao relacionamento social. ~fas, da mesma forma, isso não significa dizer que a cidade seria o exemplo claro e acabado do seu contrário - ou seja, do provincianismo. No fundo, o que se vivia naquela Belo Horizo~

era a experiência de um período de mudanças. de

tnnsições, como muito bem explica o mesmo autor da passagem citada acima: ''Vejo, nesta altur~ desmoronar a tese que tão laboriosamente esbocei no começo deste artigo. O século XIX vinha-se esfarinhando há mais tempo. A sociedade m3l"cha desigualmente,como mn batalhão de recrutas. Cettas de suas manifestações adiantamo

passo, outJ·as o atnsam, quando não retroce~ desorientadas" (ANJOS, 1970, p.118).

A capital era, no fundo, uma mistura de tempos. Uma cidade de quem viveu o passado, de quem trazia seus hábitos, manias, costumes arraigados~ de quem já tinha uma lo~a história percorrida. Mas, também, uma cidade de quem

ansiava pelo futuro, de quem era só desejo e novidade. Essa diversidade nos anseios, nas experiências e nos seus variados tempos conbibuiu no sentido de ~

.

impedir que a Belo Horizonte se tomasse apenas cópia de um modelo qualquer. Ser i~

(moderna) ou aquilo (provinciana)! - propwlharn os discw·sos engendt-ados

sobre ela. Nem uma cÕisa, nem outra - respondia a cidade no seu concreto.



l'ahrlcando ujlaos 98

Durante as primeiras décadas de sua existência essa "moderna urbs" ' de linhas retas acabou por abrigar um grande número de estabelecimentos de café.

Afinal, como foi visto, a cidade possuia quase todos os elementos que foram influent.esna expansão desse gênero de casas no continente europeu, e também, em algumas das principais cidades brasileiras. Como será discutido no próximo capítulo, talvez esses estabelecimentos não tenham c~rrespondido em refinamento e elegância, em civilidade e cosmopolitismo àqueles modelos que povoavam os sonhos e os desejos dos construtores e de muitos dos homens que se deslocaram para a nova cidade. Talvez, ~lgumas dessas casas [seja em função de seu aspecto,

ou então de sua freguesia] tenham mesmo se transformado em espaço de negação de tudo aquilo que se ansiava· para a nova capital. Para analisar as casas de café da Belo Horizonte frente às visões do que era considerado uma verdadeira capital, ou ao que era concebido como moderno, civilizado· e cosmopolita, é imprescindível conhecer e mapear esses estabelecimentos através da· cidade. Em que lugares essas casas estavam localizadas? Como eJas se classificavam no que diz respeito à sua decoração? à sua clientela? ao ambiente criado pelos garçons e proprietários e também por sua freguesia? - Onde estavam e como eram os cafés da Belo Horizonte?

Os cafés no espaço da cidade

........_

1"rwportei-me, lendo O Binóculo, ao Belo Horizontede 1908. (...) Como era boa a vida aqui em 1908! (...) Seguia pela avenida e vi o Café Paru, ,.,...,0 no começo da rua da Bahia, jovens literatos ::> .

l'ahricar.do ,~Raot 99

.ri

falQndosobre o simbolismo[aquelesmoçospálidos e ~ªf!º~ e suas paixões tenebrosas por moças matmgtveis]"(23). C~é e restaurante, o Paris estava instalado no salão onde havia funcionado o antigo restaurante Acre, na rua da Bahia, uma das vias de maior importância na nova cidade (24). Naquela primeira década dos anos de 1900, o _Paris ha~~a s~ transformado num dos principais pontos de encontro, daqueles -

-

.

·-

-

.,._.,

__

poetas e, tambén1, da haJ1te-gomme da capital mineira_,como revela

·---

FRIEIRO

(1966, p.251). Bebida, poesia e música americana vinda de um piano elétrico, eram algumas das atrações que a casa oferecia, e a freguesia, como nos cafés existentes no Rio e em São Paulo, era especialmente masculina. Essa mesma· rua da Bahia seria endereço ainda de outros célebres estabelecimentos do gênero, além do citado Café Paris. Entre eles destaca-se o Café e Confeitaria Estrela, em funcionamento durante as décadas de dez e vinte.

Este café seria apresentado através das memórias escritas sobre a capital, como um de seus exeniplares mais inipottantes e afamados. Fan1a que se petpetuaria pelo. fato de ter sido uma espécie de "quartel-general" da geração modernista de Belo Horizonte (25), o que o tomaria uma referência praticamente obrigatória na hi~ória da literatura mineira. A casa estava instalada em um sobrado de cinco porbs, no segundo

quarteirão para quem subia a Bahia a partir da avenida Afonso Pena. Uma crônica no jornal Estado de :Minas em dezembro de 1959, apontava que seu verdadeiro nome era Café Municipal, como, segundo seu autor, estava impresso em ladrilhos no passeio em frente à entrada (26). De fato, até o ano de 1933 o número 1004 da





Fabricando ref[ao& 100

rua· da Bahia abrigava o Café Municipal, e a partir do ano seguinte o mesmo número surge sob nova denominação,

Café e Bar Agubr (27). Mas, apesar de

contar com seu nome gravado em lugar tão visível, esse estabelecimento seria chamado Estrela pela grande maioria da população. Confonne revela o mesmo aoni~,

e~

segundo

nome se devia ao fato da casa "ostentar no alto da

fechadura uma estrela de cinco pontas" (28). E tão difundido se tomaria este costume, que até mesmo os anúncios publicados pela casa nos periód;cos da cidade vinham com o nome de Estrela:

"Parai um pouco, leitoras, e entrai, deveis dar preferência à Confeitaria Estrela, onde sereis servidascom a maior distinção!"(29). Além de reafirmar o costume, esse pequeno anúncio aponta para outro aspecto importante, e bastante específico: o fato do Estrela funcionar também como confeitaria, nos moldes da famosa Confeitaria Colombo existente na antiga capital do país, o Rio de Janeiro, onde honradas senhoras encontravam um lugar requintado e respeitável para o encontro e o chá ~om as amigas ou o passeio com os filhos durante à tarde. Por alguns anos o Estrela seria, ao lado do Trianon, uma das principais e mais indicadas confeitarias da cidade. A crer no que apontam crônicas e memórias escritas a respeito da jovem cidade, o Estrela seria o mais elegante e refinado esta~elecirnento de café existente na Belo Horizonte dos anos vinte. representantes das

melhores

acompanhando s~orinhas

famílias

Como confeitaria a casa atraía as

da sociedade

mineira:

mães

e tias

e criança~ para um lanche durànte a tarde. Como café,

a casa se converteu em ponto de encontro de jornalistas e do~ colabot·ado.-es de

p

l'ahrícando r,jlno& 101

.rr.

~ns

periódicos (!Ue mantinham suas redações naquela região e também, em

tspecial, da geração modemist.a reunida naquela mesma década. AJém do salão de frente, o Estrela mantinha nos fundos ·um gabinete particular, "dis~etíssimo", com uma pequena entrada pela lateral do edificio. Funcionando como uma e~écie de reservado, esse espaço era destinado aos clientes especiais (30).

Na descrição feita por Pedro Nava, a casa primava pelo luxo e o requinte da decoração: "'(...) as [ duas pottas] dos extt·emos tinham sido

viradas em vitrines (...) [no interior do salão] um par de estantes, uma de cada lado do caie, com prateleiras circulares que diminuíam de tamanho na medida que se sobrepwiham. Pareciam fruteit-as antigas, altas de metro e meio. F.ramtorneadas na mesma madeira dos oufros ornatos. Na parede do fundo abriam-se duas portaspara entrada dos detrás do café. (...) :Entreestas [portas] as dos am1ários em cujas prateleit-as:ficav~ os espíritos (...) F.m cima destas estantes via-se um largo painel de madeira preciosamente entalhado. No centro, relógio redondo do tamanho de uma lua Aos lados deste, frente a frente, um par de grifos ou dragões, cada um com duas patas de galinha cheias de garras dilacerantes, rabos e línguas armados de ponta como as das setas. Corpo de penas e escamas. Bico, olhos ferozes, crista, asas membranosas,unguladasno exiremode cada dobra Dos grifos ou dragões ao teto e às paredes laterais - florões heráldicos envolviam o par de monstros nos seus anéis cheios de graça e nobrezaou de curvas como as que se estilizavam nas plm:nas dos paquifea dos bra~ões.Esse painel ~e madeira era reluzante da limpeza e do venuz avermelhado que o lustrava. Do mesmo material e sempre ao fundo o b~cão ~0~1 a o~áquina registradora e emba,xo mais armanos cheios de

er:ª

l'ahricando reflexo. 102

delicadezas de confeitaria (...) ~ paredes laterais eram cobertas de espelhos onde se escrevia com tinta branca, ou rósea, ou azul - as especialidades do dia (...) Espalhad~ na l()ja, mas vinte, vinte e pouc~ mesas de ·cindido mármore"' (NAVA, 198.5,p.99100). Todo eHe apuro no mobiliário e nos objetos e enfeites que ornavam o ambiente ~ repetia nos produtos oferecidos pelo estabelecimento. Bebidas • importadas, chamada.s acima por NAVA de "espíritos": Chianti, Nebiolo Gran Espumante, vinhos portugueses, franceses, e as garrafas de Veuve Clicquot, para as bolsas de velhos e poderosos senhores. Cerveja, café e água, para os bolsos

fundos da maior parte dos estudantes. Doces e salgados que eram verdadeiras •delicadezas de confeitaria": empadas, pastéis, -:oxinhas e camarões recheados, brioches, sonhos, brevidades e as "famosas" bomb~~ de creme e chocolate. Sucos

finos, macerados a mão, e sorvetes, dos mais diversos e também dos mais exóti~:

amora, caju, marrnelo, araticum, umbu, pitomba, gabiroba, bacupa.r-ipanã,

licuri, maracujá (NAVA, 1985, p. 100). Todos eles para o desftute das senhoras e

a alegria de seus garotos durante os seus passeios vespertinos. E havia ainda" queijos estrangeiros, latarias caras, sardinha, atum, salsicha, e outros produtos do

gênero. Uma casa de primeira linha para aquela que, em pouco tempo, havia se transformado na "rua do Ouvidor" belorizontina, e que assim seria vista por ,

,

mais de cinqüenta anos. Af'snal a Bahia concentrava o que havia de mais "chie" na 1

cidade, especialmente nesse trecho, acima da Afonso Pena em direção à Praça da Liberdade:



l'ahricando ujlaos 103

~'(•••) ú~ica rua de Belo Horizonte que dava a 1JUpressaode poder conduzir-nospara fora do espaço moral de Belo Horizonte. ( ...) com seus dois quarteirÕe$ comerciais, era a rua. Sem a vastidão da Avenida, onde a alma provinciana ainda não se acomodava, contentando-se em admirá-la, a Rua da Bahia era naquele trecho o lado feérico dos habitantes, a fantasia, a inquietação" (31). No comércio a Bahia concentrava os produtos de primeira qualidade: tinha confeitat·ia, restaurante,

charutaria,

bomboniere,

atelier

de

costura,

chapeleiras, agência de automóveis .. . F.ntre os seus moradores contavam-se as mais ilustres. famílias da cidade: o Comendador Fonseca, os Rocha !v1elo,o consul pol'Woauês Comendador

Avelino Femandes,

o Sr. Artur Hass,

comerciante de automóveis, o professor da Escola de Medicina,

conhecido

~- Bot·ges da

Cosu. ... Quanto aos hábitos, modas e diversão a rua da Bahia reunia tudo do que havia de melhor: o Teatro ?viunicipal, o Cinema Odeon, o Clube Belo Hor-izonte, a Livraria Francisco Alves ... , e ainda distribuidora de jornais e revistas, bondes, luzes. gente, movimento, sem falar no aclamado Jooting. Quer dizer: en

a

civilização (32).

\ Ainda na rua da Bahia, durante a década de dez, encontramos o

c~ré

Martini. Instalado no número 933, um pouço abaixo do Teatro Municipal, foi uma

das primeiras casas na cidade a oferecer música aos seus frequentador·es, tocada por urna pequena orquestra (33). Em setembro de 1913, a revista Vita publicava anúncio do Café e Confeitaria High-Life, localizado à rua da Bahia, núrnei·o 361 - "urna casa de chopes ... que pertenceu à Ifigênio Sales" (FRIEIR.O, 1966, p.254). Ponto de reunião da "rapaziada chie da capital", a casa servia café, chá, chocolat.e, bebidas nacionais e estrangeiras, sorvetes e gelados. Como apontava o anúncio, no

1''2hricQJ'ldo ujle:xo:; 104

café o cliente podia encontrar " ... uma bem montada seção de confeitaria ( ...). Confortável salão com cinco excelentes e novos bilhares. [E mais uma] bem sortida secção de charutaria" (34). Na década de vinte, o número 911 abrigava o Trianon, famoso nas memórias de Pedro Nava pelas "empadinhas pulverulentas" que "desfaziam-se na boca, e difundiam-se no sangue" \NAVA, 1985, p.10). Segundo FRIEIRO (1966), o estabelecimento era muito frequentado "pela gente de bom tom, para o drink e o chope" (p.254). Fundada por Otaviano Soares, no ano de 1931 a casa aparecer·á como propriedade da firma Caldeltas & Irmãos, a mesma que por duas vezes seria, tambén1, :i administradora do Café e Bar do Ponto, nos trinta e cinco anos em que este estabelecimento esteve· em funcio~.~nento (35). Conforme os dados levantados, o Trianon era um misto de bar, confeitaria e café, classificação que dependia da hora do dia: ''Havia a hora cheia do aperitivo da manhãtomado em pé (...) Depois morria o movimento_ e todo o dia era de .freguesiafamiliar e escassa( ...) As quatro da tarde (...) começavao movimentomais fume dos aperitivos e dacervtja (...) Outn hora oca, correspondendoà da janta da Família Mineira Nova enchente à noite" (NAVA,198.5,p.9-10).

Não há nenhum dado, em meio ao material consultado, que qualifique 0

Trianon ê:iefotma mais precisa quanto ao gênero: café, confeitaria ou bar. Sua

inclusão nesta análise sobre os estabelecimentos de café belorizontinos se deve ao

fato de ser reitera~-nente citado, nas memórias e crônicas esa·itas sobi-e a cidade, como um espaço de encontro de sua população. Além disso, a casa mantinha -~· s al"'ao• com as características mesinhas de Várias semelhanças com os c.ues:

....__

l'flhrfcando rpj[c:xo.

105

adeins., _, l'Çm, o café servido em mesa, bebidas diversas, e

• ~ ~os.

outros

Assim como os cafês., este também era um espaço de reunião e conversas as mais ·vui:idas, no assunto e na duração, ou apenas de se ~ o tm1>0 e as pessoas passarem.

Do lado oposto ao Trianon e um pouco mais abaixo, na esquina bm:it

Fabricando ,,Jlooi

ili

estabelecimentos. Distribuição parecida pode $er observada para

O

ano de 1921:

todos os quatorze cafés existentes na zona urbana estavam localízado5

naquela

3rea central, enquanto, de um total de vinte e um bote~ins, apenas doze estavam abert.os nessa n1esma região. Para a zona suburbana

O

relatório apontava a

existência de duas casas de café e mais seis botequins (48). Informações semelhantes podem ser levantadas em· documentos de outra natureza. Para o ano de 1925 o Almanaque Comercial apontava que, entre os seis estabelecimentos chan1ados café listados em suas páginas, apenas um estava situado fora da àrea central da cidade, o Café Pinheiro, aberto à rua Santa Rita Durão, número 1159, no bairro dos Funcionários. Dez anos depois, em onze

estabelecimentos listados no catálogo telefôrúcv, :;omente dois deles não estavam localizados nessa mesma região central, Café e B:sr São João, instalado na rua Platina, número 1516, e. Café l\fário, na rua Silva Ortiz, n.57. parecida na comparação entre as casas em funcionamento

Uma proporção

dentro e fora desta

região, assim como das áreas urbana e suburbana pode ser observada em relação aos outros anos da década de trinta. Esta característica da concentração das casas de café na àrea central da cidade pode ser tomada em relação ao próprio planejamento através do qual se

definiu

O

traçado e

O

uso a que se destinava o espaço urbano. Nesse caso, é

possível pesisar que a distribuição desse tipo de estabelecimento coincide com o padrão elitista que norteou a criação da capital. Todas as atenções foram dispensadas para ess! região da cidade, era aí que deveria desenvolver-se un1a vida moderna, trepidante, cosmopolita. E nesse caso, se era essa a imagem que se faz.ia a respeito das casas de café, então era, realmenu,, nesta região que esse 5



• l'ahrlcando ,(11.exot

112

estabelecimentos deveriam estar localizados. Essa idéia está bem evidente, por

exemplo,ria localização da casa de cafe mais elegante da cidade,

0

Café Estrela,

em plena Rua da Bahia, a via mais "chie" e de maior sucesso entre a ·ftnesse, a • dad e mmeu-a~. • • gentede "esco l" da soc1e .... Porém, é verdade que nem todas as casas que ocuparam essa àrea poderiam ser qualificados como o Café Estrela. Estabelecimentos

simples e

modestos e, muitas vezes bem diversos daqueles sonhados como dígnos de uma verdadeira metrópole, também se ftzer~

eles ocupavam

pt·esentes no centro urbano. É certo que

regiões menos elegantes, com maior presença de populares,

espaços de trânsito e de um comércio menos refinado. Ainda assim esse é um aspecto importante, à medida em que aponta que nem tudo que tinha sido ti~ medido e pensado nos planos da moderna capital haveria de ter correspondência na cidade "de fato", na cidade concreta. Outro ponto dessa região central da capital mineira onde é possível perceber uma pequena concentração de estabelecimentos de café e, também, de cafés-concerto, é a região da zona boêmia, especialmente a àrea con1pt·eendida entre os cruzamentos da rua Guaicurús e as avenidas Amazonas e Afonso Pena. Casas de estilos bastante diferentes recebiam uma clientela diversificada, que se divertia, conchavava e satisfazia os desejos do corpo. Estabelecimentos

mais

refinados, como o Café Guarany, onde o freguês encontrava champanhe francês e madmoissllt1s de origens várias, dividiam as calçadas com casas simples e de

qua1adaue duv~dosa, nas quais se reuniam os operários,

as "rameiras,. e os

estudantes (especialmente no fim do mês e de suas mesadas), consumindo cachaça e cerveja barata.



l'ahrlcando ,('//no&

JJj

,r. Esse caracteristica quanto à localização do1 café1 fica ainda mais patente quando visualizada no espaço urbano da capital mineira [ver mapa em anexo], além de ser reafirmada nas mais diversas noticias sobre ·a cidade.

Recordando a· Belo Horizonte dos anos vinte, um artigo do jornal E,tado de Minas reforça essa observaçio. Num pàsseio pelas ruam do bairro dos Funcionários o aonista interroga &enão havia ''bares"naquele bai1ro:

"Como não há? Ati na esquina da Padre Rolim com aVfflida Brasil, está a venda do Barto, (...) Lá podemos tomar uma ( ...) Teutônia ou wna Hamburguesa(...) Sem gelo, é claro, que geladeira (sem eletricidade)ainda é luxo dos bares do centro,o Bar do Ponto, o Iris ( ...) Aqui são as vendas. Nas vendas é que a gentese entende"(49). Um ponto in1portante que essa passagem levanta diz respeito à variação na designação que os moradores davam a esse tipo de estabelecimento. É possível perceber a presença de um certo costume, especialment.e em a·ônicas e memórias produzidas tempos depois do período em observação, de se referir ao café como bar. Escrito em 1974 o artigo chama por "bar" estabelecimentos que~ na época em que estavam em funcionamento, tinham por nome e erun conhecidos e chamados por toda população da cidade como cafés (o Ponto, o Iris). Essa mudançana denominação do estabelecimento talvez se explique pelo tàto dessas

casas de café terem, naqueles anos, usos semelhantes aos que hoje tem os bu-es (50). Além disso, o artigo também reafirma o fato de não ser con1w1~para o periodo em estudo, a existência de grandes bares ou cafés nos bailTos da cidade, ou em reg_iaesmais afast.adas do chamado centro comercial. Estabelecimentos de





Fabricando reflexo& 114

bairro, como diz

O

cronista, "são as vendas", ou então. como apontavam as crônicas

escritas sobre os primeiros dias da capital, os simples botequins. Atendendo uma freguesia menor, essas vendas eram casas, a um só tempo, mais simples, no que diz respeit.oàs -suas instalações - "geladeira ainda é luxo dos bares do centro" -

emais

diver~iticadas, no que se refere aos produtos que ofereciam à clientela. Esta, por sua vez, também ei-a diferente daquela que frequentrava o centro da cidade: mais restrita, no que se refere ao número, e localizada, isto é, composta norma~

por

pessoas do próprio bairro.

De forma diversa, as casas de café apresentavam produtos e usos bem mais específicos. Bebidas diversas, café, alimentos prontos; um serviço restrito, exclusivamente de bar, onde as pessoas faziam uma parada rápida, ou então se reuniam em gnipos an volta das suas pequenas mesinhas. Na sua grande n1aioria estes estabelecimentos estavam lugar de trânsito, de um reunindo clientes especificidades

concentrados na àrea central de Belo Horizonte,

movimento mais intenso - e, en1 conseqüência disso,

diferentes,

de bairros diferentes.

dos estabelecimentos

Talvez

em função

de bairro (clientela n1a1s reduzida

das e

específica, e a necessidade de diversificação no gênero dos produtos postos à venda), não fosse rendoso manter uma casa que oferecesse produtos e serviços tão específicos, como os cafés, nessas àreas da cidade. Assim como através das crônicas e mesmo obras literit-ias esa1tas sobre Belo Horizonte, essa ausência de estabelecimentos de café na região externa

da àrea central da cidade também p,ode ser percebida, como foi visto acin1a, a Partir dos dados reproduzidos em almanaques comerciais e catálogos telefônicos

da capital relativo;; ao período em quei.tão. Poré~ no que se ref«e às ct·ônicas e

b



l'abricando r(/luo, JJJ

d e re.1.er i:: êneta • pode estar relacionada · • outros escritos do gênero ' essa ~alta ,., amda. com as escolhas efetuadas por seus autores no momento em que recordam. Quem rememora prioriza aspectos, situações, lugares. E o lugar privilegiado na maioria dessas memórias ••é sempje.a,região central -da cidade, e são normalmente os seus cafés que povoam as lembranças desses escritores. Reunidos nessa região central, os estabelecimentos de café se --- .. -- ·----·· ....__ --·-·- ...... dividiam entre os mais diferentes tipos: grandes, pequenos, com ou sem garçom, .

sent.ados, de balcão . . . E como revelam algumas das descrições apresentadas acima, o maior e mais elegante era sem dúvida o Estrela, com todo o refinamento na decoração e nos produtos vendidos. O Café e Bar do Ponto, contando a média de vinte mesas, também aparecia entre os estabdccin1entos de maior porte, apesar

de menos requinte. De outro lado, figuravam os estabelecimentos pequenos, con10 o Java, o Cascatinha ou o Iris, com um número mais reduzido de mesas, quatro ou cinco, ou mesmo alguns nos quais havia apenas o serviço de balcão - esses, começariam a tomar conta das grandes cidades especialmente no final dos anos

trinta, crescendo em número rapidamente durante as décadas de quarenta e cinqüenta. Modestos em tamanho, eram-no tamb~

muitas vezes, nos seus

serviços: sem luxo, sem garçon e com poucos produtos. A respeito desses últimos, chamados cafés-de-balcão, as referências para as primeiras décadas da capital são bastante escassas, nenhuma crônica, anúncio, ou citação nas obras sob1·e a cidade. O serviço de balcão não era desconhecido, muitos frequentadores passavam por esses eitabelecimentos

apenas para um cafezinho rápido, tomado em pé. Estando

ocupadas todas as mesas, 0 balcão se transformava numa opção para aqueles que desejassem permanecer na casa .

....___



Fabricando reflexo& 116

A única

referência

que

caracteriza

explícitamente

um

desses

abertos na cidade como café em pé, ou de balcão, entre as

~belecimentos

décadas de dez e vinte, está em depoimento prestado pelo Sr. Valentim Ferreira Diniz. Recordando a Belo.Horizont.e de fins dos anos dez , ele-menciona o háb1to de frequentar o Café Java, juntamente com os amigos que trabalhavam como baleiros

em cinemas da capital. Sobre as instalações dess~ café ele diria: "o salão era pequeno, ( ...) não tinha mesa, era só. o balcão e as. prateleiras onde se expunha a mercadoria'\ etn geral, empadas e pastéis de azeitona (51). Num meio como este, com razoável número de estabelecimentos, várias casas criavam atrativos extras, buscando seduzir a freguesia. Nas primeiras décadas, era a música, como no Café Martini cc1n uma pequena orquestra, ou no

Paris, com sua pianola elétrica martelando músicas americanas (52). Alguns mantinhammesas de jogos, exemplo do Café Acadêmico ou do High-Lüe, onde o freguês encontrava um "confortável" salão que "novas e excelentes"

contava com mesas de bilhar,

(53). Em outras casas havia muito mais: charutaria,

confeitaria, bebidas importadas, serviço prestimoso, preços módicos . . . etc e etc. Mas·,para muitos deles, o atrativo principal era mesmo a :freguesia. que fazia do estabelecimento um ponto de reunião de determinados grupos, como será visto no capítulo seguinte . ..Outros estabelecimentos ainda, reuntam música, Jogos. teatro

e

rrulheres, mas mulheres artistas, para sermos bem claros: eram os cafés-concerto ou cafés-cantantes, c~o destacados seria

O

alguns os chamavam. Em Belo Horizonte um dos mais

Caí é e Re1ta111ante Guarany, aberto na avenida do Comércio.

números 437-4~8, bem no "centro da perdição", do randflz-vouz da capital no





p

Fabricando reflexo. 117

período dos anos dez e vinte. Praticamente não são nomeadas nas crônicas e artigosdejornais, outras casas do gênero que tivessem em seu nome

O

designativo

•café", exceção feita ao Acre, apontado num artioo sobre a vida boêmia da cidade . b como ''bar e restaurante ... [e] café-cantante" (.54). Porém, como sugere o cronista Moacyr Andrade, um número expressivo dos cabarés da capital funcionavam de maneira idêntica, ou então bastante semelhante a este tipo de estabelecimento

(café-concerto, café-cantante). Danças, bebidas, jogos, pequenas apresenta'iões ... O que talvez tenha sido o grande diferencial era o fato dos cabarés manterem quartos para o uso dos clientes e de suas escolhidas, o que não acontecia nos cafés-concerto. Assim como esses cafés, os cabarés também privilegiavam a região

central da cidade: 'Tudo até 1920 e, um pouco além desse tempo, se praticava, mesmo no centro. ( ...): o 'C,1latNoir', onde hoje é o Cine Brasil; o 'Molin Rouge', perto do atual edificio da Embrava; o ··Rat Mort', lá onde está o Café Pérola, 'Boêmios' e 'Elite' do outro lado, onde agora é banco( ...) Quem passava pela Avenida ouvia o barulho doS'cabarés. Os aplausos, as gargalhadas, a música e os coupiets das artistas. E do 'Rat Mort' vinha, para a rua, o ruído das 'fichas' com a voz de comando dos croupiers: Façam o jogo, Jogo feitof F.ram bancadas livren1entea pavuna e a roleta( ...) À porta, cartazes anunciavam as especialidades das artistas, francesas na maiot·ia, e muito bonitas. Fram as chanteuses(...)" (55)

O Café Gyarany seria contemporâneo de boa parte desses

cabarés.

lnaugurado por volta de 1908, era .Pt:opriedade da fuma Irmãos Pianna. Durante os seus primeiros anos, o estabelecimento estaria funcionando apenas como

Café

Guarany, sem oferecer qualquer luxo na decoração e com um serviço bastante





Fabricando ujlexos JJB

ainples - café, café-com-leite, média com pão e manteiga e umas poucas bebidas.

fksta época

O

serviço era executado pelos próprios irmãos, responsáveis pela

abertura do estabelecimento, 11enotti, Ricciotti, Alfeu, Anita e

3

mãe, Dona Júlia

Secundina,responsável pelo caixa (56). Nos anos dez, a casa se transformava em café e restaurante, ocupando o mesmo salão do antigo café: três portas para a avenida do Comércio e uma para a rua Rio de Janeiro. Assim como o Estrela, o novo Guarany contava também com o nome gravado em seus passeios. Mais refinado, oferecia um cardápio sortido, pratos franceses, italianos ... , "ceias noturnas, café, chocolate, doces, fumos, vinhos, conservas, bebidas e cigarros" (57), e atendimento por garçons uniformizados. Além disso, o salão possuía ainda, um pequeno tablado de madeira que servia como palco onde se apresentav-um, contando com considerável assistência e sucesso, algumas artistas estrangeiras, como "A Violetera". Aberto vint:ee quatro horas, só cerrava as portas na Sexta-feira da Paixão e, por isso, seria

chamado pela população como ''Fecha-Nunca" (58) . . Nesta época o Guarany ficou conhecido como o "'pivot' dos boêniios intelectuais" (59), recebendo um público bastante seleto, cavalheiros da "altaroda", políticos, universitários e beletristas, "... gente notívaga, frequentadoi·a das pensões de mulheres e dois ou três cabarés da vizinhança" (FRIEIR.O, 1966, p.253). E além deles, as meretrizes, "educadas. e respeitosas" como frisu-am as filhas do proprietário cm depoimento de 1993. Meio café, meio cabaré, o Guarany aguçava a ~uriosidade de muitas pessoas da cidade, que na época de

carnaval se aproveitavam do movimento em frente ao estabelecimento para espiar

um pouco

O 5 eu

interior. Na década de vinte, segundo a fanúlia, os Pianna



l'ahricando "P/.'r~or 119

fechariam o restaura.'lte. abrindo então um armazém, em outro ponto da avenida dó Comércio (60).

Assim, cafés é que não faltaram para, segundo a crença de muitos, a tarefa de "civilizar" a vida dos habitantes da nova capital. Vagando pela cidade em

julho daquele ano de 1897, poucos meses antes de sua inauguração, o cronista do jornal A Capital reclamava a ausência de uma casa de café, porém, acrescentava: " (...) tais novidades virão com o tempo" (61). Grande adivinho havia de ser o _nencionadojornalista. Afinal, como se viu, poucos dias depois, a 24 de julho, aquela "quase" capital fazia festa para a inauguração do Café l\~eiro,

e seguindo •este vieram muitos outros. Já na~

décadas de dez, vinte e mesmo trinta, a população de funcionários, estudantes, políticos, operários, comerciantes e toda a "fauna" de tipos urbanos, além dos visitantes "ilustres" (ou não) da moderna cidade, contava com estabelecimentos vários, atendendo a todos os gostos e acessíveis às bolsas de qualquer tan1anho: Belo Horizonte fartava-se de cafés - como era o esperado para uma capital cosmopolita.

E tome café, de dia ou de noite, às quatro da tarde, um aperitivo para relaxar depois do expediente maçante; logo de manhã. um cafezinho fresco para acordar e saber das notícias mais frescas; à noite, antes do cinema, um café rápido, depois, cervejada ou um café quente antes de ir para casa dormir. Frequentava-se o café para e pelos mais diversos motivos: conferir o resultado do "bicho", acertar negócios; informar-se das novidades da política, as notícias do futebol. da vida da vizinha; para fugir do trabalho. da esposa irritada, para fazer



."t;bticu.do n/!2.Xos !'10

.1 nada, ou então

S•e

er.:t.regar-à poesia. ao devaneio. "dor de como" ... Como se vê~

desculpa é o que não faltava. Reunidos nessas casas, os moradores daquela jovem capital

da

primeirametade do século, criaram redutos de convívio social, de grupos definidos segundo interesses comuns: cafés dos esportistas, dos jornalistas, dos escritores, ~os ''basbaques"_, de qualquer um. Nestes cafés e~es riram, discutir:~.

batet·~. e .

apanharam, planejavam o futuro ou íam se apagando aos poucos ... morrendo de uma curose qualquer.



Fabricando r(/lao, 111

NOTASCAJ'ÍTIJLOll 1- car:tos ~o~d de _Andrade,'Vamos ver a cidade", publicada em Minas Gerais, 17 demato de L JO, citado m: Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, Imprensa

Oficial,AnoXXXV,1984,p.64-65. 2- "Cogitou-se do assunto em 1833, sem insistência. O Presidente da Província, Soares de André~em 1843,,p~ou transferir a sede para Mariana ou São João Dei Rei( ...). Em 1851, o Presidente Jose Ricardo de Sá Rego também su..'1entoua mudança, sem êxito. (...) O priricipãl projelo-foi apresentado pelo Deputado Padre Agostinho de Souza Paraíso, em 1867". Citado in As Constituintes Mineiras de 1891, 1935, 1947: 1IIIUI análise histórica, 1989,p.46. 3- Promlll(iamento de Bernardino Au~o de Lima no Congresso Constituinte do Estado de MinasGerais de 1891, citado in JULIAO, 1992, p.12. 4- Tão desfavorável era Ouro Preto, que parecia mais iac:,ilconstruir uma nova ·cidade com "estas mamas verbas que se consumirão no embelezamento local, que jamais será satisfatório".ln: O Contem.poeâneo. Sabará, 16 de fevereiro de 1890. 5-José de Sá Rego, 1851, cit in Rvista do Arquivo Público l\ilineiro, Belo Horizonte, Ano XXXIII. 1982, p.20-21. Quase dez anos antes, outro Presidente da Província também havia se manifestado a respeito da inadequação de Ouro Preto como capital: "As Capitais ou chefes de lugares de qualquer divisão de terreno devem ser nas posições mais v:mtajos~ não $Ó às comunicações internas e externas dos seus habitantes, como de preferência nos lugares, em que mais interesses se jogarem~ ( ...). Nesta Capital está longe de satisfazer a todas estas exigências, e mal poderá em qualquer tempo desenvolver-se com aquele explendor, e acumulamento de interesses, que tocam a capital de uma Província tão importantee tão extensa como é esta e ou ela tenha de continuar unida, ou tenha de ser· feita algumadivisão por esses setões do Brasil, que facilite mais a Administração das três Províncias centrais, é certo que se deve pensar em uma mudança de localidade para a Capital mesmo de uma Reoião que compreendesse, por exemplo, toda a Costa do mar entre Campos e Belmonte, e a ;arte desta Província e~tre os Rios Jequitinhonha, das Velhas, e Paraibuna:até ao Paraíba e por este até o mar. E esta uma divisão sonhada, para a qual ficaria fora de propósito uma Capital nest~ lugar:: ~utras. s~ podem imag~nar, ~ que o mesmoca:;o de dê~ e por isso sendo para mam negocio dec1d1doque esta Cidade nao pode Continuara ser a Capital da Provís~cia,t~o ~~ o é que_~o~vé~ esperar ~lgwua ~oi~a do tempopara resolver negócio de tal 1mportanc1a. - Fala dtngtda a Assemble1a Provmc1al de

>

F'1bricando reflexo. 121

llftnas·-Geraisna abertura da sessão ordinária do ano de 1843 pelo Presidente da Província P'rands·co de Sollia Soarc:;d'Andréa. Citado in Revista do A;.qnivo Público ~.finciro. Belo

Horizonte, Ano XXXIII,1982,p.19-20. 6- Mensagemditigida ao Congresso Constituinte l\.iineiropelo Dr. Antônio Agusto de l.ima Governadordo Estado, citado in Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte,

Ano~

1982,p.25

7-Para o plano ver Revista Geral dos Trabalhos, Comissão Construtora da Nova Capital, BeloHorizonte, 189.5. 8-Alberto Olavo. Revista Alterosa. Belo Horizonte, dezembro de 1943, s.p. 9-Inauguradaa 12 de dezembt·ode 1897, seria chamada "Cidade de Minas" até o mês de julho do ano de 1901, quando retomaria o nome de Belo Horizonte, adotado pelo antigo arraialdo Curral dei Rei através de decreto do Govemadoi·João Pinheiro, datado de 12 de abril de 1890. Ver BARRETO, 1950, p.61;61. "Concordamos com o colega do Bello Ho1izonte que, no seu último número, fez ver a inconveniênciade dar-se a em:acidade o nome de Minas. Oficialmente podem chamá-la assim,mas o povo nunca há de seguir a burocracia O nome de Belo Horizonte já está consagrado,já está aceito~já tem o cuobo da popularidade. O de !,finas é exatamente o contrário: ninguém o prommcia para referir-se à cidade e sim ao Estado. Demais Belo Horizonteé título expressivo e que realmente esta localidade merece: o horizonte que aqui se descortina é vasto, é límpido, mormente nos dias límpidos, em que a nossa natur-e.za deslumbra-nos na sua louçania primaveril. O de Minas não exprime coisa alguma, é am:ipático.Concordamos, pois, com o colega que. nesta linhas, tem a nossa adesão, à idéia queacabade aventar. O Congresso resolverá a questão? O nome llinas foi dado por letra constitucional.Hoc opus( ... )" -Artigo do jornal A Capital, de 1 de julho de 1897 em apoio ao protesto do jornal Bello Horizonte ao nome escolhido para a nova capital. Ver BARRETO, 1936, p. 704. 10-A Capital Belo Horizonte, 21 de dezembro de 1897.

11-SegundoM.ANNHEIM:(1974), "A base do amálgamajá não é mais o estilo de vida e as amizadescomuns,mas opiniões Gemelhantes.( ...) A associação moderna, que se consolida 8 P~ dos cafés ingleses e franceses, despreza a posição ~ o_s~aços ~" família: é o pt·oduto de umasociedade de massa liberalizada na qual o md1v1duo tsolado e sua opinião Constituema base das afiliações políticas." (p.111).



>

FfJhrlcando ttf//P.xo J]

12- Para o caráter SJfregacionista expresso pelo plano da nova capital ver: ALVES DA

5n.,V.~1991e JUI.lAO,1992. 13- MeJlo Cançado, citado in Re,ist:t do Instituto mstórico e Geográfico de l\finz,s c;enis. vol. IV. Belo Horizonte, lmpt-ensaOficial, 1957. p.129. 14- Anuário Estatístico, 1922-1925. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1929, citado m DUIRA, 1988, p.57;59;65. !,

:

15- Ver ARAÚJO, 1993, especialmente Pat1e IV: • "A família na rua". Segundo SALDANHA(1993), essa 1·eclusãopode ser observada desde. o pe.i·íodo colonial, citando Gibeto Fre}'Te,ele aponta "o desdém do brasileiro colonial pelos espaços públicos. pelo quenão fosse o específico recinto da casa de moradia e suas adjacências imediatas: imlusive no plano da higiene, vez que o li."'to- inclusive algwnas formas terríveis de li."'toerajogado à rua (ou rio) sem nehuma cerimônia e sem nehum respeito ao que fosse público, comunal,de todos". Ver SAIDANHA, 1993, p.103-104. 1'- ''Nesse particular, mostrando as necessidades de 'uma cidade que surgia dit-etamente do matoe da flore5ta e que prometia muitas galas aos arquitetos, muitas folistrias científicas aos eagenheirose sobretudo muitas ralações e dores de cabeça aos futun,s edis, que tivessem de por oa regra do bem viver o bom povo de Belo Horizonte. seus subúrbios e cercanias'. comentavaAlfredo Camarate, em crônica n'A C:tpital: 'Porque, confessemos mna verdade: não há povo mais avesso do que o nosso á disciplina municipal. Não porque dei."'tede ser bom,cordato e razoável; mas pot·queninguém pode aprender o que se lhe não ensina ( ... ). ~ não começarmos desde já a por em vigor algumas posturas, a edificação da nova Capital será ·um problema itresolúvel. AtTiarão mantas de toucinho nos degraus da majestosa e~adaria do Palácio Presidencial~ atarão as animálias às colunas do Palácio do Congresso, comose elas fossem moirões de estrebaria, apassentarão bois e vacas nos talhões do nosso majestosoParque, se é que não lhe ativarem a cultura com estrumes gratuitos e fornecidos de boa vontade; cortarão os cuidados macadames, as ruas calçadas de pedrn ou de madeira com as rodas desses monstruosos carros de bois e que se talham em gume como que tspressame:ntepara reduzir as ruas a talhadas de melancia; pintarão, finalme~. o padt-e, a manta,o caneco, o diabo,"'. Mais adiante, BARRETO (1936) aponta que foi "pensando mais oumenos" como O cronista, que o F.ngenheiro chefe da Comissão Constrntoru incumbiu à terceiraDivisão o encargo desde tipo de serviço. ''E tudo teria de ser resolvido de acordo COQl as circunstâncias de momento, sem prejtúzo do futw·o des~11Volvime.nto da ddade e das boas normas de um centro que teria de servir de modelo para as demais lllunicipalidadesdo Estado".(p. 568-.569).

>



Fahricando .·e,fll!ror 124

.rr

17• Teoric~ente, se_~do .as opiniões expressas por ARAÚJO (1993). Analisando as transformaç.oes que atrng1rama capital da República a autoraafmna: "(...) a remodelação de s Pere~aPas~o_, que trai:is-fonnouo cenário urbano, intensificou a frequência e. o go$fo do p~sern funultar ao ar livre, promovendo interação social e valorizando es~e tipo de lazer, como ocorreu em outras cidades do mundo, através de programas de embelezamento e reformasurbanas"(1993, p. 327). 18- Paraa crítica a respeito das influências negativas exercidas pelo w-bani::momoderno sobre a vida pública das cidades consultar: SENNEIT, 1988; BERMAN, 1986; GHOAY, 1979, HOLSTON, 1993; outras críti_c~ a_o pl~~j&nento _ro,o~o _ 4~ cidades são encontradasem SITTE, 1992, e ARGAN, 1992. 19-Diário de !,finas. Belo Horizonte, 11 de dezembrode 1927. s.p. 20- Citado in Revista do Arquivo Público ~fineiro, Ano XXXIII,Belo Horizonte, 1982, p.281. 21-PedroRache, citado in FRIEIR.O,1966, p.209. 22- Considerando essas casas de café da velha capital, é possível pensar ainda que os encontros, os debates, a reunião social dos quais os cates belorizontinos fo1·am palco tambémtiveram lugar naquela antiga Ouro Preto, e neste caso, a nova capital talvez não tenhain~onrado nada de tão novo ou "civilizado" no que se refere à sociabilidade no interior das casas de café. E neste caso, se o café era tomado como signo de civilização, Ouro Preto talvez não devesse ser vista como wna cidade tão pi·ovinciana, como proclamavamalguns. 23-Djalma Andrade, Revista Alterosa, Belo Horizonte,Ano m,n.22,jan/fev de 1942. 24- Para a importância alcançada pela rua da Bahia nas primeiras décadas da capital consultarCHAGHAM,1994. 2~. Sobre a ligação entre os componentes da geração modernista e o Café Estrela, ver NAVA,198~ e DIAS, 1971. 26-Estado de Minas, Belo Horizonte, 13 de dezembro de 1959, p.13.



Fabricando ,ef[aos 125

1J-Ver L!s!a de Assinantes~ Companhia Telefônica para O mês de julho de 1933 [Café e uarMurur.1pal]e para fevereiro de 1934 [Café e Bar Aguiar]. Ver também Almanaque tammerl Edição para o ano de 1936. 2.8-Estado de Minas. Belo Horizonte, 13 de dezembro de 1959. p.13. 29-Revista Minasem Foco, 1919 cil in \VERNECK, 1992. p.37-38. 30- Sobre a "sacristia" do Café Estrela, ver NAVA, 1985, p.101, outras informações tambémno próximo capítulo deste trabalho. 31-Paul~ Mendes Campos, "Subir & descer~ Rua da Bahia" in: ANDRADE, 1967. p.5961. 32-"(...) iremos ver de novo a rua da Bahia alvoroçada, revivendo os seus dias passados, naqueletempo em que alí se reuniam os elegantes da cidade". Folha de A-fius, Belo Horizonte;8 de a6 :.stc de 1941, p.3. Ver ainda reportagem especial sobre Belo Horizonte na RevistaO Crnzeiro, Ano XLIII,n.11 de 17 de março de 1971 - artigo "Rua da Bahia de onteme de hoje", e Fernando Sabino, ''Belo Horizonte de todos os tempos", in: Estado de Minas,Belo Horizonte, dez de dezembro de 1987. 33-Estado de Minas, Belo Hot-izonte,13de dezembro de 1959, p.13. 34-Revista Vita. Belo Horizonte,_setembro de 1913. s.p. 3~- ·ver Catálogo telefônico para dezembro de 1931. "Caldellas e Irmãos, 911, Bahia ..........3921. 36- F.ntre os estabelecimentos mais modestos instalados na rua da Bahia estavam, por exemplo, a casa do sr. Balila, onde eram vendidas balas, biscoitos, e produtos afins e a casa de frutas do "negligente" Baiano (sujeira, ftutas velhas e mosquitos). Entt-evista: Valentim FerreiraDiniz, Belo Horizonte, 28 de setembro de 1993, ver também Fernando Sabino, "BeloHorizonte de todos os tempos", op. cit 37-Folhade A-finas.Belo Horizonte, 6 de abril de 1940. s.p. 38-Moacyr Andnde, crônica publicada no Estado de Minas de 22 de novembro de 1973. Revistado Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, Ano XXXIII, 1982, p.280-282.



JTahric'2.r.do reflaoi 126

JJI-Não exi~, ~e

Omateri~ consultado, referências quanto à freqüiocia de membros das

C301adas _n131sbauas da sociedade ao elegante C:síé Estrefa. Como e:rtabeJecimeotos .,merci~s, ..os cafés e~avam teoricammte abertos a todos, pormi é possível notar uma certa 4~c1açao ffll relaçao a essas _casas,baseada no tipo de clientela mais assídua Um entn os vanos elementos que determmavam essa diferenciação era o poder aquisitivo. C~as "chies"e refinadas como o Estrela acabavam intimidandorepresentantes das camadas mais pobre~, quer_peloluxo, quer pelo preço. 40-"Além de US1rpara do Herói, a designação Bar do Ponto excedeu-se psicologicamente e passou a compreender todo um pequeno bairro não oficial mas oficioso: o que ~~ pode colocar dentro do circulo cujo centro seria o da praça e cujo raio cortasse a esquina de Goiás,mn pouco de Goitacazes, o cruzamentode Tupis com Espírito Santo, que tomasse a AfonsoPena, descesse Tamóios, entrasse no Parque defronte ao início do Viaduto Santa Teresa e voltasse à origem depois de reincursionar na espinha dorsal de Afonso Pena. Dentrodesse círculo tudo é Bar do Ponto." NAVA, 1985, p.4. 41-Ver Almanak f.'ommercial, referente ao ano de 1925 para os cafés Colombo e Avenida, e alista de Assinantes para dezembro de 1931 para o Cale Passos. 42-Ver dados constantes no Almanak Comercial para o ano de 1925 e Catálogo Teleíonico de 1940. 43-"A firma Caldellas e Irmão~, que é também proprietária do Café Paládio e do já fümoso Bar Trianon, além de outros pequenos estabelecimentos (...)" - além do já citado Bar do Ponto.Ver Folhade Minas,Belo Horizonte, 6 de abril de 1940, p.3.

44-Ver Almanak Comercial para o ano de 1924 e Catálogo Telefônico para fevereiro de 1935. 45- CatálogoTeleíonico para dezembro de 1941. 46- Porém, como se percebe peta foto, o.essa época o estabelecimento já estava fechado, sendoo imóvel anunciado para aluguel. Não foi possível determinar se o cafe dos anos trintaera O mesmo estabelecimento que, alguns anos antes, esteve aberto nesse DÍlmero560 da avenida A falta de documentação seriada, como catálogos ou almanaques, para ~sses período, impedem afirmações a esse respeito. A. ~~eia de dados em outros materiais consultados(crônicas, artigos, publicidade, obras hteranu) convergemno mesmo sentido. 47. Ver projetos par~ 0 Parque Murucipal em BARREfO; 1936, p.560- 562.

b

,.,, ,, . Ili 19

,idJ~

.,! cidade p.'Uais. Porém, em .

in3cess1,

diasde pouco movimento, elas podiam se tomar ótimas companhias, conversando sobrePoesia, sobre suas experiências nas cidades do. velho mundo , e na língua que freeuêsprefetisse: :francês, inglês, espanhol, italiano,· ... o ..,

'Tinha pois latin e conversa, mostrou-se inteligente e amiga das letras. :Mencionouo Ariosto, o Tasso, ~letastácio e Goldoni. Falou em Manzoni, . D'Annunzio, Pinndelfo e Papini. Citou autores franceses, esponhóis, ingleses e tedescos. Bestificado prestei atenção naquele reboque do 7..egão. (...) Quando ela nos contou CfUetinha exercido na Indonésia e Java, que fora cocote em Xangai, animadora dos caies-concerto da Alexandria,Bagdá, Atenas e São Petesburgo, que conheceraRasputin, l\fadame Viroubova e o Grão Duque Cirilo, mais, que muito jovem fizera a GrandeGuerra no Seviço Secreto Italiano( ...) nossa admiraçãonão conheceu limites. Fon de qualquer dúvida estávamos diante de uma continuadora da grande linha Bela Otero, Liane de Pougy, F.milienne d'Alençon e tínhamos de recebê-la com champanha e pompa" (NAVA, 1985, p.130-131). Talvez as lembranças de NAVA sobre os idos de vinte estivessen1 já embaçadas._ e embaralhadas,

talvez ele pudesse

estar exager·ando quanto

aos

atributosde certa italiana que conheceram no cabaré da Olympia. Ou, quem sabe, ela prôpria não os teria ludibriado Porém não era raro enconb.u- mulhei·es de difer,....•,. l ~•&UCSPartes do mundo prestando serviços nestas casas, atma , como apont.a

lt.4..GQ (1990), a novidade,

0

nomadismo eram impottantes elementos de excitação

hessern Unclo da prostituição (43).



► Ji

cidade para além do e&pelho 159

Estes cabarés também foram palco de lazer, de brincadeiras, de jogos, piadas, chistes e bebedeiras. E eram lugar de difusão de modas e hábitos sociais: das modinhas rrrusicais·' da e1e~0 ância nas as danças,. o bhies, o tango, o raanme· õ·· ' maneiras e no modo de vestir, do extremo requinte de ser servido à mesa com o champanhe_.No mesmo episódio mencionado acima, NAVA (1985) recorda o fato de terem tomado champanhe no Éden, o famoso cabaré da Madame Olympia. Estudantes e de poucos recursos, ele e seus amigos frequentavam mais amiúdt bordéis mais simples e baratos,

tomando sempre a cerveja de costume. Porém,

naquela.ocasião, em troca do anel e relógio de ouro, mais a pérola da gravata de um dos amigos,• eles puderam gozar o prazet· de manter sobre a mesa e saborear dois ''botelhaços" de J,éuve-Cliquot. Nova toalha e novos copos para encenar um novo ritual, afinal aquela era uma bebida fina, um néct.ai· do mundo civilizado, servido em baldes cobertos com "alvos" guardanapos. "(...) ao estouro, todos olharam aquela roda de boiardosdechainés. ( ...) comovidos provamos da bebidados coronéis. (...) Sentíamo-nosnas Folies Bergêres,emParis( ...)" (p.131). Nessas aventuras pelo meretrício da cidade, esses jovens mineit·os se solidarizavam e compartilhavam os primeiros encontros amorosos, os prazeres do dinheiro, das mulheres e de certos vícios, o orgulho de serem observados por todo cabaré, de tomar champanhe francês, ou de conquistar determinada meretriz. Uma noite como essa era um momento de vazão das mais difet·ent.es fantasias desses rapazes em relação à vida boêmia. Fantasias moldadas à imagem daquela vivida pelos grandes poetas franceses, uma vida boêmia de grande cidade cosrnopolita. Ultrapassando as fantasias, essas aventuras também estavam carregadas simbologias, elas ·representavam

de

um "rito de passagem para a sua abertura à

.A cidade para além do espelho 160

alterictade e para a sua integração social" (RAGO, 1990, p.271). Era o ser homem,

serviril, ser tratado pelos outros com respeito, talvez com inveja. Apesar de ser um espaço de reunião e sociabilidade

para certos

grupos, havia algumas regras a serem observadas entre os frequentadores

dos

cabarés. Aqueles que vinham em pequenos grupos divertiam-se juntos, porém não cumprimentavam

os

"respeitáveis

senhot·es" conhecidos

que

por

ventura

encontrassem pelo mesmo canúnho: "se se cruzavam, mesmo se se adivinhassem íntimos· não se vian1 nem se conheciam. (. ..) envolvidos [todos eles numa] cumplicidade tácita".

Entre eles passavam "leves e rápidos uns raros moços".

Vultos de homens "honestos" e de "respeito" que desciam as ruas ela cidade para um_pouco de c.ii-.,ersão.D_eslizavam como peixes, "a catTegar para os olhos os chapéus desabados ou arvorar óculos escuros, esconder os bigodes e as nucas dentro do cai1ucho·dos cachenês empurrados por mãos previdentes até as orelhas narizes. Andavam sem barulho como se estivesse.m transpondo· o solo duma nave a ponta de pés. Estavam descendo (NAVA,1981, p.383).

Ao lado destes cabarés, que marcaram a memória e a sociabilidade dos homens da cidade de Belo Horizonte, sobt·essaem-se os cafés. Assuu como aqueles os cafés também seriam, por essa época, espaços privilegiadamente masculinos. Não existem referências à presença feminina, seja ·nas pequenas rodas de conversa ou sozinhas, no interior destes estabelecimentos. Na verdade, é bem rnais fácil encontrar nas crônicas sobre as primeins décadas da cidade, afinuações negativas a este respeito:

b



.,4cidad, para além do eipelho lól

"&a só para homens ou artistas de caie-concerto. As senhoras não entravam ainda em restaurantes e

cafés"(FRIEIR.O, 1966,p.251). "Senhoras porém não entravam no Café e Bar do Ponto, ou no Iris e· Aóidêmicó ( ...) Neles sõ a homaiada se reunia( ...)" (44). ''Não tínhamos a presença sequer de •uma mulher. ~{oç~-~-~Q.çied~4ejamais sentaria na mesa de um

bar( ...)" {RENAULT,19i8, p.92). ••

••- - - •

E muito n1enos na de um café. Aliás, isso não em uma caractet·ística específica da cidade, fosse no Rio, São Paulo ou em Paris, não era muito comum a presença de mulheres nestas· casas. Nos países eut·opeus a freqüência fenlinina só começa a ser mencionada a partir. do século XIX. Na França, alguns estudos apontam que somente em meados dos oitocentos set·ia facultado às senhorns da sociedade a entrada em cettos estabelecimentos de café, mas apenas àqueles dos grandes ''boulevanls" e, assim mesmo, num período em que a presença no café é vista como ação dissociada do debate, da interação social, num momento em que o silêncio, a busca da intimidade, são apresentados como u·aços "caracte.risticos" do comportamento burguês. Este é um dos aspectos analisados por SENNETT (1988) como fenômeno do processo de deterioração da vida pública, sobt·epujada pelas Ntiraniasda intimidade". O autor ainda chama a atenção para o fato de que, ainda

em 1890, em Paris e Londres, não era considerado de bom tom uma mulher freqüentar •.desacompanhada

umsalão

de café, arriscando-se, inclusive, a ser

impedida de entrar (p.267-269). Até mesmo para

a5

kahve.h kasses do orie,nte não

há menção à presençã de mulheres (OLIVEIRA, 1984).

► .Acidade para além do Espelho 162

Possivelmente apenas

Os

-~· CGJ.es-concerto contavam

com

fj

,guras

&..-.ininas assim mesmo daquelas a quem Ja · · nao .. unportava • · a reputaçao. .. 1guu.. ' mmto

i::eeram semelhantes aos cab ares • no que se refere, por exemplo, a, frequencta -• • 1 l\r'as • . txclusivamente nlasculina, os cafés- ·se- diferiam destas casas em outros ·vários aspectos. ~ assim poderá

ser observado em relação a paticamente todos aqueles

lugares de exercício da sociabilidade entre os habitantes da cidade , mencionados no decorrer

desse

capítulo.

São

esses

estabelecimentos

de

café,

sua~

caract.eristicas, seus :frequent.adores, seu cotidiano que serão examinados de forma mais detalhada nas páginas seguintes.

Os homens e os cafés As informações citadas anteriormente revelam que opções de espaço

para o encontro não estavam ausentes por completo na nova capital como deixan1 imaginar certas crônicas que _abordam sua vida social, examinadas anteriormente. Talvez apenas, como já foi discutido, eles não se encaixassem nos modelos ou nos desejos que algumas pessoas tinham acerca destes espaços. Não faltavamfootings, clubes, cinemas, parque, e mesmo alguns t·estaurantes . . . Mas, em se tratando de casas de repasto e venda pública de bebidas os cafés seriam, especialmente nessa

região central da cidade, os estabelecimentos mais proeminentes e, em certo sentido, os mais populares.

Esta importância e popularidade alcançada pelos cafés belodzontinos

em meio a outros lugares de interação social, pode ser pensada através de proprosições semelhantes às que os estudiosos dos cafés eu1·opeus apontam para

.....____



.Acidad, para aüm d? espelho 163

.ri'

os estabelecimentos daquele continente. Como se viu no primeiro capítulo, os cafés se difu nd iram pela Europa num momento de transformações sociais, em que novas camadas ocupavam o espaço das cidades e promoviam mudanças

nos

fom1as de ,·elacionamento entre· os• homens. -Ponto de encontro de indivíduos de diversas classes, os cafés se tomaram lugar de uma sociabilidade de curso li-vre, desobrigada que estava em obsetvat· símbolos de "status" nas relações travadas entre seus. freqüentadores, símbolos que, muitas vezes, ainda regiam o§: con_t_~t9s.. estabelecidos em clubes, salões, no teatt·o, nos passeios a parques, praças e jardins, entre outros.

Como foi apont.ado acima, a nova capital mineira também com seus clubes, saraus, bailes ... ,

contava

porém, assim como os clubes e sal e~~

europeus, restJ'itos e selecionados, caracterizados por um tipo de sociabilidade mais fechada, circunscrita e elitista: "( ... ) havia na Cidade de :Minasum club rea·eativo, fino e seleto ( ...) Chamava-se Club das Violetas. E havia outro club seletíssimo, com tendências aristocraticas, que se denominava Rose( ...)" (45).

''F.ntrei comovido na

in..~tuição por

um

corredorzinho estreito ( ...) o Clube Belo Horizonte ( ...) era a casa onde se reunia a elite da cidade"

(NAVA, 1985,p.52) Os bailes e saraus não diferiam muito desses clubes, reunido às vezes moças e estudantes, às vezes apenas senhoras da sociedade, outras o crima dt1 la crem11. Por outro lado, reuniões promovidas pelas e.amadas mais popuhu·es

dificilmente contariam com a assitência da "escol social" belorizontina. Footings, praças e cinemas por sua vez, propiciavam contatos que. na maioria das vezes.





.A cidade para além d) e&pelho 164

erammuito

fugazes e superficiais. Mesmo que públicos, eles também revelavam ·a

presença de uma certa seleção: as roseiras da Praça da Liberdade entre o footing de ricos e pobres. Entre os cinemas, o

eram a fronteira

Odeon era o· templo da

turma raffinée, enquanto o Glória ou os ·•"cinemas-poeira" reurúam as outras camadas da população: ..onde a_gente podia ·ir com a roupa de andar em casa" (46) . .,.

.

-

E, além disso, cinema era lugar· par~. ~e:-~er ·fitas, local de simples cumprimentos, conversas mais .curtas,_ao "pé do ouyido" e de..gmpos_bastante r.eduzidos. Os cafés, ao contt·ário, mantendo suas portas. abertas diariamente para as ruas da cidade,

atingiam um público muito maior e mais diversificado.

Afinal,

nestas casas não era necessário a indispensável apresentação através de um amigo ou de simples conhecido, como de praxe, por exemplo, em clubes ou nos salões J::. sociedade. Como revela Nava, ele não poderia desfiutar as salas de leitura ou ée jogos do Clube Belo Horizonte se não fosse pelas mãos de seu amigo, e sócio da instituição, Paulo J\-ionteit·o Machado: "Obtemperei

que não éramos sócios, o

Cavalcanti e eu. Mas o Paulo disse que com ele entrávamos ( ... )" (NAVA, 1985, p.51). Um desejo de empadinha, de café quente, de cerveja, de água fresca, de conversa despretensiosa,

fazia reunir nestes estabelecimentos

pessoas

diferentes estratos sociais. Certamente havia casas que se caracterizavam

manter uma clientela refinada, como por exemplo o Café Estrela,

de por

ou então,

aquelas onde predominava uma freguêsia mais popular, como o Bar do Ponto ou

0

Café Java. No entanto, mesmo que revelassem certas preferências sociais, estes estabelecimentos apresentavam um tipo de sociabilidade menos restritiva. formal e seletiva que a maior parte dos; outros espaços mencionados acima.





A cidade para além do e;pelho 165

Da mesma maneira que as casas de café existentes no continente europeu. ou aquelas abertas em grandes centros brasileiros como São Paulo e Rio de Janeiro, os cafés belorizontinos se constituíram num dos principais espaços de sociabilidade para a sua população durante as primeiras décadas da nova capital lugar para exercitar a "arte de bem conversar, o gosto pela anedota, a inventi~,a na aiação de histórias, a Í!Tesistível vocação para a malediscência, ( ... ) o admirável bom-hum'>r" (47), reuniões nas quais velhos companheiros

e também

alguns

desconhecidos compartilhavam o prazer, o estímulo agradável de estar com o outro, sem qualquer compr~rnisso. Assim também parecem entender os cronistas e os responsáveis

pela publicidade

destes

estabelecimentos.

Umas

e outras

constantemente salientam a •imagem dos cafés como um lugar de encontro, de

reunião social, de estar entre amigos: ''Pontode reunião da elegância belorizontina (...)" -

Trianon(4&). ''Ponto de reunião da rapaziada 'chie' (...)" - Café Bigh-life (49). ''Ponto de reunião da classe acadêmica,sportmen..e famílias( ...)" - Café Diamantina (.50). "(...) ponto de reunião de torcedores de :futebol(...) de reunião de literatos (...)" - Café lris e Café Estrela (ANDRADE, 1947, p.44-45). •.

Além de evidenciar o caráter de espaço de enconb·o que n1 .u·cava estas casas de caf~ as passagens citadas acima apontam, ainda, para outro Írnprtante aspecto: a formação, em grande parte destes estabelecimentos.

de

pequenos grupos, constituídos a partir de certos interesses específicos. Em muitos

11111-...___

>

.,1cidade para além do e&pelho 166

~

casos, esses grupos serviam, inclusive, como um elemento de identificação

distinção entre estes cafés, marcando, por sua presença e preferência, cada casa como reduto de determinada corrente ou atividade: profissional, literária, política, esportiva entt·e outtc1s.

A localização era um dos fatores intluêntes na caracterização do tipo de clientela

mais

freqüente,

como

se

nota

pelos

estabelecimentos

funcionamento na rua da Bahia. Nesta via •estavam instaladas

em

algumas das

principais redações de jornais e revistas em circulação na cidade, o que acabava ' . contúbuindo para o fato de seus cafés serem pródigos em jornalistas e colaboradores. Os modernistas que "davam plantão" no Diário de !\,finas, faziam sempre uma hora-extra nas mesas do Estrela, onde tinham também o seu "li'vro de ponto", os r·edatores da revista "\'1dade !\,finas 0:vERNECK, 1992, p38). Na verdade, a presença desses pequenos grupos - reunidos a partir de algum tipo identidade, do reconhecimento em partilhai· traços, preferências, valor·es, atividades . . . semelhantes - parece ser um aspecto característico desse tipo de estabelecimento. O mesmo pode ser dito quanto ao fato da identidade destes grupos acabar se excedendo, tomando-se como que uma característica do próprio estabelecimento, como é possível perceber para grande parte das casas de café nomeadas até aqui. No Rio de Janeiro, por exemplo, GOl\ffiS (1989) aponta o Café de Da Bourse, frequentado por comerciantes,

o Café do Amoriin,

que

mantinha banqueiros e tabeliães como clientes mais fieis, o Nice, reduto de sambista5 e radiali~s.

ou o Café Rio Branco, conhecido como a sucursal do

Clube de Regatas Flamengo. (p.65~ 78~ 79~ 83). Os cafés europeus parecem não fugir à regra. Na Inglaterra do século À.'VIII, essa caract.erist.ica é apontada att.ivés



p

.Acidade para além do e.peího 167

de um artigo da National Review (n.8), citado em Habbennas: "Toda profissão.

todo ramo de comércio, toda classe, todo partido tinha a sua cafeteria predileta" (51).

Em Belo Horizont.e vários grupos também marcariam certas casas de café, como os integralistas no Café Paris,

os· jornalistas

do Java

ou os

investidores que buscavam infotn1ações, negociavam papéis, títulos e fechavam contratos com Arlindo Pardini no Café Acadêmico, filho da proprietária

do

estabelecimento. O grupo dos literatos, modernos e sonhadores, elegeram como o "seu" café, aquele que havia de mais "chi~" na cidade. o Café Estrela:

"À noite, quemlá entrasse, havia sempre de ver em tomo de mna mesa, os estudantes alegres, que hoje se tomaram os varões mais circunspectos e legítimas expressões da inteligência brasilein" (.52).

Aspirantes à intelectualidade, aquela vanguarda, chamada por· seus opositores naqueles anos vinte pelo nome de futuristas (NA V A. 1985, p. 92), se cercara de uma moldura elegante e refinada: os espelhos

e as madeiras

envernizadas das vitrines e prateleiras do café, mais o movimento e o burburinho

- da chama~ "rua do Ouvidor" belorizontina, a rua da Bahia. Além do gosto pela

"arte" (da casa) e pela "civilização" (da via), havia outros aspectos à tàvor da .

.

escolha do Estrela: a proximidade que este café mantinha daquelas r·elíquias expostas nas estante; do Alves, a melhor livraria da capital, aberta a apenas alguns passos Bahia acima, e também, alguma5. redações de revistas nas proximidades do estabelecimento, como a· Tank.

que funcionavarn

no mesmo sobrado onde





.14cidade para além ó., l!&pt!ho 168

.rf

!1Sl3V3 instalado o cúé, ou a Vida de :Minas, na esquina de Bahia com a avenida Augusto de Lima. ·Esses

estabelecimentos

reuniam

1,1

1

escritores,

jornalistas

e

pensadores se t.omar·iam conhecidos como "cafés literários", dos quais um dos expoentes seria o Café Procope de Paris. Espaço público aberto à conversação, eles passariam a desempenhai· o papel dos antigos salões literários. Poemas, prosa, filosofia .eram dados ao conhecimento público e à crítica. E para um público int.electuale selecionado, os espaços tambén1 seriam especiais, car·acterizados pelo luxo de suas instalações. Como observa :MATONTI (1992). casas de venda de bebidas como cafés~ cabarés e tabernas acolhiam "clientelas específicas para consumações específicas", e dessa forma os cafés deveriam oferecer um ambiet.a!..:. refinado para um público de "qualidade" (p.104). No entanto, ele chama a atenção para um erro freqúente: o de assimilar o café literário simplesmente à um café de luxo. Como aponta, um café literário não se define unicamente pela qualidade de sua decoração, seu serviço e de sua arquitetura, ou ainda, as atividades (o ato de escrever) que nele tê.tu lugar, mas, principalmente, por seus frequent.ador·es e por· ..

seu estilo de vida: "Desde sua origem, não são tanto as atividades praticadas no interior do café e sim a ~idade _nos dois sentidos do teimo - de seus chemes que transforma wn cate em caie literário. (...) o nome café literário tem mais a ver o com >netie,.. do escritor com seu status e seu estilo de vida do que com 3 ~tividade da escrita propriamente dita. (...) ele é por excelência o lugar das controvérsias littrárias" (p.103)

?

.A cidad, para afim d,. e&pelh.,

169

.rf

A r~uniio nesses cafés representava para os escritores, . • tanto em p aras coato na jovem Belo Hor-izonte, um momento de troca de ínfonnações, opiniões, criticas e ex-periências, seja de assuntos· exclusivamente literários ou não. Através dest!CS

encontros, esses jovens literatos tomavam contato com as mais novas

c«rentes artísticas do mundo civilizado, ao mesmo tempo em que começavam a construir as bases se seu próprio estilo. Para os "aspirantes" à escritor, esses cafés

eram lugar especialmente de aprendizag~m e inspiração, algumas vezes 4.e vtrdadeira veneração, como revela Guilhennino César, referindo-se ao grupo modernista do Café Estrela: ..urrávamos de gozo toda vez que o Simeão,( ...), nos servia uma xícara de cate na mesma mesa em que havi~ sentado, horas antes, tantas celebridades paroquiais"(53).

Se os "modernistas" eram vistos por alguns rapazes daquele pedodo, como o supra-sumo do movimento literário mineiro, partilhar o espaço, o ambiente por eles frequentado

era como que partilhar suas idéias, compottan1entos,

p-eferências, visões de mundo, era quase como "ser um deles". mesma mesa em que esteve

Sentar-se na

Drummond, A.scânio, Nava, F.mílio, Abgar ... , ser

servido pelo mesmo garçom, ter em volta de sí aquela mesma moldura - o café, com seus ares de requinte francês - era como que incorporar o signo de "ser um moderno", que não se restringia apenas à poesia, mas também, e em especial, à vida, ao comportamento, às preferências, à juventude daqueles rnpazes da Belo Horizonte dos anos vinte. Para Guilhenruno César, frequentar o EstreJa naquela época que-tia "dizer" algo, era como incluir-se num determinado grupo, marcar uma posição para

A cidadt para aiÉm do t.pdho

170

t e paraoo demais (~4) Ness

s

Como seu



t'd

e sen I o, como "lugllr" de um d t rmin do grupo,

espaço de ação cen.1..n·o · · • ª de ati'tudes e comportamentos s1gi1dicantes (que

simbotiz m algo, ou onde se inscreve uma adesão a um tipo de pensamento, de é mae o~ c"'"~s · • • • e• ninortament.o) -r ,' 'r .. u.ii... parecem mcorporar a 1dent1dadedesse grupo. E assim q~1e,_para alguns ir ao Estrela era ser poeta, ou melhor era ser modernista. Afinal,poetas havia aos montes pela capital mineirn - como se viu, no início desses anos vint.e, o Paris seria reduto da corrente simbolista - por isso não er~ difici: enc.onb-á-losnos dive.r·sos est.abeledment.os de café abettos na e.idade: "( ...) os cates regorgita\."3Dlde poetas que procunivamno absinto,afogarmáguasimaginárias. k; namoradas serviam apenas de pretexto para devaneios alucinados. Não mi a noiva que se procurava, mas apenas a musa inspiradora"

(ANDRADE, 1947,p.63). E dê-lhes absinto e horas ,raziaspara que seus sonhos e divagações tomasRro forma de versos rimados entre as mesas cla.t-ase redondas destes cafés. Pelo que sugere as infonnaçõ.es sobre alguns desses grupos literát'ios (modernistas e simbolistas, por exemplo), a idenlifícação com dete.nninada con·ent.e,gnnde parte das veus, excluia a freqüência ao "reduto" do outro grupo, uma vez que essa

identificaçãoenvolvia uma escolha - a de ser\peitence.r a uma ou outn con-ent.e.O mesmo pode ser observado, por exemplo, em relação aos cafés franceses (MATONTI, 1990, p.106). Porém, como aponta BARRY (1993), no mundo ut-bano essas"identidades" apresentam um caráter_múltiplo, o indivíduo se inset·e numa

rede de grupos e preferências e opin~ões diversas (polit.ica, artist.ica, esportiva, ...).

É segundo essa perspectiva que se pode encontrar os modernistas no Bar do Ponto, ou esses e 05 simbolistas no Café Guarany, ou no Java, no Acadêmico ...



p A cidad, para além do npe1J1o 171

Da mesma forma, caracterizar uma casa do gênero. como reduto de determinado grupo não exclui

3

presença de um público variado e diverso do mesmo.

Assim, apesar da freqüência mais amiúde de determinados grupos, a gr"!ndemaioria dos estabelecimentos se caract.erizava pelo ecletismo - afinal isso er·aum comércio e todo mundo era cliente potencial e bem-vindo. Lugar de estar entre amigos, de conversai· sobt·e a política, o futebol ou outra coisa que se queira, os estabelecitnentos de café atendiam aos mais diversos desejos e necessidades. Entrar nwna casa do gê.net·o era oportunidade de sabot·ear um café aromático, servido em mesa por garçom, mas, muitas vezes, não se resumia apenas a isso. Ir ao Estrela, na Belo Horizont.e daqueles

idos de vinte, para. Nava, Dtun1mond,

Emílio ~.{oura e outros jovens daquela geraçãe, ~ra, além do café e das cervejas, discutit·lit.et-ah.Jt-a., poesia, conhecer novos autores, novos livros, fundar revistas. ''Escrever era bom, sobretudo para mostrar aos companbeu·os de café, quando cada um de nós tirnva

do bolso seus produtos literários do dia e expunhaà aitica informal dos outi·os" (.5.5).

Poesia, crônica, ficção, histórias que um dia estariam estampadas em páginas de alguma publicação - jornal, revista, coletânea, livro -, outras que ficariam esquecidas pelas mesas do café ou numa gaveta velha cheia de papel amarelado: "Lembro-me de que passei uma noite inteira de Natal a escrever de colabor-ação com o '.Milton Campos, nas margens da~ . ~olhas ~ 'Edição

Comemorativa do Centenano do Jornal do Comércio' wna epopéia belorizontina em que fazíamos alarde de rimas raras e •introduzíamos



►·

>

A cldarü para além do e&pelho 172

todos os amigos e conhecidos nraticando façanhas extraordinarias. Creio que a co~posição se iniciou ~o C~fé ~strela, pouco depois de comprarmos os Jornais vmd"s do Rio, por volta das dez horas da noite, e só foi terminar, ao amanhecer, num botequim da Central do B.-asil (.56).

Toda a atividade, a discussão, o cruzar de opiniões que tinha lugar nesses estabelecin1entos, fazia desses cafés um lugar onde se poderia encontrar conversação construtiva e inteligente. É segundo essa imagem que seus salões t.ambémserão vistos como espaço onde seria possível "educar-se socialmente", aprendendo sobre as formas, os códigos e os significados dos atos e do comportamento em público. Assim não era só "aula de literatura" que os cafés ofereciam aos ~~us frequentadores; distinção, boas-maneiras também faziam parte do currículo que essas casas oferecian1. Na Europa do século

XVIIL era

considerado de grande importância o papel que os cafés desempenhavam

na

socialização dos indivíduos. O esa-itor Gil Bns de Satú.illane dii-ia a esse respeito: "Aítnal, os cafés são lugares excelentes para desasnar a juventude, que atí pode corrigir seus defeitos imitando os exemplos alheios" (57). Também em Belo Horizonte os estabelecimentos de café serviam para

"desasnar" os jovens estudantes aspirantes a escritor, tanto no que se refere à cultura livresca como à dos comportamentos sociais. Ao mesmo tempo em que

0

salão do café facilitava o contato e a disseminação das novas idéias, conentes, autores e livros

_ em

especial os estrangeiros, mais caros e por isso mesmo

rnfflos acessíveis -. ele ainda propic~ava o contato e a disseminação dos sirnbolos

de um comportamento tido como moderno e civilizado. !\iodas, costumes, e até mesmo um certo "estado de espírito" podiam ser apreendidos e compartilhados

..



>

.rf.

nesses estabelecimentos. Entre muitos jovens,

0

ambiente da cidade e o dos seus

espaços de encontro eram vistos como elementos de civilização,

capazes

de

"educar" especialmente os colegas vindos do interior. Ao chegar na capital mineira

ainda na década de vint.e, Alfredo Renault seria questionado ironicamente numa roda de amigos: ''Veio civilizar-se?" (RENAULT, 1988, p.80). Ainda no âmbito literário, os cafés foram palco da fundação de vários jomais, para não dizer redação de alguns deles. Traçand